Lima Barreto: triste visionário | Lilia Moritz Schwarcz

Creio ser desnecessário apresentar a renomada escritora Lilia Moritz Schwarcz, autora de muitas obras no campo das ciências humanas. Iremos nos limitar a dizer que é uma pesquisadora com formação em História e Antropologia que, ao longo de suas pesquisas, tem contribuído sobremaneira com o debate acerca das relações raciais no Brasil. O livro O Espetáculo das Raças é um exemplo cabal do que estamos falando.

O objeto de nossa resenha, o livro Lima Barreto: Triste Visionário, publicado pela conceituada Editora Companhia das Letras, no ano de 2017, discorre sobre o escritor negro Afonso Henriques de Lima Barreto, mais conhecido como Lima Barreto. Leia Mais

La guerre de ecrivains (1940-1953) – SAPIRO (RBHE)

SAPIRO, G. La guerre de ecrivains (1940-1953). Paris: Fayard, 1999. Resenha de: CAMPOS, N. de. La guerre des écrivains. Revista Brasileira de História da Educação, 19, 2019.

Esse livro, escrito pela socióloga francesa Gisèle Sapiro, foi publicado em 1999. Ele é decorrente de sua tese de doutorado, defendida em 1994, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), sob a orientação de Pierre Bourdieu. Essa obra tem 807 páginas, contando introdução, nove capítulos, conclusão, anexos, agradecimentos, bibliografia, índice de nomes e sumário. Ela se organiza em três partes: lógicas literárias do engajamento (primeira parte), constituída com três capítulos; instituições literárias e crise nacional (segunda parte), formada por quatro capítulos; a justiça literária (terceira parte), contendo dois capítulos. A delimitação temporal inicial tem relação com a Ocupação da França pela Alemanha e a assinatura do armistício; já o período final está associado à segunda Lei de Anistia, “[…] após o que, sem desaparecer, as questões literárias, nascidas na crise, cessam de dominar a vida literária” (Sapiro, 1999, p. 17).

A investigação dessa socióloga tem como principal preocupação “[…] por em evidência a especificidade da conduta dos escritores no contexto da Ocupação, à luz das representações e das práticas próprias dos meios literários” (Sapiro, 1999, p. 9). De acordo com ela (1999, p. 9), “[…] a questão importante é por que e como os escritores respondem a essa demanda?” Assim, sua abordagem é diferente de outros estudos que explicam o engajamento dos escritores a partir de uma perspectiva centrada na política. Nas palavras da autora (1999, p. 10), “[…] contra a tendência a dissociar essas duas dimensões, este livro entende que se esclarece uma pela outra, ao inscrevê-las em uma abordagem mais global dos ambientes literários e de seus modos de funcionamento naquela época”. Conforme Gisèle Sapiro (1999, p. 12), “[…] durante a Ocupação, o campo literário viu serem abolidas as condições que lhe asseguravam uma relativa independência, em particular a liberdade de expressão”. Os escritores, na avaliação de Sapiro (1999, p. 11), “[…] não escapam à lógica das lutas. Mas a guerra dos escritores não é o puro reflexo da guerra civil. Como todo universo profissional, o mundo literário tem seus códigos, suas preferências, suas regras do jogo e seus princípios de divisão próprios”. Diante disso, indaga essa pesquisadora (1999, p. 12): “[…] que ocorre com a autonomia literária em período de crise? Sob que forma sobrevive e que resistência se opõe às pressões externas?”.

A partir de muitos textos publicados nos jornais da França, de correspondências e entrevistas, assim como em interlocução com extensa literatura das ciências humanas, em particular da sociologia dos intelectuais e da história intelectual, a autora mostra como os escritores engajaram-se e tomaram posições políticas. Ela descreve que havia quatro tipos de lógicas sociais que coexistiam no campo literário e que induziam relações diferentes entre literatura e política. A primeira é denominada de lógica estatal, em que estavam as frações detentoras do poder econômico e do poder político. A segunda lógica coincide com o polo de grande produção, próxima do jornalismo, lugar da lógica mediática. Em seguida, aparece a lógica estética, em que estariam os escritores com forte poder simbólico. Esse grupo tende “[…] a se distanciar da política e da moral” (Sapiro, 1999, p. 13). Por fim, existiria o polo dos escritores de vanguarda, grupo formado a partir do interesse em produzir uma literatura subversiva, engajada. Essas quatro lógicas são tipos ideais. Logo, como bem destaca a socióloga (1999, p. 13), “[…] essas diferenças lógicas, inexistentes em estado puro, encarnam-se mais ou menos nas práticas e nas instituições”. Essas lógicas são associadas às quatro instituições analisadas nesse livro: Academia Francesa (lógica estatal); Academia Goncourt (lógica mediática); Nova Revista Francesa – NRF (lógica estética); Comitê Nacional dos Escritores (lógica subversiva/política).

A primeira parte tem como preocupação explicar as lógicas literárias eos engajamentos dos escritores. A parte seguinte mostra como as quatro lógicas encarnam-se nas quatro instituições estudadas (Academia Francesa, Academia Goncourt, NRF e Comitê Nacional dos Escritores). De acordo com Sapiro (1999, p. 16), “[…] dotadas de uma razão social e de uma identidade, essas quatro instâncias ilustram as lógicas estatal, mediática, estética e política”. Por fim, na terceira parte, o livro discorre sobre os efeitos da crise após o período de Ocupação, pois “[…] eles determinam largamente os modos de reestruturação do campo literário” (Sapiro, 1999, p. 17). Essa descrição é estrutural, como bem reconhece essa socióloga. Porém, essas tendências podem ser observadas nas especificidades dos diversos níveis e na encarnação das lutas onde se confrontam as diferentes concepções de literatura e as diversas compreensões do papel social do escritor.

Em termos mais precisos, a primeira parte trata do debate entre os escritores a respeito do papel social do intelectual. A partir da discussão em torno do ‘gênio francês’ e dos ‘maus mestres’, a autora reconstitui um profundo e complexo debate entre os escritores para defender diferentes posições do intelectual. Conforme assinala Sapiro (1999, p. 106, grifo do autor), “[…] é em nome do ‘gênio francês’ que são conduzidas as lutas que estruturam o campo literário na primeira metade do século XX”. Cada um desses elementos serve de pano de fundo para a socióloga mapear as posições dos mais diferentes escritores, em específico, o confronto entre a politização do campo cultural e a luta pela sua autonomia frente aos interesses da política e da moral. Ao final dessa parte, ela destaca duas trajetórias exemplares (François Mauriac e Henry Bordeaux) que “[…] ilustram a articulação entre a clivagem geracional, a oposição entre autonomia/heteronomia e as divergências ideológicas” (Sapiro, 1999, p. 207). Essas individualidades, pertencentes à Academia Francesa e com origens sociais e religiosas semelhantes, tomaram posições distintas. Mauriac tornou-se um defensor dos escritores denominados de ‘maus mestres’, situação considerada atípica ou improvável por Sapiro. De outra parte, Bordeaux promovia a campanha contra os escritores classificados de ‘maus mestres’.

A segunda parte do livro indica como esse debate inscreveu-se em cada uma das quatro instituições francesas. Ela elege um capítulo para cada instituição, trazendo riqueza de detalhes. Embora as análises estejam divididas em partes, não há abordagens isoladas de cada uma das instituições. A autora sintetiza uma tendência predominante em cada espaço, a saber, o senso do dever (Academia Francesa); o senso do escândalo (Academia Goncourt); o senso da distinção (NRF); o senso da subversão (Comitê Nacional dos Escritores). Antes de analisar cada uma dessas instituições, Sapiro sintetiza a ideia dessa parte do livro em duas páginas e meia. Ali, ela anota que busca mostrar como, no seio desses espaços literários, os escritores se confrontavam na luta pela definição da identidade da instituição e do papel que ela deveria exercer no período de crise nacional.

Desse modo, essa parte mostra como esses espaços institucionais definiram as posições individuais. Ao mesmo tempo evidencia as mudanças das instituições, particularmente a movimentação da NRF, fundada em 1909. Posteriormente, essa revista passou a aproximar-se do grupo da literatura engajada, cuja expressão contundente é a trajetória de André Gide. Apesar disso, o livro mostra a permanência da posição da Academia Francesa, muito embora trate do caso atípico de François Mauriac que aderiu à literatura subversiva. Já no início, Sapiro (1999, p. 249) afirma que, “[…] das quatro instituições que nós estudamos, a Academia Francesa é a que participa mais diretamente, por meio de seus membros, da vida política oficial”. Essa instituição, criada em 1635, agrupa as frações dominantes da classe dominante, donde se exerce o controle sobre o campo literário. Assim sendo, as lutas políticas dessa comunidade estavam associadas ao combate aos escritores que se posicionavam no polo altamente politizado, aqueles que pretendiam transformar a literatura em luta política (grupo do Comitê Nacional dos Escritores).

A Academia Goncourt, criada em 1903, expressa o modelo de senso do escândalo, pois, nascida com interesse em salvaguardar certa autonomia do campo literário e contrapondo-se ao modelo mais tradicional de literatura da Academia Francesa, logo se vê no permanente jogo entre as forças dos diferentes campos sociais. As trajetórias de seus integrantes e as premiações concedidas evidenciam forte presença de autores oriundos da imprensa francesa. Ao longo do texto, Sapiro mostra as alterações da própria instituição, especialmente nos momentos mais críticos, como a Ocupação, quando esse espaço do campo literário não deixou de pronunciar-se e tomar posição no campo intelectual. A autora identifica uma tendência dessa instituição, um tipo ideal, sem deixar de historicizar as disputas internas, os posicionamentos conflitantes entre os seus integrantes, assim como o imiscuir-se nas disputas do campo político. Ela procura demonstrar como a ideia de autonomia/heteronomia do campo literário é o mote da discussão na instituição, ganhando ares peculiares no momento crítico da história francesa dos anos de 1940.

Na sequência, Sapiro centra sua análise no movimento da NRF, criada em 1909. Embora, o recorte de sua análise seja o contexto da Ocupação alemã e o período da Liberação, sua escrita retrata a pretensão de André Gide no momento de criação dessa revista, bem como os anos seguintes à Primeira Guerra Mundial. Apesar de o senso de distinção constituir o horizonte de identidade dessa instituição, os casos exemplares de Gide (rumou à resistência literária) e Drieu La Rochelle (aderiu ao grupo colaboracionista) evidenciam como o problema da autonomia/heteronomia conformava as representações e as práticas da instituição e de seus integrantes.

Por fim, a partir da tipologia – senso de subversão -, a autora descreve e explica a ação do Comitê Nacional dos Escritores. Nesse grupo, constituído por integrantes de diversos subgrupos, encontrava-se o principal espaço de resistência literária. A partir de um conjunto de escritos, seus integrantes promoviam intervenções no âmbito da política, destacando-se seus posicionamentos de combate à literatura não engajada que era reivindicada pela Academia Francesa, pela Academia Goncourt e pela NRF. A partir dos anos de 1930, esse comitê tornou-se um espaço de congregação de grupos distintos, como, por exemplo, comunistas, católicos progressistas (François Mauriac, Jacques Maritain), confrontando-se aos valores nacionalistas que já estavam presentes no contexto do caso Dreyfus (final do século XIX), mas que ganharam ares mais dramáticos com a ascensão de Hitler e o avanço das bandeiras defendidas pela extrema-direita. Enfim, ao longo da obra, Sapiro descortina em detalhes como o comitê ofereceu “[…] aos escritores os meios de lutar com suas armas próprias, reativando a dimensão subversiva da literatura e assegurando à Resistência intelectual o seu prestígio” (Sapiro, 1999, p. 467).

Se nas primeiras partes há intensa exposição para explicar os posicionamentos das quatro instituições e mostrar ‘a guerra dos escritores’, a última retrata o período posterior a agosto de 1944, quando Paris foi libertada. A autora identifica que essa condição redundou na recomposição do campo intelectual, sobressaindo-se o problema do papel da literatura e do escritor. É sintomático daquele momento o fato de a revista Tempos Modernos ocupar o lugar da NRF, cujo mote seria a defesa da literatura engajada em oposição à literatura pura. Sapiro mostra que essa disputa inscrevia-se na concorrência entre gerações de escritores, na oposição entre moralistas e defensores da literatura pura e na clivagem ideológica esquerda e direita. Aqui está presente a disputa pelo controle do próprio campo dos escritores. O comitê é oficialmente institucionalizado, incorporando todo capital simbólico do período de Resistência na clandestinidade. Assim, esse espaço procura constituir-se como o lugar autorizado para dizer o que é a literatura e qual deve ser o papel do escritor. E, mais do que isso, dizer que ao escritor está atribuída a missão de reconstrução da própria França.

Depois da derrota da Alemanha, conforme atesta Sapiro (1999, p. 17, grifo do autor),

A noção de ‘responsabilidade do escritor’ está no coração das lutas. Saído da sombra do Comitê Nacional dos Escritores pretendia-se instaurar uma nova deontologia do ofício do escritor. Mas seu poder de excomunhão é rapidamente contestado. Abalados por divisões internas, as instâncias nascidas da Resistência se encontram confrontadas às instâncias tradicionais, entendendo que devem reencontrar seus lugares e tomar parte na reconstrução nacional.

Porém, como bem mostra esse livro, as primeiras fissuras internas desse comitê ocorreram entre comunistas e não comunistas. Além disso, as divisões internas foram demarcadas por outras divergências, como, por exemplo: entre membros oriundos da zona Norte (região ocupada pela Alemanha) e zona Sul (região ‘livre’, governada por Pétain); entre antigos e novos integrantes; a controversa ‘lista negra’ – publicação dos nomes dos escritores apoiadores da Ocupação e do regime Vichy. Ao final dessa parte, a narrativa mostra como as instituições literárias se reconfiguraram no novo momento da França, em particular, no contexto de reconstrução nacional. Ou seja, como se estabeleceram as disputas entre Academia Francesa, Academia Goncourt e Comitê dos Escritores para definir o papel social da literatura e do escritor, sem deixar de indicar as clivagens internas, em específico, do comitê. Embora o recorte final da obra seja 1953, Sapiro não deixa de indicar que os efeitos dos debates da Ocupação e da Liberação ganharam sentidos diferenciados no contexto da Guerra Fria, reinserindo o problema da posição do escritor e das instituições literárias no âmbito das questões políticas, isto é, reapareceria o problema da autonomia/heteronomia do campo cultural.

Por fim, é importante ressaltar que esta síntese apresenta a ideia geral da obra e os elementos centrais de cada parte. Esse livro que se inscreve no âmbito da sociologia dos Intelectuais é fecundo ao campo de pesquisa das ciências humanas. Ademais, merecem destaque as possibilidades de diálogo com áreas mais específicas, particularmente, com a história intelectual. O campo intelectual (sociologia dos Intelectuais) é um dos temas principais de Giséle Sapiro que já tem algumas produções traduzidas e publicadas no Brasil. O problema dos intelectuais ou do campo intelectual é objeto bastante revisitado, nos últimos anos, por diversos pesquisadores brasileiros. Assim, espera-se que esta resenha tenha sintetizado o conjunto das principais ideias dessa obra de fôlego e estimulado o leitor a acessá-la, pois ela poderá ser bastante útil para ampliar os horizontes de pesquisa nas ciências humanas, especificamente, na história intelectual e história dos Intelectuais.

Referências

Sapiro, G. (1999). La guerre des écrivains (1940-1953). Paris, FR: Fayard.

Névio de Campos – Pós-doutorando (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, Paris); Pós-doutor em História (UFPR); Doutor em Educação (UFPR); Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, Brasil. Pesquisador Produtividade CNPq. E-mail: ndoutorado@yahoo.com.br

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Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 – SOARES (VH)

SOARES, Gabriela Pellegrino. Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: Editora UFMG/ FAPESP, 2007. Resenha de: MISKULIN, Sílvia Cezar. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.38, p. 639-642, jul./dez., 2007.

Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 analisa com rigor o surgimento da literatura infantil no Brasil e na Argentina, na primeira metade do século XX. O trabalho que agora temos o prazer de ler é fruto da Tese de Doutorado de Gabriela Pellegrino Soares, defendida no Departamento de História da USP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Ligia Coelho Prado.

A autora debruça-se sobre a formação da literatura infantil, destacando as semelhanças e diferenças entre os escritores argentinos e brasileiros. Diferenciando-se da literatura produzida para a escola, a literatura infantil constituiu-se em um campo próprio, no qual se buscava a ampliação do público leitor e a democratização do conhecimento por meio das produções e traduções de obras voltadas para o público infantil. O objetivo da pesquisa é compreender os esforços realizados no Brasil e na Argentina para promover a prática de leituras não escolares entre as crianças. As diferenças entre os dois países foram mostradas pelo panorama que Gabriela Pellegrino Soares traçou da rede de ensino primário e de bibliotecas escolares e populares presentes na Argentina desde fins do século XIX, enquanto no Brasil as políticas públicas voltadas à difusão da leitura foram bem mais restritas e efetivaram-se somente no século XX.

Além desta diferença de contexto, Gabriela soube muito bem enfocar o repertório nacional que compunha a literatura infantil em cada um dos países. Na Argentina, muitos escritores se dedicaram a temas nacionalistas e trabalharam em suas obras elementos da história da nação, do folclore e da natureza. Dentro deste grupo a autora apresenta as obras infantis de Ada María Elflein, Alvaro Yunke, Hugo Wast, Rafael Jijena Sánchez, Horacio Quiroga, Guillermo Enrique Hudson e Ana Maria Berry.

Entretanto, o trabalho destaca um outro horizonte na literatura infantil argentina, conformado pela revista Biliken e seu criador Constancio C. Vigil. O objetivo da publicação era a formação da bagagem cultural da criança, que se tornaria no futuro o homem moderno, self-made man. Na revista, ecoavam as idéias da escola nova, que buscava uma progressiva autonomia da criança. Além disso, Biliken era irreverente, jogava com o humor, a imaginação e a estética para valorizar o esforço e a inteligência como forma de ascensão social.

A morte de Constancio C. Vigil em 1954 encerrou uma época na literatura infantil argentina e marcou o recorte cronológico final da pesquisa. Já o recorte inicial do trabalho, 1915, refere-se ao ano de surgimento da coleção “Biblioteca Infantil”, da editora Melhoramentos, a pioneira no Brasil no campo da literatura infantil, que será estudada na segunda parte do livro.

Outro destaque dado por Gabriela Pellegrino Soares à literatura infantil argentina passou pela trajetória de Javier Villafañe, criador do teatro de títeres. Villafañe trabalhava com as dimensões lúdicas, imaginativas e poéticas através da narrativa oral, dialogando também com os princípios da renovação educacional da escola nova. Muitas de suas histórias também acabaram editadas.

No Brasil, o livro enfocou detalhadamente a produção dos escritores Monteiro Lobato e Tales de Andrade. As obras de Tales de Andrade tinham balizas ideológicas, cívicas e educacionais muito bem definidas. A maioria de suas histórias tinha como protagonista uma criança do campo que conseguia, graças aos estudos, tornar-se um “arauto das luzes” em seu meio. Neste caso, o saber letrado significava o progresso para a população rural.

Monteiro Lobato foi um marco no surgimento da literatura infantil brasileira. Ele primou pela elaboração artística nos livros infantis, pois seu objetivo era conquistar novos leitores. Gabriela relaciona as concepções educacionais de Monteiro Lobato com as idéias de Anísio Teixeira, já que Lobato via na escola uma parceira da literatura no projeto de modernização da sociedade brasileira. Anísio Teixeira, por sua vez, foi o introdutor da filosofia de John Dewey no Brasil, que propunha a integração da aprendizagem escolar com as experiências sociais.

Lobato e Teixeira acreditavam que a educação infantil deveria se dar em um “meio purificado”, em que se eliminariam os aspectos nocivos do ambiente social, sem nenhum tipo de violência física ou psicológica. O alvo era incentivar a busca pela melhoria de vida e a integração social das crianças. Em sua minuciosa pesquisa, Gabriela Pellegrino Soares mostrou como as obras de Monteiro Lobato criaram situações de aprendizagem em que se exemplificaram as práticas educacionais de Anísio Teixeira.

A autora também ressalta que os elementos críticos, ateus e irreverentes da obra de Monteiro Lobato encontraram resistências entre certos mediadores culturais, por exemplo, os censores católicos, as autoridades governamentais e até entre certos expoentes da escola nova, como Lourenço Filho e Cecília Meireles.

A segunda parte de Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil enfoca sobretudo as mediações e os mediadores culturais, ou seja, indivíduos e instituições que se dedicaram a criar, divulgar ou circular a literatura infantil. Duas mediadoras foram selecionadas pela autora: Gabriela Mistral, escritora chilena, mas com uma importante atuação no campo educacional argentino e mexicano e, no caso do Brasil, a escritora Cecília Meireles. Gabriela Mistral foi professora no ensino público do Chile por duas décadas e atuou nas reformas educacionais de José Vasconcelos no México. Difundiram-se na Argentina suas perspectivas de educação infantil, muito afinadas com as idéias da escola nova. Além disso, em suas obras criou poesias voltadas às crianças, trabalhando com elementos do folclore, do campo e da cultura popular.

Cecília Meireles participou do movimento escolanovista, além de assumir a direção do Instituto de Pesquisas Educacionais no Rio de Janeiro. Fundou a Biblioteca Popular Infantil em 1934, que se tornou o Centro de Cultura Infantil no Rio de Janeiro, com a promoção de inúmeras atividades culturais. Entretanto, em 1937, foi invadido e fechado por ordem do interventor sob o pretexto de possuir em seu acervo um livro de “conotação comunista”: As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain.

Gabriela Pellegrino Soares também nos presenteia com a apresentação das produções infantis de Cecília Meireles e aproxima sua obra daquela elaborada por Mistral: as duas escritoras valorizavam a sensibilidade e a vivacidade infantis, ao acreditarem que o amor, a alegria e a harmonia estariam no cerne das atitudes voltadas às crianças. O livro não deixa de apontar as diferenças entre elas, já que Cecília Meireles combatia o ensino religioso nas escolas brasileiras, enquanto que Gabriela Mistral tinha uma formação cristã.

Ao destacar instituições culturais que foram mediadoras das leituras infantis, Gabriela Pellegrino Soares elegeu duas bibliotecas modelares: a Biblioteca Nacional de Maestros, de Buenos Aires, cuja seção infantil foi fundada em 1916 por Leopoldo Lugones, e a Biblioteca Infantil de São Paulo, criada em 1935, durante a gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo, e dirigida por Lenyra Fracarolli.

Ao analisar o acervo, os funcionários e o ambiente das bibliotecas, além da freqüência das crianças às mesmas, o objetivo do trabalho foi constatar como as bibliotecas participaram da criação de repertórios culturais e da construção de atividades sociais junto ao público infantil, ao visar sua formação moral e intelectual e a democratização do acesso aos livros. Na visão da autora, as duas Bibliotecas foram formas de realização de ações de modernização cultural por parte do Estado, perante a sociedade da época, já que divulgaram um determinado repertório e também contribuíram para a internalização de atitudes e de princípios morais e estéticos nas crianças.

Por último, analisa as concepções editorais da Melhoramentos, cuja coleção “Biblioteca Infantil” foi dirigida por Lourenço Filho. Por meio da análise de seus pareceres, Gabriela Pellegrino Soares pode ricamente nos mostrar o papel de destaque que a literatura infantil ocupou nesta editora, já que Lourenço Filho acreditava que as obras infantis deveriam complementar o papel da escola. A autora destacou como o diretor da coleção tinha restrições aos contos de fadas e também as depurações que fazia com os contos da tradição oral popular. Como as obras infantis sempre passavam pela leitura de um educador antes de chegar nas mãos das crianças, o objetivo de Lourenço Filho era conquistar a confiança dos mediadores culturais, para finalmente chegar às crianças de forma criativa e recreativa.

Ao realizar uma extensa e exaustiva pesquisa em diferentes tipos de fontes raramente examinadas,1 o livro de Gabriela Pellegrino Soares proporciona aos leitores do início do século XXI um olhar esclarecedor das concepções intelectuais, educacionais e literárias que guiaram os diversos agentes e instituições que buscaram conformar um campo da literatura infantil no Brasil e na Argentina na primeira metade do século XX. Trata-se de uma contribuição fundamental para pensar as diferenças e semelhanças que certas vezes distanciaram e muitas outras aproximaram a história dos dois países vizinhos na América Latina.

Nota

1 Walter Benjamin dedicou-se em alguns trabalhos a analisar livros infantis. Veja: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004.

Sílvia Cezar Miskulin – Doutora em História pela Universidade de São Paulo – USP. Pós-doutoranda em História/ Universidade de São Paulo/ bolsa FAPESP. E-mail:  silmiskulin@uol.com.br

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