Posts com a Tag ‘Escritas do Tempo (ETd)’
Guerrilha do Araguaia 50 anos: direito à memória e à verdade – desafios para a pesquisa e o ensino | Escritas do Tempo | 2022
Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil | Imagem: Réu Brasil
O presente dossiê sobre os 50 anos da Guerrilha do Araguaia (1972-1975), além de buscar trabalhar detidamente sobre o evento da epopeia guerrilheira e os seus desdobramentos no ano de seu quinquagenário, também visa trazer à lume outras questões que tangenciam o tema e procuram fazer o trabalho de denúncia contínua sobre os arbítrios do período da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Para endosso dessa presente organização compreendemos que toda a produção discursiva que almeje o exercício de revelação do período do torcionário ditatorial são extremamente bemvindas, pois além de produzir a reverberação dos fatos ainda estabelecem a luta constante pela memória, verdade, reparação e justiça.
Nesse sentido, entendemos que o advento da Guerrilha do Araguaia não foi uma epopeia de luta isolada, mas parte constitutiva e atuante das inúmeras batalhas que a sociedade brasileira empenhou para romper os obstáculos do terror de Estado imposto a partir de 1964. Essas batalhas realizadas tanto pela sociedade civil, em seus vários arranjos, assim como pelas organizações políticas, foram o somatório da força desses inúmeros agentes que lutaram contra a ditadura desde a eclosão do Golpe e que, até o presente momento, não se cansam de lutar pela verdade. Tendo em vista as repetidas tentativas de reescrita da história e malsucedidas guerras de narrativas. Leia Mais
Os feitos e os efeitos das cotas raciais no Brasil: avanços, desafios e possibilidades | Escritas do Tempo | 2022
Professores criam grupo para defender implantação de cotas raciais na UEM | Imagen: Maringá Post
Depois de mais de uma década de intensa discussão sobre a legalidade e a constitucionalidade do sistema de vagas reservadas para negros no ensino universitário, em 26 de abril de 2012, a Suprema Corte Brasileira, por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, declarou a constitucionalidade do Plano de Metas de Inclusão Étnico-Racial instituído pela Universidade de Brasília UnB). Para a Suprema Corte, as cotas, ao utilizarem do critério racial para inclusão destes homens e mulheres negras nas universidades, estavam exercendo uma política de reparação e construindo possibilidades de ampliar a igualdade material e simbólica no Brasil.
O reconhecimento constitucional das cotas pelo STF foi normatizado por meio da Lei Federal 12.711/2012, também conhecida como Lei de Cotas, que garante a reserva de 50% das matrículas nas universidades e institutos federais de educação a alunos oriundos de escolas públicas. O texto legislativo ainda estabelece que as vagas reservadas às cotas sejam subdivididas, metade para estudantes de escola públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda superior 1,5 salário-mínimo. Em ambos os casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Leia Mais
Inquisição, 200 anos depois de seu fim: o que era, o que ficou e o quanto somos fruto dela? | Escritas do Tempo | 2021
Desdobramento das revoluções liberais que, a partir do movimento iniciado no Porto, em 1820, implementava uma monarquia constitucional em Portugal, em 31 de março de 1821, as Cortes Gerais do Reino aprovaram por unanimidade de votos o decreto que extinguia o Tribunal do Santo Ofício em Portugal, pondo fim a quase três séculos – e dezenas de milhares de denúncias, confissões, investigações, processos, réus e vítimas depois – de atuação da Inquisição portuguesa.
Passados duzentos anos, ainda é possível perceber as permanências dos tempos de Inquisição no mundo português, bem como encontrar, desgraçadamente, sintomas, reflexos e aproximações entre os rigores promovidos em nome da Misericórdia e Justiça, tema do tribunal, e o inacreditável mundo de negacionismos e intolerâncias em que nos vemos mergulhados, um pouco por todo o lado, um muito sobre a nossa parte… Leia Mais
História e literatura: aproximações e diferenças | Escritas do Tempo | 2021
“By such examples taugth, I paint the cot,
As truth will paint it, and as bards will not”
No trecho em epígrafe do poema intitulado The village (1783), de autoria do inglês George Crabbe (1754-1832), descortina-se um contraste, segundo os especialistas e seus intérpretes, entre as formas de representação de uma narrativa bucólica da Antiguidade, do Neoclassismo e de sua própria escrita, pois “Tal como manda a verdade”, diz a passagem – conforme a nossa tradução livre – “eu retrato os campos e não como cantam os bardos em seus cantos”. Ou seja, para o poeta, de certa forma seu texto figura como alegoria de um determinado tempo e espaço, de acordo com os estudos de Raymond Williams (1921-1988) sobre as literaturas do campo e da cidade, quase antecipando, portanto, algumas das premissas básicas que, posteriormente àquele século, seriam firmadas e, hoje, acham-se ainda perenes junto ao ofício de historiador(a). Assim, o presente Dossiê, na trilha do poema setecentista, propõe-se a refletir sobre as possibilidades do estabelecimento de laços entre a História e a Literatura, atento às suas aproximações e diferenças que emergem, paulatinamente, seja à boca pequena ou com mais estardalhaço, feito porta-vozes de cada época, dando a ler ao mundo as suas conexões.
Por isso, buscamos reunir trabalhos que pudessem discutir as relações da emergência da figura-autor com os escritos que são materializados, para debater aspectos tais como os trânsitos – nacionais ou internacionais – da cultura escrita, as apropriações ou economias de leituras, além das práticas letradas, de circulação e recepção de impressos literários. E, por outro lado, visamos igualmente coligir textos que versem e problematizem a historicidade de contos, poesias, crônicas, romances, peças de teatro, coleções, projetos editoriais etc., considerando textos ficcionais provenientes dos mais variados estilos e condições sociais de produção. Leia Mais
Amazônia, fronteiras e diversidades | Escritas do Tempo | 2021
Quais ventos são esses que trazem esse dossiê sobre a Amazônia na Revista Escritas do Tempo? São ventos que sopram o vigor e o frescor da produção do conhecimento histórico produzido nos programas de pós-graduação em História espalhados pela região amazônica! Sem dúvida este número da revista que apresentamos amplia um processo iniciado há algumas décadas atrás com a criação de programas de mestrado e depois de doutorado na UFPA e UFAM.
Hoje os programas de pós-graduação em História estão em inúmeras universidades públicas do outrora chamado Vale Amazônico, como é o caso da UNIFAP, da UNIFESSPA e da UFMA (que integra a região de abrangência da Amazônia Legal). O processo em questão impacta, de maneira decisiva, num conhecimento histórico sobre o passado amazônico que está a todo o momento sendo debatido e revisto, conectando experiências dos diversos centros produtores do saber histórico. Por essa razão esse dossiê celebra exatamente esse momento vivido por todos nós. Leia Mais
Ensino de História, Livro Didático, Formação de Professores | Escritas do Tempo | 2020
O ensino de história entre lutas, alegrias e esperanças
Em sua última obra publicada em vida, o educador Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia sentencia que para ensinar é necessário que exista uma relação movida pela alegria e esperança. Trata-se da esperança — do verbo esperançar — como uma construção urdida nas relações sociais das lutas cotidianas que concorre como força mobilizadora para o agir no dia a dia. Para ele “a esperança é um condimento indispensável à experiência histórica” (FREIRE, 2019, p. 71), pois sem ela estaríamos limitados a viver o tempo sem problematizá-lo, como se não fosse o tempo uma construção humana de homens e mulheres em seus fazeres ordinários. Por extensão, sem a esperança prevaleceria uma concepção determinista da história onde tudo já estaria dado, definido e, portanto, nada poderia ser feito no presente para projetarmos nossas possibilidades de futuros.
Em nossa experiência de tempo presente, parece importante nos avizinhar das reflexões — tão combatidas — do pensador Paulo Freire. Esperançar-se com a atividade docente, com o ensino de História, continua sendo uma possibilidade potente na luta pela construção de uma sociedade menos desigual. Esperançar-se por um aprender inquietante, prenhe de questionamentos sobre o tempo; esperançar-se por uma aprendizagem que não aceite passados, presentes e futuros determinados, que esteja fecunda de problematizações, se torna necessário e vital nos dias atuais.
Esses sentimentos brotam também porque este dossiê (o segundo na sequência de publicação da Revista Escritas do Tempo que tematiza o Ensino de História) demonstra sinais do crescimento e do fortalecimento das pesquisas em Ensino de História, e não apenas daquelas sobre ensino de História, como defende Carmen Teresa Gabriel (2019). Assim, em alguma medida, este dossiê pode ser apreendido como um vestígio, um sinal da potencialidade que se vem constituindo o campo do Ensino de História.
Este dossiê fecha o ano de publicação de 2020; um ano marcado pelas experiências dolorosas que resultaram em mais de 180 mil vidas ceifadas pela pandemia causada pela Covid-19. Esses dados não levam em consideração as vidas perdidas que não entraram na contagem oficial, nem aquelas cuja causa da morte foi atribuída à síndrome respiratória aguda grave (SARS, do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome). Portanto, já é motivo de alegria e esperança o fato de chegarmos ao fim do ano de 2020 vivos — mesmo com a lida relacionada às perdas pessoais e coletivas — e estarmos com saúde, produzindo reflexões sobre o Ensino de História.
Todavia, também experienciamos sentimentos de preocupação, sobretudo com o atual cenário político do Brasil, que mostra a crescente polarização e ascensão de posturas e práticas fascistas no País. As políticas públicas de Educação igualmente despertam preocupação, em especial a política direcionada à formação do professor. Uma formação que se fundamenta na Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que estabelece as diretrizes para a formação docente.
Estaremos alertas e atentos para a disputa desses espaços promotores de projetos políticos, em especial daqueles direcionados à formação do professor, ao ensino de História e aos livros didáticos. Nessa luta, nossa arma é o conhecimento. Nosso combate ocorrerá por meio da reflexão, do debate e do uso ético do saber como um elemento de poder. Nesses termos, é fundamental ampliar e socializar o conhecimento especializado para instrumentalizar o profissional e garantir o bom combate. O campo do Ensino de História tem-se tornado fértil, potente e disputado. Sua fertilidade pode ser percebida com a quantidade e a qualidade das pesquisas e publicações que vêm a público em forma de monografias, dissertações, teses, livros, dossiês, seminários, artigos, palestras, lives, blogs e uma infinidade de outros formatos que oferecem diferentes narrativas sobre o ensino de História.
O campo tem ofertado uma ampla e diversificada produção e seria enfadonho elencar, aqui, uma lista. Basta reforçar que, como objeto de estudo, a pluralidade temática também é disputada por diferentes leituras, interpretações, percepções teóricometodológicas e, inclusive, por diferentes projetos políticos de governo, como bem destacou Christian Laville (1999) ao lançar mão do conceito “guerras de narrativas”.
O Ensino de História, enquanto campo de produção de conhecimento, não é caracterizado pela prática de consensos. Estamos atuando em um espaço marcado pelo dissenso. São distintas as concepções, abordagens, temáticas, aportes metodológicos, referenciais teóricos e epistêmicos que transitam pela História, Educação, Didática, Psicologia da aprendizagem, Linguagem, para mencionar apenas alguns. Mas talvez, possamos falar que exista algum consenso que a História — como lugar de produção de saber e espaço de formação docente —, precisa ressignificar as matrizes curriculares dos cursos de licenciatura. Esse entendimento não reside porque temos uma nova (e preocupante) resolução que determina a adequação dos projetos políticos pedagógicos dos cursos. Mas — e principalmente — porque há um certo entendimento entre professores que atuam na formação de outros professores de que o modelo de formação estruturado na configuração quadripartite europeia — que ainda prevalece como mostram as pesquisa de Mauro Coelho e Wilma Baia (2018), Flávia Caimi (2013 e 2015), Margarida de Oliveira e Itamar Freitas (2013) e Erinaldo Cavalcanti (2018, 2020a e 2020b) —, já não atende às demandas do chamado tempo presente no que tange à formação do profissional de História. Ou seja, a formação docente, em História, precisa ocupar os proscênios do centro de interesse dessa ciência. As questões que envolvem as diferentes narrativas que disputam a produção de sentido, no cotidiano de homens, mulheres, crianças e adolescentes (o potencial público a ser atendido pelo professor de História) precisam ser objeto de aprendizagem durante a formação inicial desse professor. Da mesma forma, debater e problematizar o universo de práticas constituidoras do livro didático — que ainda continua ocupando importante posição nas tarefas desempenhadas pelos professores da Educação Básica — é algo que precisa ser tematizado durante o período de formação inicial dessa licenciatura.
As reflexões que apresentamos, neste dossiê, se constituem em ricas possibilidades de ampliação do debate que envolve essas questões. Assim, esta publicação está composta por 14 artigos, dos quais, 10 compõem o referido dossiê, 4 fazem parte da sessão Artigos livres, além de contarmos com uma resenha.
Abrindo o dossiê, temos o artigo do professor Almir Félix Batista de Oliveira — Livros didáticos e formação de professores: questões para o ensino de história — no qual amplia-se a reflexão e apresenta-se uma importante problematização acerca do livro didático de História e da formação de docentes, tanto a do profissional de História, responsável pelo ensino da História aos alunos do Ensino Fundamental II e Médio, como a do chamado professor generalista, pontuando a necessidade de se tematizar o livro didático na formação inicial de professores.
À sequência, temos o artigo assinado pela professora Camila Corrêa e Silva de Freitas As representações da catequese jesuítica nos livros do PNLD: abordagens do passado colonial e possibilidades de aprendizagem histórica. Nele, a autora analisa algumas representações a partir de um conjunto de narrativas didáticas sobre o chamado “período colonial brasileiro”. O foco de atenção é direcionado para a atuação da Companhia de Jesus. São tematizados os livros de História dos sétimos anos de três coleções didáticas, a partir dos quais se analisa, também, como essas narrativas podem representar possibilidades de aprendizagem histórica.
No artigo seguinte, intitulado Da construção do estereótipo de selvagem à representação do indígena brasileiro no livro didático de História, a professora Roberta Fernandes Santos amplia a discussão sobre como se construiu o estereótipo de “selvagem”, atribuído aos indígenas. A autora, ainda, destaca a importância da Constituição de 1988 e, posteriormente, da Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, ao ampliar as condições de maior inserção dos indígenas na História ensinada no Brasil, contribuindo para ressignificar o lugar por eles ocupado, ampliar sua cidadania e proteger seu direito à diversidade.
À continuação, no artigo intitulado A Revolução Cubana: representações generificadas em um livro didático de História, a professora Andréa Mazurok Schactae analisa as representações construídas em relação à Revolução Cubana em um livro didático de História do ensino médio, usado no Instituto Federal do Paraná (IFPR), Campus Telêmaco Borba, e publicado em edições de 2013 e 2016. A autora também analisa de que forma a categoria “gênero” constituiu-se como uma estratégia fecunda para entender e problematizar algumas das representações acerca da revolução cubana.
A formação do professor de História é o foco de análise do artigo seguinte. Assinado pela professora Renilda Vicenzi e pelo professor Bruno Antonio Picolli, o artigo Formação de professores de História: implicações a partir da BNCC e da DCNBNC tem o foco central da sua reflexão direcionado à ampliação do debate sobre as implicações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (DCNBNC) na formação de professores de História. Por meio da pesquisa e da análise realizadas, os autores chegam à conclusão de que as referidas reformas impactam com sérias implicações a formação profissional do professor de História.
A seguir, o professor Leandro Antonio de Almeida também focaliza a formação docente em História, no seu artigo, A formação docente em laboratórios universitários de ensino de história através da produção de materiais didáticos: a experiência do LEHRB-UFRB. Nele, o autor apresenta uma reflexão a partir de suas experiências desenvolvidas no laboratório da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). São tematizadas as atividades voltadas à formação docente inicial por meio de projetos desenvolvidos entre 2009 e 2017, em especial aqueles direcionados à produção de materiais didáticos. As ações relatadas e analisadas mostram a complexidade das experiências costuradas pela prática interdisciplinar, de modo a ampliar a construção dos saberes históricos e pedagógicos dos professores participantes dos projetos e em formação.
Na sequência, temos o artigo Um olhar sobre o ensino de História nos museus de ciência, assinado pelas professoras Déborah Roberta Santiago Chaves Vilela, Zenaide Gregório Alves e Rozeane Porto Diniz. As autoras centram sua atenção nos museus enquanto espaços culturalmente potentes para construir e ampliar suas relações com as práticas educativas. Em sintonia com documentos formais, como a Declaração do Rio de Janeiro de 1958 e outros decretos/leis, como a Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, e as Diretrizes Curriculares Nacionais (Base Nacional Comum Curricular e Matriz do Exame Nacional do Ensino Médio), as autoras exploram as possibilidades de interação e construção de saberes, como práticas potencialmente ricas para o Ensino de História entre os museus de ciência, a chamada cultura científica e a relação sociedade-História.
O artigo seguinte, Didática da história, consciência e emancipação: uma reflexão sobre os limites materiais do ensino crítico da História, é assinado pelos professores Filipe Boechat e Fernando Viana Costa no qual os autores se propõem a ampliar o debate acerca das categorias “consciência”, “alienação” e “ideologia” situando a reflexão no âmbito do debate da Didática da História, em especial através da problematização de dois dos principais intelectuais alemães que tematizam a questão.
Em continuidade temos o artigo O irreconciliável nos editais do PNLD: eurocentrismo, cidadania e ensino de História. Assinado pela professora Taissa Cordeiro Bichara, o texto problematiza os sentidos atribuídos às categorias eurocentrismo, cidadania e ensino de História, encaminhados pelos editais de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas e literárias. Esses editais, publicados no Diário Oficial da União pelo Ministério da Educação (MEC), submetidos ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e destinados aos Anos Finais do Ensino Fundamental entre 1996 e 2018. Destaca-se, no artigo, que a construção histórica da civilização europeia continua como o principal referente, que representa outras civilizações como inferiores ou submissas à história ocidental branca e cristã.
Finalizando o dossiê, a professora Luiza Sarraff assina o artigo A narrativa didática sob a ótica da imputação causal singular, a autora estabelece uma reflexão entre história e narrativa em diálogo direto com Paul Ricoeur para problematizar a análise da narrativa de um livro didático, aprovado pelo Programa Nacional do Livro Didático, enfatizando o aspecto da imputação causal singular, na esteira do que defende o filósofo francês.
Temos, ainda, quatro importantes artigos que contribuem com valiosas discussões na sessão Artigos Livres. O primeiro é Panoramas recentes do feminismo na interseccionalidade, de autoria da professora do departamento de sociologia da Universidade de Montreal, Sirma Bilge. Originalmente, o artigo foi redigido em inglês, cujo título é Recent feminist outlooks on intersectionality, e tem como foco a ampliação da discussão, teorizando o conceito “interseccionalidade” a partir da operacionalização de gênero em estudos feministas.
À sequência, Marcos Antonio Batista da Silva assina o artigo Discursos étnicoraciais sobre o acesso e a permanência na Pós-graduação, em que analisa trajetórias de estudantes negros no ensino superior/pós-graduação na sociedade brasileira, oferecendo contribuições para as discussões sobre importantes temáticas, como relações étnicoraciais, políticas públicas, família e educação.
Entre datas, festas e compêndios: a História como pedagogia cívica na Amazônia no início do século XX, é o artigo seguinte assinado pelo professor Silvio Ferreira Rodrigues no qual ele analisa um conjunto de relações e estratégias políticas utilizadas por um grupo de intelectuais ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Pará, para refletir como História foi mobilizada como estratégia de construção e consolidação dos laços de pertença ao projeto político de pátria brasileira defendido por aqueles intelectuais.
Finalizando a sessão, está o artigo Biografia, gênero e carnaval: uma rainha nos festejos de momo na Porto Alegre do início do século XX, da professora Caroline Pereira Leal. Nele, a autora focaliza a trajetória da personagem Maria Elvira Werna Coelho Roxo, rainha da Sociedade Carnavalesca Os Venezianos, ampliando as discussões sobre as relações construídas pelas mulheres, que fazem compreender e potencializar a visibilidade sobre elas enquanto sujeitos históricos.
Por fim o professor Marcos Rodrigues assina a resenha A encruzilhada das ações afirmativas do livro Filosofia Africana: ancestralidade e encantamento como inspirações formativas para o ensino das africanidades de Adilbênia Freire Machado na qual o professor analisa as importantes contribuições presentes no livro no que tange à problematização das ações afirmativas.
Desejamos a todos uma boa leitura e aproveitamento do dossiê da revista Escritas do Tempo e suas propostas de reflexão. Que a esperança e a alegria façam muito sentido e promovam muitas inquietações em 2021, a partir do controle da Covid19 e que possamos vislumbrar um horizonte de possíveis mudanças em políticas ameaçadoras à educação, bem como à saúde e vida dos brasileiros e brasileiras.
Referências
CAVALCANTI, Erinaldo. A história encastelada e o ensino encurralado: reflexões sobre a formação docente dos professores de história. Revista Educar em Revista, v. 34, n. 72, 2018.
_______. La formación docente inicial del profesor de Historia en Brasil: temas, reflexiones y desafíos. Revista Ciencias Sociales y Educación, v. 9, n. 18, 2020a.
_______. O que deve aprender o professor de História? Reflexões sobre aprendizagem, ensino e formação docente inicial. Revista Roteiro, v. 45, e21829, 2020b.
CAIMI, Flávia. A licenciatura em História frente às atuais políticas públicas de formação de professores: um olhar sobre as definições curriculares. Revista Latinoamericana de História, v. 2, n. 6, p. 193-209, 2013.
_______. O que precisa saber um professor de história? Revista História & Ensino, v. 21, n. 2, p. 105-124, 2015.
COELHO, Mauro Cezar e COELHO, Wilma Baia de Nazaré. As licenciaturas em História e a Lei 10.639/03 – percursos de formação para o trato com a diferença? Educação em Revista, v. 34, e192224, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
GABRIEL, Carmen Teresa. Pesquisa em Ensino de História: desafios contemporâneos de um campo de investigação. In: MONTEIRO, Ana Maria e RAJELO, Adriana (org.). Cartografias da pesquisa em Ensino de História, p. 143-161, Rio de Janeiro: Mauad X, 2019.
LAVILLE, Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História, v. 19, n. 38, p. 125-138, 1999.
OLIVEIRA, Margarida Dias de; FREITAS, Itamar. Desafios da formação inicial para a docência em história. Revista História Hoje, v. 2, n. 3, p. 131-147, 2013.
Erinaldo Vicente Cavalcanti – Professor Adjunto da Faculdade de História e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará [Unifesspa], coordenador do laboratório e grupo de pesquisa iTemnpo e editor da Revista Escritas do Tempo. E-mail: ericontadordehistorias@gmail.com
Helenice Aparecida Bastos Rocha – Professora Adjunta na Faculdade de Formação de Professores, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro [UERJ/FFP]. E-mail: helarocha@gmail.com
CAVALCANTI, Erinaldo Vicente; ROCHA, Helenice Aparecida Bastos. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.2, n.6, 2020. Acessar publicação original [DR]
Ensino de História, Livro Didático, Formação Docente | Escritas do Tempo | 2020
Disputas pela história, pelo ensino e pela docência: desafios de uma luta permanente
A escrita, como prática cultural, contém em seu “DNA” as marcas do tempo em que é tecida. Toda escrita, ao grafar em palavras as experiências humanas, traz incrustadas as “digitais” do seu tempo; apresenta uma espécie de radiografia das disputas sociais, políticas e culturais tecidas no e pelo tempo. A escrita desse dossiê não foge à regra.
Escrever é um ato de tensão. Diferentes forças estão em diálogo quando desejamos grafar, pela escrita, as distintas experiências vivenciadas no tempo e no espaço. Toda forma de escrita é destinada a alguma prática de leitura, ou seja, a escrita é forjada para ser lida. Nesse sentido, as palavras encenam em um palco onde precisam criar laços de confiança com o leitor. A representação da escrita, portanto, precisa produzir efeitos de verdade para imprimir legitimidade à sua apresentação. Assim, escrita e leitura bailam juntas nas melodias que criam o mundo, mesmo desempenhando papéis distintos. Não se confundem, mas precisam unir-se no palco da representação, pois a escrita deseja imprimir à leitura o passo da confiabilidade.
Em nossa experiência de tempo presente, as práticas que envolveram a gestação da escrita para esse dossiê foram atravessadas pelo reordenamento da vida, provocado pela pandemia da Covid-19. Não obstante, ainda experienciamos o crescimento de posturas políticas anticiência, negacionista e/ou revisionista, com diferentes formas de ataques e tentativas de deslegitimar diversas áreas do conhecimento, em especial aquelas praticadas no campo das humanidades.
O dossiê v. 2, n. 5 da Revista Escritas do Tempo — Ensino de História, livros didáticos e formação docente — é gestado sob o solo de um campo de intensas disputas. Nos tempos atuais, fazer pesquisa é, antes de tudo, uma posição política de resistência. Fazer pesquisa em ciências humanas é uma decisão de luta contra um conjunto de forças, de caráter fascista, que se mobilizam e se fortalecem com o propósito de ameaçar e intimidar os (as) pesquisadores (as)/professores (as) que atuam nesse espaço de enfrentamento. O dossiê nasce, portanto, em um estado de tensão. Nos últimos anos, a História no Brasil — como espaço de produção de conhecimento — tornou-se um dos palcos onde se enfrentam inúmeros atores, incluindo soldados, generais e coronéis. Esses não aparecem aqui apenas como metáforas e, infelizmente, a educação também passou a ser por eles disputada como espaço de atuação.
A História acadêmica e escolar, como lócus de produção de saberes, espaço de socialização e de vivências humanas, virou cenário dos mais diversos tipos de disputas. Disputas não apenas acadêmicas, teóricas ou epistemológicas. A História tornou-se espaço de combate político; tornou-se arena de disputas partidárias, ambientadas em um clima de polarização. Diferentes atores — incluindo sujeitos sociais distintos daqueles que compõem a cultura acadêmica e escolar — passaram a se “autorizar” competentes para interferir nas relações praticadas dentro desse espaço.
As disputas se intensificaram, e precisamos lutar contra inúmeros projetos políticos que desejam determinar, de forma autoritária, o que devemos ensinar em nossas escolas. Essa é uma luta movida por diferentes sujeitos que pretendem definir quais conteúdos devem compor o currículo da Educação Básica, como ficou demonstrado nos embates envolvendo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Da mesma forma, querem determinar quais habilidades e competências (expressões que viraram jargões) devem configurar a formação do professor, de acordo com o estabelecido na Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 2, de 20 de dezembro de 2019, sobre as diretrizes para a formação docente. Por conseguinte, esses sujeitos ainda desejam determinar quais conteúdos devem estar presentes nos livros didáticos de História, como expressou, há menos de um ano, o então ministro de Estado da Educação. Uma batalha travada para definir quais conteúdos, vivências, saberes, aprendizados e experiências devem ser praticados na escola.
Esses atores políticos querem dizer como nós, professores e professoras, devemos relatar as lutas de homens e mulheres que nos antecederam. Mas, não nos enganemos. Essa luta não é pelo passado. Ela é travada no e pelo presente. Os indivíduos que estão disputando o espaço da História, da memória, dos livros didáticos e do ensino querem ampliar seu espaço de controle no presente. Eles entendem que — como sujeitos históricos que somos — agimos no presente, influenciados pelas distintas leituras que realizamos sobre o passado. Ou seja, a forma como nos portamos e vivemos, no presente, mantém íntima relação com a maneira como interpretamos nossas experiências passadas, as quais podem, por conseguinte, estabelecer e direcionar projetos de futuros. A guerra, portanto, é no presente.
Esses enfrentamentos incidem, pois, táticas de silenciamentos. Querem, assim, forjar as lentes pelas quais nossas crianças e jovens devem perceber e apreender o mundo. Desejam impor as lentes ofuscadas que fazem enxergar a vida, o ensino e a aprendizagem pela miopia da dualidade. À medida que pretendem determinar o que narrar, tentam silenciar um conjunto de relatos, memórias e narrativas, isto é, de histórias. Relatar, lembrar e narrar são atos políticos que potencializam permanentes disputas nos espaços referentes à História, ao ensino e à formação docente. Tais disputas se constituem em ferramentas políticas, pois a memória tem o poder de “presentificar” — ou não — certas representações do passado. Tornar presente o passado é algo que pode significar a constituição de um campo de força para os enfrentamentos nas relações cotidianas de poder.
Se, atualmente, presenciamos um crescimento dos ataques desferidos à educação, às escolas, aos professores e às professoras, isso ocorre, também, porque nossas ações têm provocado maior tensão nas relações de poder. Nossos questionamentos em sala de aula e nossas reflexões têm instigado nossos alunos e alunas a não aceitarem discursos simplistas ou revestidos por estratégias de dominação contra mulheres, negros, gays e tantos outros segmentos sociais. Os ataques à educação também sinalizam que a História tem contribuído, como força política, na luta em defesa dos princípios por uma sociedade mais justa e democrática.
Este dossiê, ao mesmo tempo em que contém as “digitais” dessa batalha, também (e paradoxalmente) se constitui uma ferramenta de luta e de enfrentamentos e apresenta um conjunto de artigos que abordam experiências de pesquisas sobre ensino de História, livros didáticos e formação docente. Assim, presentifica, por meio da escrita de seus autores e autoras, uma forma de combate às forças obscuras que tentam nos intimidar. Em cada reflexão presente nos artigos, há, também, um grito de resistência. Porque nós, intelectuais, professores e professoras, também fazemos parte da luta para que nossas interpretações sobre os objetos de estudo possam ser ouvidas, lidas, circuladas, debatidas e criticadas. Mas, fazemos isso por meio de uma operação intelectual fundamentada em princípios éticos e democráticos. Não somos criminosos agindo fora da lei. Nosso debate é travado no campo do argumento. Oferecemos nossas reflexões e apresentamos outros ângulos de percepção a partir da problematização de nossos objetos de pesquisa.
Este dossiê é composto por 11 artigos e uma entrevista que sinalizam o crescimento e a consolidação do ensino de História (e as questões que lhe são pertinentes) como objeto de estudo e debate nos segmentos mais amplos da sociedade. Ampliaram-se, sobremaneira, as pesquisas que têm como objeto de investigação o ensino de História. Seminários, congressos, encontros, grupos de pesquisa e publicações em periódicos sinalizam esse crescimento, que concorre como força para a conformação do ensino de História enquanto campo de pesquisa. Portanto, conforme apontam diversas pesquisas, mais do que um objeto de análise, tal conjunto de variáveis mostra a consolidação desse lugar de fronteiras. Esse campo fronteiriço se fortalece, também, pela diversidade temática de seus objetos de investigação. No âmbito da produção especializada do campo, “ensino de História”, “livro didático” e “formação docente” aparecem entre os principais temas abordados. Tais abordagens problematizam esses temas a partir de variadas questões.
O livro didático, conforme aponta a literatura especializada, é a principal ferramenta de trabalho de uma significativa parcela de professores e professoras que atua na Educação Básica. Por outro lado, as pesquisas também sinalizam que grande parte dos (as) docentes que atua no ensino fundamental e no médio não participa das discussões especializadas que envolvem o livro didático. Nessa dimensão, o presente dossiê convida a comunidade de professores (as)/pesquisadores (as) à reflexão a partir da leitura dos artigos que discutem aspectos sobre o ensino de História, o livro didático e a formação docente.
A abertura do dossiê fica por conta do artigo Passado, presente e futuro dos livros didáticos de história frente a uma BNCC sem futuro assinado por Sonia Regina Miranda e Fabiana Rodrigues de Almeida. No texto, problematizam as conexões entre a política para os livros didáticos de História e as proposições curriculares constituídas na esteira das formulações da BNCC, e argumentam que esses espaços são regidos por relações de disputas políticas e batalhas narrativas.
Na sequência, temos o texto Por que as narrativas nacionais permanecem? Revisão de literatura sobre novas perspectivas na pesquisa dos livros didáticos de história. No artigo, as autoras Maria Grever e Tina van der Vlies apresentam um rico panorama de um conjunto de pesquisas, em diversos países, que tematizam os livros didáticos, mostrando a permanência das narrativas nacionais e sua relação com a formação dos estados nacionais e o ensino de História. Além disso, destacam a potência investigativa dessas temáticas de estudo.
À continuação, temos o artigo Narrativas sobre o nazismo e o fascismo nas coleções didáticas de história: saber escolar e demandas do tempo presente, das professoras Maria Aparecida da Silva Cabral e Marilu de Freitas Faricelli. As autoras centram sua atenção nas articulações produzidas pelos autores dos materiais analisados (no que se refere às demandas do tempo presente), e dão foco à intercessão entre os saberes históricos escolares, os percursos construídos pelos autores dos livros didáticos, as prescrições curriculares e os projetos historiográficos.
O Ensino de História no Brasil e seus pesquisadores: breves notas sobre uma herança de tensões e proposições, é o texto seguinte assinado por Letícia Mistura e Flávia Caimi. Nele, as autoras apresentam uma reflexão sobre as heranças construídas no percurso processual do campo do ensino de História, percorrendo desde o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Colégio Pedro II até a apresentação de uma síntese sobre as temáticas investigativas que compõem o campo de pesquisa do ensino de História no Brasil. Na sequência, temos o texto Livros didáticos: autoria em questão, de Adriana Soares Ralejo e Ana Maria Monteiro. As autoras se debruçam na reflexão sobre o lugar de autoria nos livros didáticos, mostrando um conjunto diverso de relações que envolvem a produção dos livros didáticos e as condições e possibilidades que configuram esse lugar complexo ocupado pelo sujeito que recebe as credenciais de autor ou autora. O artigo seguinte é assinado por Andressa da Silva Gonçalves e Mauro Coelho tem por título As narrativas didáticas sobre o bandeirante: entre a mitologia bandeirante e a crítica histórica. Nesse texto, os autores analisam como História e memória adentram a literatura didática, focando sua análise nas “entradas e bandeiras” para mostrar a complexidade das relações entre o saber e a chamada memória histórica.
Em seguida, temos o artigo A abordagem da temática indígena e da história da África nos livros didáticos: exemplos de oficinas na formação docente, da professora Ingrid Silva de Oliveira Leite. O artigo centra a atenção na análise sobre as representações dessas temáticas em livros didáticos, tomando como pontos focais de problematização as oficinas e a elaboração de aulas em cursos de licenciatura em História no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.
O ensino de História e suas relações com o patrimônio é um tema que aparece na sequência, e é o foco do artigo assinado por Margarida Dias de Oliveira e Itamar Freitas, sob o título Patrimônio e ensino de história: cinco decisões do professor. Nesse texto, os autores apresentam importantes reflexões sobre as preocupações de peritos e professores de História em torno dos objetos que são considerados “patrimônio”. Por meio dessas análises, é possível refletir as relações entre “patrimônio e identidade” e “patrimônios nacionais e patrimônios da humanidade”, além de questões como “virtualidade”, “fisicalidade” e “preservação”. Qual história geral deve fomentar e se fazer presente no ensino de História na atualidade? A partir dessa indagação, Ivo Mattozzi apresenta seu artigo Uma nova história geral didática para compreender o mundo e agir como cidadãos globais. O autor defende a necessidade de alterar o modelo de história geral a ser ensinada, argumentando que a História, como disciplina escolar, corre o risco de se tornar irrelevante frente às mudanças que estamos presenciando como sujeitos ativos. De tal modo, defende que a História ensinada precisa ser redirecionada para um conhecimento diferente daquele transmitido, tradicionalmente, pelos sistemas escolares.
Victor Amado Salto e Alicia Graciela Funes, no texto Materiais didáticos para o ensino da história na formação de professores, focam a análise na problematização que envolve a construção dos materiais didáticos para o ensino de História na relação com o conhecimento histórico frente a um cenário desafiador, heterogêneo, diverso e múltiplo. Para os autores, essas variáveis são condições para refletir as práticas de pesquisa e o treinamento que os professores desenvolvem no campo do ensino e do conhecimento histórico. Na sequência, Miguel Jara, no seu artigo Los materiales didácticos en la enseñanza de la historia y de las ciencias sociales en argentina. Percepciones del profesorado, apresenta uma análise a partir da interpretação de um conjunto de professores de três cidades argentinas (Cipolletti, Bahía Blanca e Mar del Plata) no âmbito da formação de pós-graduação. O texto problematiza algumas questões que envolvem os materiais e recursos didáticos comumente usados nas aulas, e reflete sobre a avaliação que os professores fazem dos referidos materiais.
Por fim, temos a entrevista com a professora Marieta de Moraes, que recupera as memórias de seu percurso formativo e das discussões históricas e historiográficas nos diversos momentos de sua trajetória, e narra os bastidores de relações e debates sobre a construção do projeto do mestrado profissional em História, o ProfHistória.
Erinaldo Vicente Cavalcanti – Professor Adjunto da Faculdade de História e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará [Unifesspa], coordenador do laboratório e grupo de pesquisa iTemnpo e editor da Revista Escritas do Tempo. E-mail: ericontadordehistorias@gmail.com
Helenice Aparecida Bastos Rocha – Professora Adjunta na Faculdade de Formação de Professores, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro [UERJ/FFP]. E-mail: helarocha@gmail.com
CAVALCANTI, Erinaldo Vicente; ROCHA, Helenice Aparecida Bastos. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.2, n.5, 2020. Acessar publicação original [DR]
Biografias e Trajetórias: vidas por escrito / Escritas do Tempo / 2020
Escritas biográficas e trajetórias: desafios no campo historiográfico
A biografia deixou de ser um pária no campo do conhecimento histórico acadêmico. Depois de vários anos de desdém pelo gênero, por parte das correntes dominantes da historiografia científica, hoje assistimos a uma proliferação de livros, artigos, teses de doutorado, dissertações de mestrado e trabalhos de conclusão de cursos de graduação na área de História que se voltam para a análise ou a construção de biografias. Obviamente, essa popularização de estudos biográficos aponta para importantes desafios e questionamentos que exigem nossa atenção: o que constitui uma biografia histórica? Que problemas teóricos, metodológicos, historiográficos e éticos as pesquisas biográficas ajudam (ou não) a resolver? Em quais âmbitos a investigação biográfica dá sinais de saturação e quais demandam mais investimentos?
De modo geral, verificamos que os principais caminhos trilhados pelos estudos biográficos, levados a cabo por profissionais de História, são a construção de biografias de personagens considerados representativos de um determinado grupo ou processo; a pesquisa sobre indivíduos que, ao contrário de representar, põem em xeque — por sua singularidade — a coerência e a homogeneidade de coletivos e movimentos; a análise de biografias sobre determinadas pessoas que verifica como essas foram construídas e disputadas nas memórias coletivas mais ou menos institucionalizadas.
Também é notável a capacidade da biografia de cruzar fronteiras, tanto as geográficas (quando se leva em conta os deslocamentos físicos e mentais dos personagens estudados) como as cronológicas (já que a duração das vidas não se limita a marcos temporais consagrados) e disciplinares. Sobre esse último ponto, a noção de espaço biográfico, de Leonor Arfuch (2010), aponta para uma multiplicidade de formas canônicas, inovadoras e novas dentro de tais manifestações, dando conta de biografias, autobiografias, memórias, testemunhos, histórias de vida, diários íntimos, correspondências, cadernos de notas e de viagens, rascunhos, lembranças de infância, autoficções, romances, filmes, registros artísticos e midiáticos, entre outras formas e suportes.
Os textos que compõem esse dossiê exemplificam as potencialidades da biografia, constituindo-se em uma excelente amostra do que vem sendo produzido no Brasil e no exterior nessa área. Iniciamos com um texto teórico, A biografia à prova da identidade narrativa, de François Dosse — um dos maiores especialistas no gênero na atualidade — traduzido por André Furtado e Emmanuel Wambergue. Nele, o autor tece uma excelente discussão em torno da percepção que o biógrafo precisa ter na redação de uma biografia. Para Dosse, só é possível chegar ao biografado acessando suas identidades plurais, levando em conta um mosaico de tramas, sentidos, temporalidades e ações. Os organizadores desse dossiê e a Escritas do Tempo agradecem por sua contribuição. Seguimos por artigos que examinam, a partir de referenciais e fontes diversas, vidas e memórias de professoras, desportistas, cangaceiros, intelectuais, médicos, operários, cantoras e mães de santo que viveram em espaços e períodos diversos.
Em Narrativas em três tempos: biografias em Octávio Tarquínio de Souza, Raimundo Magalhães Júnior e Ruy Castro, Manoel Messias Alves de Oliveira e Wilton C. L. Silva analisam parte da produção literária de três importantes biógrafos brasileiros, de períodos distintos, apresentando as características estruturais de suas obras e discutindo as relações entre literatura e História dentro do gênero biográfico.
Nas fronteiras entre o espaço biográfico e a literatura, o artigo de Flávio Weinstein Teixeira, De começos e anexações: primeiras apropriações de Álvaro Lins em Portugal, busca reconstituir as relações e as formas pelas quais se dá a recepção da obra de Álvaro Lins no campo intelectual e literário em Portugal, tendo como base de pesquisa a imprensa periódica desse país.
Assim como o campo literário, a trajetória de intelectuais também é uma seara bastante frutífera para a análise de obras e personagens. O discurso anisiano à luz de Pierre Bourdieu, de Karen Fernanda da Silva Bortoloti, submete as propostas de reforma educacional de Anísio Teixeira, defensor de um projeto de educação integral e para todos, a partir dos conceitos bourdieusianos de campo e capital cultural, identificando as estratégias discursivas que buscavam consolidar o campo educacional e legitimar a relevância do capital cultural para a reconstrução do país em um momento de grandes mudanças estruturais.
Assim como o projeto educacional reflete uma identidade sobre o país que somos ou gostaríamos de ser, os personagens icônicos da cultura popular também têm sua memória ligada aos desejos e às expectativas coletivas. Os artigos de Marcos Edilson Araújo Clemente, Lampião e o cangaço: trajetórias de vida, histórias como flagelo (1920–1938) e de Nathan Pereira Barbosa, Raça, Futebol e Identidade Nacional: disputas e atualizações da memória em torno das narrativas biográficas de Pelé, situam-se nessa confluência. No primeiro, Virgulino Ferreira da Silva, o notório cangaceiro Lampião, é identificado como uma representação das tensões e das contradições encontradas nos sertões do Nordeste do Brasil, em meio às formas de consolidação do poder político e econômico republicanos nas primeiras décadas do século XX. No segundo, apresenta-se um balanço de diferentes narrativas sobre Edson Arantes do Nascimento, o mítico jogador de futebol, cuja trajetória apresenta-se como base para determinados projetos de nação e de identidade nacional nas biografias analisadas.
A reflexão sobre projetos políticos, processos de exclusão e autoritarismo confluem-se nos dois artigos seguintes: Victor Klemperer: uma testemunha ocular, de Juliana Aparecida Lavezo, e “Que fizeram com meu pai?”: sindicalismo e ditadura no Amazonas, de César Augusto Bubolz Queirós. Juliana Lavezo utiliza-se da escrita autobiográfica de Victor Klemperer, professor universitário judeu-alemão, enquanto literatura testemunhal de uma vítima de nazismo, para problematizar tal relato e seu lugar na contemporaneidade, enquanto César Queirós busca dar visibilidade aos processos de resistência e repressão vivenciados na ditadura civil-militar brasileira (1964–1985) a partir da trajetória de Antogildo Pascoal Viana — presidente do Sindicato dos Estivadores no período da deflagração do golpe —, que foi uma das primeiras vítimas do aparato repressivo que se instaurava.
Utilizando-se das possibilidades analíticas da História Oral, Priscila Cabral de Sousa e Vera Lúcia Caixeta, com Considerações acerca das vivências de uma professora nordestina, dão visibilidade à experiência de vida de uma educadora que, distante do padrão das “grandes personagens históricas”, pertence às margens. Em seu relato, coloca sua vivência enquanto autoexpressão de uma identidade construída a partir de uma vida feminina e de suas formas de existência e resistências em território maranhense.
A História Oral também é o referencial teórico que fundamenta os artigos de Bruno Barros dos Santos e Rogério de Carvalho Veras, Maria Bonita de Tocantinópolis: história de vida de uma mãe-de-santo do norte tocantinense e de Daniel Lopes Saraiva, “Cá entre nós”: trajetória e memória de Wanda Sá. Bruno Santos e Rogério Veras adentram o campo do sagrado ao analisarem a vida de Rosário, mãe-de-santo da tenda São Jorge Guerreiro, mais conhecida como Maria Bonita da cidade de Tocantinópolis. O texto mescla um conjunto de narrativas míticas sobre caboclos, encantados e pombas giras na construção de sua identidade pessoal. Daniel Saraiva utiliza-se da trajetória artística da cantora Wanda de Sá, que integrou a geração que frequentava os primeiros shows do então embrionário movimento bossa novista, e que, em sua carreira e suas gravações, nas continuidades e nas rupturas, permite entender algumas dinâmicas da vida cultural brasileira.
Por sua vez, Felipe Augusto dos Santos Ribeiro, com Entre biografias e trajetórias de pesquisa(dores): memória operária e reflexões de um historiador nativo, faz um exercício de ego-história, refletindo, enquanto “historiador nativo”, sobre uma experiência de pesquisa relativa à memória operária. O artigo pontua desafios, inseguranças e aprendizados acumulados, ao mesmo tempo em que estimula o debate sobre novas formas narrativas na historiografia e as interrelações entre sujeito e objeto de pesquisa.
Por fim, Fernanda Dayara Salamon e Alfredo dos Santos Oliva, em A construção da subjetividade de C.G. Jung em “Memórias, sonhos, reflexões” (1957), colaboram com uma reflexão sobre a escrita autorreferenciada, a partir da autobiografia do psicanalista suíço, em que discorreu sobre sua vida, sua obra, seus sentimentos e suas experiências, enquanto campo privilegiado para discutir os processos de subjetivação na escrita de si, entendida como uma auto-organização afetiva e emocional.
Convidamos as leitoras e os leitores a percorrerem essas reflexões que, certamente, irão satisfazer aqueles e aquelas que buscam formas inovadoras de pensar a História.
Referência
LEONOR, Arfuch. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
Geovanni Gomes Cabral – Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFPE. Editor da Revista Escritas do Tempo.
Benito Bisso Schmidt – Docente do Departamento de História (desde 1994) e do Programa de Pós-Graduação em História (desde 2003) da UFRGS. Doutor em História pela UNICAMP.
Wilton Carlos Lima da Silva – Docente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Campus de Assis. Doutor em História pela UNESP/ASSIS.
CABRAL, Geovanni Gomes; SCHMIDT, Benito Bisso; SILVA, Wilton Carlos Lima da. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.2, n.4, 2020. Acessar publicação original [DR]
Religiosidades e Intolerâncias: reflexões e problemáticas do mundo Moderno à contemporaneidade / Escritas do Tempo / 2019
O recente filme do italiano Alberto Fasulo traz à tona um dos personagens que melhor retratam o problema da intolerância nos primórdios da Modernidade: Menocchio (Itália e Romênia/2018), reconstrói pela linguagem cinematográfica o drama do moleiro Domenico Scandella, que viveu na vila de Montereale, região das colinas do Friuli no século XVI, preso e processado duas vezes pela Inquisição por conta da sua visão de mundo e crenças vistas como ameaça à pureza da Igreja Católica. Sua história foi divulgada por Carlo Ginzburg no magistral O Queijo e os Vermes, de 1976. Menocchio, por sinal, não foi o único a ler a cosmogonia com outros olhos: no Brasil do Setecentos, em épocas de mineração, um certo Pedro Rates de Ranequim também criou sua visão de um catolicismo mestiço, em que os elementos sagrados eram identificados um pouco por todo o lado no trópico, a ponto de eleger a banana como verdadeiro fruto proibido, ao invés da maçã bíblica que teria, segundo o Gênesis, levado Adão e Eva e todos os seus descendentes à desventura eterna.
Da maçã aos nossos dias, as relações do homem com a fé nunca foram as mesmas: Deus já foi entendido e apresentado como uma figura vingativa, impositor de dogmas, que castigava seus filhos pelos mais variados motivos, ou, no caminho oposto, como o que é pleno de misericórdia, definição estrita do mais puro amor. As religiões imputaram sua visão de sagrado, de pecado, de salvação. Para as ciências das religiões, pontua Dix Steffen (2007, p. 27), por não ser possível identificarmos grupos religiosos essencialmente fechados, a saída do pesquisador consistiria em partir para a interdisciplinaridade e, assim, “tornar legíveis as actividades ou os actos religiosos”. Assim, a sociologia, antropologia e a linguística possibilitam a ampliação dos caminhos para os pesquisadores compreenderem a história religiosa e as suas complexidades (JULIA, 1976, p. 117).
Ainda hoje mata-se (supostamente) em nome de Deus. Em vários países, os interesses religiosos se fizeram e fazem presentes em governos, em políticas de saúde, em justificativa de violências. Guerras são travadas, atentados são reivindicados pela disposição em destruir o outro, entendido como aquele que não crê igual. O desfile da Estação Primeira de Mangueira no Carnaval do Rio de Janeiro em 2020 mostra como, para o bem e para o mal, o Divino, as Igrejas e a crenças estão no olho do furacão do mundo caótico em que vivemos, justificando violências ou pedindo paz. É o que mostra a Mangueira quando apresenta um Jesus da Gente, negro, indígena, mulher, pobre, e afirma, numa clara referência ao triste desvelar dos autoritarismos no Brasil de hoje, que “Não tem futuro sem partilha / Nem Messias de arma na mão”. Religião como justificativa para tudo aquilo que, no âmago, ela não prega, seja qual delas for.
Este dossiê que aqui se apresenta tem como objetivo refletir sobre as religiões e religiosidade desde a Época Moderna aos tempos em que vivemos hoje. Neste sentido, reunimos aqui trabalhos que discutem estes temas em diferentes espaços, temporalidades e sentidos, partindo da tolerância ou mesmo da intolerância como chaves de leitura e análise. A Escritas do Tempo ratifica seu interesse em ouvir múltiplas vozes no intuito de procurar entender, sob a lente da História, o papel que o mundo religioso exerce sobre os homens e mulheres, e sobre como esses indivíduos reagem às estruturas da fé que, aliás, também demarcam as relações de poder.
Diante das inquietações aqui sublinhadas, bem como da crescente problemática referente ao binômio tolerância/intolerância no campo das religiões e religiosidades, a Escritas do Tempo, através dos seus organizadores, apresenta ao público leitor os 10 (dez) artigos que compõem esse número, além de 2 (duas) entrevistas que dialogam diretamente com a proposta em questão.
A historiadora Ana Margarida Pereira apresenta uma importante reflexão sobre a atuação histórica da Igreja Católica, desde os primórdios do cristianismo, acerca da escravidão. Seu artigo intitulado “A escravidão na doutrina da Igreja: temas e questões em debate da Antiguidade à época moderna” defende a ideia de que as discussões teológicas e doutrinárias encabeçadas pelos representantes do catolicismo foram conciliadas aos interesses econômicos e políticos dos próprios religiosos e dos Estados Nacionais ao longo da modernidade. Assim, sem questionar profundamente a estrutura escravista, muitas das reflexões produzidas pelos tratadistas do período foram resultado dessa conciliação em prol de articular os interesses materiais com a prática espiritual e religiosa da Igreja.
Também interessado em analisar os discursos religiosos presentes na Época Moderna, o trabalho de Bento Machado Mota, cujo título é “O além dos que estão alémmar: o problema da salvação dos índios em Francisco Suárez”, parte do conceito de ignorância invencível para discutir sobre a problemática da salvação dos gentios. Para isso, o foco das suas análises consiste na teologia construída por Francisco Suárez, jesuíta e, segundo o autor, “o maior expoente do pensamento jesuítico do século XVII”. Inserido no contexto da contrarreforma, o pensamento de Suárez influenciou largamente nas políticas de conversão realizadas no Novo Mundo, principalmente entre os religiosos interessados em ampliar os limites desse conceito.
O artigo de Luzia Tonon da Silva, “Cristianização e Inquisição em Goa: a confessionalização portuguesa e católica no Estado da Índia no século XVI” também está direcionado, de certo modo, ao contexto normativo referente à conversão. Nesse caso, o foco da autora consiste em avaliar a problemática da conversão ao catolicismo vivenciada por homens e mulheres asiáticos no Estado da Índia. Para isso, foram analisadas as provisões e documentos oficiais produzidos pelo Santo Ofício estabelecido em Goa, de modo a mapear a atuação das autoridades nesse espaço.
Igualmente situada nos primeiros momentos da Época Moderna, a historiadora portuguesa Isabel Drumond Braga, com o artigo intitulado “Religiosidade, cultura material e arte: para o estudo dos ex-votos portugueses da Época Moderna ao presente”, apresenta uma importante contribuição sobre a história religiosa de Portugal. Trata-se de um estudo interessado em compreender a importância do ex-voto na composição da religiosidade e da cultura material presentes nesse espaço.
O século XVII também foi contemplado neste dossiê, sendo alvo das reflexões propostas por Regina de Carvalho Ribeiro da Costa, além do trabalho conjunto de Daniela Cristina Nalon e Carla Maria Carvalho de Almeida. Em “Entre dois Manoéis, Moraes e Calado: o libelo dos sacerdotes no Brasil holandês”, as análises de Regina da Costa partem da tolerância como chave de leitura. Situada no período de dominação neerlandesa nas capitanias do Norte, a proposta da autora parte dos Cadernos do Promotor para examinar a atuação inquisitorial nesse espaço e a relação entre os holandeses e o clero católico presente na região. Já em “A trajetória dos cristãos-novos Diogo Correia do Vale e Luis Miguel Correia de Vila Real ao Auto da Fé de 6 de julho de 1732 (1670-1732)”, as historiadoras Daniela Nalon e Carla Almeida se enveredam pela ampla temática cristã-nova. Ao se debruçarem nos processos inquisitoriais de Diogo Correia do Vale e Luis Miguel Correia de Vila Real, ambas as autoras desvendam o cotidiano das Minas Gerais, as relações econômicas e políticas protagonizadas pelos cristãos-novos, sem desconsiderar o ambiente de intolerância religiosa cuja presença do Santo Ofício foi fundamental para a sua sustentação.
A problemática dos judeus convertidos forçadamente ao catolicismo em 1497, bem como dos seus descendentes, foi igualmente discutida no trabalho de João Antônio Lima. Em ““Não há pessoa alguma por pequena que seja que não saiba”: uma família e sua fama de “cristã-novice” no Maranhão setecentista”, o recorte do autor está inserido no Maranhão do século XVII, também ancorados nos estudos influenciados pela microhistória. Nesse caso, a trajetória analisada é a da família de Felipe Camello Brito, investigado pela Cúria diocesana e pelas autoridades inquisitoriais residentes no Maranhão. Também articulando os estudos sobre a Inquisição portuguesa aos pressupostos da micro-história italiana, o historiador Philippe Delfino Sartin, em ““Pera que os bons se nam contaminem com os maos costumes, e vida dos depravados”: o medo das bruxas em São João do Peso (Portugal, século XVIII)”, analisa o desenvolvimento da feitiçaria no bispado da Guarda, em Portugal.
O Pará é espaço de reflexões no artigo de Allan Azevedo de Andrade, intitulado “A evangelização dos “bárbaros da floresta”: D. José Afonso e a cristianização dos índios na diocese do Pará (1844-1857)”. Seu trabalho é uma importante contribuição, quando comparado aos demais trabalhos desse dossiê, pois indica como problema da evangelização das populações indígenas no Novo Mundo foi elemento sensível para as autoridades seculares e religiosas ao longo da Época Moderna. Situado na trajetória do bispo d. José Afonso, que atuou na diocese entre os anos de 1844 a 1857, o autor analisa o contexto dos embates entre os ultramontanos e a tentativa do Estado em submeter a vida religiosa aos seus próprios interesses.
Resultado das suas pesquisas realizadas entre o povo indígena Akwẽ-Xerente, o trabalho de Valéria Moreira Coelho de Melo, “Xamanismo e Cristianismo entre os Akwẽ-Xerente (TO)”, discute, como o próprio título indica, a presença do xamanismo indígena e as suas reelaborações a partir das relações com o cristianismo. De um lado, a autora percebe como o cristianismo possibilita “um meio de democratização” de uma série de atributos tradicionalmente vinculados aos xamãs. Por ouro lado, o xamanismo aparece diluído nas mais diversas práticas dos Akwẽ, não somente sob um caráter religioso, mas, também, na vida cotidiana e nas decisões políticas desse povo.
As manifestações religiosas na contemporaneidade também são abordadas por Ellen Cirilo e Manoel da Silva no trabalho intitulado “Entre batuques e bandeiras de luta: a juventude alagoana nos terreiros de axé”. A proposta do artigo consiste em analisar a formação política e religiosa de alguns adolescentes pertencentes à Juventude de Terreiro chamada “Àbúró N’ilê- RJT/AL”, cuja sede fica em Alagoas.
Na seção de entrevistas, os organizadores deste dossiê entrevistaram a historiadora Laura de Mello e Souza (Lettres Sorbonne Université), pioneira dos estudos sobre religiosidade no Brasil e uma das principais referências sobre o Império português e a sua atuação no Brasil. Trata-se não somente de um testemunho pessoal acerca da sua formação, das principais influências historiográficas, mas, também, uma importante reflexão sobre o ofício do historiador em tempos de intolerância. O historiador Ronaldo Vainfas (UFF) também gentilmente concedeu uma entrevista à Escritas do Tempo. Juntamente com Laura de Mello e Souza, os estudos de Vainfas têm sido desde a década de 1980 referências para a historiografia das religiosidades e das instituições no Brasil-Colônia.
Além do dossiê temático, o atual número da Escritas do Tempo também possui a seção de artigos que acolheu os trabalhos de Andrea Ciacchi e Igor Bruno Cavalcante dos Santos. O primeiro, em “Botânico, ma non solo: a viagem de Luigi Buscalioni na Amazônia em 1899”, se debruça na trajetória de Luigi Buscalioni, reconhecido médico e botânico italiano que, em 1899, foi responsável por uma viagem de pesquisa realizada na Amazônia. Já em “A História da Família como um campo plural de compreensões e de possibilidades na comarca do Rio das Velhas no século XVIII”, o historiador Igor dos Santos articula os pressupostos teóricos e metodológicos presentes no campo da História da Família para investigar a prática do concubinato na Comarca do Rio das Velhas.
Referências
DIX, Steffen. O que significa o estudo das religiões: uma ciência monolítica ou interdisciplinar? Revista lusófona de ciência das religiões, ano VI, n. 11, p. 11-31, 2007.
JULIA, Dominique. “A religião: História religiosa”. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1976. p. 106-131.
Marcus Vinicius Reis – Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFMG. Editor da Revista Escritas do Tempo.
Angelo Adriano Faria de Assis – Docente da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Doutor em História pela UFF.
REIS, Marcus Vinicius; ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.1, n.3, 2019. Acessar publicação original [DR]
Escritas do Tempo | Unifesspa | 2019
Transformar as experiências de homens e mulheres no tempo em “matéria histórica” requer inscreve-las em diferentes narrativas. Para representa-las – e domesticar o próprio tempo, por extensão -, homens e mulheres precisam contá-las e transformá-las em relatos, pois as experiências, assim como o tempo, tornam-se efetivamente humanas e sobrevivem à ação “amnésica do tempo”, apenas quando narradas.
É com esta missão de narrar e interpretar as experiências humanas no tempo em diferentes perspectivas de análise, através de distintas interrogações, reflexões, temas e temáticas de estudo, por diferentes ângulos teóricos e metodológicos, que a Revista Escritas do Tempo ([Marabá], 2019-) nasce com uma das primeiras ações do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIST) da Unifesspa.
Periodicidade quadrimestral.
Acesso livre.
ISSN 2674-7758
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