Escritas de si nas Américas | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2018

Um amplo movimento historiográfico, empreendido a partir dos anos oitenta do século XX, incorporou fontes antes consideradas “acessórias” e/ou “informativas”, concedendo-lhes novo status. Se há bem pouco tempo o indivíduo era apreendido como um elemento frágil e incerto de um “todo” que o sobrepujava, com a readaptação das lentes de análise, a historiografia se dispôs a um arrojado projeto: inquirir-se sobre a concepção de verdade histórica, aproximando-se das perspectivas criadoras e inventivas, emergentes do mundo privado, íntimo e particular. Essas últimas três palavras desvelam o encontro com as práticas cotidianas em escala micro. Igualmente, desvelam a invisibilidade e o anonimato impingidos àqueles que não integravam o rol de lideranças e/ou heróis porque não eram identificados como portadores da capacidade de significar sua experiência no tempo. Seguindo essa argumentação, o sentido de cada uma das palavras mencionadas se amplia, instaurando-se a diferença entre elas. O íntimo e o particular integram o ambiente privado. Entretanto, não se reduzem a ele nem exprimem a convergência de práticas nesse espaço. Por um lado, o particular é íntimo, a depender da interlocução que se produz entre os sujeitos na cena histórica; por outro, o particular pode ser mobilizado por mitos e rituais públicos, sem prejuízo ao segredo íntimo, que permanece resguardado no privado. Por esses cruzamentos, as dicotomias e dissensões entre indivíduo e sociedade desaparecem, dando lugar a uma investigação que privilegia a troca de experiências – no micro, reconhece-se o macro; no indivíduo, exprimem-se as práticas socioculturais. Leia Mais

Escritas de si, literatura e cinema: diálogos (auto)biográficos | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2016

[A narrativa] está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura […], no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas […]

Roland Barthes1

Na epígrafe, Roland Barthes nos diz que as narrativas, por sua quase infinita diversidade (histórica, literária, biográfica, autobiográfica, cinematográfica…), e por sua onipresença na história da humanidade, representam formas de manifestação inalienáveis do ser humano, onde quer que ele se encontre, não importando o momento de sua vida, e em qualquer tempo histórico. Nessa quase infinita diversidade, os seres humanos encontram nas narrativas biográficas e autobiográficas um modo próprio de ser e de contar a história de vida de outrem (biografia) e a história de sua própria vida (autobiografia), constituindo e constituindo-se enquanto seres sociais, racionais, líricos, históricos, místicos, políticos, artísticos, míticos… Leia Mais

Narrativas e escritas de si / Tempo e Argumento / 2015

Blogs, sites pessoais, cartas infantis e adultas, memoriais acadêmicos, livros de memória (auto) biográficos e / ou ficcionais, afinal, o que haveria de comum a todos estes artefatos culturais e tecnológicos – produzidos digitalmente ou não – que medeiam, no tempo presente, formas de sociabilidade, modos de ser e estar que ressoam em nossa época? Que mundo, que relações e que tipos de sujeitos esses dispositivos de comunicação, interação e construção de si, estão a narrar sobre a complexidade da experiência humana?

Na tentativa de enfrentar essas nada fáceis perguntas, esta edição da Revista Tempo e Argumento, volume 7 número 15 (2015.2), apresenta para discussão cinco (5) artigos escritos ao sabor de uma lógica memorial e emocional a partir de experiências pessoais. O conjunto desses artigos faz emergir outras subjetividades construídas na visibilidade de papéis e telas articulados a uma rede de pensamentos e de autores para quem a presença e a construção de si do e no tempo presente traz novas relações com o passado e expectativas em relação ao futuro.

Nesse panorama, no primeiro artigo, a professora Cristiani Bereta da Silva analisa narrativas digitais em blogs e sites sobre o Exame de Admissão, que vigorou no Brasil entre 1931 e 1971. Estes materiais foram tomados em seu sentido de ego-documentos, apresentados em uma narrativa problematizada, em que a autora os trabalha como escritas de si (autobiográficas) e onde se discutem as experiências subjetivas presentes nas dimensões memoriais e sua relação com a historicidade depois que a hiperconectividade alterou significativamente os fluxos do tempo e do espaço.

Da Espanha, uma professora e um professor, ambos pesquisadores reconhecidos internacionalmente, apresentam seus trabalhos na temática aqui em destaque e seus textos sinalizam preocupações em encontrar maneiras criativas e imaginativas para compartilhar seus estudos na área. O trabalho de Verónica Sierra Blass, da Universidade de Alcalá, está pautado em apontar as principais características da correspondência infantil e, com este fim, a autora problematiza as cartas como meios de expressão do “eu” da infância, seja como configuradora de uma identidade, seja pelo uso pedagógico institucionalizado nas escolas entre meados do século XIX e meados do século XX. O texto se faz acompanhar de diversas imagens de modo a amparar visualmente o trabalho desenvolvido. Daniel Escandell Montiel, da Universidade de Salamanca, discute a sociedade digital que permite a construção de uma ou mais identidades nos seus múltiplos espaços virtuais, o que acarreta a construção de uma narrativa do eu em todos esses âmbitos. A análise de relatos textuais e audiovisuais na Internet, empreendida pelo autor mostra que as narrativas do eu do mundo virtual abrem espaço para a confidência e a divulgação da vida íntima do sujeito, indicadoras de uma intimidade, em grande parte, teatralizada.

Pelo uso de uma bibliografia atual que dá consistência à documentação o artigo de autoria de Wilton Carlos Lima da Silva analisa memoriais acadêmicos como formas de narrativas de si que tratam do processo de formação intelectual e profissional. Condicionados à tradição institucional o trabalho está centrado em três memoriais produzidos por docentes da USP entre 1991 e 2003 e a abordagem privilegia o uso deste documento como fonte de pesquisa autobiográfica, por excelência. Méri Frotscher, em um contexto bem historicizado, interpreta a “escrita de si” em um conjunto de cartas–pedido enviadas entre 1946 e 1948 da Alemanha à prefeitura municipal de Blumenau-SC, Brasil. Este corpo documental permite à autora analisar estas informações a partir das estratégias retóricas empregadas na interlocução com o destinatário e identificar, igualmente, o imaginário existente acerca da cidade, a mobilização da identidade étnico-nacional e a maneira como se deu configuração de narrativas trágicas da guerra e do pós-guerra.

Pautados nas abordagens do Tempo Presente, dois artigos que se incluem neste volume, discutem, via moda e literatura confessional, trajetórias pessoais que anunciam experiências que enriquecem o universo da História e da Memória. Nesta clave, as professoras e pesquisadoras Ivana Guilherme Simili e Débora Pinguello Morgado, discutem a trajetória da estilista Zuzu Angel, na luta contra a ditadura civil-militar e em suas relações com as domesticidades, a vida pública e política nos conturbados anos 1960 e 1970, notadamente mostradas no filme que aborda aspectos de vida pessoal e profissional: “Zuzu Angel”. Já Ana Laura de Giorgi, da Universidad de la Republica del Uruguay, traz para conhecimento e discussão dois relatos pessoais publicados com duas décadas de distancia: Mi habitación, mi celda (1990) y Maternidad en prisión política (2010), com o objetivo principal de analisar a aposta política de suas autoras bem como refletir sobre os trabalhos da memória nestas narrativas pessoais do passado.

A entrevista deste número foi realizada, por Cristiani Bereta da Silva, com o Professor António Castillo Gómez, da Universidade de Alcalá. O autor, internacionalmente reconhecido, é professor Titular de Historia da Cultura Escrita tendo inúmeros trabalhos e parcerias no Brasil contribuindo para os estudos no campo da História Social da Cultura Escrita que visam superar a distinção tradicional entre a história da escrita, por um lado, e a história do livro e da leitura, por outro. Suas pesquisas, amplamente divulgadas em livros e revistas da área, dedicam especial atenção aos testemunhos escritos das pessoas comuns durante a Idade Contemporânea. Sua presença e sua colaboração neste número permitem pensar sobre a escrita como forma de salvar do esquecimento os seres humanos, de comunicar experiências, de transmitir as interioridades mesmo aos ausentes, de eternizar em folhas e telas, ideias e saberes que, como a leitura, produzem significados à ordem do existente.

Três resenhas completam este volume da Revista Tempo e Argumento. Na primeira delas, Raphael Guilherme de Carvalho apresenta a resenha, “Escrita de si e história da historiografia”, do livro de Patrick Garcia “Les présents de l’historien. Paris: Publications de la Sorbonne, 2014”, José Carlos da Silva Cardozo, resenha o livro de Pierre Bourdieu, intitulado “Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989-1992)”.(Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, 573 p.) em que discute a concepção mais ampla de Estado propugnada por este importante autor e, finalmente, Karl Schurster, resenha o livro: Jefrey Herf. “Inimigo Judeu. Propaganda nazista durante a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto”. (Tradução: Walter Solon. São Paulo: EDIPRO, 2014.)

Este número pretendeu tornar mais acessível o (re)conhecimento de múltiplas experiências humanas através das narrativas de si, em variados suportes, no Tempo Presente. O conjunto de textos aqui reunidos permitiu considerar que nesta virada digital palavras e imagens caminham juntas e enfrentam, com certa grandeza, esses novos tempos e essas novas gentes que somos agora e este armistício é bom para todos nós!

Fica o convite para uma leitura que, pela rede, dá acesso às narrativas de si, nas páginas de Tempo e Argumento!

Maria Teresa Santos Cunha

Luciana Rossato

Editoras- Chefe


CUNHA, Maria Teresa Santos; ROSSATO, Luciana. Editorial. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.7, n.15, 2015. Acessar publicação original [DR]

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