Posts com a Tag ‘Escrita da História (d)’
Visões do tempo no medievo e a escrita da História/CLIO- Revista de Pesquisa Histórica/2022
No final do século XIX, ao criticar a linha de pensamento do positivismo, o filósofo Friedrich Nietzsche, em seu livro Aurora (1881), diz em seu aforismo de número 307: “Facta! Sim, facta ficta! [Fatos! Sim, fatos fictícios]. – Um historiador não se ocupa do que efetivamente ocorreu, mas dos supostos acontecimentos: pois apenas estes tiveram efeito. E, do mesmo modo, apenas dos supostos heróis. Seu tema, a assim chamada história universal (Weltgeschichte), são opiniões sobre supostas ações e os supostos motivos para elas, que novamente dão ensejo a opiniões e ações cuja realidade (Wirklichkeit) imediatamente se vaporiza e apenas como vapor tem efeito – uma contínua geração e fecundação de fantasmas, sobre as névoas profundas da realidade insondável. Os historiadores falam de coisas que jamais existiram, exceto na representação mental (Vorstellung)”1. Leia Mais
Medios audiovisuales y escritura de la historia en México/Historia y Grafía/2022
Los medios audiovisuales de comunicación, como cualquier otro medio, no pueden evadir el diálogo directo con la Historia: su historia propia, la historia que narran y atestiguan, la historia de la que dejan evidencia, la historia de su tiempo(s) y su espacio(s) de producción, circulación y recepción, la historia conectada con otros procesos de cambios de las sociedades contemporáneas, la historia con minúscula y con mayúscula. En ese diálogo, el juego de estos medios es complejo por tres condiciones de base, ligadas entre sí: primero, su carácter y recurso narrativo principal: la imagen en movimiento y el sonido; segundo, su relación con las tecnologías, en tanto materialidady soporte que remite al producto mismo, su consumo y su conservación; y tercero, su compleja experiencia con el tiempo y el espacio: la posibilidad de transmitir yreproducir mensajes a la distancia, en tiempo real, como la radio o la televisión, o en tiempo diferido, como el cine o el disco, mediante aparatos electrónicos. Frente a este último punto, se atraviesa la capacidad de registro de un tiempo y un espacio y la necesidad de representación de tiempos y espacios múltiples. Leia Mais
A escrita da história em disputa: os desafios do tempo presente para a prática da pesquisa e do ensino em História | SÆCULUM – Revista de História | 2021
Detalhe de capa de Guia politicamente incorreto da história do Brasil, de Leandro Narloch | Imagem: HH Magazine
Nos últimos anos, o(a) professor(a)1 de História no Brasil tem sido deslegitimado(a) e agredido(a) por pessoas ou grupos políticos/sociais que compartilham dos princípios do movimento “escola sem partido e sem ideologia de gênero”. Como se não bastasse toda a violência praticada contra os(as) docentes, acompanhamos nas redes sociais, no noticiário e nas conversas informais o processo de (des)validação da história ensinada, sob argumento de que professores(as) de história trazem versões comunistas e esquerdistas para a sala de aula e para o livro didático. Esses ataques ao fazer docente acendem o alerta da comunidade acadêmica, das associações cientificas, da sociedade civil organizada e dos sindicatos para a necessidade de um cuidado permanente que todos devem ter para com as instituições formativas e a importância do debate permanente sobre a liberdade de cátedra e o pluralismo de ideias no espaço educativo, e, ao mesmo tempo, devem ser lidos como um sinal para que professores(as), estudantes, pais e gestores(as) discutam sobre (in)verdade, fake fews, conhecimento científico e negacionismo. Leia Mais
O protagonismo das mulheres negras na escrita da história dos brasis / Revista Transversos / 2020
Ao olhar a arte da capa desta edição (MARIELLE CHRIST, Laucas [1], 2020), não pela aceleração da vida moderna, que sacrifica o tempo presente em nome de um futuro unidirecional, e sim por um tempo Sankofa [2] , que traz as histórias de ancestralidades sócio-históricas negadas pela nossa neurose cultural brasileira: o racismo (GONZALEZ, 1984), podemos sentir-pensar sobre a miríade de significados e potências entorno da vida de Marielle Franco, uma grande protagonista da história recente do Brasil. Elementos ocidentais se conectam a afro-diaspóricos, de(s)colonizando as artes plásticas e os significados pré-determinados entorno das representações das mulheres negras na sociedade brasileira. Afinal, ruminar sobre essa imagem é se confrontar com as sensações entorno de uma complexidade heterogênea de identidades políticas, culturais, sociais, econômicas, espirituais, filosóficas, sexuais e de gênero que não se encaixam no nosso capitalismo racista e patriarcal de todos os dias. É com as potências transgressoras e re-existentes de MARIELLE CHRIST que a Revista TransVersos tem o prazer de apresentar sua 20ª edição.
Número cuja chamada recebeu a maior quantidade de artigos da história da revista, o que é mais um dado comprobatório da demanda e relevância social da temática. Fato que, junto às dificuldades e desafios do contexto pandêmico, nos levou a dividi-la em duas edições para manter nosso compromisso ético-político e acadêmico de combate ao epistemicídio, pois só convidamos pareceristas engajades na produção de conhecimento que possa combater o racismo científico. Racismo este praticado, por exemplo, em pareceres às cegas em que especialistas impõem a colonização do saber ao desqualificar teorias e metodologias que não se apresentam como neutras e universais – como as dos pensamentos feministas negros e de(s)coloniais -, justamente, porque essa suposta imparcialidade do fazer científico esconde um lugar de poder que é a imposição homogeneizadora do sujeito homem-branco-ocidental. Exagero? Até hoje para se tornar historiador(a) no Brasil, os cânones vão exigir a leitura da clássica interpretação marxista de um muito importante sujeito homem-branco de escrita moderna-ocidental, Caio Prado Júnior, que nega não só as epistemologias afro-brasileiras, como a própria condição de sujeito humano à população negra. “Definitivamente, Caio Prado Júnior ‘detesta’ nossa gente’ (GONZALEZ, 1984: 235); no entanto, impossibilita que a resposta da intelectual Lélia Gonzalez a tal especialista seja considerada também como um clássico da historiografia ao não incluí-la nas referências canônicas da disciplina.
É por Lélia Gonzalez, é por Marilene Rosa Nogueira da Silva, mulher negra fundadora desta revista, e por inúmeras mulheres negras que sempre protagonizaram e protagonizam outras histórias dos Brasis, silenciadas pela historiografia hegemônica, que a Revista TransVersos apresenta a sua atual edição.
Autodefinções, oralidades, ancestralidades e de(s)colonialidades de corpos e epistêmicas entram para a história da construção da cidade de Florianópolis no artigo de Carol Lima de Carvalho. A autora nos apresenta os desdobramentos do racismo estrutural, tão invisibilizado pela tradicional historiografia brasileira, por meio de uma análise interseccional da vida de mulheres que atuaram na ocupação e construção de espaços culturais negros na cidade. Resistências ao entrecruzamento das opressões de raça, gênero e classe nos são apresentadas por meio das histórias dessas sujeitas protagonistas da história de Florianópolis.
Como seria a história do cotidiano do Rio de Janeiro por meio das narrativas de uma mulher negra líder de comunidade da zona norte da cidade? Esta é a proposta do artigo de Maria Angélica Zubaran e Denise Bock de Andrade, no qual o conceito de escrevivências de Conceição Evaristo se transforma em operador metodológico na (re)construção da história do Morro do Andaraí, por meio das narrativas autobiográficas de Jurema Batista. As autoras nos apresentam alguns dos efeitos das ressignificações de identidades sócio-históricas de “raça” e “gênero” tecidas por mulheres negras desta comunidade em suas buscas por constituições de si positivas, relacionadas diretamente com a luta por conquista de direitos à comunidade.
Cláudia Gomes Cruz, Ana Lúcia da Silva Raia e Mônica Regina Ferreira Lins contribuem para as análises e discussões sobre as escritas de Maria Carolina de Jesus como decoloniais ao romper com a colonização do saber em sua vida e escrita. Por meio das obras: Quarto de Despejo: diário de uma favelada e Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada, problematizam a intelectualidade de Maria Carolina de Jesus, entrecruzando perspectivas dos feminismos negros e feminismos decoloniais.
Beatriz do Nascimento Preche, em: O imoral escândalo da prostituição de escravas: pensando a prostituição a partir das mulheres negras no Rio de Janeiro (1871), apresenta uma significativa renovação historiográfica sobre o tema ao romper com o tradicional destaque dado a prostituição de europeias no período em destaque. O artigo problematiza a tensão não apenas de gênero, como também de raça que entrecruzam as tecnologias da moderna colonialidade de gênero (LUGONES, 2008). As autoras analisam transformações e continuidades efetivadas pela interferência do público em uma relação até então de domínio privado.
O apagamento de intelectuais negras – epistemicídio- é constante no Brasil, bem perceptível na vida de Virgínia Bicudo, que Rosa Coutinho Schechter e Paulo Eduardo Viana Vidal aqui retiram do silenciamento. Na década de 1950, Virgínia Bicudo, socióloga e psicanalista negra conduziu profundas pesquisas sobre racismo no Brasil, nas quais afirma a cor da pele como obstáculo para a ascensão social, pois apenas a ascensão econômica não era suficiente para demover os preconceitos em relação aos negros. Divergindo assim da “democracia racial”, amplamente aceita pela intelectualidade da época.
Clécia Aquino Queiroz e Vítor Aquino Queiroz apresentam a trajetória de vida de cinco sambadeiras, as quais atuaram para dar continuidade à tradição transmitida por seus antepassados. Os autores mostram como o samba proporciona conexão com ancestralidades africanas, significado, para estas mulheres, como um “lugar de alento, onde as dimensões corporais e espirituais se complementam”, tomado, assim, como elemento vital para os seus enfrentamentos diários. O texto contribuiu para os estudos sobre rito e performance, problematizando o Samba de Roda como potencializador de empoderamentos a estas “donas”, as quais exercem importantes papéis na produção de realidades nas comunidades negras do Recôncavo baiano, com atenção especial ao papel fundamental das mulheres na organização do ritual. Luciana Falcão Lessa discute os efeitos da colonização, da escravidão e do racismo na subjetividade de mulheres negras. A pesquisa multidisciplinar traz os principais conceitos e teorias a respeito dos sentimentos partilhados pelas integrantes da Rede de Mulheres Negras da Bahia, a partir de suas experiências cotidianas, familiares, afetivas e políticas. A autora apresenta os efeitos que a memória da escravidão e o racismo produziram nas experiências subjetivas destas mulheres e busca entender esse processo a fim de discutir se sua reversão é possível, visibilizando estratégias para o enfrentamento do racismo e fortalecimento da identidade e autoestima dessas sujeitas racializadas. O texto valoriza a subjetividade e afetividade, trazendo as experiências vividas e as emoções como objeto de estudo da História, a partir dos principais referenciais teóricos dos feminismos negros e estudos decoloniais.
Lucymara da Silva Carvalho, Maria Aparecida Prazeres Sanches, em diálogo com estudos historiográficos, sociológicos, filosóficos e do pensamento feminista negro, analisam as inquietações, angústias e alegrias sentidas por mulheres negras retintas. A partir dos conceitos de “escrevivências” e “corpo-território”, entendem que a escrita de si para as mulheres negras se constitui como um ato de desobediência e insubordinação, proporcionando um movimento de encontro, reconhecimento e superação. O texto mostra como o entrecruzamento das opressões de gênero e raça impõem limites na vivência afetiva e sexual das mulheres negras e traz o autoamor como uma fonte de cura, bem como analisam a escrita negra e feminina como ferramentas de empoderamento.
Sirlene Ribeiro Alves Correio nos apresenta Cacilda Francioni de Souza, mulher preta que viveu dois tempos: o da escravidão e o do pós-abolição. Por meio de suas reflexões, a autora nos convida a refletir sobre o apagamento sofrido por esta mulher pela historiografia. Sua trajetória inclui ações abolicionistas, produção de livros didáticos, literários e docência, demarcando o lugar de Cacilda como intelectual negra numa sociedade marcada pelo patriarcado racista.
A autora Juçara Mello nos brinda com o protagonismo de mulheres negras no contexto da cultura fabril nos anos 1950-1960, em Santo Aleixo, distrito de Magé, no Rio de Janeiro. Refletindo acerca da invisibilidade legada pela historiografia à mulher negra operária, a autora apresenta olhar peculiar revisitando histórias marcadas pela interseccionalidade. O encontro entre duas mulheres negras – Lúcia de Souza, operária e Ruth Telles, professora – assinala, “a projeção de uma representatividade determinante na construção da identidade étnico racial”.
Roberta Santos Fumero e Veronica Cunha Correio, na sessão: Experimentações, refletem a partir de diferentes intelectuais negras – brasileiras e estrangeiras – a trajetória de mulheres negras moradoras da Baixada Fluminense no Estado do Rio de Janeiro. O modo como essas mulheres, por meio da escrita transformam seus mundos, suas realidades, suas perspectivas concretizaram-se por meio da mobilização política ao criarem um coletivo, o Mulheres do Ler.
Por último, mas não menos relevante, na seção: Artigos livres, Roberto Augusto A. Pereira Correio apresenta a “Companhia Brasiliana e a constituição do Teatro Folclórico no Brasil”, entre os anos de 1949 e 1951. O autor analisa o protagonismo do grupo que atuou entre intelectuais e jornalistas. Como tema central, tais grupos refletiam sobre a identidade nacional brasileira e sua relação dialógica com a chamada cultura negra e popular.
O presente número da Transversos vem, portanto, produzir visibilidade historiográfica as mulheres negras da nossa história, entendidas como sujeitas da transformação social e da produção de realidades e sentidos, capazes de possibilitar à luta contra a opressão e violência vivenciadas há séculos nestes Brasis. Os artigos aqui reunidos não apenas denunciam epistemicídios e silenciamentos operados sobre as práxis das mulheres negras, mas trazem também, em seu conjunto, novas perspectivas teórico-metodológicas, que reconhecem os sentimentos e aflições da(os)s sujeita(o)s histórica(o)s.
As leitoras e leitores encontrarão aqui outras formas de produzir historiografia, de construir ciências humanas, em que as experiências interseccionais (CRENSHAW, 2002) das mulheres negras atravessam e significam as realidades sócio-históricas. As protagonistas negras emocionam e encantam com suas dores e conquistas e, através de suas trajetórias, podemos identificar diversas possibilidades de re-existências ao longo da história deste país. Apresentamo-las em suas potências de ação e transformação, as quais, individual ou coletivamente, carregam a possibilidade de alterar as subalternizações que as tecnologias de poder do patriarcado branco colonial insistem em condicioná-las. Esperançamos que as escritas aqui presentes reguem as sementes plantadas pela agora ancestral Marielle Franco, em seus ensinamentos potencializadores da necessária esperança. Não a que se prende na imobilização da espera e sim como pensada por Paulo Freire (2002), a qual permite compreender a história não como pré-determinada, mas sim como contingencial porque aberta a transformação construída por diferentes sujeita(os). Neste dossiê, destacamos as possibilidades de construção de uma sociedade contrária a colonialidade do capitalismo racista e patriarcal, esperançando o florescer de temporalidades mais justas e humanas para todes.
Notas
- Contato: @daniellaucas
- “O ideograma Sankofa pertence a um conjunto de símbolos gráficos de origem akan chamado adinkra […] significa ‘voltar e apanhar de novo aquilo que ficou para trás’” (NASCIMENTO, 2008: 31).
Referências
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171- 188, jan. 2002.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs, p. 223-244, 1984.
LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa. Bogotá, nº09, p. 73-101 2008.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008.
Marina Vieira de Carvalho – Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com período sanduíche em Université Paris VII (Paris- Diderot), fomentado pela CAPES. Possui mestrado em História pelo PPGH / UERJ; Pós-Graduação Lato Sensu em História do Brasil pela UFF; Licenciatura e Bacharelado em História pela UGF. É professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH / UFAC), coordenadora de pesquisa do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI / UFAC), pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos das Diferenças Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ) e ao Grupo de Pesquisa Descoloniais Carolina Maria de Jesus. Atualmente desenvolve pesquisas sobre de(s)colonialidades, com destaque para os femininos de(s)coloniais.
Iamara da Silva Viana – Professora do Departamento de História da PUC-Rio. Doutora em História Política UERJ com estágio na EHESS / Paris (2016); Mestre em História Social UERJ / FFP (2009); Bacharel e Licenciada em História UFRJ (2004). Professora Colaboradora do PPGHC / IH / UFRJ; Coordenadora da Pós em África e Cultura afrodescente PUC-Rio, Pólo Duque de Caxias; Coordenadora do Laboratório de Ensino de História e Patrimônio Cultural (LEEHPAC / PUC-Rio); Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA / PUC-Rio); Pesquisadora do Laboratório de Estudos de História Atlântica das Sociedades coloniais e pós-coloniais (LEAH / IH / UFRJ). Desenvolve pesquisa sobre Escravidão no Brasil no século XIX e suas conexões Atlânticas, Caribe Francês, Corpos escravizados e pensamento médico, Ensino de História, Cultura Material, Patrimônio Cultural e Relações étnico raciais.
Mariana Bracks – Mestre e doutora em história pela USP, com estágio pós-doutoral na UFMG. (Futura) Professora de história da África na Universidade Federal de Sergipe. Autora dos livros Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola (Mazza, 2015), Ginga de Angola: memórias e representações da Rainha guerreira na diáspora (Brazil Publishing, 2019) e do livro em quadrinhos Rainha Ginga guerreira de Angola (Ancestre, 2016).
CARVALHO, Marina Vieira de; VIANA, Iamara da Silva; BRACKS, Mariana; MBANDI, Nzinga. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.20, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]
Epistemologia e Escrita da História | Historiae | 2020
O presente dossiê da Revista Historiæ, possui como objetivo apresentar estudos que estão sendo realizados atualmente por pesquisadores e pesquisadoras que abordam, a partir de variados ângulos, questões relacionadas com a Epistemologia e a Escrita da História. Logo, os estudos em Epistemologia e Escrita da História solidificaram-se, a partir segunda metade do século XX, como um dos principais campos de pesquisa da historiografia. Desse modo, em diálogo com a Teoria Literária, a Filosofia Analítica e Hermenêutica, a Antropologia e as Ciências Sociais a indagação epistemológica e, também, sobre a escrita da História atravessou distintas transformações que suscitaram complexos caminhos e perguntas, em uma ampla variação de propostas metodológicas aprofundaram a investigação histórica.
Carlos Prado, no texto Braudel e a pluralidade do tempo: a história entre o estrutural e o factual, aborda como Fernand Braudel responde ao avanço do estruturalismo lévi-straussiano na década de 1950 a partir do tema da longa duração e de uma abordagem plural do tempo, buscando superar a oposição entre o estrutural e o factual. Primeiramente, apresenta o estruturalismo antropológico, ressaltando suas características e considerações diante do pensamento histórico. Num segundo momento, evidencia-se como Braudel se apropria do estruturalismo de Lévi-Strauss ao mesmo tempo em que o nega e apresenta a História como a ciência capaz de permanecer hegemônica entre as Ciências humanas, além de tratar do conceito de longa duração e da pluralidade temporal. Por fim, são traçadas algumas considerações sobre a ampliação da história estrutural, destacando sua diversidade e seus riscos, especialmente, o de produzir uma história imóvel. Leia Mais
Teoria, escrita e ensino da história: além ou aquém do eurocentrismo? / Revista Transversos / 2019
O eurocentrismo é, possivelmente, a variante mais forte do etnocentrismo presente nos debates entre historiadores das últimas décadas. Há um complexo jogo teórico que une e divide opiniões de historiadores, arqueólogos, antropólogos e cientistas de outras áreas do conhecimento humano e social aplicado acerca da dimensão e profundidade dos efeitos da modernidade no pensamento social e, em especial, na produção da História. Não seria sequer possível dar conta de tantas nuances em tão pouco espaço sem correr o risco indesejável de transformar esse curto ensaio introdutório numa longa lista onomástica de referências bibliográficas de pouca profundidade. Por isso mesmo, opta-se por uma apresentação bastante seletiva, que busca indicar tão somente alguns contornos dessa problemática.
A crítica ao etnocentrismo já possuiu uma longa trajetória sobre a qual não nos furtaremos a pincelar determinados traços. Um trabalho de caráter mais geral, mas que obteve profunda penetração acadêmica, foi apresentado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss por ocasião de um pedido da ONU em 1952, cujo objetivo principal era discutir o problema do racismo. O etnocentrismo é uma espécie de repulsa, cuja origem é o estranhamento cultural, a incapacidade de relativizar as diferenças culturais, comparando-as em um sentido evolucionista in totum. Desta premissa, pessoas selvagens, bárbaras serão sempre “os outros” em contraposição aos humanos, aos civilizados. Essa postura adversa às outras culturas pode engendrar toda sorte de práticas discriminatórias, e, em suas variantes, o próprio racismo (LÉVI-STRAUSS, 1961).
Ao mesmo tempo, o que tem sido sistematicamente colocado de forma ainda mais contundente e crítica a modernidade do que o caminho proposto por Lévi-Strauss, seja o etnocentrismo (compreender o mundo a partir de uma expressão particular do que é ser tornando ela um universal) ou eurocentrismo (localizar no continente europeu parâmetros para a compreensão da História e dos homens), o que se opera é um profundo ocultamento dos impactos da modernidade no mundo. Centralizado no ser e na história europeia, qualquer visão será incapaz de compreender os efeitos da modernidade, uma vez que eles se expressam muitas das vezes fora do continente europeu (MBEMBE, 2016).
De toda maneira, o devir histórico é um forte motor para as mudanças de visão sobre os conceitos. Um entendimento sobre uma categoria que poderia parecer seguro, com o passar do tempo, tende a cambiar seus sentidos culturais originais. Vide o caso do termo oikonomiké entres os gregos antigos e o significado mais corrente de economia no mundo contemporâneo ou o de koinonia politiké entre os gregos antigos e de sociedade civil depois do século XVIII – note-se que os gregos antigos sequer operavam noções como a divisão moderna, pós-hegeliana, entre estado e sociedade civil (BOBBIO, 2017; FINLEY, 1980; KOSELLECK, 1992).
O mesmo Lévi-Strauss surpreendia a mesma ONU em uma palestra no ano de 1985. A perplexidade dos presentes veio da ponderação do antropólogo francês, que afirmava na ocasião ser etnocentrismo, em doses controladas, uma coisa boa, pois representava uma forma de adesão a um conjunto de valores que permitia a manutenção das distâncias entre as culturas. Para LéviStrauss, o enfraquecimento do etnocentrismo poderia conduzir a um estado de entropia moral, de desordem – o que poderia significar a destruição da criatividade de várias culturas por conta da “comunicação integral com o outro” (GEERTZ, 2014). Essa nova postura foi, com razão, duramente criticada por Clifford Geertz em uma de suas últimas obras.
Geertz, muito surpreso com o détour lévistraussiano, ressaltou que uma parte não desprezível do medo cego da diversidade acabava por criar um receio de que esta existisse para impor uma alternativa a nós como um todo e não sugestões e novas maneiras de fazer para nós. Ou seja, a aceitação da diversidade é sempre um processo seletivo de novos comportamentos, atitudes, concepções que se pode ou não aplicar, por meio da práxis humana, ao mundo. O etnocentrismo “nos impede de descobrir em que tipo de ângulo […] nos situamos em relação ao mundo, que tipo de morcegos somos, de fato” (GEERTZ, 2014). Se a nós é permitido expandir um pouco a ideia de Geertz, parece de todo fundamental que tenhamos alguma consciência histórica de que tipo de morcegos nós somos. Perceber o nível de arbitrariedade das ações sociais, das formas de pensar o mundo e as coisas ao redor, ter a autopercepção de um tipo de habitus, de uma estrutura que se reproduz e que se modifica, aqui e ali, enquanto conduz a todos a fazer o que nem se pensa sobre. Uma postura não etnocêntrica pode ser a maneira mais razoável de, puramente, se abrir à possibilidade de ouvir o que o outro tem a dizer e, eventualmente, mudar de ideia (BOURDIEU, 1989, 1996, 2013; GEERTZ, 2014).
Uma das obras centrais que fizeram muitos mudar de ideia, possivelmente um dos pontos de mutação nas reflexões em torno do eurocentrismo, data do final da década de 1970, quando Edward Said publicava o seu Orientalismo. Said foi o responsável por colocar em questão a naturalização da relação e a própria categorização: ocidente e oriente. Na verdade, muito mais do que isso, ele mostrou que parte significativa do que entendemos como oriente foi uma invenção que estava ligada a um discurso centrado na autodefinição e na consolidação de certa ideia de Europa que nasce, ou na verdade é inventada, a partir da apropriação da visão helena em os Persas de Ésquilo (ÉSQUILO, 2009). Além disso, Said demonstrou, no difícil contexto do processo de descolonização da África, que parte significativa das ideias lançadas por filósofos e historiadores do XIX produzia e reproduzia uma visão binária, um oriente atrasado e sustentados por regimes autoritários contraposto à Europa amparada por democracias e defensora de liberdades civis (SAID, 2007).
A História Antiga foi agudamente mobilizada para a consolidação dessa visão negativa do oriente. Jack Goody apontou uma vez que “a Turquia tornou-se o caso típico de despotismo oriental no início do período moderno, como antes, na Antiguidade, a Pérsia o foi para a Grécia […]” (GOODY, 2008, p.113). No caminho imperialista inglês, ficava clara a escolha da ênfase em Atenas, Esparta e, depois, na Macedônia. “A história da Grécia foi, portanto, uma história de uma entidade imaginada e não a história das comunidades gregas […] a história das comunidades gregas foi amalgamada sob uma entidade chamada de Grécia Antiga, que, juntamente com Roma, formaram os ancestrais do ocidente” (VLASSOPOULOS, 2011, p 41). O problema deste tipo de narrativa é criar uma finalidade para a Grécia, além de importar, fazer retroagir essa comunidade imaginada, a nação. Desta forma, Roma deveria receber a tocha da civilização, assim como o oriente havia feito em relação aos helenos. Nesse processo, o início de tudo parece remeter aos artistas, intelectuais e arquitetos do Renascimento que produziram a invenção do clássico, apropriando-se, mormente, do tratado de Vitrúvio sobre a arquitetura (KRUFT, 2015).
Uma dimensão base da crítica ao eurocentrismo é a reivindicação de uma mudança no polo ou centralidade das referências com quais definimos o que é teoria, o que vai para além da necessidade de se conhecer teóricos e filósofos não-europeus – os nomes de Frantz Fanon e Cheikh Anta Diop são base para essa direção. Dipesh Chakrabarty (2007) é um entre tantos que tem se dedicado a mostrar o quanto a diferença entre teoria e pesquisa por vezes é fundada numa hierarquização de territórios. Em muitos momentos, como em reflexões teóricas sobre o que é a invenção de uma nação, o continente europeu assume uma estatura distinta, sua experiência deixa de ser local para se tornar teórica, um “referente oculto” (nem sempre tão oculto) pelo qual histórias específicas (como as das Américas) deveriam ser compreendidas. Nesse caminho, a história da construção de uma nação como o Brasil passa a ser visto como um estudo de caso, uma experiência específica que não alcança a estatura de compreensão teórica. A hierarquia que deve ser desfeita é justamente aquela que pressupõe um lugar centralizado cujas experiências são basilares para formulações teóricas. A crítica ao eurocentrismo, então, não envolve apenas o reconhecimento de que é necessário estar atento a produções teóricas não-hegemônicas, mas que a própria diferença entre teoria e experiência (ou estudo de caso) se funda numa hierarquização preestabelecida.
Sanjay Seth (2013) assume a mesma direção ao explicitar que a dinâmica do historicismo – neste sentido vigente a todo momento em que o eurocentrismo ecoa – assume que na fundação da história enquanto disciplina acadêmica e científica há uma democracia falseada. Para o historicismo a afirmação de que todo território, cultura ou sociedade tem uma história – supostamente um movimento de reconhecimento da alteridade – é seguida da constatação de que nem todos têm historiografia. Isso implica uma redução das compreensões do que sejam raciocínios históricos ao ponto que rompemos com a estrutura antes apresentada por Lévi-Strauss, no sentido em que não basta reconhecer a pluralidade de experiências de ser, assim como não bastaria reconhecer as arbitrariedades das nossas próprias convicções implícitas em nosso habitus. O ponto é indicar que a historiografia é apenas uma forma de ser com o passado, válida e necessária, mas certamente não é a única. A crítica ao eurocentrismo, neste caminho, não anula o lugar da historiografia, mas pretende romper com o constante movimento de que uma voz ou metodologia implique no silenciamento de outras formas de ser com o passado que seriam, no limite, reduzidas apenas a fontes históricas.
Em síntese, o eurocentrismo sobre o qual fala-se aqui é um potente postulado, desdobrado em discurso histórico e filosófico enviesado, politicamente perverso, que construiu uma sólida narrativa de história global baseada em percepções, bem como formas e divisões dos períodos históricos, que davam conta, quando muito, para se pensar e emprestar sentido a uma comunidade imaginada de nações, a Europa. Da Grécia Antiga, tornada berço da Europa, e desta para o mundo, tudo passa a ser conectado por um fio narrativo específico, mas tornado natural pelo discurso histórico da modernidade, pelas conquistas imperiais e pela violência inerente ao processo civilizador, literariamente expresso como The White Man’s Burden (KIPLING, 1899; MIGNOLO, 2017).
O processo civilizador, que camuflava a sua violência material e simbólica por meio da politesse cortesã, foi sistematicamente questionado no decurso histórias nacionais pelos povos submetidos às forças estrangeiras – o próprio termo nacional já pressupõe certa aporia conceitual se se quer tratar de períodos, comunidades e populações para as quais essa formação social era estranha, como na Antiguidade e Idade Média, por exemplo (ELIAS, 1993). Como fugir de um sentido orientado pela construção da nação e de um discurso eurocêntrico? Seria um tanto quanto tautológico reafirmar aqui a enorme influência que a filosofia e as outras artes europeias tiveram sobre a percepção do tempo e mundo em boa parte do globo. Não se trata de negar a existência desses fluxos de ideias e cadeias de representações sociais, mas de perceber o nível de arbitrariedade sobre os quais elas foram construídas, desnaturalizá-las, para poder sair da espessa neblina criada pelo habitus.
O notório artigo de Gayatri Spivak, publicado em 1985 e, depois, convertido em livro e muitas obras de comentadores, se questionava de forma modelar: Pode o subalterno falar? (SPIVAK, 2010) Havia uma mudança de paradigma e conceitual em curso, doravante conhecido como os estudos subalternos. A partir desse momento, dever-se-ia questionar qual a importância dos camponeses nos processos históricos? Qual o papel da resistência das camadas populares para além da influência da elite da época? Em que medida a sociedade, tradições falocrêntricas e colonialistas silenciavam a voz das mulheres nos processos históricos, bem como quais eram as relações entre poder e conhecimento? Enfim, se tratava de “produzir uma análise histórica em que os grupos subalternos fossem vistos como sujeitos da história” (CHAKRABARTY, 2002, p. 7).
Nas últimas décadas, a forma analítica que a noção de etnia ganhou no campo da Sociologia e Antropologia, levou com que muitos europeus ou não, se pusessem numa nova e profícua corrente de estudos (POUTIGNAT, 2006). Na Teoria da História pulularam os trabalhos que queriam romper com o eurocentrismo, como nas tentativas de George Iggers, e de outros, em reunir autores de diversas partes do globo para poderem pôr em pauta, com certa medida de ironia em inglês, questões historiográficas presentes em culturas e processos históricos bastante distintos entre si (CROSSLEY, 2008; IGGERS; WANG; MUKHERJEE, 2016; RÜSEN, 2008). Há um ocaso europeu em curso? É o centro do mundo tornado periferia? No que se pode inferir a partir da presença dos outros continentes no seio das humanidades pode-se dizer, ao menos, que há um novo equilíbrio de forças, um ineludível horizonte de debates (MBEMBE, 2018).
O Brasil não esteve imune a esse discurso eurocêntrico englobante. Recentemente, Luís Ernesto Barnabé demonstrou como ocorreu a penetração de um tipo de saber histórico tipicamente europeu no Brasil, advindo por meio da tradução feita por José Justiniano da Rocha do Précis de l’Histoire Ancienne de Poirson e Cayx, que foi utilizado no Imperial Colégio de Pedro II, ainda na primeira metade do século XIX (BARNABÉ, 2019). Todo um discurso atenocêntrico vinculado a reconhecidos autores como Arnold Heeren, George Grote, Jacob Burckhardt, Fustel de Coulanges, Max Weber, dentre outros, punha, em diversos matizes, Atenas como modelo de pólis, por vezes em contraposição à Esparta. Embora essas ideias venham sendo refutadas veementemente nas últimas décadas, muitas delas continuaram a emprestar forma aos manuais didáticos brasileiros dos últimos anos do século XX e mesmo ainda hoje (BUSTAMANTE, 2017; CASTRO, 2018; FRANCISCO; MORALES, 2016; GUARINELLO, 2010; HANSEN, 2006; HARTOG, 2001, 2014; LISSARRAGUE, 2002; MOERBECK, 2018b, 2018a; VLASSOPOULOS, 2011, 2013).
O que estava em jogo era o foco em uma visão bastante tradicional de história (político-institucional) que era reproduzida, talvez ainda seja, deixando-se de lado as contribuições mais recentes da própria produção brasileira em História Antiga. Uma breve leitura desta poderia, ainda que os caminhos entre a produção acadêmica e a escolar devam ser vistas de forma não hierárquica e qualitativamente distintos, incentivar recortes de temas mais transversais, a abertura para novos horizontes em que fosse possível pensar o ensino da História por meio, por exemplo, dos mitos gregos, das religiões antigas em relação aos cultos, mitos e rituais indígenas brasileiros e de alhures.
A utilização da História Antiga pode operar como um forte instrumento de descentramento cultural na compreensão da diversidade e permitir compreender melhor: os papeis sociais das mulheres antigas e as contemporâneas; as formas de exploração do trabalho ontem e hoje e tantos outros temas. Em suma, o mundo antigo, fora do prisma desgastado de base de civilizações europeias, pode ser muito mais útil a um ensino da História do século XXI do que se poderia temer, ou por considerá-lo distante demais ou supostamente mais “difícil” de ser ensinado. Estas são duas fórmulas decorrentes de uma compreensão, via de regra rasa e demodé, geralmente produzida por certo “senso comum” acadêmico de docentes que nunca se ocuparam efetivamente da História Antiga e que não é encontrado ou reproduzido, necessariamente, entre os professores que atuam diretamente nas escolas. Enfim, descolonizar o ensino passa muito mais por um processo que inclui repensar os usos do passado, inclusive o pré-moderno, do que por obliterar o estudo da História Antiga ou Medieval nos bancos escolares. Símile ao que dizia Constantin Stanislaski em relação ao trabalho do ator e à performance cênica, é preciso imaginação para se ensinar e para aprender a História, quiçá nada melhor do que a Antiguidade para aguçá-la. O que é mais difícil é fazer do conhecimento e da compreensão do mundo uma fagulha de felicidade; quando isso for possível nos bancos escolares, em muitos já é, vai importar menos qual conteúdo específico se vai trabalhar, mas o objetivo sócio-cognitivo a se alcançar. Se a História, e em particular a Antiga, serve a algo na escola, ela serve ao presente e muito mais ao futuro do que ao passado de tantos séculos e milênios (BOVO; DEGAN, 2017; FRANCISCO, 2017; MOERBECK, 2017, 2018c, 2018b; MOERBECK; VELLOSO, 2017; SANTOS, 2019; SILVA; SILVA, 2018; STANISLAVSKI, 1994).
Se ainda é valioso pensar a cidadania na escola e no ensino de História, é preciso alertar contra os perigos de um senso comum tranquilizador, que pode se tornar um obstáculo à aprendizagem de novos conhecimentos. Literacia, empatia, enfim, novas ferramentas inerentes ao pensamento histórico são importantes para se entender o xadrez social. E, como dizia Piaget, é preciso causar uns desequilíbrios, algumas incertezas para que os alunos, de forma ativa, possam chegar a uma nova forma de inteligibilidade do mundo (LEE, 2006; LEFRANÇOIS; ÉTHIER; DEMERS, 2011, p. 50-1). Decerto, isso é possível pelo questionamento de formas de pensar dogmáticas e não dialógicas. É bem possível que uma cidadania adequada aos tempos atuais seja aquela que reconheça criticamente as desigualdades que são produzidas, mesmo no ambiente das democracias, e, por meio da construção coletiva, desenvolver a consciência das diferenças socio-identitárias, inclusive naquilo que pode, ou deveria, prever o currículo escolar (CERRI, 2011; ÉTHIER; LEFRANÇOIS, 2007; ETHIER; LEFRANÇOIS; AUDIGIER, 2018).
Os caminhos atuais são os da multiplicidade de quadros metodológicos, bases epistemológicas e diálogos com outras disciplinas e saberes. Se é verdade que os estudos oriundos da hermenêutica, seja via Paul Ricouer, seja via Hans-George Gadamer, ganharam força na historiografia brasileira nos últimos anos, não seria verdade dizer que o marxismo e as mais diversas formas de análise do social tenham desaparecido ou mesmo que possam ser proscritas do horizonte da disciplina História (GADAMER, 2015; MARTINHO; FREIRE, 2019; RICOEUR, 2018). Se o conceito de classe ainda rende frutos, já que as clivagens sociais são uma dimensão do conflito humano com forte perenidade no tempo, os processos de identificação e as questões étnicas são e permanecerão, por muito tempo, elemento central nos debates histórico-culturais que permeiam a academia porque são relevantes para a sociedade como um todo. Em tempos de incertezas políticas, de radicalismos e da valorização, por parte da sociedade brasileira e mesmo d’alhures, de grupos obscurantistas, anticientíficos, vale a pena lembrar que: o mármore é rígido, porém, quando quebrado, só restam os fragmentos ao árduo trabalho dos arqueólogos, como aqueles das estatuárias grega e romana, dilaceradas pela beligerante ação humana no decurso do tempo. Enquanto a murta, como é característico das folhagens, até quebram, mas renascem, vergam, mas permanecem vivas ao procurar a luz para sobreviver. Se a luz ainda é uma boa metáfora, que o seja para a criação de um olhar mais perspectivista em relação aos dogmas, afetuoso em relação às carências humanas e aglutinador em relação aos objetivos centrais que concernem à dignidade humana (CASTRO, E. V. DE, 2017; UNESCO, 2015).
Muito dessa variedade de estilos, de bases teóricas e de temas estarão representados neste número da Revista Transversos. Dentro do seu próprio ethos, esse número traz à baila muitas temáticas em torno de um núcleo, afinal, estamos além ou aquém do eurocentrismo?
O artigo do professor José Maria Gomes de Souza Neto abre a Transversos, colocando em pauta a influência de elementos imperialistas e racistas na produção de blockbusters hollywoodianos. Neste caso, retomamos um dos mais caros temas da mitologia egípcia antiga em mais uma leitura cinematográfica. Segundo o seu autor, em Deuses do Egito (2016), há a construção de uma “ideia de civilização como espaço de construção europeia, noção que precisa, até por força de lei, ser contestada, e ninguém mais apto para tal tarefa que o profissional de história”.
Em seguida, os arqueólogos, professores do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, Maria Cristina Nicolau Kormikiari e Vagner Carvalheiro Porto, mostram como a documentação de origem material pode ser crucial para a aproximação do aluno ao mundo antigo. Por meio do trabalho e da cooperação em torno da produção de mapas interativos, vídeos educativos, entre outros, dois laboratórios: LABECA e LARP mostram que a Arqueologia e a História podem trazer “opções didáticas para o ensino sobre o Mundo Antigo, o qual não se apresenta como modelo e sim como exemplo da variabilidade do viver humano”.
Deslocando-nos do ambiente da educação formal e nos reaproximando de formas de conhecimentos e da sociabilidade tradicionais, encontra-se o artigo de Kattya Hernández Basante, doutoranda na Universidad Andina Simón Bolívar, no Equador. Trata-se aqui de recuar às formas de produção do conhecimento que rementem a um universo de culturas orais, como sói acontecer na antiguidade, mas também entre algumas das populações indígenas brasileiras, dos griots e de avós que retém um saber, uma memória, que entra em profundo conflito com o projeto colonialista. Tudo isso mobiliza questões relevantes não apenas no Equador, mas em muitos países latino-americanos, a saber: processos de branqueamento, de tornar invisíveis populações tradicionais, bem como de conflitos entre narrativas históricas oficiais e memórias subterrâneas.
Pensando Bartolomeu de Las Casas como o primeiro crítico da modernidade europeia, Rafael Gonçalves Borges, professor do Instituto Federal de Goiás, avalia, no âmbito dos debates crítico-historiográficos, a atuação de Las Casas junto às populações ameríndias, desde uma visão negativa do frade dominicano até a sua reavaliação pelas tendências decoloniais. Uma vasta gama de referências orbita este trabalho, desde E. Said, passando por T. Todorov, Boaventura de Souza Santos, Edmundo O’Gorman e Enrique Dussel. Embora o nosso autor reconheça a importância de Las Casas em seu próprio tempo, aponta para o fato de que dificilmente ele poderia ser visto como um “porta-voz” de indígenas e de populações tornadas subalternas no mundo contemporâneo.
As discussões acaloradas em torno das diversas versões da BNCC, bem como as experiências, possibilidades e limitações de uma didática da História, via Jörn Rüsen, coloriram o ambiente dos debates acadêmicos e políticos nos últimos anos. Jean Carlos Moreno, professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná, levanta uma importante questão, a saber: até que ponto o quadro conceitual produzido por Rüsen é adequado às questões históricas específicas de uma história latino-americana? Se tais limites estivessem, a priori, ligados ao contexto no qual a Didática da História foi pensada, quais seriam então as suas vantagens? É um convite ao leitor para adentrar esse trabalho instigante sobre as possibilidades teóricas para o ensino da História.
E da teoria à prática, Priscila Aquino Silva, pós-doutoranda em História Medieval na Universidade Federal Fluminense e docente com larga experiência no Ensino Básico, nos convida a visitar uma “sala de aula” do 6º ano. Por meio de uma abordagem cara aos estudos para a didática da História, a autora nos apresenta um conjunto de trabalhos desses alunos, a partir dos quais se pode inferir e discutir questões absolutamente importantes em nossos dias, como: a importância e controvérsias da indústria cultural, os direitos humanos e o racismo enraizado, talvez estruturante, no Brasil contemporâneo.
E se, nessa breve introdução, partimos do oriente inventado por Hollywood, voltamos ao mesmo oriente, mas para pensar a formação dos profissionais de História em algumas das universidades públicas do país. Tendo por base uma bibliografia especialmente cara aos estudos mediterrânicos antigos, a autora, Lolita Guimarães Guerra, docente na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, coloca em questão o próprio termo oriente, construído a partir de uma “contraposição a uma identidade unívoca e idealizada, de orientação monoteísta, masculina e ‘nacional’”. Identidade, memória, elementos pré-formativos de uma sociedade brasileira cristã e de futuros professores que terão que se voltar ao passado para se deparar com um oriente de diversos mitos reificados pelos discursos que atravessam a sociedade contemporânea. A autora, com especial densidade, mostra que “é preciso ter em mente o papel de oposição ativa a ser desempenhado pela Universidade e pela Escola frente a memórias sociais legitimadoras da desigualdade e da violência, fomentadas pelo capital e legitimadas pelo Estado”.
Fica ao leitor o convite de adentrar o universo de ricos debates elencados por esse volume da Transversos. Não se deve esperar por soluções ou respostas fáceis, mas, com certeza, por encaminhamentos que ajudem aos professores do Ensino Básico, aos estudantes de graduação e aos profissionais de diversas áreas das humanidades a pensar o papel ativo desempenhado pelos discursos e pelo poder simbólico que tendem a reificar e naturalizar nossas ações, enfim, a nossa forma de conceber o mundo. Se por muito tempo estivemos, todos, imersos, enrijecidos, desbotados por um discurso eurocêntrico, é o momento de repensá-lo, transmutá-lo em algo que faça mais sentido, que seja mais objetivo e coerente com a busca da verdade histórica.
O neoconservadorismo político é um ambiente cheio de armadilhas, algumas delas são: pressupor que a verdade sobre o mundo pode estar vinculada apenas à baliza moral ou religiosa; conceber soluções imediatistas, simplificadoras, como um suposto imperativo categórico para problemas complexos, tudo isso, a despeito de efeitos colaterais perversos que possam advir às camadas menos favorecidas economicamente da sociedade ou “minorias tornadas invisíveis” pelas práticas da exclusão. Contra a História, propõe a ideia de que há apenas uma resposta correta, via de regra, aquela que interessa aos próprios desígnios político-morais do agente, a despeito das informações, evidências, dados e pesquisas acadêmicas em contrário.
Preocupado com estas questões e com certo ceticismo científico inflado por alguns setores do pensamento dito pós-moderno, Ciro Flamarion Cardoso, antigo professor da Universidade Federal Fluminense, chamava a atenção para os atributos necessários para se fazer a História (CARDOSO, 2000),
1) é preciso buscar-se uma comprovação histórica efetiva para o que se pesquisa, a pesquisa histórica não se basta apenas em afirmações apodíticas abstratas, mas em base material consistente; 2) deve-se evitar arrogâncias metodológicas, quaisquer que forem; 3) deve-se denunciar os raciocínios reducionistas de todo tipo; 4) é preciso empregar os conceitos de maneira clara, especialmente ser coerente na relação das categorias utilizadas com a própria investigação que histórica que empreende CARDOSO, 2008; MOERBECK, 2019, p. 107).
Existem muitas possibilidades no tabuleiro das análises sociais: todavia, não cabe a esse ensaísta indicar uma ou outra, mas, certamente, afirmar a incondicional relevância da educação em História no século XXI, que deve estar eticamente posicionada além do eurocentrismo.
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Guilherme Moerbeck – Professor de Teoria e Ensino de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor permanente do PROFHISTÓRIA-UERJ e colaborador no PPGH-UERJ. Doutor em História Antiga pela UFF, pós-doutor em Ensino de História pela FGV-Rio, pós-doutorando em Arqueologia Clássica no MAE / USP. É Chercheur Associé da École Française d’Athène (EFA), já atuou como Visiting Research Fellow no Department of Classics da Brown University e é convidado como Chercheur Associé pelo Département de Didactique da Faculté de Sciences de l’Éducation da Université de Montréal. Além disso, é Pesquisador do LABECA / MAE / USP e do LEDDES / UERJ. É autor dos livros: Entre a Religião e a Política: Eurípides e a Guerra do Peloponeso (Prismas, 2017) e Guerra, Política e Tragédia na Grécia Clássica (Paco Editorial, 2014). E-mail: gmoerbeck@yahoo.com.br
Francisco Gouvea de Sousa – Professor de Teoria e Ensino de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio, pós-doutor em História pela UFRRJ e pela UFOP. É coautor do livro: Teoria e Historiografia: debates contemporâneos (Paco Editorial, 2015). Atua como colaborador no corpo docente do PROFHISTÓRIA -UERJ e é pesquisador do LEDDES / UERJ. E-mail: chico.gouvea31@gmail.com
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Intelectualidades negras e a escrita da história / Revista de Teoria da História / 2019
No momento em que vem a público o dossiê Intelectualidades negras e a escrita da história, o Brasil assiste o negacionismo passar de fenômeno social difícil de explicar – e de entender – à política de governo. Fato que não é exclusivo do Brasil. Com saliência política maior ou menor, o negacionismo tem se apresentado como um traço distintivo peculiar da ascensão da extrema direita em vários países do mundo. De fato, tornou-se plausível e legítimo negar o aquecimento global, negar que o próprio globo terrestre seja esférico ou negar a eficácia de vacinas. E se negar estes fatos ganha um certo caráter anedótico, isso se dá precisamente porque a possibilidade de questionar a positividade forte da verdade que atestam produz um deslizamento discursivo que se projeta sobre outros campos de saber onde o exercício de negar parece ainda mais legítimo. Aqui, a escrita da história vira alvo incontornável. Leia Mais
Temporalidades dissidentes: sujeitos LGBT+ e a escrita da história / Aedos / 2019
Quando propomos, no ano de 2018, a organização do presente dossiê temático à revista Aedos, pensávamos nos 40 anos recém completos do movimento homossexual no Brasil – hoje multiplicados seus atores políticos, conhecido como movimento LGBT+ – como potência para refletirmos sobre as experiências históricas dos sujeitos dissidentes da heteronormatividade, bem como o modo como a historiografia brasileira vem tratando destas. Porém, quanto tempo foi percorrido até que a historiografia, ainda tão afeita às “datas redondas”, reconhecesse as pessoas LGBTs+ como objetos possíveis de estudo, como atores sociais no passado e no presente? E mais, enquanto pesquisadores, em suas subjetividades investigando outras experiências.
Também no ano passado completava sua “maioridade” um dos estudos mais importantes sobre a história dos dissidentes sexuais no Brasil, o livro Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, do brasilianista James Green, publicado por aqui pela primeira vez no ano 2000. O livro é um extenso estudo que aborda as relações mantidas entre homens gays e travestis e o Estado brasileiro ao longo do século XX, entre as quais as classificações e intervenções médico-legais nesses sujeitos, a criação de espaços de sociabilidades nas cidades, como praças, praias, cafés, cinemas e saunas a partir de uma apropriação estratégica do espaço público, a visibilidade deles na imprensa no período do carnaval, a emergência de formas de organização de homossexuais desde os anos 1960, e a repressão da ditadura civil-militar brasileira às sociabilidades e movimentos de homossexuais e travestis.
Como já ressaltaram outros estudiosos da temática LGBT+, Além do Carnaval foi um ponto de ruptura no estrondoso silêncio da historiografia brasileira sobre essas experiências (VERAS; PEDRO, 2014), tornando-se até hoje referência necessária nos estudos sobre dissidência sexual no Brasil. Por mais que o livro de Green delimitasse sua análise às cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, ele tornou-se uma referência necessária nos estudos sobre dissidência sexual no Brasil, sobretudo de pesquisas que se dedicam a estudar a construção de sociabilidades homoeróticas no espaço público. Os artigos publicados neste dossiê mostram como ainda é necessário estudar os territórios e formas de sociabilidades criadas por dissidentes sexuais, especialmente aqueles localizados fora do eixo Rio-São Paulo. É o caso, como o leitor poderá ver, no artigo de Luiz Morando ao investigar em jornais e autos judiciais o “Crime do Parque”, ocorrido no Parque Municipal, espaço de homossociabilidade na Belo Horizonte de 1946. Nesse sentido, abordando a homossexualidade masculina nas “vilas de malocas” de Porto Alegre, o estudo de Rodrigo Weimer investiga o viés moralista que existia sobre sexualidade desviante na prefeitura da capital gaúcha nos anos 1950, lhe utilizando como pretexto para expulsões da localidade.
Da mesma forma, as relações que sujeitos LGBTs+ mantém com o Estado e a sociedade civil em tempos de autoritarismo tem sido recorrentemente objeto de análise de historiadorxs. Como vivem esses indivíduos em regimes ditatoriais que buscam eliminá-los? Como resistem cotidianamente e como lidam com suas memórias traumáticas? Como o discursos e as práticas governamentais tentam conformar subjetividades LGBTs+? Essas são algumas perguntas que os textos de Janaína Langaro e Eduardo de Almeida visam explorar em suas pesquisas. Em Langaro, vemos um estudo sobre a perseguição e as demissões sob acusação de “homossexualismo” no Ministério das Relações Exteriores, presentes nas atas da Comissão de Anistia. Também pesquisando o contexto da Ditadura Civil-Militar, está a pesquisa de Almeida, ao discutir a importância do jornal Lampião da Esquina, bem como sua atuação para um nascente Movimento Guei. Pensando as experiências de três homens homossexuais deportados para campos de concentração, bem como o exercício da sexualidade nesse local, vemos o artigo de Karen Pereira, que a partir de conceitos de Michael Pollak investiga essas memórias demonstrando suas diferentes experiências e percepções.
Se hoje, como apontaram Veras e Pedro (2014), já não é mais possível duvidar de uma historiografia LGBT+ no Brasil – ainda que lhe possa resistir – este dossiê contribui também para pensarmos sobre a forma como essas histórias transviadas têm sido escritas. Não seria esta historiografia ainda muito branca e masculina? De que corpos falamos quando nos propomos a escrever uma história dissidência sexual? É possível uma historiografia queer? Os artigos nesse sentido nos convidam a pensar sobre essas questões e a construirmos uma outra história, em diálogo com outros campos e sujeitos. Na pesquisa de Hariagi Nunes, vemos uma reflexão sobre o corpo pós-pornográfico e pornoterrorista, chamando a escrita da História a repensar suas naturalizações e discursos. Analisando essa escrita que concebe uma invenção do passado, está o trabalho de Cassiano Celestino de Jesus, buscando um diálogo entre o discurso historiográfico com as possibilidades das teorias queer.
Refletindo sobre o papel da imprensa na história dessas experiências, temos a pesquisa de Paula Silveira Barbosa, trazendo uma narrativa sobre o conjunto da Imprensa Lésbica brasileira, nos vestígios de sua trajetória entre o período de 1981 e 1995. Leonardo Martinelli, por sua vez, busca uma análise da representação das homossexualidades na revista Veja em 1977, em diálogos com os estudos queer.
Convidamos o / a leitor / a a embarcar por essas narrativas, que comunicam experiências múltiplas, em sujeitos que se apresentam tal as temporalidades que lhe regem – dissidentes – trazendo nesses (des)caminhos de Clio e Eros, incentivos e mesmo provocações para o permanente repensar da disciplina. Na subversão que se torna o ato de diferir da heteronormatividade, podemos assim, conhecer melhor as experiências que compõe esse presente tão urgente que habitamos.
Referências
GREEN, James. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade das homossexualidades no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, set. / dez. 2014, p. 90-109.
Guilherme da Silva Cardoso – Mestrando do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Tiago Vidal Medeiros – Mestrando do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
CARDOSO, Guilherme da Silva; MEDEIROS, Tiago Vidal. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 11, n. 24, Ago, 2019. Acessar publicação original [DR]
As NTICS e a escrita da história no tempo presente / Revista Transversos / 2017
No início deste século, refletindo acerca das mutações pelas quais passava o mundo da escrita, Roger Chartier afirmou que a “resistência” e o “estranhamento” do historiador à utilização ou a interveniência das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs) no seu fazer pareciam-lhe “lamentações nostálgicas”. Por outro lado, completava, outros olham para esse novo espaço de interação e produção textual com “entusiasmos ingênuos”.
Passada quase uma década dessas palavras, o que mudou na discussão sobre essa questão no Brasil e no mundo? Com certeza, muitos escritos já se somaram às ideias apresentadas pelo historiador francês na 10ª. Bienal Internacional do Livro. Mas, basta uma rápida visita aos trabalhos produzidos no país e verifica-se que a maioria discute formas de utilização das NTICs, relatam experiências, principalmente em sala de aula, mas, poucos se arriscam a romper o limiar de pensar a utilização dessas tecnologias por um viés funcional e auxiliar à escrita da história no tempo presente.
A proposta do presente dossiê pela linha de pesquisa Escritas Contemporâneas de História, do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades – LEDDES / UERJ, pretende dialogar com aqueles profissionais – acadêmicos ou não – que ousam romper o “estranhamento” dessa fronteira e compreender, sem o objetivo de profetizar, lembrando mais uma vez Chartier, que a história se escreve no e para o presente, refletindo seus problemas e incorporando as tecnologias e as ferramentas existentes para essa escrita. Compreendendo, acima de tudo, “os significados e os efeitos das rupturas que implicam os usos” das NTICs nas escritas da história nos dias de hoje, seja a escolar, a pública, ou a historiográfica.
Convidamos historiadores e demais profissionais que pensam a escrita da história ou a produção de narrativas, fundamentais para a materialidade do conhecimento histórico, a enviarem suas reflexões acerca do tema. Rompendo com a perspectiva apresentada acima, temos certeza que os trabalhos que passamos a apresentar (re)significaram a demarcação estabelecida há quase vinte anos para esta discussão e buscaram interpretar fronteira como um lugar de encontro e não apenas de limites.
O artigo que abre o dossiê é de autoria do jovem historiador digital Ricardo Pimenta. Sua reflexão problematiza os desafios do historiador contemporâneo mergulhado em uma época na qual o processo de produção do conhecimento, mesmo que de maneira transversal, está sendo intermediado pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Além de ter que ampliar sua capacidade transdisciplinar, um limite antigo do profissional da área que se complexifica neste novo século, a pesquisa científica e sua divulgação são certamente atravessadas pela consciência de que para “a massa de ‘visualizadores de informação’, saber sobre um assunto, sobre um fato histórico, ou sobre qualquer informação ordinária, resume-se em consultar os motores de busca dispostos na internet”.
Pimenta nos lembra que a cultura digital, característica do presente e na qual estamos todos mais ou menos mergulhados, para além de nos exigir o desenvolvimento de novas competências, modifica estruturalmente pressupostos conceituais com os quais trabalhamos. Será que os regimes de historicidade serão sobrepostos por um ”regime de informação”?
Uma cultura marcada pela atuação e expressão de uma techné marcadamente multimodal e pela práxis da convergência dos registros / escritas / produções existentes no espaço eletrônico onde a relação com a representação do passado, enquanto prática informacional, é plenamente “atravessada” pelos suportes e plataformas mediadoras da informação, convidando-nos a refletir sobre nós mesmos e nossa relação com o tempo e espaço na era digital.
Outra porta abre-se acerca da influência da cultura digital na produção de sentido para informação / conhecimento histórico nos dias de hoje com o artigo O portal Metapedia: revisionismo histórico e negacionismo no tempo presente. Neste trabalho, Diego Leonardo Santana e Dilton Maynard analisam a criação de uma enciclopédia digital – o portal Metapidia – por grupos de extrema direita negacionistas. O portal, segundo os autores, apresenta conceitos e biografias, construídos a partir do revisionismo negacionista, oferecendo versões diferentes para os acontecimentos e conceitos históricos, sobretudos aqueles ligados à Segunda Guerra Mundial.
A análise de verbetes do Metapidia permitiu a Santana e Maynard problematizar um tipo de reescrita da história sendo desenvolvida na e pela rede mundial de computadores e o fato da internet servir de suporte na produção / divulgação pedagógica de posicionamentos intolerantes: “No Metapedia a história tem papel importante, ela colabora sensivelmente para legitimar uma visão fascista de mundo. Se tudo é uma farsa criada pelos adversários, cabe revisar a história e demonstrar o verdadeiro significado das coisas”.
O caráter pedagógico do espaço digital também é explorado por Raone Ferreira de Souza. Mas, seu artigo O podcast no ensino de história e as demandas do tempo presente: que possibilidades? discute a potencialidade das NTICs para o ensino de história escolar. O autor entrelaça História Pública e o campo do Ensino de História para, partindo de questões candentes no tempo presente, pensar a constituição do saber histórico escolar a partir do desenvolvimento de uma oficina de podcast.
Dialogando com a História Digital, Souza afirma que a hipertextualidade, característica das redes digitais, alterou os modos de produção historiográfica. O professor deve estar atento, portanto, às narrativas históricas produzidas a partir desta influência e, mais do que tolerar a sua presença na cultura escolar, utilizar-se delas como ferramenta para a história escolar fazer sentido para os aprendizes. O projeto “Histórias na podosfera”, oficina desenvolvida para que professores de história pudessem utilizar a mídia Podcast como meio de produção de narrativas históricas no espaço escolar, foi a fonte fundamental da reflexão de Souza.
Nosso dossiê também flana pelas vias mais públicas da história sob a guia de Daniel Carvalho Pereira, que nos oferece uma leitura saborosa da historiografia alemã recente para pensar interfaces possíveis entre Ensino de História e como diz no título de seu artigo a Didática da História Pública. Pereira, em diálogo com autores como Jeisman, Bergman e Rüsen nos fala da importância de concebermos uma literacia da História mais alargada, que dê conta de outras (novas) formas de estar no mundo, o que, para o autor, necessariamente, deve ultrapassar as paredes da sala de aula.
Argumentando em favor de uma postura autoreflexiva da didática, ou da Geschichtsdidaktik, que no alemão refere-se especificamente à Didática da História reconectada à Teoria, Pereira poderia parecer sugerir um retorno à teoria que nos encerraria mais uma vez entre os muros da Torre de Marfim da Academia, entretanto, costura caminhos mais híbridos, ou porosos, por assim dizer, ao amarrar a teoria a uma visão fundamental de consciência histórica que se engaja inexoravelmente com uma agência do público inconcebível se permanecemos entre os muros da escola e / ou da universidade. Assim, seguindo as indicações de Pereira, a História Pública parece ser a chave mestra para abrir as portas da sala de aula a práticas que nos permitam reelaborar a Geschichtsdidaktik numa roupagem de Didática da História Pública, e as tecnologias digitais, também aí, parecem ser grandes aliadas.
Com um objeto bastante distinto dos demais artigos vistos até aqui, Igor Lemos Moreira dá o play para outra faixa do dossiê – onde a música pop e ícones efêmeros desse universo particular se encontram com conceitos historiográficos do porte de espaços de experiências e horizonte de expectativas, de Kosseleck. Noutro registro, porém, daquele de Pereira, aqui a historiografia alemã dá “pano para manga” na discussão de outro espaço de importância nesse dossiê que não é a sala de aula, mas o vasto mundo da World Wide Web, neste caso como arena para disputas narrativas no Tempo Presente. Ao analisar um artigo em um portal da web como fonte histórica para se pensar regimes de historicidade e modelos biográficos, Moreira nos alerta para a importância de, na Era Digital, repensarmos o estatuto das fontes históricas e nos lançarmos na, de certa forma, melindrosa, atividade de fazer a crítica histórica de um “documento” completamente novo (born digital) que, pelo seu inerente contexto (a Web) tem dinâmicas bastante distintas das fontes que costumamos encontrar bem guardadas em arquivos.
Se a discussão da influência da tecnologia digital nas mudanças do regime de historicidade contemporâneo parece ser um eixo recorrente, mesmo que indiretamente, na análise de parte dos artigos desta coletânea, a pesquisa que fecha o dossiê aprofunda tal discussão com aportes da ciência da Comunicação.
O trabalho de Marialva Carlos Barbosa – Comunicação: uma história do tempo passando – se debruça sobre quatro décadas de pesquisas de pós-graduação desta área do conhecimento e conclui sobre a especificidade presentista destes estudos. Para a autora, o esfacelamento da articulação entre passado, presente e futuro que caracteriza os nossos dias é também uma consequência da forma como a mídia, seja a tradicional ou a informacional, realiza sua construção temporal.
Interessante pensar como em um tempo marcado pela hegemonia da pauta midiática, onde os meios de comunicação e suas narrativas exercem papel estratégico e se apregoam como produtores de uma história imediata, a escrita da História pode ser influenciada. Afinal, como diz Barbosa: “A temporalização do presente contida nas premissas do olhar comunicacional caracteriza-se pelo agora mesmo, isto é, percebe a ação humana, sobretudo, num tempo presente que passa durando”.
Fazem parte também da temática proposta para o presente dossiê a entrevista com a professora e pesquisadora em Ensino de História Marcella Albaine e a resenha de seu editado livro Ensino de História e Games: dimensões práticas em sala de aula realizados respectivamente pelas responsáveis por esse número da TransVersos, Anita Lucchessi e Sonia Wanderley. Nada como valorizar o trabalho de uma jovem profissional que leva a sério a proposta de refletir / trabalhar a partir do diálogo entre saberes e narrativas de diferentes origens, incluindo aí aqueles que chegam à cultura escolar por conta da massificação da cultura digital, o saber histórico escolar e a teoria da história.
Por fim, o mesmo frescor corajoso que identificamos nos trabalhos que fazem parte do dossiê temático, encontramos no artigo livre que fecha este número da revista. Guilherme Moerbeck e Luciana Velloso discutem como utilizar o conceito de cidade, em suas múltiplas possibilidades – temporais, espaciais, territoriais, simbólicas, de pertencimento e identitárias – como ferramenta na construção das noções de cidadania e de urbano para alunos do Ensino Fundamental de uma escola da região metropolitana do Rio de Janeiro, o município de Duque de Caxias.
Inquietos didaticamente, os professores visitam recentes discussões teóricas do campo historiográfico e de outras ciências sociais para planejarem uma aula como um texto autoral que reflita as especificidades do saber histórico escolar e produza sentido para o cotidiano de seus alunos, sujeitos que, como lembram, vivem em uma cidade que está dividida e divide.
Anita Lucchesi
Sonia Wanderley
LUCCHESI, Anita; WANDERLEY. Sonia. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.11, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
Fontes e Métodos na escrita da História: novas perspectivas de abordagens / Revista Maracanan / 2017
“Sem documentos, sem história”.[1] A máxima, tão conhecida por historiadores de formação – ainda que nem sempre compreendida, de fato –, tem origem no tempo em que se ansiava para a disciplina um estatuto científico. Apesar da atualidade ainda permanente desse debate sobre a história ser ou não ciência, é inquestionável a transformação pela qual passou a substância do trabalho do historiador ao longo do tempo, desde a publicação de Introdução aos Estudos Históricos (1898).
O que nunca se transformou foi a crença de que o cerne da operação historiográfica centra-se no trato direto com as fontes.[2] Mesmo os críticos mais tenazes de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos (para nos restringirmos à tradição francesa) jamais deixaram de lado a possibilidade de se fazer história partindo de uma dada “realidade” do que foi. A fonte seria isso, essa possibilidade, ou caminho.
Evidentemente que a natureza do que se entende por fonte modificou-se na mesma medida em que a ciência histórica amadureceu. Para Marc Bloch e Lucien Febvre, ela poderia ser “qualquer coisa”, desde que colaborasse em responder às perguntas formuladas pelo historiador – a famosa concepção de história-problema. Autores igualmente importantes no campo da teoria da história qualificam fonte como “vestígio”, como o italiano Carlo Ginzburg. [3] Assim, mais do que um documento escrito, oriundo, normalmente, da burocracia estatal, como criam os metódicos, o historiador deve apelar para aquilo que restou do passado no seu presente. [4]
Mas, então, como realizar esse trabalho?
Partindo do método crítico, diriam alguns. Sim, aquela forma de tratar a fonte também evidenciada em Introdução aos Estudos Históricos, não à toa considerado um manual da escola metódica, a partir da influência alemã. O historiador deve questionar o documento, contextualizá-lo, atentar para suas especificidades. Saber, em última análise, quem o produziu, por que e para quem. Havia também certa obsessão em distinguir um documento original de uma falsificação, herança dos eruditos desde o Renascimento. [5] Afinal, como um documento falso poderia trazer a verdade de que necessitava o historiador?
Ao longo do novecentos, essa postura também se alterou. No seu mais famoso trabalho, Bloch indica que mesmo a falsificação pode subsidiar o historiador. Sempre importa sua questão, aquilo que, com os olhos do presente, ele busca investigar no passado. De todo modo, a análise crítica, juntamente com a comparação, seguiu vital para o historiador profissional. “O testemunho só fala quando questionado” [6] torna-se nossa nova máxima. Tal questionamento, entretanto, segue um roteiro semelhante ao anterior: quem disse, por que, com que intenção? Se mentiu, por que o fez?
Até mesmo após os fundadores dos Annales, o método crítico não perdeu sua majestade. Qualquer historiador que se preze deve tê-lo em mente no processo de pesquisa. No entanto, assim como a concepção do que pode ser fonte, aquilo que se entende por metodologia histórica também foi alterada – ou melhor, ampliada.
Como métodos, entende-se a maneira de tratar a fonte. Mesmo com os críticos pós-modernos indagando se haveria alguma possibilidade de encontro do historiador com uma realidade prévia (ou, ao fim e ao cabo, se a própria realidade existiria, diriam eles), e, portanto, questionando esse lugar da fonte e do método, ainda hoje, grosso modo, os profissionais que fazem história centram sua análise no passado presente que é a fonte. E fazem isso tendo em vista não só a crítica histórica, mas uma série de metodologias que surgiram e vem surgindo ao longo dos anos.
Hoje existem inúmeras possibilidades sobre a forma como a fonte pode ser investigada, tratada, ou, como diria Bloch, interrogada. Análise dos discursos, história oral, história comparada, história dos conceitos, história serial e história quantitativa são apenas algumas delas. Métodos e formas que nos abrem um enorme leque de alternativas para o fazer histórico. O presente dossiê tem como propósito contar um pouco dessa história, reunindo de forma plural uma variedade de fontes e métodos utilizados pelos autores para a elaboração de seus artigos.
Em “A estranha vida dos objetos: Os alcances e limites de uma historiografia da ciência a partir dos instrumentos científicos”, Janaína Lacerda Furtado reflete acerca da cultura material como fonte e objeto para o historiador, a partir de uma análise das propostas teóricas e metodológicas surgidas nos últimos anos em torno da temática. Também Tiago Luís Gil, em seu artigo “As Listas Nominativas de habitantes como fontes para a história dos preços, 1798- 1810”, apresenta ao leitor as possibilidades de trabalho com um tipo específico de documento – as listas nominativas de habitantes – apresentando-o como fonte relevante para tratar do período colonial brasileiro, sobretudo no que diz respeito ao estudo dos preços. Já Paulo Roberto de Jesus Menezes contextualiza as “galerias ilustradas”, em “Retrato, Biografia e Conhecimento Histórico no Brasil oitocentista”. Além disso, o autor investiga como tais fontes são importantes por portar uma determinada memória a partir da conexão entre imagens e textos.
Os historiadores Francisco Gouvea de Souza, Géssica Guimarães Gaio e Thiago Lima Nicodemo propõem em seu texto “Uma lágrima sobre a cicatriz: O desmonte da Universidade pública como desafio à reflexão teórica (#UERJresiste)” uma discussão em torno do nosso ofício, enquanto pesquisadores e professores, tomando a própria historiografia como fonte de pesquisa, e o fazer histórico, por conseguinte, como objeto de estudos. Outro artigo elaborado coletivamente, “‘Entre os artistas amigos o momento bom de ternura é o aparecimento de obra nova’: O exercício da crítica literária na correspondência de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade (1924-1928)”, de Giuseppe Roncalli Ponce León de Oliveira, Marinalva Vilar de Lima e José Machado de Nóbrega, busca privilegiar as cartas trocadas entre aqueles intelectuais na década de 1920. A partir desse caminho, observou-se o debate de ideias entre os pares, sobretudo no que dizia respeito à crítica literária, tão fundamental para a configuração do movimento modernista brasileiro.
Em “A Lei de Terras de 1850 e os Relatórios do Ministério da Agricultura entre 1873- 1889”, Pedro Parga Rodrigues seleciona os referidos relatórios como fontes centrais para a pesquisa. Ao fazê-lo, traz uma nova leitura da problemática exposta, partindo do princípio, por exemplo, de que os relatórios indicam que a aplicação da legislação não foi homogênea em todo o território nacional, indicando a necessidade do olhar específico do historiador para compreender as vicissitudes de cada província.
Robério Américo do Carmo Souza, ao finalizar os artigos que compõem a parte temática do dossiê, problematiza a narrativa oral, refletindo sobre sua própria construção como fonte. Tal elaboração é feita ativamente, vale lembrar, pelo historiador. “Narrativas orais como fontes para uma compreensão histórica da experiência vivida” faz parte, portanto, de um contexto investigativo importante para o campo da história oral – metodologia em crescente uso pelos historiadores, ainda que, de certo modo, permaneça sendo objeto constante de julgamentos por parte dos mais críticos.
Esta edição é enriquecida, ainda, com uma entrevista, uma tradução, além de notas de pesquisa, um artigo livre e um depoimento. Em uma agradável conversa, o arquivista Jaime Antunes, nos brindou com as memórias dos [muitos] anos em que esteve à frente da direção-geral do Arquivo Nacional. Antunes destacou aspectos de sua trajetória profissional, desde o seu primeiro estágio com ênfase para os esforços que possibilitaram a Lei de Arquivos, assim como sua importante atuação para garantir a aprovação da Lei de Acesso à Informação. Legislações recentes que asseguraram, não apenas aos historiadores, mas também ao público em geral, a disponibilidade dos documentos históricos, atravessando, para tanto, as polêmicas que ainda envolvem os arquivos da Ditadura Militar no Brasil. Ao longo da entrevista concedida à Revista Maracanan, Antunes relatou os tortuosos caminhos percorridos pelas leis de abertura de documentos ao público e a criação do “Centro de documentação Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985)”.
Em trabalho conjunto, Beatriz de Moraes Vieira e Renata Duarte nos apresentam a tradução do artigo “A escrita da história: Entre literatura, memória e justiça”, de Enzo Traverso. Um texto que nos ajuda a pensar questões metodológicas debatidas pelos historiadores nos últimos vinte anos, desde a natureza da história enquanto narrativa, até a relação entre a escrita da história e a justiça, recuperando que a história é, sobretudo, um ato de escrita.
Em um estudo sobre as redes constituídas por letrados brasileiros e portugueses no final do século XIX, Rodrigo Perez Oliveira, se debruça em seu artigo “Uma República luso-brasileira das letras: a interlocução entre Eduardo Prado, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós no final do século XIX” sobre a correspondência entre os escritores mencionados para compreender as angústias e inquietudes desta intelectualidade luso-brasileira.
Nesta edição apresentamos três notas de pesquisa. Em “A Colônia Juliano Moreira e seus homens ‘desviantes’ (1930-1945)”, as autoras Anna Beatriz de Sá Almeida, Ana Carolina de Azevedo Guedes, Renata Lopes de Almeida Marinho e Aléxia Iduíno Duarte de Mello voltam um olhar cuidadoso para o “tratamento” da homossexualidade. Partindo de um espaço que desperta a atenção de diferentes campos de estudo, atravessam o período varguista, buscando refletir sobre o ideal de masculinidade desta conjuntura. A partir de uma contribuição estrangeira, Rodrigo Cabrera Pertusatti se debruça sobre o estudo de duas línguas da Baixa Mesopotâmia, o sumério e o acádio, em “Consideraciones en torno al contacto entre lenguas y el cambio lingüístico. Repensando el bilingüismo sumerio-acadio del tercer y segundo milenio a. C.1”. O texto de Thiago Bastos de Souza apresenta os resultados parciais de sua dissertação de mestrado. Em “Recopilación Historial / Historia de Santa Marta: notícias de uma ficção política” o autor objetiva a formulação conceitual de ficção política, enquanto uma categoria de análise sobre a crônica Recopilación Historial, escrita pelo provincial da ordem franciscana frei Pedro de Aguado para o Vice-Reino da Nueva Granada no século XVI.
Por fim, pensando a interface entre as fontes e os métodos de pesquisa, a historiadora Márcia Motta, rompe com as especificidades e limites das áreas de conhecimento. Em seu depoimento, “Um INCT em construção: Proprietas (História Social das Propriedades e Direitos de acesso)”, discorre acerca da construção de uma rede multidisciplinar de pesquisadores, norteados por um tema comum de pesquisa, a propriedade e o direito de acesso. O depoimento nos mostra, além da identidade da Rede Proprietas, e de todo o trabalho da equipe envolvida, o quanto o potencial de nossos pesquisadores é capaz de alcançar quando lhes são concedidas as condições para que isso ocorra. Diante das crises que assolam a todas as instituições de ensino, ciência e tecnologia, produção de conhecimento ou salvaguarde do patrimônio – histórico, artístico, documental, intelectual, etc. –, tais escritos nos levam a refletir acerca de diversas questões que permeiam nossa sociedade. Deste modo, a publicação do referido dossiê foi uma conquista dos professores e pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em tempos de crise, continuamos resistindo.
Notas
- LANGLOIS, Ch. V.; SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Renascença, 1946, p. 15.
- CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica – 1. Um lugar social. In: A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 65-77.
- Ginzburg, além de entender a fonte como vestígio, indica o trabalho do historiador como algo aproximado ao de um detetive. Cf. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-180.
- “A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem”. FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 249.
- Cf. FURET, François. O nascimento da história. In: A oficina da história. Lisboa: Gradiva, p. 109-135; PAYEN, Pascal. A constituição da história como ciência no século XIX e seus modelos antigos: fim de uma ilusão ou futuro de uma herança? História da historiografia, Ouro Preto, n. 6, p. 103-122, mar. 2011.
- BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 78.
Ana Carolina Galante Delmas – Professora com vínculo pós-doutoral ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ). Possui graduação, mestrado e doutorado em História pela UERJ. Suas pesquisas têm se voltado para a história do Brasil no período joanino e história do Brasil Império, privilegiando as abordagens no campo da história política, da história cultural e da história do livro e da leitura. Integra o Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (UERJ) e o Grupo de Pesquisa Ideias, cultura e política na formação da nacionalidade brasileira – CNPq.
Marina Monteiro Machado – Professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição. Possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense e mestrado e doutorado em História Social pela mesma instituição. Atualmente, é coordenadora de curso da FCE-UERJ; integrante do Núcleo de História Rural; membro-fundador e vice-coordenadora do INCT Proprietas. É autora do livro Entre Fronteiras: posses e terras indígenas nos sertões (Rio de Janeiro, 1792-1824) (Horizonte / Unicentro / EdUFF, 2012).
Isadora Tavares Maleval – Professora da área de Teoria e Metodologia da História no Departamento de História de Campos da Universidade Federal Fluminense (CHT-UFF). Possui doutorado e mestrado pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ); cumpriu estágio doutoral na Université Paris-Sorbonne e pós-doutoral no Departamento de História da UERJ. É especialista em temas relacionados à teoria da história, historiografia, história do Brasil Império e história do livro e da leitura.
DELMAS, Ana Carolina Galante; MACHADO, Marina Monteiro; MALEVAL, Isadora Tavares. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]
Experiência social e escrita da história: relações de poder na contemporaneidade / Tempos históricos / 2017
A construção do dossiê traz, nesse momento de inquietude histórica, um repertório de reflexões em que ganhou espaço questões tangenciadas por uma trama de mudanças e permanências na confrontação de valores, expressas no campo de forças da dinâmica social. Os artigos que compõem esse número não só reafirmam como determinadas problemáticas (significadas na experiência social) são pautadas na historiografia, mas indicam como os trabalhadores se colocaram, foram vistos nas relações em que se envolveram e avaliados na cena historiográfica.
As disputas recentes pela manutenção da reflexão histórica como um espaço legítimo de discussão das relações de poder se fizeram (e ainda se fazem) práticas necessárias, pois é nesse terreno de debate que nossas investigações ganham publicidade e tematizam os usos da história. Nele, podemos tratar aspectos das tensões e da visibilidade que a pulsão de determinados embates dinamiza socialmente.
Por tudo isso, consideramos que esse dossiê não aponta apenas um conjunto de pesquisas acadêmicas que tiveram em comum um elo temático ou teórico. As produções apontaram peculiaridades, preocupações e visões do universo social, que deixaremos o(a) leitor(a) analisar, para perceber a intensidade e a direção que a singularidade de cada produção cingiu.
Maciel Silva retoma em sua investigação a presença de trabalhadores domésticos nas cidades de Salvador- BA e Recife-PE, observando as tensões vivenciadas na passagem do séc. XIX para o XX, particularmente ligadas a alterações de costumes e relações de trabalho. O autor, para tratar tais questões, evidencia a sociedade escravocrata brasileira, apontando regulamentos e práticas do trabalho doméstico dessa historicidade.
No artigo de Santos, ao analisar a movimentação social de trabalhadores, ele discute as intenções e ponderações manifestas nas alternativas e relações produzidas pelos sujeitos indicados na pesquisa. O autor retoma debates sobre a construção de procedimentos da pesquisa histórica, inclusive na produção e uso da fonte oral, ao destacar a presença de trabalhadores no Oeste do Paraná e os caminhos traçados por eles frente a pressões e limites de classe.
Por sua vez, Silva Junior traz a cidade como foco de análise, elegendo o debate sobre a habitação popular no país, destacando a questão da moradia a partir de Uberlândia-MG. Ele investiga entre 1960 e início da década de 1990 para compreender certas confrontações que perpassam a luta pelo onde e como morar nas cidades brasileiras nessa temporalidade. O autor retoma ações da Administração Municipal, a visibilidade dessas proposições na imprensa, bem como as práticas de um conjunto de trabalhadores para discutir como valoraram e disputaram a cidade ao colocarem em questão a sua condição de moradia e seu modo de viver.
Speranza traz em seu artigo um debate sobre a tentativa de classificação racial de trabalhadores no Rio Grande do Sul no período do Estado Novo. A autora analisa formulários de identificação profissional e, ao mesmo tempo, sugere leituras das relações de poder, estabelecidas a partir dos usos desse suposto de distinção social e a criação da carteira profissional no país. Seu diálogo com os formulários permitem ao(a) leitor(a) avaliar as intenções e registros que demarcavam as relações de trabalho naquela historicidade.
Na produção de Fiorotti, encontramos a discussão sobre relações de trabalho, envolvendo práticas de transporte de mercadoria não regulamentada entre Brasil e Paraguai nas décadas de 1960 e 1970. A autora utiliza narrativas orais, legislação e autos criminais do acervo referente à Comarca de Toledo-PR para analisar a ocorrência e a relação desses atos com os trabalhadores envolvidos.
Maurício Santos retoma Teresina de 1950 para destacar a visão que a imprensa piauiense produzia sobre a “movimentação dos flagelados”. O autor faz um intenso debate sobre a leitura da fome e da pobreza no Piauí e traz para o (a) leitor(a) os incômodos e as narrativas sobre a presença desses sujeitos na capital, permitindo que os interesses e tensões sociais sejam avaliadas e redimensionadas a partir da confrontação experimentada na cidade.
Peres encerra o conjunto de produções trazendo à tona uma discussão sobre as disputas que envolvem a escrita da história. Para tanto, usa como repertório os sentidos de história que pautam a cidade de Araguari-MG, onde indica enredos variados, formulados em memórias distintas, delineando possibilidades analíticas que se vinculam a um universo tenso de visões de mundo e projetos de cidade.
Essas produções não encerram os debates, ao contrário, convidam os (as) leitores(as) a provocar o encontro analítico entre experiência social e escrita da história.
Heloisa Helena Pacheco Cardoso – Professora Titular dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pós- Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC / SP).
Sheille Soares de Freitas – Professora Adjunto C dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
CARDOSO, Heloisa Helena Pacheco; FREITAS, Sheille Soares de. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.21, n.1, 2017. Acessar publicação original [DR]
Experiência social e escrita da história: relações de poder na contemporaneidade/Tempos Históricos/2017
A construção do dossiê traz, nesse momento de inquietude histórica, um repertório de reflexões em que ganhou espaço questões tangenciadas por uma trama de mudanças e permanências na confrontação de valores, expressas no campo de forças da dinâmica social. Os artigos que compõem esse número não só reafirmam como determinadas problemáticas (significadas na experiência social) são pautadas na historiografia, mas indicam como os trabalhadores se colocaram, foram vistos nas relações em que se envolveram e avaliados na cena historiográfica. Leia Mais
Historiadores e historiadoras, esses desconhecidos: Quem e como se escreve a História / História da Historiografia / 2016
Quem assistiu a Monty Python em busca do cálice sagrado (1975) talvez se lembre de que a certa altura do filme as hilárias desventuras do rei Arthur e seus Cavaleiros da Távola Redonda são interrompidas por uma claquete e o anúncio de uma voz em off: “História para a escola, tomada oito. Ação!”. Um homem já idoso, de terno, lenço, gravata borboleta e cabelos desgrenhados, põe-se a falar de imediato. Trata-se, diz a legenda, de “um famoso historiador”. Em pé diante de árvores e ruínas e olhando para a câmera, ele começa a explicar de modo didático como, após fracassar na tomada de um castelo controlado por franceses, Arthur mudara de estratégia para encontrar o Graal; inesperadamente, então, um cavaleiro medieval surge num rompante e o decapita com sua espada.
Se o insólito da situação provoca o riso no espectador, em nós, historiadores e historiadoras, ela não deixa de gerar também certo desconforto. Afinal, a ácida ironia dessa sequência de pouco mais de trinta segundos remete às convenções que caracterizam a nossa profissão, às representações sobre nossa figura e às relações entre presente e passado – sempre tensas, ainda que, para a nossa sorte, dificilmente um vulto de outros tempos esteja à nossa espreita em um arquivo ou em uma biblioteca. Em outras palavras, nós nos reconhecemos naquele desafortunado colega fictício, nós nos vemos, sem dificuldade, fazendo o mesmo que ele, quem sabe até com linguajar e trejeitos semelhantes. É como, enfim, se estivéssemos diante de um reflexo: um reflexo distorcido, é verdade, mas que ainda assim não deixa de refletir a nossa imagem. Leia Mais
História Pública: escritas contemporâneas de História / Revista Transversos / 2016
Com muito prazer, entregamos aos nossos leitores mais uma edição da revista de história TransVersos. Desta feita, além dos costumeiros artigos livres, apresentando um variado escopo de trabalhos pertinentes às linhas de pesquisa do LEDDES, propusemos um dossiê que repercutisse a prática e o valor social do ofício d@ historiad@r a partir do debate da complexa noção de história pública, cada vez mais presente entre historiadores e diferenciados movimentos e setores sociais no Brasil.
Nada mais atual, e ao mesmo tempo tradicional, do que a reflexão acerca do significado social da história. Por isso mesmo, as atuais discussões sobre a concepção de história pública no país têm necessariamente soprado ventos revigorantes mesmo entre aqueles que discordam da aplicação da expressão ao campo da história. Desde o evento precursor “Curso de Introdução à História Pública”, desenvolvido em 2011, na Universidade de São Paulo, o conceito e suas diversas aplicações reverberam pelo país, tanto no cenário acadêmico, convocando profissionais da área ao debate, quanto em outros campos e práticas que têm entre seus fazeres a produção de significado para o passado entre audiências não acadêmicas. Leia Mais
Historiografia e escrita da História / Fato & Versões / 2016
O presente número da revista Fato &Versões busca apresentar um debate entorno de questões que são relacionadas à história da historiografia e a escrita da história, dando ênfase à historiografia brasileira, mas sem deixar de dialogar com múltiplas temáticas de pesquisas que tem sido uma característica das edições anteriores. A concepção inicial do presente número surgiu a partir de uma das ações desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Historiografia Brasileira que juntamente com o grupo de pesquisa História, Cultura e Sociedade tem contribuído para a consolidação e o fortalecimento da revista no cenário regional e nacional. Tal ação supracitada foi à proposição do simpósio temático: Historiografia e nação: os projetos de Brasil constituídos e constituidores de uma cultura histórica nacional no 9º Seminário Brasileiro de História da Historiografia que ocorreu entre 23 e 25 de maio em Vitoria-ES.
Com este simpósio o grupo objetivava reunir pesquisadores voltados para o tema da constituição do saber histórico, bem como, da sua relação com a cultura histórica nacional no século XIX e primeiras décadas do século XX. No intuito de promover um debate sobre os múltiplos projetos de escrita da história do Brasil, com especial ênfase para as questões teóricas, metodológicas e didáticas que preocuparam os principais nomes da historiografia brasileira deste período. A questão central do Simpósio era refletir sobre o conceito de cultura histórica, pensando-o na sua tripla dimensão: cognitiva, política e estética. Dessa forma, ao refletir sobre os estatutos atribuídos a cultura histórica e ao saber histórico, foi possível reunir um número considerável de pesquisadores preocupados em identificar as continuidades e rupturas no processo de pensar a escrita da história no Brasil.
Dessa forma, o presente número comporta discussões que foram problematizadas nesse encontro, tais como: identidades nacionais, regionais, multiplicidades étnico-raciais, memória, limites e aproximações epistemológicas no processo de constituição das ciências humanas no Brasil, bem como, os múltiplos sentidos atribuídos à pesquisa e a escrita da história. Nesse sentido essa publicação traz a assinatura coletiva de um jovem grupo de pesquisadores vinculados ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Historiografia Brasileira, bem como, de outros pesquisadores que contribuíram com o debate proposto pelo grupo na 9ºSBHH, cuja contribuição foi imprescindível para a realização dessa publicação.
Para a consolidação dessa edição, somou-se a ação deste grupo supracitado, a contribuição de outros pesquisadores vinculados a outros programas de graduação e pós- graduação, que foi fundamental para a constituição desse amplo mosaico de reflexões historiográficas que constituem a presente publicação.
Por se tratar de um conjunto variado de objetos e temáticas, não vou tentar oferecer ao leitor uma concepção previa dos textos que se seguem, pois entendo, que tal esforço ainda que seja valido, no sentido de oferecer um víeis interpretativo para os textos, não é possível de ser feito de forma qualificada dentro dos espaços restritos de uma mera apresentação. Minha ênfase será colocada numa rápida apresentação de alguns conceitos trabalhos pelos autores e na valorização da multiplicidade de instituições (UFMS, UFGD, UFU, PUC-RS, UEG, UNIR, UFSC) e de pesquisadores em níveis diferentes de suas carreiras preocupados com aspectos inerentes a historiografia e a escrita da história, o que evidencia a atualidade dessa temática para a pesquisa histórica contemporânea.
A revista Fato &Versões, através de seu corpo editorial, acredita neste dialogo interinstitucional e na pluralidade de ideias e perspectivas do saber histórico, como sendo um caminho viável para a renovação e circulação do saber acadêmico produzido na área de história. Dessa forma, convido todos os leitores, especialistas da área, ou curiosos sobre o assunto, a navegarem em busca da compreensão da relação entre memória e passado no pensamento bersoniano desenvolvido por Rodrigo Tavares Godói (UNIR) cuja preocupação analítica é pensar a possibilidade da constituição de uma hermenêutica da memória, pensando-a por seus princípios estéticos e retóricos. A se deleitarem nas idiossincrasias e singularidades da relação entre história, cinema e arte presente nos textos das pesquisadoras: Carla Miucci Ferraresi de Barros (UFU), Ana Paula Spini (UFU), Fernanda Reis Varella (UFGD) que problematizam as noções de “feminilidade”, “condição feminina”, “regionalismo”, “identidade nacional” e “nacionalismo republicano” nas produções cinematográficas do cinema hollywoodiano, no cinema de Humberto Mauro dos anos de 1920 e nas representações pictóricas de Lídia Baís.
Nos artigos dos pesquisadores Wilson de Sousa Gomes (UEG), Luiz Carlos Bento (UFMS), Eduardo Rouston Junior (PUC-RS), Mauro Vaz de Camargo Junior. (UFSC), Aruanã Antônio dos Passos (UTFPR), Leandro Hecko (UFMS / CPTL) convido os leitores a percorrerem os caminhos sinuosos da constituição da historiografia brasileira, um campo composto por inúmeras disputas de poder, atravessado por paixões políticas e ideológicas que quase sempre são instrumentalizadas como pressupostos para pensar projetos de Brasil, dando visibilidade a certos aspectos dessa sociedade plural e obstruindo outras formas de alteridades que jazem esquecidas nos diversões rincões e quêtos que são habitados por sujeitos históricos sequiosos de fortalecerem suas representações sociais, mitos e tradições, pois tanto a classe dominante quanto os “esquecidos”, buscam por meio de suas narrativas constituírem um lugar na história, e muito embora, esse não seja o objeto predileto da história da historiografia, ela nos fornece uma belíssima possibilidade de alargar a nossa visão histórica de mundo.
Nos textos de Gislaine Martins Leite (UFMS) e Jessica Rocha (UNESP) os leitores encontrarão uma excelente oportunidade para refletir sobre a resignificação de valores e preconceitos associados à questão racial e ao uso de psicoativos, bem como, para conhecerem a historicidade e a construção social desses preconceitos na sociedade brasileira. Com base no que fora anteriormente exposto, encerro essa breve apresentação, agradecendo em nome do Conselho Editorial da revista Fato &Versões, a contribuição de todos os colaboradores deste número.
Luiz Carlos Bento
Conselho Editorial
BENTO, Luiz Carlos. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.8, n.15, 2016. Acessar publicação original [DR]
A Escrita da História na antiguidade / Revista de Teoria da História / 2015
Quando os curricula, ementas e bibliografias sugeridos sobre a temática da história da historiografia são analisados alguns poucos nomes de autores antigos aparecem. Geralmente, há breves referências a Heródoto, Tucídides e Políbio e daí parte-se para Agostinho, quando muito Eusébio. O próximo nome a aparecer na lista daqueles que deram alguma contribuição para a escrita da história já é o de Giambattista Vico (1668-1744). Da mesma forma, uma rápida consulta aos planos de ensino das disciplinas que abordam a temática nas universidades brasileiras é suficiente para que se tenha a sensação de que pouca coisa aconteceu antes de Leopold von Ranke (1790-1880). Séculos e séculos de historiografia são, por vezes, reduzidos à idéias como “historia magistra vitae”, de que “os gregos viam o tempo de maneira cíclica”, ou que “na Idade Média se escrevia uma história eclesiástica”. Para Jonh Marincola, isto ocorre porque muitos avaliam a historiografia Antiga com os parâmetros e abordagens dos historiadores do século XIX i. Um outro motivo pode ser acrescentado, mais relacionado à especificidade do contexto brasileiro. Trata-se do fato de que a quase totalidade dos professores que lecionam as disciplinas teóricas dos cursos de história de nossas graduações, nas quais a história da historiografia costuma ser abordada, é composta por especialistas em temáticas contemporâneas ou História do Brasil. Leia Mais
Circulação de saberes no Mundo Atlântico: escrita da história, cultura letrada e cultura científica / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014
A chegada dos europeus ao Novo Mundo promoveu, desde os primeiros contatos que se estabeleceram com as populações nativas, a produção de uma extensa e diversificada gama de documentos oficiais, relatos de viagens, crônicas, tratados, desenhos, mapas, inventários de história natural e coleções de espécimes. Mais do que meras percepções da Europa acerca do mundo que a expansão marítima, a conquista e a colonização criaram, esta produção escrita, iconográfica e cartográfica evidencia tanto a circulação de ideias, pessoas, objetos, saberes e práticas, quanto as configurações étnicas e identitárias resultantes do intenso contato intercultural. Uma produção que aponta, portanto, para a intensa circulação de ideias e de conhecimentos entre a América, a África e a Europa ocorrida durante a Idade Moderna.
Este dossiê foi organizado, justamente, para divulgar os trabalhos de pesquisadores que, à luz das contribuições da História Social, Cultural e das Ciências, vêm refletindo sobre este intenso processo de circulação de ideias, saberes e práticas que se estendeu do século XVI ao XIX. Como o leitor poderá acompanhar nas páginas seguintes, os artigos que compõem este dossiê se debruçam sobre essa temática a partir de diferentes abordagens e refletem sobre sujeitos, espaços e tempos distintos, não descuidando de discutir sobre as diversas maneiras de se escrever a história destas incontáveis e intensas situações de interculturalidade. Situações que alimentaram um movimento contínuo de cruzamento e reposição de fronteiras territoriais, étnicas e políticas, que articularam diferentes estratégias individuais, coletivas e institucionais, e favoreceram diferentes fluxos de informações e de apropriações materiais ou simbólicas.
No primeiro artigo, intitulado Entre homens de saber, de letras e de ciências, médicos e outros agentes da cura no Brasil Colonial, Ana Carolina de Carvalho Viotti nos oferece uma ampla caracterização do período que antecedeu o estabelecimento da Corte portuguesa, evento que acabaria por introduzir e difundir o ensino e a prática essencialmente médica no Brasil do início do século XIX. De acordo com a autora, o período colonial foi marcado pela pluralidade de agentes e saberes curativos e pelo intenso intercâmbio entre as ideias advindas do Velho Mundo e as necessidades – e possibilidades – que os trópicos criavam aos que neles viviam.
O pão das Índias: o milho nos relatos de Diego Durán e José de Acosta é o título do artigo de Luís Guilherme Assis Kalil e Renato Denadai da Silva. Nele, os autores analisam textos produzidos pelo dominicano Diego Durán e pelo jesuíta José de Acosta, enfocando a compreensão que tiveram do universo indígena, em especial da relação estabelecida entre a alimentação e as crenças indígenas, tema ainda pouco explorado pela historiografia sobre as Américas. Kalil e Denadai da Silva não apenas identificam diversas representações do milho, como destacam seu papel de mediador na incorporação intelectual de um universo natural e moral distinto do dos europeus.
No terceiro artigo, intitulado Mediações culturais no além-mar: O padre Mamiani e os usos da Língua Kariri nas brenhas dos sertões, Ane Luíse Mecenas Santos aborda o papel de mediador cultural desempenhado pelo padre jesuíta Mamiani que, encarregado da conversão de indígenas Kiriri, grupo que não falava a língua geral e vivia nos sertões da Capitania de Sergipe Del Rey, escreveu, ao final do século XVII, uma gramática e um catecismo, através dos quais é possível reconstituir aspectos da cultura Kiriri, em especial, de suas manifestações de religiosidade.
Clio no Ultramar: elementos da historiografia portuguesa nas narrativas seiscentistas da “guerra holandesa” é o título do artigo de Kleber Clementino, para quem a historiografia portuguesa reverbera nas narrativas sobre a presença holandesa no Atlântico Sul (1630-1654), indicando que, embora as obras devam ser lidas em diálogo com seus contextos históricos específicos, as concepções de história e os elementos retóricos que as caracterizam se inspiram em um paradigma historiográfico enraizado na Península Ibérica.
No artigo seguinte, A escrita e o envio de cartas do governador-geral Francisco Barreto (1657-1663), Caroline Garcia Mendes destaca a importância da correspondência para a comunicação e para a administração portuguesa no além-mar no século XVII. A autora analisa, especificamente, as cartas enviadas pelo governador-geral Francisco Barreto a oficiais no interior do Estado do Brasil e para o Reino, entre os anos de 1657 e 1663, discorrendo sobre as redes de informação que se formaram entre a Europa e a América portuguesa no período.
Já Antonio Astorgano, em La difícil circulación de los libros devocionales del jesuíta mexicano José Ignacio Vallejo (1772-1788) analisa a trajetória desse padre da Companhia de Jesus, destacando sua atuação em colégios da Guatemala e da Itália. O autor explora suas relações pouco amistosas com personagens como Ventura Figueroa e, também, com o conde de Floridablanca, com o duque de Grimaldi e com José Nicolás de Azara, embaixadores junto à Santa Sé, vinculando-as às dificuldades de introdução e circulação de seus livros de devoção na América.
Também Marcelo Cheche Galves e Romário Sampaio Basílio, no artigo intitulado Saberes em circulação na América portuguesa: os estudantes maranhenses na Universidade de Coimbra (1778-1823), se dedicam à análise da circulação de impressos em São Luís do Maranhão e em Lisboa, no período de 1778-1823, com base na documentação da Real Mesa Censória, preservada pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Além de apontar para as razões da circulação de homens e livros em um momento de importantes transformações na Capitania, os autores referem a prática das remessas de impressos por estudantes maranhenses formados em Coimbra, destacando algumas das obras enviadas ou trazidas em suas bagagens.
O artigo Viagem ao Brasil: produção e circulação entre o público europeu do século XIX de Igor de Lima e Silva encerra o dossiê. O autor aborda a produção e a circulação da narrativa Viagem ao Brasil, do naturalista prussiano Maximiliano de Wied-Neuwied, que percorreu regiões do Brasil entre os anos de 1815 a 1817. A infinidade de informações sobre a fauna, a flora e os povos indígenas que Wied-Neuwied recolheu foi – após seu retorno à Europa – reunida e divulgada sob a forma de livro. Os dois volumes de Viagem ao Brasil foram lançados em 1821-1822 alcançando grande repercussão, com várias edições e traduções para vários idiomas. Lima e Silva se detém na análise dessas diferentes edições e traduções que a obra teve ao longo do século XIX, identificando e refletindo sobre as significativas alterações e sobre os efeitos da “imagem difusa” – e até deturpada – que elas ajudaram a difundir.
Na seção de artigos livres, o leitor poderá travar contato com duas produções de temáticas distintas, mas que acabam por fornecer um quadro sobre aspectos da economia e da cultura religiosa na América portuguesa do Antigo Regime – conferindo, em termos de conjuntura, um valor complementar aos estudos do dossiê.
Breno Almeida Vaz Lisboa, em seu artigo Engenhos, açúcares e negócios na capitania de Pernambuco (c. 1655 – c. 1750), procura pensar a economia açucareira da capitania pernambucana entre o fim do século XVII e o início do XVIII. A despeito da crise economia seiscentista, o autor constata que novos engenhos foram levantados nessa capitania entre as décadas de 1650 e 1750. Tal dado, segundo ele, aponta para o desenvolvimento de práticas comerciais paralelas que, por sua vez, ajudariam à indústria açucareira a contornar os problemas econômicos pelos quais passava.
Já o artigo de André Cabral Honor intitulado Origem e expansão no mundo luso da observação de Rennes: a mística-militante dos carmelitas turônicos ou reformados no século XVII e XVIII discute as ressonâncias da formulação das Constituições Carmelitas da Estrita Observância no contexto da América portuguesa. Vulgarmente denominadas de “Reforma Turônica”, tais constituições forneceram aos carmelitas calçados uma legislação que buscava conciliar a experiência mística à catequese. Segundo o autor, ainda que os seguidores dessa nova observância não tenham formado uma nova ordem religiosa, ela acarretou na divisão dos frades carmelitas que daria origem à Província Reformada de Pernambuco, no ano de 1725.
Os trabalhos publicados nesta edição oferecem, direta ou indiretamente, uma radiografia da cultura escrita no Mundo Atlântico. Uma cultura que participou na formação de modelos explicativos coevos (historiográficos, científicos, etc.); enriqueceu-se pela circulação de homens de letras e de seus escritos; reafirmou, validou e traduziu – através de práticas discursivas – políticas administrativas, espaços de domínio e padrões de sociabilidade.
Fechando esta edição, contamos com uma resenha crítica que analisa a obra recém publicada de Antônio Jorge Siqueira, Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades, de autoria de Márcio Ananias Ferreira Vilela.
Juntamente com o editor da Revista Clio e os autores dos artigos do presente número de 2014 – aos quais agradecemos pelas contribuições –, oferecemos este dossiê com a expectativa de que seus leitores dêem continuidade ao esforço de compreensão e de reflexão sobre as formas que a circulação de ideias e de conhecimentos entre América, África e Europa assumiu e sobre seus efeitos nas configurações sociais, culturais e políticas nas duas margens do Atlântico.
Eliane Cristina Deckmann Fleck – UNISINOS
Marília de Azambuja Ribeiro – UFPE
FLECK, Eliane Cristina Deckmann; RIBEIRO, Marília de Azambuja. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.1, jan / jun, 2014. Acessar publicação original [DR]
Circulação de saberes no Mundo Atlântico: escrita da história, cultura letrada e cultura científica / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2014
A chegada dos europeus ao Novo Mundo promoveu, desde os primeiros contatos que se estabeleceram com as populações nativas, a produção de uma extensa e diversificada gama de documentos oficiais, relatos de viagens, crônicas, tratados, desenhos, mapas, inventários de história natural e coleções de espécimes. Mais do que meras percepções da Europa acerca do mundo que a expansão marítima, a conquista e a colonização criaram, esta produção escrita, iconográfica e cartográfica evidencia tanto a circulação de ideias, pessoas, objetos, saberes e práticas, quanto as configurações étnicas e identitárias resultantes do intenso contato intercultural. Uma produção que aponta, portanto, para a intensa circulação de ideias e de conhecimentos entre a América, a África e a Europa ocorrida durante a Idade Moderna.
Este dossiê foi organizado, justamente, para divulgar os trabalhos de pesquisadores que, à luz das contribuições da História Social, Cultural e das Ciências, vêm refletindo sobre este intenso processo de circulação de ideias, saberes e práticas que se estendeu do século XVI ao XIX. Como o leitor poderá acompanhar nas páginas seguintes, os artigos que compõem este dossiê se debruçam sobre essa temática a partir de diferentes abordagens e refletem sobre sujeitos, espaços e tempos distintos, não descuidando de discutir sobre as diversas maneiras de se escrever a história destas incontáveis e intensas situações de interculturalidade. Situações que alimentaram um movimento contínuo de cruzamento e reposição de fronteiras territoriais, étnicas e políticas, que articularam diferentes estratégias individuais, coletivas e institucionais, e favoreceram diferentes fluxos de informações e de apropriações materiais ou simbólicas.
No primeiro artigo, intitulado Entre homens de saber, de letras e de ciências, médicos e outros agentes da cura no Brasil Colonial, Ana Carolina de Carvalho Viotti nos oferece uma ampla caracterização do período que antecedeu o estabelecimento da Corte portuguesa, evento que acabaria por introduzir e difundir o ensino e a prática essencialmente médica no Brasil do início do século XIX. De acordo com a autora, o período colonial foi marcado pela pluralidade de agentes e saberes curativos e pelo intenso intercâmbio entre as ideias advindas do Velho Mundo e as necessidades – e possibilidades – que os trópicos criavam aos que neles viviam.
O pão das Índias: o milho nos relatos de Diego Durán e José de Acosta é o título do artigo de Luís Guilherme Assis Kalil e Renato Denadai da Silva. Nele, os autores analisam textos produzidos pelo dominicano Diego Durán e pelo jesuíta José de Acosta, enfocando a compreensão que tiveram do universo indígena, em especial da relação estabelecida entre a alimentação e as crenças indígenas, tema ainda pouco explorado pela historiografia sobre as Américas. Kalil e Denadai da Silva não apenas identificam diversas representações do milho, como destacam seu papel de mediador na incorporação intelectual de um universo natural e moral distinto do dos europeus.
No terceiro artigo, intitulado Mediações culturais no além-mar: O padre Mamiani e os usos da Língua Kariri nas brenhas dos sertões, Ane Luíse Mecenas Santos aborda o papel de mediador cultural desempenhado pelo padre jesuíta Mamiani que, encarregado da conversão de indígenas Kiriri, grupo que não falava a língua geral e vivia nos sertões da Capitania de Sergipe Del Rey, escreveu, ao final do século XVII, uma gramática e um catecismo, através dos quais é possível reconstituir aspectos da cultura Kiriri, em especial, de suas manifestações de religiosidade.
Clio no Ultramar: elementos da historiografia portuguesa nas narrativas seiscentistas da “guerra holandesa” é o título do artigo de Kleber Clementino, para quem a historiografia portuguesa reverbera nas narrativas sobre a presença holandesa no Atlântico Sul (1630-1654), indicando que, embora as obras devam ser lidas em diálogo com seus contextos históricos específicos, as concepções de história e os elementos retóricos que as caracterizam se inspiram em um paradigma historiográfico enraizado na Península Ibérica.
No artigo seguinte, A escrita e o envio de cartas do governador-geral Francisco Barreto (1657-1663), Caroline Garcia Mendes destaca a importância da correspondência para a comunicação e para a administração portuguesa no além-mar no século XVII. A autora analisa, especificamente, as cartas enviadas pelo governador-geral Francisco Barreto a oficiais no interior do Estado do Brasil e para o Reino, entre os anos de 1657 e 1663, discorrendo sobre as redes de informação que se formaram entre a Europa e a América portuguesa no período.
Já Antonio Astorgano, em La difícil circulación de los libros devocionales del jesuíta mexicano José Ignacio Vallejo (1772-1788) analisa a trajetória desse padre da Companhia de Jesus, destacando sua atuação em colégios da Guatemala e da Itália. O autor explora suas relações pouco amistosas com personagens como Ventura Figueroa e, também, com o conde de Floridablanca, com o duque de Grimaldi e com José Nicolás de Azara, embaixadores junto à Santa Sé, vinculando-as às dificuldades de introdução e circulação de seus livros de devoção na América.
Também Marcelo Cheche Galves e Romário Sampaio Basílio, no artigo intitulado Saberes em circulação na América portuguesa: os estudantes maranhenses na Universidade de Coimbra (1778-1823), se dedicam à análise da circulação de impressos em São Luís do Maranhão e em Lisboa, no período de 1778-1823, com base na documentação da Real Mesa Censória, preservada pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Além de apontar para as razões da circulação de homens e livros em um momento de importantes transformações na Capitania, os autores referem a prática das remessas de impressos por estudantes maranhenses formados em Coimbra, destacando algumas das obras enviadas ou trazidas em suas bagagens.
O artigo Viagem ao Brasil: produção e circulação entre o público europeu do século XIX de Igor de Lima e Silva encerra o dossiê. O autor aborda a produção e a circulação da narrativa Viagem ao Brasil, do naturalista prussiano Maximiliano de Wied-Neuwied, que percorreu regiões do Brasil entre os anos de 1815 a 1817. A infinidade de informações sobre a fauna, a flora e os povos indígenas que Wied-Neuwied recolheu foi – após seu retorno à Europa – reunida e divulgada sob a forma de livro. Os dois volumes de Viagem ao Brasil foram lançados em 1821-1822 alcançando grande repercussão, com várias edições e traduções para vários idiomas. Lima e Silva se detém na análise dessas diferentes edições e traduções que a obra teve ao longo do século XIX, identificando e refletindo sobre as significativas alterações e sobre os efeitos da “imagem difusa” – e até deturpada – que elas ajudaram a difundir.
Na seção de artigos livres, o leitor poderá travar contato com duas produções de temáticas distintas, mas que acabam por fornecer um quadro sobre aspectos da economia e da cultura religiosa na América portuguesa do Antigo Regime – conferindo, em termos de conjuntura, um valor complementar aos estudos do dossiê.
Breno Almeida Vaz Lisboa, em seu artigo Engenhos, açúcares e negócios na capitania de Pernambuco (c. 1655 – c. 1750), procura pensar a economia açucareira da capitania pernambucana entre o fim do século XVII e o início do XVIII. A despeito da crise economia seiscentista, o autor constata que novos engenhos foram levantados nessa capitania entre as décadas de 1650 e 1750. Tal dado, segundo ele, aponta para o desenvolvimento de práticas comerciais paralelas que, por sua vez, ajudariam à indústria açucareira a contornar os problemas econômicos pelos quais passava.
Já o artigo de André Cabral Honor intitulado Origem e expansão no mundo luso da observação de Rennes: a mística-militante dos carmelitas turônicos ou reformados no século XVII e XVIII discute as ressonâncias da formulação das Constituições Carmelitas da Estrita Observância no contexto da América portuguesa. Vulgarmente denominadas de “Reforma Turônica”, tais constituições forneceram aos carmelitas calçados uma legislação que buscava conciliar a experiência mística à catequese. Segundo o autor, ainda que os seguidores dessa nova observância não tenham formado uma nova ordem religiosa, ela acarretou na divisão dos frades carmelitas que daria origem à Província Reformada de Pernambuco, no ano de 1725.
Os trabalhos publicados nesta edição oferecem, direta ou indiretamente, uma radiografia da cultura escrita no Mundo Atlântico. Uma cultura que participou na formação de modelos explicativos coevos (historiográficos, científicos, etc.); enriqueceu-se pela circulação de homens de letras e de seus escritos; reafirmou, validou e traduziu – através de práticas discursivas – políticas administrativas, espaços de domínio e padrões de sociabilidade.
Fechando esta edição, contamos com uma resenha crítica que analisa a obra recém publicada de Antônio Jorge Siqueira, Labirintos da Modernidade: memória, narrativa e sociabilidades, de autoria de Márcio Ananias Ferreira Vilela.
Juntamente com o editor da Revista Clio e os autores dos artigos do presente número de 2014 – aos quais agradecemos pelas contribuições –, oferecemos este dossiê com a expectativa de que seus leitores dêem continuidade ao esforço de compreensão e de reflexão sobre as formas que a circulação de ideias e de conhecimentos entre América, África e Europa assumiu e sobre seus efeitos nas configurações sociais, culturais e políticas nas duas margens do Atlântico.
Eliane Cristina Deckmann Fleck – UNISINOS
Marília de Azambuja Ribeiro – UFPE
FLECK, Eliane Cristina Deckmann; RIBEIRO, Marília de Azambuja. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.32, n.1, jan / jun, 2014. Acessar publicação original [DR]
25 anos – Percursos do debate historiográfico / História & Perspectivas / 2014
A Revista História & Perspectivas no ano de 2013 completou 25 anos, o que fez com que esse conselho fizesse a proposta de organizar um Dossiê, que trouxesse os percursos do debate historiográfico, nela publicados ao longo de sua trajetória.
A proposta, por um lado busca reconhecer a contribuição dos diversos historiadores vinculados ao Curso de Graduação e ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, como também dos vários historiadores e pesquisadores de outras áreas do conhecimento que estiveram presentes, nesse tempo, por meio dos artigos publicados neste periódico. Com esse reconhecimento procura-se reiterar a proposta original de criação da Revista, que já em 1988, tinha como objetivo incentivar e divulgar, entre a comunidade acadêmica, a produção do conhecimento histórico, tornando-se uma Revista aberta às diversas perspectivas teóricas do debate historiográfico presentes no interior da academia como também fora dela.
Construir um periódico com o perfil voltado para a diversidade das tendências historiográficas, promovendo e, porque não dizer, provocando o diálogo entre perspectivas diferenciadas reveladas nos artigos de autores de diversas instituições do Brasil e de outros países tem sido a proposta que continua orientando nossa política editorial.
Nesta edição comemorativa, no intuito de demonstrar alguns dos percursos historiográficos que compuseram e compõem o perfil da Revista História & Perspectivas, reeditamos alguns artigos, que, a nosso ver, representam a amplitude de questões que circularam no espaço da Revista.
Os artigos dos historiadores Marcos Antonio Silva (1994) e de Caio Boschi (1999) trazem uma questão que consideramos central e que permanece enquanto desafio do presente: o reconhecimento público do trabalho do historiador. Marcos Silva em seu artigo O historiador e suas revistas especializadas, ressalta a importância das publicações especializadas em História, como meio de tornar público o trabalho e o diálogo dos historiadores, além de, “contribuir para a ampliação e democratização da produção do conhecimento nesta área” – premissa apontada como “uma estratégia de resistência do historiador às regras impostas pelo mercado editorial brasileiro”. Já, Caio Boschi, traz em seu artigo O historiador e os arquivos históricos: um depoimento pessoal um relato de experiência sobre o trabalho de microfilmagem da documentação sobre o Brasil em arquivos do exterior, trazendo uma questão articulada às reflexões em torno da História e Informática, sobretudo “o sentido da informatização da documentação para o trabalho do Historiador”.
O artigo Hegemonia: uma nova civiltà ou domínio ideológico de Edmundo Fernandes Dias (1991) é reeditado neste Dossiê comemorativo, por duas razões: a primeira como ato de agradecimento ao autor pelo seu empenho à época investido na publicação do número da Revista História & Perspectivas que teve como tema central a obra de Antônio Gramsci. A segunda razão é por contribuir com a reflexão da obra e a vida de Gramsci apontando que “a capacidade de construir uma hegemonia decorre da possibilidade que uma classe fundamental (subalterna ou dominante) tenha de elaborar sua visão de mundo. Diferenciarse e contrapor-se como uma visão de mundo às demais classes. Mais ainda: elaborar uma visão que seja capaz de estruturar o campo de lutas a partir do qual poderá determinar as frentes de intervenção e articular as alianças”. Nesse sentido o autor trouxe para o debate a proposição de articular a reflexão teórica e metodológica à perspectiva política que segundo suas palavras, significava trabalhar a perspectiva da hegemonia como elaboração de “uma nova civiltà”, apontando assim o sentido vital que, para ele, era a da “reforma intelectual e moral”.
O artigo Amores ilícitos na Paris de Emile Zola de Margareth Rago (1988) expressa a incursão na Revista das novas abordagens com temas como da prostituição em Paris durante a segunda metade do século XIX, visto pelo foco do olhar do romance. Assim, a autora buscou “refletir sobre a condição da mulher neste século de predomínio da moral vitoriana, destacando a emergência da figura da “femme fatale” na literatura e nas artes do período e perguntar sobre as mutações nos hábitos de consumo do amor venal e nas formas de desejo”.
Seguindo a trilha da renovação dos temas na produção historiográfica, o artigo O Gênero da cidade de Michelle Perrot trouxe, em 2001, o que foi compreendido pelos organizadores deste número “como o alargamento do leque temático disponível ao trabalho de pesquisa do historiador. Neste artigo a autora revisita questões urbanas, mostrando como a cidade europeia do século XIX constituiu-se como um lugar ambivalente em termos de hospitalidade para as mulheres, tanto no que se refere ao espaço público como ao privado”.
E para encerrar o Dossiê, dos 25 anos da Revista História & Perspectivas, reeditamos duas entrevistas. A primeira demarca no percurso historiográfico a incursão dos debates dos temas candentes, provenientes das problemáticas sociais e da reflexão em torno dos conflitos agrários e da organização sindical dos trabalhadores no Brasil. Nessa entrevista realizada em 1989 e publicada em 1990, José Graziano da Silva, trouxe a reflexão, necessária à época, da distinção entre o que era uma questão agrícola e o que era uma questão agrária: “questão agrícola diz respeito estritamente aos níveis de produção, à produtividade, aos preços dos produtos, quer dizer ao quanto se produz e a questão agrária diz respeito às relações de produção no campo (…) quando se fala na questão agrária, nas relações que o homem estabelece, seja como proprietário, seja como trabalhador. Nesse sentido a questão agrária envolve todas as questões relacionadas ao homem, trabalhador ou não. Então tem a ver com a propriedade da terra, com a migração, com os níveis de emprego”.
Por outro ângulo, a entrevista de Alessandro Portelli sobre o tema História Oral e Memórias, realizada em 2002, expressou o movimento de reflexão em torno das questões metodológicas no diálogo com as fontes orais, sobretudo as perspectivas vinculadas a produção de entrevistas que, além de envolver um leque amplo de diálogo com outras áreas do conhecimento, implicam sempre nos cuidados éticos na produção do discurso historiográfico. Essa entrevista também marcou um debate realizado com ele quando da sua visita ao Brasil em abril de 2002, com os professores do Instituto de História, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História, Cidade e Trabalho da UFU e do Núcleo de Estudos Culturais: Histórias, Memórias e Perspectivas do Presente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com apoio do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica / CAPES.
Cabe salientar que os artigos deste dossiê foram republicados tais como em suas versões originais, para resguardar as intenções e os sentidos de época.
Na seção de artigos avulsos, segue-se a seleção da diversidade dos temas firmados em diversas propostas e metodologias. A relação entre teoria e prática na formação de professores de História de Márcia Elisa Tetê Ramos e Marlene Rosa Cainelli reflete a pesquisa realizada pelas autoras com os estagiários e alunos egressos do curso de História da Universidade Estadual de Londrina. A reflexão sobre impressões, noções, desafios e expectativas em relação à forma como a pesquisa e o ensino são articulados no curso de graduação contribui sobremaneira para compreender os meandros das práticas que formam o profissional de história. Seguindo a trilha dessas preocupações, no âmbito das práticas educacionais, estão os artigos intitulados: Professores da região colonial italiana ensinando Português em tempos de nacionalização Estado Novista: memórias de formação e práticas escolares na década de 1930 de Carmem Maria Faggion e Terciane Ângela Luchese, como também o artigo de Mariângela Bairros e Denise Bussoletti intitulado Formação docente: entre o habitus e o desejo.
O artigo de Rejane Meireles Amaral Rodrigues, sobre ‘Tudo isso é animador’: a cidade de Montes Claros pela imprensa no início do século XX analisa as publicações dos jornais Montes Claros e Gazeta do Norte, cujas notícias tinham a pretensão de fazer de Montes Claros uma cidade moderna. Em sua reflexão a autora pondera sobre as ações que, de acordo com esses jornais, seriam necessárias para legitimar o projeto de cidade, a saber: a instalação dos correios e das comunicações, a construção da estrada de ferro e estrada de rodagem e, principalmente, a denúncia de “hábitos tidos como atrasados”.
O artigo de Thiago Lemos Silva, Neno Vasco por Neno Vasco: a escrita cronística como escrita de si na biografia de um anarquista, reflete sobre as crônicas publicadas no livro Da Porta da Europa e na imprensa anarquista e operária do Brasil e de Portugal. Em sua análise o autor prioriza questões teóricas e conceituais sobre a forma como o cronista escreve sua trajetória individual e coletiva. Já os autores Janaína Rigo Santin e Felipe Cittolin Abal analisam o que denominam como O Liberalismo Cabloco na Constituição de 1824. Num outro enfoque sobre a mesma temporalidade está o artigo de Martha Victor Vieira que traz a reflexão sobre As elites dirigentes goianas e a construção do Estado Nacional brasileiro, analisando os conflitos e negociações realizadas pelos representantes desses grupos dominantes no período de 1831 a 1840.
O artigo de Cleber Vinicius do Amaral Felipe, intitulado Da Dissimulação Prudente ao Simulacro Austucioso: A Epopeia Católica e a Incidência de Artificios de Teor (anti)ético analisa “o lugar da simulação e da dissimulação nas obras Os Lusíadas (1572), de Camões, e Prosopopeia (1601), de Bento Teixeira”.
No artigo intitulado Disciplina e Coesão na Caserna: O Discurso Militar da Revista a Defesa Nacional pós-1930, Fernanda de Santos Nascimento reflete sobre a intensa publicação de artigos e notas relacionados à questão da disciplina e da hierarquia na instituição militar brasileira pós-1930, nas páginas da revista A Defesa Nacional, acentuando a importância desse periódico no processo de modernização da instituição mediante os acontecimentos vinculados à Revolução de 1930, bem como a incorporação dos tenentes anistiados, destacando a atuação do general Góes Monteiro e dos editores na manutenção da ordem dentro da instituição.
Encerrando a seção dos artigos avulsos estão A Dupla face da Tradição Petroleira e a Reestruturação Produtiva nos anos 90 de Rose Mery dos Santos Costa Leite, cujo objetivo é analisar “a constituição da dupla face da tradição petroleira a partir da estreita ligação entre a vida política nacional e a realidade da maior empresa petrolífera do país e de seus trabalhadores”. E ainda, o artigo de Rodolfo Fiorucci sobre Imprensa, Política, Critica, focando as divergências em torno das políticas do neoliberalismo nas últimas décadas do século XX.
Por último, nesta edição dos 25 anos da Revista História & Perspectivas, temos a homenagem ao querido e reconhecido historiador inglês Eric Hobsbawn que faleceu em 2012, através da resenha Cultura e a Arte como expressões da Fratura Histórica dos Tempos de Lucas André Berno Kölln.
Esperamos que este volume, ao somar-se aos demais desta longa e profícua caminhada, contribua para a reflexão sobre caminhos e perspectivas de abordagens inerentes às nossas práticas sociais, com o intuito de democratizar o ensino, a pesquisa em história, e, tal como já dito, de “vislumbrar horizontes possíveis de mudanças na vida social”.
Célia Rocha Calvo
Sergio Paulo Morais
Conselho Editorial
CALVO, Célia Rocha; MORAIS, Sergio Paulo. 25 anos – Percursos do debate historiográfico. História & Perspectivas, Uberlândia, v.27, n.50, 2014. Acessar publicação original [DR].
Urbanistas e urbanismo: a escrita da história como campo de investigação / Urbana / 2013
FARIA, Rodrigo de; CERASOLI, Josianne. Editorial. Urbana. Campinas, v.5, n.2, jul / dez, 2013. OBS: Apresenta o mesmo editorial no volume 5, número 1 [DR]
Discutindo a História: escrita e métodos | Em Tempo de Histórias | 2010
O destaque, nos jornais matutinos, para os estudos sobre o carro elétrico não tarda em ser substituído por novas manchetes. As eleições presidenciais e o embargo econômico ao Irã dividem espaços na televisão com as chamadas publicitárias, McDonald‘s, I‘m lovin‘s it. Em um simples deslocamento pelo centro da cidade, a sucessão de imagens captadas pelo observador aponta o excesso informativo e a velocidade do tempo vivido. Na dinâmica seletiva da memória, a efemeridade dos fatos não encontra acolhimento, e o próprio cotidiano apenas conduz o indivíduo em sua vida de desacontecimentos.
Ireneo Funes, o personagem memorioso de Jorge Luís Borges, apresenta-se como o avesso da condição apresentada, mas, tampouco, é aquilo desejado. Esquecimentos e lembranças compõem a historicidade humana, são categorias que alicerçam as identidades. Enquanto que um passado desventurado pode produzir traumas sobre o presente, são de vivências alegres que se formam as saudades. De um ou de outro modo, a experiência constrói-se tão somente quando o vivido (social ou individual) passa a ser internalizado. Qual a relação, portanto, entre o tempo social e aquilo que uma sociedade ou um grupo julga digno de registro, de memória, de internalização e de orientação das práticas? Leia Mais
História: escrita e métodos / Em Tempos de Histórias / 2010
O destaque, nos jornais matutinos, para os estudos sobre o carro elétrico não tarda em ser substituído por novas manchetes. As eleições presidenciais e o embargo econômico ao Irã dividem espaços na televisão com as chamadas publicitárias, McDonald‘s, I‘m lovin‘s it. Em um simples deslocamento pelo centro da cidade, a sucessão de imagens captadas pelo observador aponta o excesso informativo e a velocidade do tempo vivido. Na dinâmica seletiva da memória, a efemeridade dos fatos não encontra acolhimento, e o próprio cotidiano apenas conduz o indivíduo em sua vida de desacontecimentos.
Ireneo Funes, o personagem memorioso de Jorge Luís Borges, apresenta-se como o avesso da condição apresentada, mas, tampouco, é aquilo desejado. Esquecimentos e lembranças compõem a historicidade humana, são categorias que alicerçam as identidades. Enquanto que um passado desventurado pode produzir traumas sobre o presente, são de vivências alegres que se formam as saudades. De um ou de outro modo, a experiência constrói-se tão somente quando o vivido (social ou individual) passa a ser internalizado. Qual a relação, portanto, entre o tempo social e aquilo que uma sociedade ou um grupo julga digno de registro, de memória, de internalização e de orientação das práticas?
Não é preciso uma investigação muito aprofundada para se verificar que as diferentes experiências sociais proporcionam formas de temporalidades outras, para além daquela marcada pelos ponteiros do relógio. A sensação de que o dia escoou mais rapidamente que o normal é um exemplo da subjetividade no trato da questão. O tempo, como sublinhou o sociólogo Philippe Zarifian, é uma dimensão indispensável a todo fenômeno social 1. Aqui se mostra uma das faces da atual conjuntura. Ao passo que se tem a impressão de um super-aceleramento do tempo, também os desacontecimentos, que em nada somam à experiência, oferecem ao cotidiano a fisionomia de estagnação. Mas a velocidade que causa vertigem ainda é desassossego, desestabiliza expectativas, fragmenta narrativas.
A escrita da história não pretende desacelerar este movimento congelando suas engrenagens sobre as páginas de um texto; seus argumentos não são absolutos, também ela possui seus regimes de verdades, condiciona-se aos mecanismos de seu meio. O objeto de análise, sabe o historiador, jamais é conhecido em si mesmo, senão a partir de. Em seu métier, o pesquisador vale-se da narrativa para tecer significados de uma experiência localizada e, por ser subjetiva a própria concepção de tempo, é pela narrativa que as construções sociais de temporalidades adquirem inteligibilidade. Nesse quadro, o aporte hermenêutico contribui com a trama de narrar a experiência humana coletiva, uma vez que, como esboçou Paul Ricoeur, busca apreender os sentidos dos fenômenos em sua historicidade 2.
O próprio fazer historiográfico possui sua historicidade; seus olhares, abordagens e métodos são dinâmicos, incorporam questões do presente. Deste modo, também a narrativa historiográfica desenvolve-se na instabilidade. Um bom exemplo pode ser observado no declínio das metanarrativas. A história global, cuja retórica da sequência de acontecimento pretendia fazer entender que a humanidade caminhava para um telos pré-determinado, fragmentou-se, tornou-se ―histórias de‖, narrativas localizadas. Sob o argumento de ―fim da história‖, passado e futuro foram reduzidos em detrimento do presente; criou-se uma espécie de ―estar agora‖ autosuficiente, pretensamente autônomo de experiências ou de expectativas. Mas o presentismo, que na voracidade de seu canibalismo qualquer outra temporalidade devora, não é de tudo sem propósito. A burguesia internacional, conforme sublinhou Boaventura de Souza Santos, pôde aqui finalmente ver o tempo consumado como repetição automática e perpétua do seu controle 3.
A história, definitivamente, não se esgotou; mas ao pesquisador tampouco é permitido ficar alheio às forças que o rodeiam. Ao problematizar a experiência humana em seus tempos, a história reafirma-se como produtora de conhecimento válido à vida. Nesse sentido, a análise historiográfica permite questionar, desnaturalizar práticas e fenômenos já consagrados em sociedade, como o já citado presentismo.
Os estudos apresentados nesta edição da Revista Em Tempo de Histórias pretendem não apenas promover por alguns instantes a desfamiliarização do leitor com práticas do cotidiano, mais ainda aproximar experiências capazes de acentuar nossa condição. Como sabiamente nos ensinou Hannah Arendt, as particularidades individuais ou de grupos inscrevem-se sob a condição humana, uma igualdade relativa 4.
O dossiê Discutindo a História: escrita e métodos, o qual compõe a primeira parte deste volume, conta cinco textos, cujas perspectivas dialogam sobre o fazer historiográfico. No primeiro estudo da seção, o filósofo Rainri Back apresenta O jogo da historicidade, em que argumenta que existir historicamente pressupõe apropriar-se do legado da tradição. O foco sobre a linguagem ganha particular espaço no estudo; aqui, dentre as possibilidade do dizer algo, entende o autor que também o crivo dos outros deve ser considerado, isto é, ―as coisas não estão a mercê do que queremos dizer sobre elas‖. Ao tratar da historicidade, três autores são destacados: Dilthey, Heidegger e Gadamer. Se Back reconhece pontos importantes de discussão nas obras destas autoridades, ainda assim não os poupa de sua análise crítica, apresentando seus limites. O ―ser histórico‖ é compreendido como a existência envolvida pela tradição na qual se formou antes mesmo de ter início a vivência pessoal e que oferece possibilidades do vir a ser. Destarte é que o jogo da historicidade refere-se à interpelação do passado sobre o presente sem que este passado ponha-se claramente visível.
Na sequência, Johnny Roberto Rosa expõe o artigo Responsabilidade Histórica e Direitos Humanos, no qual o ofício do historiador é questionado a partir dos usos da história. Não se trata de julgar valores, adverte o autor, porém se busca discutir os padrões éticos-sociais deste profissional em meio à importância da narrativa sobre acontecimentos coletivamente traumáticos. Os diálogos com os recentes trabalhos do professor Antoon de Beats, da University of Groningen, oferecem um rico debate em torno do impacto da Declaração dos Direitos Humanos sobre a proposta de um código de ética para os historiadores. Nas linhas do texto de Rosa a história toma sentidos que impelem ao profissional responsabilidades específicas: ―pertence à responsabilidade do historiador tornar conscientes transtornos radicados nas experiências históricas negativas e reprimidas, encerrando a obrigação da revelação e, quando possível, a dissolução de tal transtorno na coerência temporal‖. A função terapêutica, como argumenta em seu estudo, não se desassocia do fazer historiográfico.
Pablo Spíndola apresenta o terceiro trabalho desta seção. Em História da Cultura Intelectual, são abordadas as condições de produção das ideias e seu registro pela historiografia. Spíndola encontra na relação entre os conceitos de história das ideias, história das mentalidades e história cultural um locus de nebulosidade, de imprecisão. O autor parte então em busca de uma maior clareza sobre as especificidades das ideias enquanto objeto de estudo, desenvolvendo fecundo diálogo com as obras de Francisco Falcon, François Dosse e Roger Chartier. Mais que discutir um conceito, o estudo propõe um passeio pelos métodos utilizados pela historiografia que visaram apreender, de alguma forma, as ideias. A história é apresentada em sua historicidade. As aproximações entre a história e outros campos do saber também são contemplados. Adverte Spíndola que, ao fechar a análise das ideias ao seu contexto de produção, o historiador corre o risco de ignorar as individualidades. A história da cultura intelectual, desse modo, não se constrói pela procura de uma verdade pré-existente a ser descoberta, conquanto pelos caminhos que apresentam as possibilidades.
Rodrigo Fernandes da Silva, em Apontamentos de um Procedimento Hermenêutico-Fenomenológico, traz-nos seu recente estudo sobre a obra do grupo Chico Science e Nação Zumbi. Sua argumentação não se prende à contextualização do movimento manguebeat, mas focaliza o aspecto estético e político do grupo pernambucano. Dentre os conceitos trabalhados pelo autor, um instigante caminho à pesquisa é encontrado na noção de ―afrociberdelia‖, pois, como entende Rodrigo Silva, conjuga tanto valores da modernidade como da tradicão. Um passado de resistência negra, exemplificado sobretudo na figura de Zumbi dos Palmares, ressoa nos acordes elétricos de um tempo moderno: ―o afro-futurismo por sua percepção originária quanto ao passado, re-abre em fissuras os prédios, os carros, as indústrias e injeta a intensidade primitiva de nossa ancestralidade em cada fissura aberta para a construção de um novo software chamado afrociberdelia‖. As discussões do autor transitam entre a história e a filosofia, travando, em diversos momentos, conversações com obras de Edmund Husserl, de Gilberto Freyre, de Walter Benjamin e outros.
Fechando o dossiê, Tati Lourenço da Costa apresenta Ecos da Foto, em que discute o fazer historiográfico a partir da memória, enquanto categoria de análise, e do recurso às fotografias e entrevistas orais. No estudo, a autora compartilha parte de suas experiências no projeto ―Memórias da Cidade-ecos‖, realizado em Londrina no ano de 2007. O olhar sobre os álbuns de família constitui importante peça no trabalho da autora, as fotografias são elementos construtores de memória, de narrativas, e fontes de integração entre gerações.
Em ―Artigos Livres‖ quatro estudos são apresentados, iniciando-se pelo trabalho Anchieta, José do Brasil, de Eliane Cristina Deckmann Fleck e Fernanda Uarte de Matos. A exposição tem como objeto o filme homônimo produzido no Brasil em 1977. Sob o contexto da ditadura militar vivenciada no país, as representações e memórias vinculadas à película são questões discutidas pelas autoras. Ao tratar de uma filmagem como objeto de pesquisa, Fleck e Matos compreendem que o conteúdo desta vai além do controle de seus produtores; em Anchieta, José do Brasil mostram que, mesmo sob um ambiente de vigilância, isso não ocorreu de forma diferente.
Fabiana Francisca Macena contribui com seu artigo Além do Modernismo Paulista. A autora traz um texto crítico à historiografia que concede ao modernismo brasileiro um fenômeno exclusivista da cidade de São Paulo e sacralizado, em parte, pela memória. Macena parte do entendimento de que a modernidade não se acomodou unicamente no âmbito estético e deve ser pensada como construtora de sentidos que abarcam outros campos da experiência social. O período da Belle-Epoque (1907-1914) no Rio de Janeiro é o recorte de sua pesquisa, e a revista Fon-Fon seu objeto de análise.
Na sequência, Emília Saraiva Nery expõe o estudo The Doors, Joy Division e Nirvana nas Recusas do Fim do Tempo Juvenil. A autora encontra nas canções dos grupos musicais selecionados evocações de desejos que vão além dos impulsos individuais, são expressões de uma coletividade, de uma identidade cunjuntiva, particular aos jovens da segunda metade do século XX. Nery toma a ansiedade identificada entre grupos da juventude como perspectiva para interpretar a relação entre a consciência de enraizamento na história e o desejo de ultrapassar tal condição. O sentimento de ânsia é compreendido como um rito de passagem particular à cultura ocidental. Nas palavras da autora, ―o sentimento de uma perda do referencial da identidade individual, o ‗eu‘, que sob a ação de uma temporalidade irreversível culminaria numa morte ou fim irremediável ocasiona também o sentimento de melancolia‖.
Encerrando a seção, Marinelma Costa Meireles apresenta o artigo Escravidão, Mistura Racial e Etnica e Hierarquias no Brasil. A autora propõe uma discussão em torno das identidades de escravos africanos e de seus descendentes, buscando compreender os meandros de sua formação a partir das relações comerciais escravistas e do cotidiano vivenciado na sociedade brasileira. Meireles demonstra que os espaços sociais foram pautados no Brasil escravagista não apenas pela diferenciação entre escravo e homem livre, mas ainda pela distinção entre os próprios africanos e seus descendentes.
A edição de número 16 traz ainda uma entrevista com o professor José Carlos Reis, realizada por Eric de Sales. Em uma conversa descontraída, Reis comenta sua carreira, experiência como historiador, e recentes trabalhos. Teoria e historiografia são alguns dos pontos discutidos no diálogo entre Sales e Reis.
Na seção Resenha, Johnny Rosa comenta a obra La Europa Cosmopolita, de Ulrich Beck e Edgar Grande. Humanismo Cosmopolitia é o título dado por Rosa ao seu estudo, que interage também com os estudos de Jörn Rüsen.
Gostaria, por fim, de agradecer aos amigos e colaboradores que participaram direta ou indiretamente da realização deste volume, assim como desejar uma ótima leitura a todos!
Notas
- ZARIFIAN, Philippe. Temps et Modernité: Le temps comme enjeu du monde moderne. Paris: L‘Harmattan, 2008.
- RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Porto: Editora Rés, [s/d].
- SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.
- ARENDT, Hannah. A Promessa da Política. Rio de Janeiro: Difel, 2008.
Paulo Raphael Feldhues
Da Monarquia à República: questões sobre a escrita da história / História da Historiografia / 2009
A passagem é conhecida: “a pesquisa histórica no Brasil nasceu com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. José Honório Rodrigues, o autor dessas palavras, utilizou-a para introduzir a segunda parte de seu livro publicado originalmente em 1952, tendo por título A pesquisa histórica no Brasil. Sua evolução e problemas atuais. O ano de 1838, data da fundação do IHGB, assim como a obra principal de Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil (1854-57), aparecem recorrentemente como marcos constituintes do saber histórico brasileiro. O fato é plenamente compreensível e proveitoso pelo volume de conhecimento sobre o tema produzido. Mas por conta disso, é possível notar uma relativa disparidade na quantidade de estudos dedicados, de um lado, a investigar o cânone, seja para reafirmá-lo, seja para desmistificá-lo, e de outro, os estudos ocupados com momentos distintos mas igualmente importantes: em uma ponta, a historiografia “brasílica” do século XVIII e aquela produzida no contexto conturbado e rico da independência política; na outra, a historiografia de fins do regime monárquico e primeiros passos da república instaurada no país (ainda que haja ali uma vasta produção nos campos da história literária e do pensamento social brasileiro).
Na última década, contudo, notou-se uma considerável amplitude, tanto quantitativa como qualitativamente falando, das pesquisas que tematizavam as “margens”, por assim dizer, da historiografia imperial. Quer seja pela publicação de livros e artigos, quer seja pela elaboração de dissertações e teses que, mesmo com as dificuldades próprias do formato, acabam por circular entre os pesquisadores, os momentos à montante e à jusante do “núcleo” da historiografia oitocentista vêm sendo problematizados de forma persistente e revigorada, por conta das novas possibilidades de pesquisa que se abrem com a sistematização de outros corpus documentais e também com as mudanças de perspectiva que abordagens variadas têm permitido. Leia Mais
História & Perspectivas – 20 Anos. Desafios da História e da historiografia / História & Perspectivas / 2009
História & Perspectivas comemora seus 20 anos… Uma trajetória marcada pelo enfrentamento de dificuldades, pela dinâmica das tensões, mas também pelas lutas vencidas, pelo orgulho de estarmos inseridos no debate historiográfico deste nosso tempo.
Em 1988, o primeiro número da revista apresentou, como justificativa para sua criação, a necessidade de se criar um veículo de comunicação onde o debate e a troca de experiências possibilitassem a divulgação e a produção do conhecimento histórico. História & Perspectivas se propunha a ser um espaço que comportasse enfoques teóricos múltiplos e questionamentos capazes de contribuir com a reflexão historiográfica. Acreditamos que esses objetivos têm sido alcançados nessa trajetória de 20 anos, acompanhando as mudanças do presente que solicitam o renovar de nossas análises e de nossas interpretações sobre o passado.
De lá para cá, vários Conselhos Editorias assumiram a responsabilidade pela publicação, deixando nela as suas marcas. A todos levamos o nosso reconhecimento pelo esforço e dedicação, conseguindo manter a qualidade do periódico. Publicando artigos de pesquisadores nacionais e estrangeiros e abordando temáticas variadas, a revista tem ocupado um lugar importante no conjunto da área de História. Hoje ela está vinculada ao Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, sob a responsabilidade do Núcleo de Pesquisa e Estudos em História, Cidade e Trabalho – NUPEHCIT. Nessa nova fase, iniciada em 2007, nossas expectativas encaminham-se para ampliar as possibilidades de compreensão das experiências históricas, analisando os sentidos das mudanças sociais que nos informam sobre os modos de viver em diferentes tempos e espaços. Continuamos com a preocupação de estimular o diálogo com múltiplas posições, assim como o debate com variados campos do conhecimento.
Neste número 40 retomamos, portanto, os Desafios da História e da Historiografia, trazendo artigos que refletem a produção do conhecimento histórico em várias dimensões. Estão no foco das análises: as diferentes perspectivas da historiografia contemporânea; o compromisso político e social do historiador ao interpretar as mudanças históricas, buscando novas formas de compreendê-lo; as leituras diferenciadas a respeito do materialismo histórico-cultural e de vários autores cujos conceitos continuam fundamentais como campos de reflexão e de compreensão das relações entre presente e passado, entre teoria e realidade.
Um tributo a Prof.ª Dr.ª Dea Ribeiro Fenelon se justifica pela contribuição da historiadora à área, na sua luta diária pela História, como também pela sua presença marcante no nosso trabalho, contribuindo com as nossas reflexões, sugerindo caminhos e apresentando opções para nossa inserção no social. Republicamos neste número um artigo de sua autoria, ainda marcado pela atualidade das questões propostas em torno do tema História e Cultura.
Nos artigos, temas variados estão em discussão, lidando com as relações entre história e literatura, história e imprensa, história e cultura e história e política. Duas resenhas encerram esse número de História & Perspectivas, apresentando a primeira, uma avaliação da obra Imagem e conhecimento e a segunda uma análise do livro Jacob Burckhardt´s social & political thought.
Convidamos os leitores a dividirem conosco o prazer da leitura. Esperamos que as análises propostas pelos diversos autores despertem o interesse e incentivem a produção de novos conhecimentos.
Conselho Editorial
História & Perspectivas – 20 Anos: Desafios da História e da Historiografia. História & Perspectivas, Uberlândia, v1, n.40, 2009. Acessar publicação original [DR].
Escrita da História: os desafios da multidisciplinaridade / Textos de História/ 2007
Ao desafios que envolvem, contemporaneamente, a escrita da história constituem o eixo que reúne o conjunto de artigos do presente número da Revista Textos de História. São leituras produzidas por historiadores e historiadoras de diversas instituições e que encerram, naquilo que incluem e excluem, uma localização e um modo de inteligibilidade.
Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma sistematização totalizante e investir na pluralidade, pois os discursos se inscrevem, como nos ensina Certeau, “eles próprios em seguimento a ou ao lado de muitos outros: enquanto falam da história, estão sempre situados na história”1.
Reconhecer a historicidade da história, implícita no movimento que liga uma prática interpretativa a uma prática social, é uma das exigências colocadas ao campo disciplinar e aos do ofício. Pensar a historiografia a partir da relação paradoxal entre dois termos antinômicos – o real e o discurso –, e de sua “tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse”2, é desafio incontornável à prática de escrita da história. Escrever história, essa operação que estabelece uma relação com o tempo que não é nem a primeira nem a única possível, implica “gerar um passado, circunscrevêlo, organizar o material heterogêneo dos fatos para construir no presente uma razão”3.
A concepção de que a história é plural, assim como o passado que narra, e que não pode, portanto, ser reduzida a uma única forma e conteúdo, norteou a organização da coletânea de estudos que integram o dossiê “A escrita da história: os desafios da multidisciplinaridade”. Além disso, e por conta disso, também o entendimento de que o saber histórico, como qualquer campo de conhecimento, é construção inacabada, regida por regras das instituições e da comunidade que definem o que pode e o que não pode ser aceito como verdade, em cada momento histórico. O reconhecimento, enfim, de que o saber histórico não é relativista, ele é relativo às suas regras de produção; não é arbitrário, mas arbitrado pelos pares4.
Tais questões e perspectivas de abordagens da natureza do conhecimento e do fazer históricos foram objeto de amplo debate no IV Encontro da ANPUH/DF, realizado em Brasília, em maio de 2007, com título homônimo ao do dossiê. Parte significativa das exposições feitas – 02 (duas) conferências, 16 (dezesseis) mesas-redondas, 42 (quarenta e duas) comunicações –, abrigadas sob a ótica da pluralidade definida para o evento, integra a presente coletânea.
Foi evento importante para os historiadores do Distrito Federal por viabilizar um espaço para discussão do tema, compartilhando dúvidas e incertezas, e também direções e posições, acerca dos desafios contemporâneos quanto à escrita da história. Além disso, a possibilidade criada para divulgar pesquisas, para socializar conhecimento produzido. Foi, sem dúvida, um encontro que trouxe conforto aos do ofício, ao possibilitar um “encontro” com a história, pensada não como um “fardo a pesar sobre nós, impondo ao futuro um sentido já inscrito no passado”, mas “como referência para pensarmos com liberdade o futuro que queremos”5.
O viés comemorativo também imprime sua marca na organização desse número da revista, com os artigos das professoras Diva do Couto Gontijo Muniz, em co-autoria com o mestrando Eric de Sales, e Lucília de Almeida Neves Delgado. No primeiro, o esforço em historicizar, em conhecer a história da história do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com a identificação e análise crítica de sua produção acadêmica, em seus trinta anos de existência (1976-2006). No segundo, uma reflexão sobre 1968, um tempo de transgressão, utopia e engajamento, a partir de um outro mirante temporal, 2008.
O propósito não é, nessa ritualização, o de inscrever atos humanos num tempo mítico, mas o de buscar sua localização como construção ancorada num tempo social e cultural. Há, ainda, o esforço em acionar, para todos nós que vivemos no presente, “um passado a ser permanentemente recordado como forma de manutenção simbólica dos importantes laços de pertencimento coletivo”6.
Os textos foram agrupados segundo o critério de aproximação temática. Assim, a primeira parte do dossiê reúne um conjunto de artigos cuja ênfase comum é a reflexão sobre questões que perpassam a escrita da história e que interpelam os autores: Diva do Couto Gontijo Muniz, Eric de Sales, Estevão Chaves de Rezende Martins, Tereza Cristina Kirschner, José Otávio Nogueira Guimarães, Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Ione Oliveira. Abordagens diversas, plurais, mais ou menos disciplinares, problematizando as relações entre história e prática historiográfica, história e memória, história e objetos, história e temporalidades, história e poder, história e verdade.
O enveredamento dessas reflexões para a política de silenciamento, discursivamente produzido, acerca da presença das mulheres na história, bem como para “a produção sexista do conhecimento que descarta o múltiplo nas relações sociais”7, foi o critério de agrupamento de três artigos da segunda parte do dossiê. São perspectivas interdisciplinares de leitura do social e de escrita da história, preocupadas não apenas em conferir visibilidade historiográfica às mulheres, mas, sobretudo, em evidenciar a construção discursiva das identidades sociais, que as autoras, Susane Rodrigues de Oliveira, Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro e Liliane Machado, fizeram uso.
Os diálogos entre história e literatura, história e música, história e arte conformam o desenho da terceira parte e apontam para a ampliação de temas, objetos, problemas e abordagens do campo disciplinar. Movimento dinâmico de diluição de fronteiras e, ao mesmo tempo, de reconfiguração de novas territorialidades, percebido nas reflexões de Cléria Botelho da Costa, Hermenegildo Bastos, Eleonora Zicari Costa de Brito e Paulo Roberto de Deus. Na última parte, os textos de Roberta G. Stumpf e Teresa Cristina de Novaes Marques. Neles, uma prática de escrita da história informada pelos quadros nocionais da História Social, com seus contornos ampliados de modo a contemplar a riqueza, em nuances, da complexidade das relações sociais.
À parte do dossiê, mas que poderiam também estar nele incluídos, os artigos de Lucília de Almeida Neves Delgado, a que já fizemos referência, e o de Marcos Silva, sobre o ensino de história. Afinal, os desafios existem tanto no que concerne à escrita da história como ao seu ensino. As direções tomadas são direções posicionadas, comprometidas com diferentes projetos de história. Finalmente, a criação de um espaço, na revista, para registro das reflexões dos docentes acerca de seu pensamento e ação como historiadores, com a seção de entrevistas. Ela é inaugurada com a entrevista do professor Estevão Chaves de Rezende Martins com Tânia Navarro Swain, professora de Teoria da História no Departamento de História da UnB, que se aposentou em 2007. Revelam-se, no depoimento, o itinerário de uma historiadora e o percurso de interrogação incontornável aos do ofício: que aliança é esta entre a escrita e a história?
Notas
1 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 32.
2 Idem, ibidem.
3 Idem, ibidem, p. 11.
4 ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. O historiador naïf ou a análise historiográfica como prática de excomunhão. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: Letras, 2006, p. 204.
5 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Usos da história: refletindo sobre identidade e sentido. História em Revista. Pelotas: Ed. UFP, v. 6, 2000, p. 21 6 Idem, ibidem.
7 NAVARRO-SWAIN, Tânia. Entrevista. Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Brasília: UnB/PPGHIS, v. 15, n.1/2, 2008, p. 290.
Diva do Couto Gontijo Muniz
Cléria Botelho da Costa
Organizadoras
Jaime de Almeida
Editor
Relações de gênero e escrita da história / Esboços / 2006
Em seu livro “A Nova História Cultural”, traduzido no Brasil em 1992, a historiadora Lynn Hunt afirmava que “Sem alguma discussão de gênero, nenhum relato de unidade e diferença culturais pode estar completo” [1] Este recurso nosso a uma autoridade acadêmica, como a da autora, talvez não seja mais necessário nos dias atuais, mas, no início dos anos noventa, no Brasil, certamente esta afirmação ajudou historiadoras/es em seu “combate pela história”, para que se incluísse o gênero como categoria de análise e que se aceitasse como “acadêmicos”, e portanto “sérios”, os estudos históricos que tinham este foco. Mesmo porque a desqualificação não era feita somente em relação ao gênero, outras pesquisas que discutiam raça/etnia, e mesmo classe, eram “acusadas” de serem “militantes” e, portanto, de não terem suficiente objetividade para serem tomadas como acadêmicas.
Por outro lado, dentro da militância a categoria gênero foi observada com desconfiança. Parecia “limpa” demais, não servia para identificar quem eram as/ os amigas/os e os que não eram. Ao contrário de “mulher” ou “mulheres”, gênero não designava um sujeito, e sim uma relação. Mesmo que reiteradas vezes tenha se afirmado que esta categoria tinha uma trajetória que começara com o movimento de mulheres e feministas, que remontava aos anos sessenta, ou seja, aquilo que se convencionou chamar de “Segunda Onda” do feminismo, para muitas feministas a categoria segue sendo uma maneira de despolitizar o debate.
Na escrita da história, no Brasil, o texto de Joan Scott tem sido considerado fundamental. A tradução do famoso artigo “Gênero: uma categoria de análise histórica”, pela revista Educação e Realidade, em 1990, em Porto Alegre [2], representou um marco nesta historiografia, dedicada, muitas vezes, a discutir a História das Mulheres.
A História das Mulheres, por sua vez, tem uma emergência em período anterior. Em 1984, o livro que se considera como marco dentro da historiografia brasileira foi o de Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX [3]. Torna-se interessante notar que este livro não traz, em seu título, a palavra mulher. Estratégias editoriais em um terreno difícil? Lembremos, ainda, que a editora que o publica, a Brasiliense, tornou-se conhecida, justamente por editar livros da esquerda, de resistência à ditadura e de cunho feminista. Este livro, inúmeras vezes citado, provocou o aparecimento de muitas pesquisas que trouxeram, estas sim, palavras como “Mulher”, “Mulheres”, “Condição feminina”, “Meninas”, em seu título. Assim, ainda em 1984, Miriam Moreira Leite organizou “A condição feminina no Rio de Janeiro: século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros”. [4] No ano de 1989, outra leva de livros tratavam do mesmo assunto: Rachel Soihet publicou “Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920”; Eni de Mesquita Samara publicou “As mulheres, o poder e a família: São Paulo século XIX”; Martha de Abreu Esteves publicou “Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Èpoque”. [5] Em 1993, Leila Mezan Algranti publicava “Honradas e devotas: mulheres da colônia, condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822”; Mary Del Priore publicava “Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Côlonia”; Luciano Figueiredo, “O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII”.[6] Em 1994, Joana Maria Pedro publicava “Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe”. [7]
Torna-se interessante observar que, por cerca de dez anos, os estudos históricos focalizaram o tema “mulher”, “Mulheres”, “feminina”, e o explicitaram nos títulos. Estavam, certamente, dialogando com um feminismo que, desde a segunda metade dos anos sessenta, vinha reafirmando a diferença e a identidade. O que se pretendia era mostrar que “havia uma forma “feminina” de fazer história, e que as mulheres constituíam-se como sujeitos, embora a História insistisse em deixá-las na invisibilidade Em sua obra, Maria Odila Dias alertava para as dificuldades de se escrever esta história, e de que, mais do que a falta de fontes, havia uma “invisibilidade ideológica”. Como ela, outras historiadoras/es buscaram apontar a presença das mulheres na história. Mostrou-se sua resistência às dificuldades da colonização e da escravidão. Apontavam as formas como burlavam as normas e como inventavam novos modos de agir. Tratava-se de encontrar estas personagens que, embora não tivessem ocupado qualquer cargo considerado importante na historiografia metódica, [8] tinham uma participação importante nos processos que a história social e a história cultural passavam a valorizar.
Certamente, a ausência delas em cargos de destaque também as deixou fora de muitas das fontes oficiais, mas não de todas. Abundantes em registros demográficos, em recenseamentos, são também numerosas em registros policiais e judiciários. Vem deste tipo de fonte a maioria das escritas da história. E, então, o que mais se encontra são trajetórias de mulheres pobres, lavadeiras, cozinheiras, prostitutas. No limite da pobreza, no limite das normas.
O uso da categoria “gênero” na escrita da história não significou o desaparecimento do uso de “Mulher”, “Mulheres” e até mesmo de “feminina”, embora esta última esteja sob severa crítica, uma vez que remete às diferenças biológicas, reforçando-as. O que se observa é que estas discussões continuam presentes e que neste dossiê, na revista Esboços, pode-se acompanhar como tanto o gênero quanto mulheres são referenciados.
Outra questão que merece destaque são os estudos sobre “masculinidade”. Novidade no interior da escrita da história, é bastante recente o surgimento de livros no Brasil que se atrevem a trazê-los no título. Na França, tem tido uma trajetória mais antiga [9]. Os estudos sobre masculinidades no Brasil, na historiografia são muito recentes. [10]
É, então, sobre relações de gênero, mulheres e masculinidades na escrita da história, que, neste dossiê da revista Esboços se fala. Está composto por 12 textos: 8 artigos, 3 textos referentes a um debate e uma entrevista.
Os oito artigos foram escritos por pesquisadoras oriundas de diferentes universidades do país e do exterior. Assim, Ângela Xavier de Brito e Ana Vasquez, em “Mulheres latino-americanas no exílio. Universalidade e especificidade de suas experiências”, lidam com “gênero”, embora a categoria “mulheres” apareça no título, pois as autoras percebem como estas relações interferem e dão significados diferenciados à experiência do exílio. Suely Gomes Costa, em “Silêncios, diálogos e ‘Os Monólogos da Vagina’: instantes dos feminismos (Brasil, 1970-1990)”, faz uma reavaliação do que se tem escrito sobre a história do feminismo no Brasil, através da peça “Os Monólogos da Vagina”, ela aponta para o “sexismo” da militância feminista dos anos setenta e oitenta, e a forma como esta peça, que fez parte da militância internacional, adquire novas abordagens, completamente descolada do que se pretendia em sua criação.
Lídia Maria Vianna Possas, no artigo “Revendo a história das cidades paulistas: uma (re)leitura do cotidiano”, busca nos inquéritos policiais os indícios do cotidiano da população urbana das cidades do Oeste paulista nas primeiras décadas do século XX. Assim, ela encontra as mulheres em seus espaços de trabalho, lazer e sociabilidade, mesmo em espaços considerados normalmente como masculinos, como é o caso dos bares e da estrada de ferro. Já Alcileide Cabral do Nascimento, no texto “Vida e esperança: o trabalho feminino na criação de bebês no Recife (1789-1831)”, apresenta uma pesquisa inédita e instigante, com reflexões importantes sobre o trabalho de mulheres pobres, principalmente negras e pardas, no Recife colonial e no início do Império. Evidencia as lidas e penas das amas de leite livres e escravas, que eram empregadas na criação de bebês nas casas particulares e nos abrigos de expostos e órfãos daquela cidade. Nestes artigos, a categoria “mulheres”, mesmo que constituída de forma relacional – ou seja, como relações de gênero -, é o foco da discussão e da escrita da história.
Continua sendo “mulheres” a força identificadora que organiza as mulheres em associações reivindicadoras de direitos, analisada por Maria do Socorro de Abreu e Lima no seu artigo “Pela efetivação dos direitos das mulheres: associações femininas no Recife dos anos 50”. A autora observa na pobreza e na luta pela sobrevivência o protagonismo das mulheres que atuam em diversas associações e organizações.
Cleci Eulalia Favaro, no artigo “Entre ‘lobos’ e ‘cordeirinhos’: dos discursos e das práticas nos relacionamentos familiares e conjugais entre descendentes de imigrantes”, apresenta uma análise instigante em torno dos discursos marcados pelo imaginário coletivo e a realidade vivida pelos homens e mulheres de origem étnica italiana. Um outro aspecto significativo é a utilização dos depoimentos orais e suas considerações sobre a metodologia de aproximação, e a aguçada percepção para perceber “detalhes significativos” no momento da entrevista. Maria Ângela de Faria Grillo, no artigo “Evas ou Marias? As mulheres na literatura de cordel: preconceitos e estereótipos”, apresenta as diversas maneiras como as mulheres aparecem no imaginário dos poetas de cordel nordestinos na primeira metade do século XX, e qual o papel que elas representavam para a sociedade da época. Os fragmentos dos folhetos da literatura de cordel mostram as imagens de mulheres malcriadas e falsas, como também de mulheres puras de boa conduta, identificadas como Eva ou Virgem Maria, respectivamente.
São, também, as mulheres, que Vera Lúcia Puga investiga em suas relações matrimoniais, no seu artigo “Casar e separar: dilema social histórico”. Aponta como, apesar das dificuldades na legislação, os casamentos eram desfeitos, mesmo nas classes mais abastadas. Entre as famílias mais pobres, uniões consensuais eram feitas e desfeitas. Lembra, entretanto, a força normativa da Igreja e do Estado, exigindo a manutenção de laços há muito já desfeitos.
Além dos artigos, deste dossiê consta um debate. Em junho de 2006, esteve presente no Encontro Estadual de História a professora e pesquisadora francesa Gabrielle Houbre. Esta fez uma conferência que se seguiu de um debate, com as professoras Cristina Scheibe Wolff e Janice Gonçalves. Gabrielle Houbre discutiu “A prostituição clandestina através dos arquivos da polícia de costumes (1865-1875)”, focalizando, portanto, fontes judiciais para o estudo da história das mulheres. No debate, as professoras focalizaram, respectivamente, as fontes policiais para a escrita da história das mulheres e das relações de gênero, e a relação de quem faz pesquisa com os arquivos e os documentos.
Fechando este dossiê, temos ainda a entrevista de Cristina Scheibe Wolff com Gil Mihaely. Este pesquisador esteve na Universidade Federal de Santa Catarina em 2006, e fez algumas conferências apresentando suas pesquisas sobre masculinidades e corpo masculino na França do século XIX. Na entrevista, ele discute sua trajetória acadêmica, as leituras que fez, pesquisas, estudos, e a importância da categoria gênero na sua escrita da história.
Este dossiê, centrado nas categorias “gênero” e “mulheres” dentro de uma perspectiva relacional numa revista como a Esboços, do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, permite refletir acerca de um campo de estudos que vem se desenvolvendo, nesta Universidade, desde o início dos anos noventa. Esta Universidade vem sendo reconhecida como um dos centros de excelência dos estudos sobre “Relações de Gênero”, “Feminismo”, “Mulheres”, “Masculinidades”. O diálogo que este dossiê realiza, com a escrita da História, permite marcar um acontecimento historiográfico e, também, mostrar um panorama do que se faz neste campo em outros lugares do Brasil.
Queremos agradecer a todas as pessoas que colaboraram com artigos; o esforço em fazer as revisões sugeridas, e, finalmente, a expectativa de que possa contribuir para o reforço da troca de experiências de pesquisa.
Notas
1. HUNT, Lynn. A nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.24.
2. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, 16(2): 5-22, jul/dez. 1990.
3. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo o século XIX. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.
4. LEITE, Miriam Moreira. (ORG). A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: Ed. HUCITEC & Fundação Nacional Pró-Memória, 1984.
5. SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890- 1920. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1989; SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo século XIX. São Paulo: Ed. Marco Zero & Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989; ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Èpoque. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1989.
6. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia, condição feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio & Edunb, 1993, DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Côlonia. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio & Edunb, 1993; FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio & Edunb, 1993.
7. PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. UFSC/SC, 1994.
8. Este termo “historiografia metódica” refere-se à escrita da história que baseada em métodos de crítica pretendia narrar a trajetória política das nações. Ver a este respeito GRESPAN, Jorge. Considerações sobre o método. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p.291-300.
9. MOSSE, George L. L’image de l’homme. L’invention de la virilité moderne. Paris: Éditions Abbeville, 1997. WELZER-LANG, Daniel (org) Nouvelles approches des hommes et du masculin. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1998. DELUMEAU, Jean et ROCHE, Daniel. Histoire des pères et de la paternité. Paris: Larousse, 2000. 2º édition.
10. MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001. MENDES, Juliana Cavilha. Histórias de quartel: um estudo de masculinidades com oficiais fora da ativa. Florianópolis: NIGS, 2004. OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004. SCHPUN, Mônica Raisa. (org.) Masculinidades. São Paulo: Boitempo Editorial; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino- uma invenção do falo. Uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920-1940). Maceió: Edições Catavento, 2003.
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