Rio de Janeiro e a Cidade Global: Histórias comparadas de cidades na Era Moderna da Globalização / Almanack / 2020

Em seu livro, descrevendo os seis meses que passara no Brasil em 1846, o americano Thomas Ewbank escreveu que “os gritos em Londres são bagatelas quando comparados aos da capital brasileira. Escravos de ambos os sexos anunciam seus produtos em todas as ruas.” Quer fossem frutas ou vegetais; itens de vidro, porcelana ou prata; ou ainda sedas e jóias “tais coisas, e milhares mais, são vendidas pelas ruas diariamente”[5]. A comparação feita com Londres sugere que ao tentar traduzir a sua experiência com o Rio de Janeiro para os seus leitores, Ewbank achou necessário referenciar a cidade que, no imaginário Americano, estaria mais associada a um comércio urbano vibrante e abundância de mercadorias advindas de regiões mundiais mais diversas. Na mesma época em que Ewbank publicava seu livro, Friedrich Engels compunha sua obra A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, onde ele descreveu Londres como o centro comercial do mundo [6]. É pouco provável que Ewbank e seus leitores conheciam o texto de Engels, mas certamente saberiam da reputação da capital do império Britânico e do alcance global de suas instituições financeiras e mercantis. Ao comparar as duas cidades, Ewbank associava o Rio de Janeiro oitocentista à cidade global por excelência daquela época.

Para Ewbank, o ponto de comparação com Londres era a disponibilidade de qualquer produto comercial imaginável em qualquer momento que o cidadão urbano o requeresse. O Rio de Janeiro da metade do século XIX estava, de fato, inserido em uma complexa rede de trocas comerciais e financeiras que se estendia pelo interior do território brasileiro, pelo mundo atlântico, e além [7]. Assim como Londres, a cidade portuária brasileira atuava, desde o século XVII, como nódulo importante na rede de centros urbanos e portos que conectava diferentes cantos do mundo e promovia a movimentação global de produtos comerciais, ouro e prata, pessoas, ideias e práticas. Mesmo com as restrições econômicas e políticas de monopólio do antigo regime, diferentes historiadores apontam a participação crucial de comerciantes do Rio de Janeiro, e da cidade portuária em si, na circulação econômica no império português [8]. Mas não é somente a referência a mercadorias diversas que, na passagem do texto de Ewbank, ilustra as conexões transoceânicas que caracterizavam o Rio de Janeiro oitocentista. O breve comentário sobre escravos de ambos os sexos, encarregados de animar tantas trocas comerciais, invoca um outro lado do caráter transnacional ou global daquela cidade: o papel central que o Rio de Janeiro tivera no tráfego de africanos escravizados entre diferentes regiões do Atlântico e do Índico [9].

Essa curta passagem de Life in Brazil aponta, sem necessariamente se dar conta, para a globalidade potencial do Rio de Janeiro, ou seja, a centralidade da cidade em processos de circulação globais que animaram a definiram realidades do século XIX e experiências urbanas de viajantes, consumidores, e comerciantes grandes e pequenos, livres e escravos. A notável cacofonia da cidade, evidência de um setor comercial urbano ativo, representa mais do que conexões mercantis; ela invoca um ambiente urbano familiar, reconhecível. Descrições como essa, disseminadas por viajantes, indicam como o Rio de Janeiro contribuiu para reforçar a imagem do que era típico, esperado, ou desejado em uma cidade[10]. Contribuía assim para noções do urbano no mundo oitocentista.

A relação entre o urbano e o global é a questão histórica que esse dossiê propõe examinar. A fundação da cidade do Rio de Janeiro em 1565 é um dos eventos que marcou um primeiro processo histórico de globalização. A expansão marítima e projeto colonizador de Portugal, Espanha e, eventualmente, de outras comunidades europeias, integraram novas rotas Atlânticas, e mercados nas Américas, a existentes rotas marítimas e redes de trocas econômicas do Mediterrâneo e Oceano Índico. Os séculos XV ao XIX testemunharam, pela primeira vez, a circulação global de mercadorias e o contato entre as populações humanas de todos os continentes[11]. A articulação dessa rede global se deu nas águas e navios, feitorias e mercados, e nos vários centros de poder onde atividades mercantis e alianças políticas foram negociadas. Especificamente, grande parte desse processo se deu em cidades e vilas, tanto portuárias quanto algumas interioranas, onde atores urbanos moldaram espaços e práticas locais para manejarem melhor oportunidades e pressões criadas por forças e conexões globais. O urbano e o global, enquanto fenômenos históricos, interagiram de forma dialógica: dinâmicas urbanas sustentaram a criação de um mundo moderno globalmente conectado enquanto a movimentação global de pessoas, bens, ideias e práticas ajudou a definir realidades e imaginários urbanos. A perspectiva que salienta a interconexão entre a cidade e globalização—a cidade global—é corrente em estudos urbanos do fim do século XX e início de XXI[12].A adoção dessa mesma perspectiva analítica para o princípio do período moderno nos permite entender melhor o papel que cidades como o Rio de Janeiro e populações urbanas tiveram naquela era de globalização, assim como a maneira pela qual aquele momento histórico definiu a cidade.

Interrogar o diálogo entre o urbano e o global a partir de trabalhos somente sobre o Rio de Janeiro não seria suficiente. Estudos individualizados de cidades frequentemente produzem biografias de centros urbanos que tendem a exagerar o distinto ou excepcional de uma localidade e ignorar importantes conexões com outras localidades ou contextos para além do contexto nacional ou imperial [13]. A história global, enquanto disciplina, encoraja comparações e contextualizações amplas que revelam sincronicidades históricas, novas geografias de análise que não a nação ou império, e conexões entre eventos distintos e diacrônicos14. Histórias globais urbanas oferecem também comparações e contextualizações férteis, capazes de produzir narrativas e análises inovadoras, porém ancoradas em localidades e experiências humanas tangíveis15. É em busca dessa perspective urbana global, e seu potencial para elucidar o processo de globalização durante o período moderno e a centralidade da cidade nesse processo, que o dossiê O Rio de Janeiro e a Cidade Global combina textos de pesquisadores de renome internacional sobre o Rio de Janeiro e sobre outras comunidades urbanas do mundo Atlântico. Juntos, os sete artigos aqui reunidos contribuem duas principais intervenções historiográficas: expandir o corpo literário ainda limitado que aborda o Rio de Janeiro como um importante estudo de caso para a discussão sobre a história urbana global e sedimentar a relevância de uma perspectiva comparativa e voltada para o período moderno para estudos de cidades como agentes de globalização.

O leitor encontrará aqui uma análise de processos históricos que marcaram os séculos XVII ao XIX centrada em comunidades urbanas do mundo Atlântico. Luciano Figueiredo e Paul Musselwhite avaliam a relevância histórica de cidades—Rio de Janeiro e James Town, e cidades do mundo Atlântico Britânico, respectivamente—na construção de uma geografia política imperial de proporções globais. Eles ressaltam a importância de populações urbanas para o processo de articulação e negociação de vínculos políticos e econômicos entre o velho e o novo mundos. Em particular, eles demonstram a atuação de espaços urbanos como forjas de identidades políticas e palcos de conflitos e confrontações que reconfiguraram a relação entre colônia e metrópole num contexto imperial influenciado por processos globais.

Jesus Bohorquez e Fabrício Prado examinam comunidades e redes mercantis centradas no Rio de Janeiro, Montevideo, Buenos Aires e além, e sua relevância para a organização de uma economia, assim como alinhamentos políticos, trans-imperiais. Eles exploram os esforços feitos pelas coroas portuguesa e espanhola para regulamentar e controlar uma economia cada vez mais globalizada e assim proteger seus interesses e dominação política. Ao focarem, porém, conexões comerciais entre diferentes cidades, eles demonstram que mais do que projetos imperiais, essas redes de troca se materializaram graças às ações de agentes econômicos e mercados coloniais. Essa análise revela ainda a necessidade de se pensar as conexões econômicas dessa região inseridas numa geografia global muito mais ampla do que o Atlântico Sul e mais influentes na maturação das ambições políticas regionais do que os ideais pro-independência da era das revoluções atlânticas.

Emma Hart, Randy Sparks e Ynaê Lopes dos Santos dedicam seus artigos a uma discussão de populações urbanas comumente marginalizadas em narrativas da formação do mundo Atlântico e de processos globalizadores: trabalhadores manuais, imigrantes voluntários e forçados, africanos e seus descendentes, pessoas escravas e libertas. Os séculos XVIII e XIX testemunharam a intensificação de trocas comerciais e movimento de populações ao longo de rotas Atlânticas organizadas em torno de algumas cidades específicas. Hart, Sparks e Santos examinam a trajetória de Charleston, na Carolina do Sul, de Annamaboe, na Costa do Ouro, e do Rio de Janeiro. Dialogando com a historiografia que explica a centralidade de cada cidade em termos das atividades econômicas e poder político de elites e populações europeias ou euro-descendentes, os autores demonstram que foram as diferentes iniciativas e prioridades de populações marginalizadas, de agentes econômicos africanos e de escravos negros que moldaram Charleston, Annamaboe, e o Rio de Janeiro, respectivamente. Esses grupos urbanos, repetidamente ignorados em histórias dominantes do mundo Atlântico, construíram espaços, mercados, e práticas urbanas que viabilizaram articulações econômicas, sociais, e culturais cruciais à constituição do mundo setecentista e oitocentista.

O presente dossiê, através da comparação implícita entre a cidade do Rio de Janeiro e centros e comunidades urbanas do Atlântico britânico, espanhol, e da Costa do Ouro na África, oferece uma nova perspectiva da relação entre o urbano e o global durante o período moderno. Por um lado, ele ilumina a relação dialógica entre dinâmicas e experiências urbanas e a formação de redes de contato e troca globais que marcaram aquela era histórica. Por outro, ele revela a relevância de cronologias, geografias, e atores históricos ao processo de globalização centrado na cidade—e portanto ao fenômeno da cidade global—que são pouco explorados na literatura corrente, a qual tem se preocupado mais em focar o chamado norte global durante o final do século XX e começo do XXI.

Notas

5. EWBANKS, Thomas. Life in Brazil, or, A journal of a visit to the land of the cocoa and the palm. New York: Harper & brothers, 1856. p. 92-93.

6. ENGELS, Friedrich. The Condition of the Working Class in England in 1844. London: Sonnenschein & Co, 1892. p. 23.

7. COSTA, Sérgio; GONÇALVES, Guilherme Leite. A Port in Global Capitalism: Unveiling Entangled Accumulation in Rio de Janeiro. London: Routledge, 2019.

8. FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. PESAVENTO, Fábio. “Para além do império ultramarino português: as redes trans, extraimperiais no século XVIII.” In: GUEDES, Roberto (org.). Dinâmica Imperial no Antigo Regime Português. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2013. p. 97-111. GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Os ingleses no Rio de Janeiro da primeira metade do século XVIII: o caso da família Gulston, c. 1710-1720 – primeiras impressões.” In: MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de; GUIMARÃES, Carlos Gabriel; RIBEIRO, Alexandre Vieira. Ramificações Ultramarinhas: Sociedade Comerciais no Âmbito do Atlântico Luso. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2018. p. 93-114.

9. FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. BORUCKI, Alex. From Shipmates to Soldiers: Emerging Black Identities in the Río de la Plata. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2015. p. 25-56.

10. MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001.

11. ABU-LUGHOD, Janet. Before European Hegemony: The World System A.D. 1250-1350. New York: Oxford University Press, 1989. CROSBY, Alfred. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport: Greenwood, 1972. PAGDEN, Anthony. Lords of All the Worlds: Ideologies of Empire in Spain, Britain, and France, c. 1500-c.1800. New Haven: University of Connecticut Press, 1995. RUSSELL-WOOD, A.J.R. The Portuguese Empire, 1415-1808: A World on the Move. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998, p. 8-26.

12. SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University Press, 2013. TAYLOR, Peter; DERUDDER, Ben. World City Network: A Global Urban Analysis. London: Routledge, 2015. KING, Anthony. Writing the Global City: Globalization, Postcolonialism, and the Urban. New York: Routledge, 2016.

13. SAUNIER, Pierre-Yves; EWEN, Shane. Another Global City: Historical Explorations into the Transnational Municipal Moment. New York: Palgrave: 2008. NIGHTINGALE, Carl. Segregation: A Global History of Divided Cities. Chicago: University of Chicago Press, 2012.

14. CONRAD, Sebastian. What is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016.

15. ARAÚJO, Erick Assis de; SANTOS, João Júlio Gomes dos, Jr. (orgs.). História Urbana e Global: novas tendências e abordagens. Fortaleza: Editora UECE, 2018.

Referências

ABU-LUGHOD, Janet. Before European Hegemony: The World System A.D. 1250-1350. New York: Oxford University Press, 1989. [ Links ]

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Mariana Dantas – Ohio University. É autora do livro Black Townsmen: Urban Slavery and Freedom in the Eighteenth-Century Americas (2008). Ela foi a co-investigadora do projeto de rede de pesquisa internacional “Global City: Past and Present”, financiado entre 2015 e 2017 pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanas do Reino Unido. http: / / orcid.org / 0000-0003-2691-5033

Emma Hart – University of St. Andrews. É autora dos livros Building Charleston: Town and Society in the Eighteenth-Century British Atlantic World (2010) e Trading Spaces: The Colonial Marketplace and the Foundations of American Capitalism (2019). Ela foi a investigadora principal do projeto de rede de pesquisa internacional “Global City: Past and Present”, financiado entre 2015 e 2017 pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanas do Reino Unido. http: / / orcid.org / 0000-0003-0749-3701


DANTAS, Mariana; HART, Emma. O urbano e o global na era moderna em uma perspectiva comparativa. Almanack, Guarulhos, n.24, abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Intolerâncias, preconceitos e racismos na Era Moderna: entre permanências e rupturas / Ofícios de Clio / 2019

No Brasil atual, o tempo inteiro somos bombardeados com notícias que chocam o nosso dia a dia. Algumas, em particular, embora chamem pouca atenção da população geral, são questões improteláveis no debate civil e apontam um problema crítico, que reflete a permanência da indiferença que os expedientes raciais tiveram na construção da sociedade brasileira na longa duração: os ataques às religiões de matriz africana. De acordo com um levantamento feito pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, as denúncias de violação ao direito de livre profissão dessa fé cresceram quase cinquenta por cento, se comparado ao ano de 2018. As queixas se referem principalmente a depredação dos locais de culto, invasões e incêndios criminosos. Ainda, o debate público, acirrado principalmente nas redes sociais, traz à tona o completo desconhecimento cultural da herança africana, colaborando com a manutenção de preconceitos e com o esvaziamento da luta pela igualdade de crenças. É sabido que nos termos jurídicos vigentes, a liberdade de credo é constitucionalmente assegurada, mas no campo empírico, observa-se uma contínua marginalização da cultura africana, afrontada constantemente pela violência física e simbólica de seus espaços. Com as instituições incapazes de responder na forma da lei para garantir a salvaguarda necessária para que as estatísticas mencionadas acima possam ser modificadas, também nos deparamos com a inaptidão da sociedade civil em aceitar em seu seio a liberdade religiosa e discutir a tolerância em todas as suas formas.

A questão da intolerância em âmbito político, social e cultural não é um problema recente. De fato, a intolerância em âmbito religioso é um forte marcador cultural da sociedade ocidental. Durante a Idade Média, as cruzadas buscavam combater o “infiel” muçulmano e retomar Jerusalém. Na Era Moderna, a intolerância – e também importantes contrapontos de tolerância – foram parte importante da conformação do imaginário e das ações políticas e práticas europeias. A retomada de Castela pelos reis católicos em 1482, e a consequente expulsão de mouros e judeus do território, marcou a guinada da fé como definidor dos expedientes das sociabilidades ibéricas, debutando bulas inquisitoriais para a uniformização religiosa das populações e repreendendo com grande ímpeto o “infiel”, pois o inimigo da fé era também inimigo do Estado. Ainda, a Igreja Católica respondia em Trento por outra parte da sua disputa de narrativa no palco europeu: para estancar a sangria da Reforma iniciada por Lutero, a Igreja decidiu acirrar a vigilância e deliberou ações pautadas na repressão, inclinada ao reforço da autoridade papal e anuindo o funcionamento dos tribunais de consciência em diversos territórios. No íntimo destas querelas, estavam judeus, muçulmanos e, mais tarde, cristãos-novos, grupos que cresceram em constante diáspora e eram colocados sob suspeição tanto em reinos católicos como protestantes. A prática de qualquer fé que não se enquadrasse nos termos de grande parte da cristandade europeia, poderia ser aditada como crime na esfera civil e religiosa.

Essa lógica permeada de intolerância, inclusive, foi a principal justificativa em âmbito moral para a expansão europeia, por vias atlânticas, à África. Nos escritos de Gomes Eanes de Zurara3 , “Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné”, datados de 1453, o autor elencou os cinco principais motivos que levaram o Infante D. Henrique a ir além do Bojador e alcançar a Guiné. Nos interessa, no âmbito deste texto, o terceiro, quarto e quinto motivo:

A terceira razão foi, porque se dizia, que o poderio dos Mouros daquela terra d’África, era muito maior do que se comumente pensava, e que não havia entre eles cristãos, nem outra alguma geração. E porque todo sisudo, por natural prudência, é constrangido a querer saber o poder de seu inimigo, trabalhou-se o dito senhor de o mandar saber, para determinadamente conhecer até onde chegava o poder daqueles infiéis. A quarta razão, porque, de 30 anos que havia que guerreava com os mouros, nunca achou rei cristão, nem senhor de fora desta terra, que por amor do nosso senhor Jesus Cristo o quisesse na dita guerra ajudar. Queria saber se achariam em aquelas partes alguns príncipes cristãos, em que a caridade e amor de Cristo fosse tão esforçada, que o quisessem ajudar contra aqueles inimigos da fé. A quinta razão, foi o grande desejo que havia de acrescentar a santa fé de nosso senhor Jesus Cristo, e trazer a ela todas as almas que se quisessem salvar, conhecendo que todo o mistério da encarnação, morte e paixão de nosso senhor Jesus Cristo, foi obrado a esta fim, por salvação das almas perdidas, as quais o dito senhor queria, por seus trabalhos e despesas, trazer ao verdadeiro caminho. (ZURARA, 1453, p. 45- 47)

Como se percebe, a injunção moral que a Coroa Portuguesa possuía para expandir até a África era o combate ao Islã. Além disso, o acréscimo a “santa fé de nosso Senhor Jesus Cristo” para a “salvação das almas pedidas” não se interessava exatamente pela liberdade dessas pessoas a serem salvas. A redução à escravidão tanto dos “infiéis” quanto “das almas que se quisessem salvar” não era um problema para os europeus.

O aspecto somático também advinha, no imaginário europeu, de um aspecto religioso. Como explícito em inúmeros relatos e crônicas de viagem, pensavam que as pessoas ao sul do Saara eram negras por serem amaldiçoadas, filhas de Cam. Ao longo dos séculos que se seguiram aos primeiros contatos no século XV, esse aspecto somático foi se tornando uma pseudociência, que justificava a inferioridade das pessoas negras perante as pessoas brancas. Baseado em preceitos de eugenia e de darwinismo social, no século XIX o Ocidente tencionou criar uma base “científica” de diferenças de raças humanas. Na humanidade, a raça não existe biologicamente, sendo algo criado socialmente. Essa criação social deu origem a intolerância racista.

A formação histórica brasileira tem relação intrínseca com o quadro apresentado. Para além de uma perseguição religiosa, devemos nos debruçar no significado da constituição social e política da nossa história, cravada em marcadores étnicos categóricos para a definição de sua estrutura, sensível – e inflexível – ao componente africano, relegado primeiramente às condições desumanas da escravidão moderna para depois amuralhar o espaço do afrodescendente, destituído das mais básicas concepções de cidadania e ainda segregado das definições de igualdade jurídica implantadas ao longo dos 120 anos após a abolição. Esses reflexos não podem ser deslindados apenas dentro do âmbito político, mas também social e econômico, que abdicaram do debate sobre o racismo e ignoraram os problemas estruturais em nome de uma percepção positiva da chamada democracia racial, pautada, a exemplo, nos escritos de Gilberto Freyre, e em uma narrativa romantizada das relações na escravidão brasileira. A omissão em amparar os setores que se tornaram vulneráveis postergaram a inserção social do negro na sociedade brasileira.

No campo teórico ocidental das ciências humanas, com implicações diretas na produção historiográfica, essa lógica intolerante e racista prevaleceu no início da Era Contemporânea. No final do século XIX e durante o século XX, existiram correntes que buscavam desnaturalizar essa lógica. Com mais força agora no século XXI, correntes que visam descolonizar o pensamento, como a História Decolonial e a História Pós-colonial buscam construir um pensamento pós-abissal (SANTOS, 2009), em um entendimento epistemológico não apenas a partir da contribuição ocidental ou europeia, mas também em uma perspectiva do chamado sul global.

Os artigos recebidos para esse dossiê retratam estes séculos de história de intolerância religiosa e racial até a construção das contranarrativas em direção a descolonização do pensamento.

O primeiro artigo, “A Tolerantia no século XIII: uma breve revisão bibliográfica sobre as Minorias na Península Ibérica”, de Léo Araújo Lacerda, procurou fazer uma extensa discussão bibliográfica sobre certa tolerância que é atribuída ao reinado de Alfonso X em Castela e Leão (1252-1284). O autor buscou fazer o debate com a historiografia em sua complexidade, pensando os aspectos que poderiam fazer pesar noções de tolerância e de intolerância religiosa entre católicos, sefarditas e mudéjares, concluindo que este momento já era de um relacionamento desigual, que remonta o cristianismo primitivo, mas que desembocou na conversão forçada ou expulsão de mudéjares e sefarditas em 1502.

O segundo artigo chama-se “Robert Johnson e o racismo em Mississipi nas décadas de 1910-1930 no documentário ‘O Diabo na Encruzilhada’”, de Letícia Ferreira Aguiar. O texto inicia com uma importante introdução em que a autora busca explicar os preceitos metodológicos em que procederá sua análise, como a forma de se analisar o documentário como fonte histórica e a noção de racismo. Partindo à análise, a autora discute a biografia de Robert Johnson, homem negro que cresceu em meio a violência da Ku Klux Klan em Mississipi entre 1910 e 1930. Procurou desmitificar Johnson, a partir do contexto sociopolítico da época e considerando que seu legado foi, de certa forma, deturpado pela mentalidade racista da época e entendendo, a partir do exemplo do bluesman, a contribuição da população negra a cultura estadunidense.

O terceiro artigo intitula-se “A representação dos negros na História do Brasil: narrativas de manuais didáticos na construção nacional e identitária brasileira”, de Cristina Ferreira de Assis. Neste trabalho a autora discute a representação dos negros nos manuais didáticos, partindo principalmente da análise dos manuais de autoria de João Ribeiro e Rocha Pombo. A autora faz interessantes considerações metodológicas sobre o uso de livros didáticos como fontes para a pesquisa histórica, percebendo como, no período em análise (1914-1925), as pressões sociais e conflitos políticos em questão tinham por intenção extirpar a presença dos negros na sociedade brasileira. Embora houvessem algumas diferenças nos manuais de João Ribeiro e Rocha Pombo, ambos negligenciam as heranças linguísticas e culturais do continente africano no Brasil.

Por fim, o quarto artigo é “Sobre a história que a história não conta: por contranarrativas epistemológicas”, de Carll Souza e Elisabeth Maria Oliveira dos Santos. Neste trabalho, os autores buscam entender como a subjetividade de mulheres negras são atravessadas por diversas formas de opressão, como o racismo e o sexismo. Para isso, analisam, em um trabalho fartamente referenciado, estudar o caso de três mulheres negras: a historiadora Beatriz Nascimento, a mãe Luísa Oliveira e a estudante Cláudia Maria. Discutem o apagamento histórico da negra na sociedade brasileira e o conceito de epistemícidio para entenderem os impactos da produção intelectual das três mulheres negras inseridas em espaços de produção e promoção de poder.

Neste momento político em que a intolerância religiosa, racial e de gênero alcançou o mais alto nível de representatividade no Governo Federal, a presidência da república, é imperativo aprofundar o debate sobre o seu perigo. Não param de crescer os números sobre a agressão psicológica e física contra as mulheres, sobre o genocídio do povo negro e periférico e, como dito, sobre a intransigência religiosa baseada no fundamentalismo, sobretudo, neopentecostal. Para combater ditas violências é necessário compreendê-las, destrinchar os seus motivos e os seus fundamentos ideológicos, entender os seus mecanismos discursivos e conhecer as suas formas de transmissão e disseminação. Apenas a partir da construção do conhecimento conseguiremos elaborar meios para fazer frente ao obscurantismo e aos discursos de ódio.

Nota

3. Português que foi, entre 1454 e 1475, o Guarda-mor da Torre do Tombo.

Referências

SANTOS, Boaventura Sousa. Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. IN: SANTOS, Boaventura Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul Coimbra: Edições Almedina, 2009.

ZURARA, Gomes Eanes. Chronica do Descobrimento e Conquista da Guiné escrita por Mandado de El-Rei D. Affonso V. Paris: J. P. Aillaud, [1453] 1841.

Natália Ribeiro Martins – Doutoranda em história social da cultura pela UFMG.

Felipe Silveira de Oliveira Malacco – Doutorando em história social da cultura pela UFMG.


MARTINS, Natália Ribeiro; MALACCO, Felipe Silveira de Oliveira. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v.4, n. 6, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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