Cultura, politecnia e imagem – ALBUQUERQUE et al (TES)

ALBURQUERQUE, Gregorio G. de; VELASQUES, Muza C. C; BATISTELLA, Renata Reis C. Cultura, politecnia e imagem. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. 318 pp. Resenha de: GOMES, Luiz Augusto de Oliveira. A materialidade da cultura: uma nova forma de ler o mundo. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.17, n.2, Rio de Janeiro,  2019.

O livro Cultura, politecnia e imagem,organizado por Gregorio Galvão de Albuquerque, Muza Clara Chaves Velasques e Renata Reis C. Batistella, publicado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fundação Oswaldo Cruz, apresenta um panorama ampliado do conceito de cultura a partir de três eixos de análise que se complementam: (1) Cultura, educação, trabalho e saúde; (2) Cultura, educação e imagem; e, (3) Cultura e cinema. Os 20 autores que assinam os 15 artigos do livro apresentam importantes contribuições para compreender a materialidade da cultura nos tempos atuais.

No eixo “Cultura, educação, trabalho e saúde”, ao debater cultura, os autores se fundamentam especialmente no materialismo histórico dialético para refletir sobre o conceito ampliado do termo. É interessante observar a defesa de uma concepção de cultura imbricada dialeticamente com todas as instâncias dos processos de produção da vida social, refutando a tradição idealista que busca na cultura algo puro e apartado do “reino dos conflitos e contradições” (p. 25). Além da crítica ao idealismo, é crucial destacar as reflexões acerca das obras de Eduard Palmer Thompson e Raymond Willians, pensadores da chamada nova esquerda britânica, para desconstruir a leitura de um marxismo dogmático e fundado no reducionismo econômico, que hierarquiza base/superestrutura e plasma a cultura no plano da ‘superestrutura’, desvinculada das relações sociais de produção (infraestrutura). Quanto às relações dialéticas entre estrutura e superestrutura, assim como Thompson (1979, p. 315) podemos dizer que “o que há são duas coisas que constituem as duas faces de uma mesma moeda”. Ao ter em conta os nexos entre economia e cultura, podemos perceber que a “dimensão cultural das sociedades são espaços dinâmicos permeados por conflitos de interesses” (p. 88), espaços onde estão presentes tanto o consenso quanto disputas por uma nova hegemonia. Essa constatação vai ao encontro das palavras de Thompson (1981, p. 190) de que “toda luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores”, valores esses que constituem a cultura, cuja base material deve ser investigada e considerada na análise do movimento do real.

É um desafio compreender o conceito de cultura não apenas como campo de consenso. Como nos informa o eixo “Cultura, educação, trabalho e saúde”, a cultura pode ser entendida como resultado das ações dos homens e mulheres sobre o mundo. Em última instância, “ela se torna o próprio ambiente do ser humano no qual ele é formado, apropriando-se de valores, crenças, objetos, conhecimentos” (p. 99).

A obra de Clifford Geertz, trabalhada em um dos artigos do livro, também contribui para o debate sobre cultura, principalmente por abordar os modos de vida e discursos dos grupos vulneráveis ou excluídos. A noção de comportamento humano de Geertz é uma ótima ponte para aproximar a antropologia da discussão a respeito da compreensão do processo saúde-doença. A autora do artigo afirma que a contribuição de Geertz e a sua antropologia “é muito favorável para a inclusão do ponto de vista dos pacientes e usuários dos serviços na análise das questões de saúde, principalmente no atual contexto, no qual o discurso médico é dominante” (p. 114).

No segundo eixo, intitulado “Cultura, educação e imagem”, os autores tratam da construção de conhecimento por meio das imagens. Esse eixo, em especial, nos favorece a compreensão das imagens como mediação em espaços formativos, sejam eles institucional (como a escola) ou qualquer outro espaço de educação dos sujeitos coletivos. Para isso, os autores buscam principalmente nas experiências em sala de aula mostrar como, por intermédio da cultura (em especial, da imagem), é possível outra leitura do mundo.

Com isso, concordamos com Kosik (1976) quando entende que compreender a vida para além da sociedade fetichizada − que toma a coisas no seu isolamento, adota a essência pelo fenômeno, a mediação pelo imediatismo−, é um exercício de apreensão da totalidade do cotidiano. Por isso, tendo em conta a pseudoconcreticidade com que o mundo se apresenta, os autores indicam que na sociedade capitalista, onde “o urbano passa a ser uma sucessão de imagens e sensações produzidas e reproduzidas pelos indivíduos que criam uma condição fragmentada da vida moderna” (p. 88), crianças, jovens e adultos buscam nas imagens divulgadas nas mídias (televisão e redes sociais) a construção de si mesmos e do mundo.

Na lógica do capital, a imagem exerce um papel importante na manutenção da hegemonia, impondo valores e transferindo os desejos da burguesia para a classe trabalhadora. Como constata um dos artigos, a “dissolução da forma burguesa mantém-se no contínuo da passividade dos sujeitos sociais, arraigando assim uma violência subjetiva terrorista, como reconhecer e alterar este mundo […] a colonização estética dos sentidos é perversa” (p. 160).

Sabemos que a educação é apropriada pelo capitalismo como formadora de consenso: “forma-mercadoria e forma estatal como princípio de organização da vida social, impregnando a subjetividade humana de práticas autorrepressivas no que diz respeito aos seus impulsos de felicidade e liberdade” (p. 170). A leitura do eixo “Cultura, educação e imagem” reforça que o “viés questionador, transformador e revolucionário da reflexão e da produção cultural podem possibilitar uma nova forma de ler do mundo” (p. 143). Os artigos nos ajudam a compreender que a imagem é uma potente ferramenta, constituindo-se como mediação tanto revolucionária quanto para manter o status quoda classe econômica e culturalmente dominante.

Por fim, no último eixo, “Cultura e cinema”, os autores nos convidam a conhecer a discussão acerca da cultura e da imagem com base em consistentes formulações teóricas que envolvem a produção do cinema e os seus nexos com as práticas escolares. Neste eixo, podemos destacar que é de grande importância a crítica direcionada às produções acadêmicas que corroboram para que a “análise de filmes seja percebida ainda como uma forma acessória de se atingir uma compreensão sobre a realidade social” (p. 231), ou seja, esse tipo de análise trata a produção do cinema como uma mera fonte de registro e que para compor uma análise da sociedade necessitam de outros tipos de fontes.

Em seus quatro artigos, o eixo “Cultura e cinema” procura demonstrar como a produção fílmica é uma fonte histórica de grande relevância para analisar a sociedade a partir de uma “concepção estético-política” (p. 232). Busca na interpretação do filme “Terra em Transe”, do diretor Glauber Rocha, elementos importantes para a leitura dos acontecimentos do golpe empresarial-militar de 1964 e as variadas interpretações do seu sentido nos dias atuais. O filme é “uma síntese devastadora do processo de luta de classes no Brasil e na América Latina dos anos 1960 como núcleo duro permeando todas as relações sociais reais, demole todos os discursos de legitimação dos projetos colonizadores” (p. 254). A produção em questão nos ajuda a compreender a potência do cinema na captação do real e de como a organização formal e estética em imagem e som nos auxilia na percepção das disputas de classe ocorridas no período.

A concepção de romper com um olhar naturalizado sobre a sociedade de classes é um dos intuitos das produções fílmicas alternativas, em especial na conturbada América Latina do século XX. Assim, o Nuevo Cine Latinoamericanomarcou o cinema latino-americano, buscando em produções militantes, conscientizar trabalhadores e trabalhadoras a sair das suas ‘zonas de conforto’. Essa concepção de cinema buscou possibilitar, como nos indica um dos artigos, “uma nova leitura do mundo, e uma nova forma de pensar a nossa realidade, características fundamentais para a transformação social” (p. 287).

Assim como os longas-metragens, os documentários também contribuem para narrar os conflitos de classe. Como sinaliza uma das autoras, o documentário tem o poder de relacionar a antropologia, a arte visual e a produção cinematográfica para contar uma história. Com isso, os documentários sustentam o “mito de origem de falarem a verdade” (p. 258). Todavia, o eixo nos leva a refletir: Qual verdade? Verdade para quem? O livro nos convida a encarar o documentário como um gênero de grande importância para a pesquisa social.

O rico debate teórico com base na materialidade da cultura alicerçada nas pesquisas dos autores, seja em sala de aula ou na análise de imagens e filmes, ajuda-nos a entender a profundidade do conceito de cultura e a sua potência como agente da transformação social. O livro nos elucida quanto à necessidade de que a classe trabalhadora se aproprie e interprete sua própria cultura, descolonizando-se da hegemonia cultural da burguesia, para assim buscar a sua emancipação plena.

O livro Cultura, politecnia e imagemé um prato cheio para quem busca superar a concepção idealista de cultura, compreendendo-a na sua totalidade, em diversos espaços-tempos históricos, tendo em conta as relações dialéticas entre economia, cultura e outras determinações sociais, e em especial as experiências coletivas da classe trabalhadora. Nos três eixos temáticos, o conjunto de autores desenvolve formulações teóricas com evidências empíricas de que a cultura e os processos educativos que a elegem como objeto de estudo e de compreensão da realidade podem fermentar os germes de projetos de transformação social.

Referências

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. [ Links ]

THOMPSON, Edward P. Tradición, revuelta y cons- ciência de classe. Barcelona: Crítica, 1979. [ Links ]

THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. [ Links ]

Luiz Augusto de Oliveira Gomes – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, Niterói, RJ, Brasil. E-mail: luiz.augusto1201@gmail.com

Acessar publicação original

(P)

Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde – RAMOS (TES)

RAMOS, Marise. Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; UFRJ, 2010, 290 p. Resenha de: SAVIANI, Dermeval. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.3, Rio de Janeiro, nov. 2010.

Licenciada em Química em 1990 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Marise Ramos passou a lecionar a disciplina físico-química no ensino médio e em 1995 concluiu o mestrado com a defesa da dissertação “Do ensino técnico à educação tecnológica: (a)-historicidade das políticas públicas dos anos 90”. Em 2001, concluiu o doutorado mediante a defesa da tese “Da qualificação à competência: deslocamento conceitual na relação trabalho-educação”, da qual resultou o livro A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação?, publicado no mesmo ano de 2001. Entre 2002 e 2010, simultaneamente ao exercício da docência na Escola Politécnica da Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), desenvolveu vários projetos de pesquisa sobre o tema “trabalho, conhecimento e formação humana” como base teórica para o estudo da educação profissional em saúde. Do projeto “Educação profissional em saúde: concepções e práticas nas Escolas Técnicas do SUS” resultou o livro objeto desta resenha.

A obra trata das concepções, políticas e práticas da formação dos profissionais da saúde. Para o tratamento desse objeto a autora desenvolveu uma densa investigação baseada em fontes primárias colhidas por meio de pesquisa de campo junto aos agentes das Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (ETSUS), apoiada numa ampla e significativa gama de fontes secundárias que lhe permitiram examinar as políticas de formação dos profissionais da saúde como expressão de projetos de formação humana em suas bases filosóficas e pedagógicas.

Cumprida a trajetória da pesquisa, Marise se dedicou à ordenação dos achados tendo em vista a socialização dos resultados alcançados. No método de exposição que guiou a escrita do livro, ela começa por aclarar as políticas que orientaram as ações das Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde e, passando por um longo détour, desvela os fundamentos e contradições das concepções e práticas das Escolas Técnicas do SUS reveladas pela pesquisa empírica. Em consequência, o livro se apresenta com a seguinte estrutura:

Após uma introdução em que situa e justifica a escolha do tema, a autora aborda as políticas de formação em saúde no Brasil no período de abrangência do estudo, isto é, entre 1980 e 2000. É essa a problemática tratada no primeiro capítulo denominado “Políticas de educação profissional em saúde no Brasil (1980 a 2000)”, no qual ela aborda a gênese das Escolas Técnicas do SUS, as concepções educacionais em disputa na origem dessas escolas, o Programa de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem, considerado como um diferencial na história das Escolas Técnicas do SUS, e a educação permanente que apresenta novos desafios para as referidas escolas técnicas.

Situado o objeto, a autora dele se afasta momentaneamente em busca das mediações filosóficas dos projetos de formação humana, das concepções de educação e das correntes pedagógicas. São esses os temas tratados respectivamente nos capítulos 2, 3 e 4.

No capítulo 2, “Projetos de formação humana e mediações históricas”, Marise começa pelo trabalho como base da formação humana na medida em que constitui a síntese da essência e da existência do ser humano; prossegue analisando as categorias de trabalho e práxis; e conclui com o estudo da prática e experiência no pragmatismo e na filosofia da práxis.

No capítulo 3, “Sentidos filosóficos e políticos da educação”, são analisadas a pedagogia da essência, a pedagogia da existência e sua superação pelas perspectivas de uma educação orientada pela filosofia da práxis.

O capítulo 4, “Um panorama sobre as correntes pedagógicas”, é dedicado ao estudo das pedagogias não críticas e das pedagogias críticas.

Apetrechada com esses elementos mediadores que asseguram a consistência de sua análise teórica, Marise retorna ao seu objeto sistematizando os elementos captados nos depoimentos dos educadores das Escolas Técnicas do SUS. É esse o objeto do capítulo 5, que examina os fundamentos e contradições das concepções e práticas das Escolas Técnicas do SUS.

Completam a obra as “Conclusões”, nas quais se mostra a não confirmação das hipóteses iniciais, discutem-se as contradições presentes nas concepções dos agentes das Escolas Técnicas do SUS, resumem-se os principais resultados e se fecha a exposição com a constatação de que o referencial epistemológico e etico-político das políticas de educação profissional em saúde vem sendo hegemonizado, desde a década de 1980, pelo pragmatismo associado à micropolítica.

Se a hipótese inicial foi que a emergência da pedagogia das competências como orientação teórica se deveu a um vazio epistemológico e etico-político provocado pela tentativa da educação profissional em saúde de superar a supremacia tecnicista e conteudista no ensino, a conclusão revelada pela pesquisa não confirmou essa hipótese. O resultado a que se chegou indica que, em lugar do vazio epistemológico, aquela tentativa de superação das pedagogias tradicional e tecnicista se desenvolveu apoiada na epistemologia pragmatista na qual se funda o escolanovismo. Consequentemente, nas palavras da autora, “a pedagogia das competências se constituiu em referência para as escolas não em razão de uma lacuna teórica produzida por uma concepção epistemológica e pedagógica sincrética, mas sim pelo fato de essa pedagogia se constituir numa atualização do escolanovismo no contexto de indeterminações da sociedade contemporânea” (p. 276). Assim, em lugar da síncrese, o que se deu foi uma síntese entre o pragmatismo e a micropolítica que impediu a assunção da concepção de educação politécnica e omnilateral pelos trabalhadores das escolas técnicas da saúde.

Mas a autora encerra o trabalho observando que a hegemonia do pragmatismo associado à micropolítica é exercida em meio a contradições teóricas e práticas que, se adequadamente aprofundadas, podem abrir novas possibilidades, entre as quais destaca a perspectiva teórica por ela adotada e enunciada como “o referencial epistemológico e etico-político do materialismo histórico-dialético” que fundamenta a concepção de educação politécnica e omnilateral da formação humana.

Para tratar do tema específico da pesquisa voltado para a compreensão da formação dos trabalhadores técnicos da saúde, a autora ampliou consideravelmente a abrangência do estudo ao fundamentar sua análise em considerações filosóficas sobre o trabalho como princípio educativo, sobre o significado filosófico e político da educação e sobre as correntes pedagógicas.

Destaque-se que Marise Ramos moveu-se de forma segura, guiada pelo método do materialismo histórico explicitamente assumido, corretamente compreendido e aplicado de forma coerente e competente.

Desenvolvendo um trabalho original pelo tema tratado, pelas fontes utilizadas, pela perspectiva teórico-metodológica e pelo método adotado no trato das fontes, na construção da pesquisa empírica e na análise dos resultados, a autora traz contribuições importantes para fazer avançar o debate sobre as relações entre educação e trabalho de modo geral e, especificamente, sobre a educação profissional.

Considerando o recorte temático, o livro interessa de modo imediato e direto aos profissionais da saúde, com destaque para os professores e alunos das escolas técnicas de saúde, além dos pesquisadores, professores e estudantes de pós-graduação da área de Educação e Trabalho. No entanto, como situa a questão específica no quadro mais amplo da fundamentação filosófica, política e pedagógica referente à relação entre educação e trabalho e às correntes pedagógicas, esta publicação interessa a todos os que trabalham no campo da educação profissional, da política educacional, da história e filosofia da educação e das teorias pedagógicas.

Em suma, pela atualidade, originalidade e relevância do tema tratado, assim como pela clareza e consistência da fundamentação teórica, o livro Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde, de Marise Ramos, traz uma contribuição importante para um melhor entendimento do momentoso problema da educação profissional e se constitui num material de grande utilidade para as atividades de gestores, professores e estudantes das escolas técnicas, dos cursos de pedagogia e demais cursos de formação de professores.

Dermeval Saviani – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil. E-mail: dermevalsaviani@yahoo.com.br

Acessar publicação original

[MLPDB]