Lógicas e métodos – Das Filosofias às Teorias da História

The work of the critic 2. comic ar 650433 Imagem IFIAMidjourney jun. 2023 Lógicas e Métodos
The work of the critic 2. comic –ar 650:433 | Imagem: IF/IA/Midjourney (jun. 2023)

 

Colegas, boa tarde!

Neste texto, avançamos na empreitada de comparação entre manuais de Lógica e manuais de Teoria/Metodologia da História. Nosso o objetivo é reforçar uma hipótese: a ideia de que a estrutura dos mais conhecidos discursos sobre o método copia a estrutura dos manuais que ensinavam a arte de ordenar os raciocínios ou a Lógica.

Assim, na primeira parte do texto, inventariamos fins e temas de manuais de Lógica e examinamos o lugar do “método” nesses instrumentos propedêuticos. Na segunda, buscamos os significados de “método” nos textos de Lógica e algumas apropriações de Lógica nos manuais de Teoria e Método da ou para a Ciência Histórica.

Boa leitura!

Introdução

Manuais de Lógica, principalmente os produzidos em cátedras universitárias de Filosofia, na Itália, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha, são um bom objeto de comparação com manuais de Teoria e Metodologia da História (TMH), mas, apenas em termos de analogia, isto é, como estímulo à compreensão de algumas escolhas dos escritores e não por encarnarem supostos ancestrais dos manuais propedêuticos.

É provável que o primeiro (entre os historiadores do método) a exercitar a comparação sistemática dos escritos de TMH do século XIX com os escritos de Lógica dos três séculos precedentes tenha sido o Filósofo (e autor de livros de Lógica) Giovanni Gentille (1875-1944), em artigo (bastante elogiado por B. Croce) publicado no ano de 1909.

Gentille (1909, p.138) foi também o primeiro historiador, entre os historiadores do methodus a identificar o par “investigação / exposição” ou, como ele mesmo escrevia, as operações de “metodologia” e as operações de “ars historica1 tanto nos manuais de “método histórico” como nos manuais de Lógica do século XVII. Ele, contudo, não gostou do que leu porque viu demasiada ênfase nas operações de comunicação em detrimento da pesquisa.

Cem anos antes deste artigo de Gentille, o Teólogo e professor de Filosofia da Universidade de Marburg, Ludwig Wachler (1767-1838) escrevera, talvez, a primeira história da Historiografia europeia, ressaltando a dicotomia que seria desprezada por Gentille tanto no título, História da pesquisa e da arte histórica (Geschichte der historischen Forschung und Kunst seit der Wiederberstellung der litterarischen Cultur in Europa 1812/13), como nos elementos textuais do seu trabalho, onde “pesquisa” designava matéria metahistórica e “arte” representava as coisas necessárias à escrita histórica de material substantivo (Wachler, 1813, p.vii, p.834-936).

Da nossa parte, percebemos o valor do par (investigação / apresentação) e da necessidade da comparação quando nos deparamos com a esparsa (embora crescente) referenciação de títulos de Lógica (o Órganon de Aristóteles e o Novo órganon de Bacon), autores de Lógica (I. Kant e W. Hegel) e, de modo mais significativo, com os apelos que os escritores de propedêutica histórica faziam aos termos “lógico” e “logicamente” para justificar os usos de procedimentos analíticos e sintéticos, por exemplo.

Vamos aprofundar essa comparação, inventariando fins e temas de manuais de Lógica e examinando o lugar do “método” nesses instrumentos propedêuticos.

Em seguida, vamos buscar os significados de “método” nos textos de Lógica e demonstrar algumas apropriações de Lógica nos manuais de Teoria e Método da Ciência Histórica ou para a Ciência Histórica, entre os séculos XVIII e XIX, nos ambientes de produção intelectual situados nos países que hoje conhecemos como da Itália, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha.


1.  Fins e temas

A primeira analogia entre os domínios da Lógica e as concepções de methodus dos nossos escritores pode ser feita em termos de fins e temas para cada empreendimento.

No que se refere aos fins, os textos de Lógica2 poderiam ser classificados, tipicamente, como auxílios formais do conhecer – e é o que fizemos aqui (SILVA, 1813, p.446. v.1). Ao fundo de cada conhecimento professado estavam posições (céticas, dogmáticas ou críticas) sobre a possibilidade de apreender ou representar os objetos (as coisas ou a realidade), sobre lugar onde a realidade poderia ser encontrada, percebida e concebida (sentidos externos, imaginação e entendimento) (KANT, 2013, p.612-614) e, ainda, sobre a moral que governaria os fins e os meios prescritos pelos domínios da Lógica.

Na Introdução à doutrina da razão e no Exercício da doutrina da razão (1691), ambos escritos pelo professor de Direito da Universidade de Halle, Christian Thomasius (1655-1728), por exemplo, tal domínio tinha por objeto as regras para a descoberta e a comunicação das verdades racionais e das verdades históricas, cuja aquisição era uma obrigação de todo “ser decaído” (em versão agostiniana).

Inferiores (embora não opostas) à “verdade revelada” dos livros sagrados, as verdades do mundo deveriam ser buscadas, inicialmente, com o auxílio de um professor e, depois, sob os esforços dos poderes mentais de cada um, como forma de aperfeiçoar “diariamente” a sua compreensão sobre o mundo. (Thomasens, 1719, p. 5).

Contingências desse e de outros tipos (sobretudo, de compreensões mundanas) foram as principais razões para a variação dos fins, entre as primeiras iniciativas modernas de reforma do Órganon de Aristóteles, a exemplo da Lógica de Petrus Ramus (Ramee), e as Lógicas concomitantes à publicação dos textos propedêuticos de Droysen e Langlois e Seignobos, como aquela Lógica empiricista produzida por S. Mill (1843) e também aquela outra, opositora racionalista, escrita por W. Wundt (1883).

Assim, os textos de Lógica foram construídos como instrumentos viabilizadores da declaração da verdade ou da falsidade (Ramee), da certeza demonstrada e da natureza interpretada (Bacon), da verdade distinguida e bem julgada (Descartes) e do juízo verdadeiro e exato (Arnauld e Nicole).

Também foram os seus fins a verdade conhecida e racionalmente justificada (Balmes), o conhecimento certo / aprendido e o conhecimento provável / recitado (Meier) e as regras do julgamento ou o conhecimento avaliado ou retificado (Kant).

As variações, como vemos, além das clássicas divergências em termos de Moral, concepções de origem do conhecimento e de utilidade da Lógica, estavam, sobretudo, no número de coisas da Lógica, como nos casos da simples disputa ou raciocínio (Ramee) e da aprendizagem e da recitação (Meier).

As variações estavam também nos limites do alcance das suas normas, traduzíveis, por exemplo, nos graus de certeza de Bacon e nas regras necessárias (inatas) ou contingentes (dependentes dos sentidos externos) de Kant.

No fundo, excetuadas as situações nas quais os lógicos ocuparam todo o seu texto na definição de verdade (Hegel) ou se afastaram da função utilitária imediata demandada pela docência – a exemplo do ensinar a raciocinar por silogismos (Kant) –, as respostas sobre as finalidades da Lógica convergiram, dominantemente, para as generalizadas expressões de identificar as regras do conhecer e identificar as regras de comunicar.

Essa mesma estrutura predominante nas Lógicas foi empregada pelos escritores de textos de TMH, expressas, por exemplo, sob as díades conhecer e representar (Mortet), investigar e expor (Bauer e Ballesteros) e descobrir e sintetizar (Firth).

O vigor dessas estruturas em alguns escritos e a sua instabilidade em outros tantos, no século XIX, em países europeus, guardam certamente alguma relação com as mudanças no ensino de Lógica, efetivadas no século XVII.

Naquela época, o Organon de Aristóteles permanecia modelo escolástico (combinado ou contraditado com proposições extraídas de Platão ou dos filósofos Pré-Socráticos).

Contudo, da insatisfação com os seus limites emergiram alternativas que refletiam a arquitetônica dos programas de ensino em colégios de Artes ou em faculdades, reformados por seus respectivos catedráticos.

O aprendizado clássico (aristotélico) do instrumento necessário ao conhecimento das coisas prescrevia, então, as macro operações de conhecer e demonstrar: conhecer a estrutura de palavras, as proposições e as formas gerais de expressão (verdadeiro, provável ou falso) e demonstrar a verdade (analítica), a probabilidade (dialética) ou falsidade (sofística) das proposições.3

Por uma série de razões reiteradamente narradas nas histórias da Lógica,4 essa estrutura do instrumento do conhecer aristotélico foi alterada entre os séculos XVI e XVIII.

Naquele tempo, a operação de descobrir (inventar ou investigar) ganhou maior importância e o comunicar (expor ou compor) ganhou certa autonomia ou recebeu novas metas provenientes dos domínios da Retórica e da Poética.

A leitura de obras produzidas nesse período (ver quadro 1) nos possibilitou a clara percepção de que os escritores oscilaram entre a ênfase na operação de comunicar, a ênfase na operação de descobrir ou o equilíbrio entre a demonstração e a investigação, explicitada nas tarefas escolares de aprender para si e aprender para ensinar aos outros.

Um dos exemplos mais citados dessas mudanças foi a experiência de Giacomo Zabarella (1533- 1589), descrita no livro Opera logica [1597].

Condicionado pelas demandas dos alunos da Faculdade de Medicina, esse aristotélico ortodoxo e professor de Filosofia Natural da Universidade de Pádua reconheceu a existência de dois métodos relacionados às finalidades do conhecer e do aprender (ASHWORTH, 2008, p.615-616). Ao primeiro nomeava “methodus” (método “resolutivo” ou de conhecimento) e ao segundo “ordo ou ordines” (método “compositivo” ou de demonstração).

Para os fins atribuídos à Lógica no seu cotidiano de professor, entretanto, Zabarella priorizou as operações da “demonstração”, valorizando esse domínio como ferramenta para a melhoria da aprendizagem. (MIKKELI, 1992, p.81-82, p.86-87).

Outra mudança importante, efetuada na Lógica por Zabarela, foi a separação entre “Historica” e “ars historica” (MIKKELI, 1992, p.75-76), base para as diferenciações de “história” (evento, representação do evento e reflexão sobre o evento a partir das representações escritas), explicitadas pelo lexicógrafo Benjamin Herderich (1645-1748), em 1709. (Pandel, 1990, p. 130).

No seu Guia para as ciências históricas mais nobres (1709),5 ele empregou a palavra “método” apenas uma vez, atribuindo-lhe o significado de modo compacto para apresentação de um conjunto de “ciências auxiliares”. (HEDERICHS, 1711, p. viii-ix).

Mediado por Hederich, Zabarela também serviu à invenção de conceitos e à estruturação de domínios típicos da “Historiografia” (tomada como Teoria da História) e da “Historiomathia”, entendida como responsável pelas regras de aprender História (autodidática) e regras para ensinar História (didática).

Foi esse o esquema que Johann Christoph Gatterer (1727-1799) criou na Universidade de Göttingen (Pandel (1990, p.130-131, p.135; GEIGER, 1908, p.42, p.45), no último terço do século XVIII, interpretado como ponto zero da Teoria da História ou do método histórico por uns e, também, anacronicamente, como iniciativa de institucionalização da História na Universidade sob modelo interdisciplinar.

Foi também esse esquema dicotômico de significar methodus – conjunto de regras para escrever e conjunto de regras para ensinar – que Moeller (filho) recuperou como modelo formativo para os pós-graduandos em História e/ou futuros professores de História na Bélgica, no último quartel do século XIX. E ele fez isso mesmo sabendo que o seu responsável (Moeller-pai) havia escrito a proposta na primeira metade do século XIX, inspirando-se na experiência como aluno de universidades alemãs, onde a orientação de propostas semelhantes a de Gatterer (“historiografia” / “historiomathia”) era bastante comum.

A Lógica aristotélica também foi modificada com a agregação de operações do domínio da Retórica escolástica.

A inventio e o iudicium, segundo os desejos do francês Pierre Ramee (1515-1572), deveriam constar como elemento da Dialética (RAMEE, 1555, p.121). Diferentemente de Zabarella, que queria aprofundar o conhecimento sobre a Filosofia Natural, já abordada no texto de Aristóteles, nosso já conhecido Ramee era um professor de Eloquência e Filosofia, interessado em facilitar a aprendizagem e demonstrar a utilidade dos estudos de humanidades prescritos pela Universidade de Paris.

Seu propósito não era tanto a descoberta de novos conhecimentos e sim a sistematização e a organização dos argumentos conhecidos, ou seja, a melhoria do currículo, em termos de estratégias de ensino e de aprendizagem. A Lógica, então marcada pelas operações de análise e síntese, deveria ser útil aos alunos em todas as “artes” (História e Literatura, por exemplo).

Esse interesse o fez negar a diferença entre o “methodus” (com o significado de descoberta) e método como “ordo” (com o significado de ensino) e defender o emprego dos dois conjuntos de operações para uma mesma tarefa, no seu caso, a leitura dos antigos: decompor um texto em seus elementos lógicos e compor um texto seguindo os procedimentos adotados para a análise textual que se findava. (ERLAND, 2016).

Essa tentativa de unificação dos métodos inventada por Ramee foi o que possibilitou, em parte (VASOLI, 1996, p.8), a construção de uma das primeiras e mais controversas ideias de método histórico do século XVI: Methodus ad facilem historiarum cognitionem (1566).

Evidentemente, o seu responsável, o jurista Jean Bodin (1530-1596), não se empenhava em tornar científico um domínio chamado História. Seus interesses estavam bem longe dos debates sobre teoria do conhecimento histórico do final do século XIX.

Apoiando-se nas ideias de método de Ramee, os escritos de História examinados por Bodin foram transformados em instrumento para sistematizar corpos legais dispersos no tempo e no espaço e viabilizar a invenção e uma espécie de Direito Universal.

O método que lhe facilitaria a tarefa, a “aplicação da análise à leitura das histórias”, consistia na classificação dos gêneros de histórias, de historiadores e, adiante, a comparação de conteúdos substantivos como as formas de Constituição e de governo em várias partes do mundo. (BARROS, 2012, p.172, p.180, p.186- 187).

Bodin foi citado como exemplo positivo e negativo por quase todos os historiadores da passagem do século XIX ao XX que historiaram o “método”, o “método histórico” ou a “crítica histórica”.

Até mesmo o experiente escritor Bernheim, que cultivava a ciência Histórica como investigação e representação, atribuiu valores exagerados (BERNHEIM, 1888, p. 128) àquela invenção bodiniana de “método histórico”, centrado em práticas de classificar e de ler histórias.

Dois exemplos bem mais conhecidos de iniciativas modificadoras da estrutura das Lógicas de base aristotélica, deflagradas pela diferenciação dos objetivos perseguidos por seus cultores, foram o Novo organon (1620), de Bacon, e o Discurso do método (1637), de Descartes.

Ambos compreenderam a Lógica, respectivamente, como operações de “invenção” de “novas verdades” e operações para o “aperfeiçoamento do espírito”. Bacon quis “inventar” ou descobrir uma nova arte (as Ciências Naturais) e Descartes prontificou-se a aprender a usar melhor a sua capacidade de julgamento. (ROUX, 2012, p. 11-12, p. 15).

Os dois punham ênfase na investigação (descoberta) de novas verdades e reclamavam da insuficiência dos instrumentos disponibilizados pela escolástica: “nós rejeitamos (declarava Bacon) a prova por silogismos [método de indução] porque ela opera em confusão [de palavras e imaginação] e permite que a natureza escape de nossas mãos. [O silogismo está] bastante divorciado da prática e é completamente irrelevante para a parte ativa das ciências.” (BACON, 2014, p. 19).

Descartes (1989, p. 43) fazia crítica idêntica ao afirmar que a Lógica baseada em silogismos servia muito “mais para explicar a outrem as coisas que já se sabia”. Além disso, haveria nos silogismos bons preceitos, mas também preceitos “nocivos e supérfluos”, sendo quase tão difícil separá-los quanto tirar uma “Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado.”

Quando comparamos essas concepções, fins e temas de Lógica dos filósofos e as concepções fins e temas de método dos escritores de propedêutica histórica, percebemos com facilidade que a Lógica de Descartes (as condições do conhecer e as quatro regras fundamentais) foi consumida por Tardif e o princípio básico do raciocinar cartesiano – a dúvida metódica – atravessou as operações de interpretação de Seignobos.

Percebemos ainda a dedicação de Droysen à construção de um Órganon – uma Lógica – para a Ciência Histórica, com referências aos idola baconianos que depurariam a imagem construída pelo historiador, resultante da relação entre o que ele percebia nos restos do acontecido e o que ele desejava que pudesse acontecer no seu entorno.

Por fim, reiteramos, é fácil detectar o desprezo pelo silogismo aristotélico, não apenas como instrumento do conhecer em Ciências Naturais, mas também na História filosófica (ou na Filosofia histórica). Essa prática foi manifestada por Collingwood na construção da sua Lógica da História. Com esses casos, chegamos ao terreno dos métodos nas Lógicas e nas Ciências Históricas.


2.  Significações de método

Na Lógica de Aristóteles (2010, p. 347-350), o silogismo estava situado na Dialética (também chamada de Tópica). Era um instrumento para raciocinar que servia à invenção (investigação) e também demonstração (sustentação do argumento).

Aristóteles já grafava “métodos”, mas Ramee (1555, p. 3), como vimos, acusou um erro do estagirita: a distinção entre os caminhos para a demonstração da verdade (Analíticos) e os caminhos para a demonstração da opinião (Dialética). Para Ramee (1555, p. 119-120), contudo, haveria apenas um método, realizado no dispor as coisas no discurso (sintaxe). Método, na versão de 1555, significava “disciplina’ [ordem] e “disputa” a serviço do julgamento.

 

Quadro 1 – Lugares do método na arquitetônica dos textos de Lógica (Século XVI – Século XIX)
Autor
Ano
Estrutura
Aristóteles
335/323
Categorias / Interpretação / Analíticos / Dialética / Sofística
Ramee
1555
Invenção / Julgamento
Zabarella
1578
Lógica / Sylogismo / Método / Conversações, demonstrações em
definições…
Bacon
1620
Divisão das ciências / Novo órganon / Fenômenos do universo…
Descartes
1637
Discurso do método / Ótica-Meteorologia-Geometria
Port-Royal
1662
Concepção / Julgamento / Raciocínio / Método
Wolff
1712
Discurso preliminar / Teorética / Prática
Berkeley
1710
Princípios do conhecimento / [A segunda parte é desconhecida]
Meier
1752
Conhecimento / Aprender / Ensinar / [Características] do estudioso
Kant
1800
Analítica ou Doutrina Geral dos elementos / Dialética ou Doutrina
geral do método
Hegel
1812/13
Doutrina do Ser / Doutrina da Essência
Mill
1843
Nomes e proposições / Raciocínio geral / Indução / Lógica das
Ciências Morais
Balmes
1846
Faculdades auxiliares / Faculdade principal – entendimento / Método
Wundt
1880/83
DG do Método / Matemática / C. do Espírito / C. Históricas / C. de
Leis / Filosofia
Produzido pelo autor a partir de: Ramee (1555), Zabarella (1758), Bacon (1620), Descartes (1637), Port-Royal (1662), Wolff (1712), Berkeley (1710, Meier (1752), Kant (1800), Hegel (1812), Mill (1843), Balmes (1846) e Wundt (1880). Obs.: (DG) – Doutrina Geral.

Na estrutura do discurso de Bacon (1909, p.62, p.78, p.235), o instrumento de descoberta das ciências ocupava a parte central (quadro 1, linha 5). Seu método reunia os movimentos de (1) inferir os axiomas e (2) fazer novas experiências a partir dos axiomas já formados, designados como indução-experimentação e dedução-experimentação.

Já os movimentos sugeridos por Descartes (1637, p. 20-23) seguiam quatro regras: (1) evidência-intuição, (2) análise, (3) dedução e (4) enumeração. O Método era a primeira parte da publicação. A segunda demonstrava a serventia do instrumento para o cálculo e as respectivas descobertas no campo da Ótica. Observando a estrutura do Discurso de Descartes, percebemos que o seu “método” praticamente assumiu (ROUX, 2012, p. 6-7) as antigas funções da “Lógica”.

O mesmo não podemos dizer de Bacon que isolou as operações de método em uma parte da obra (com majoritário significado de ensino) e preferiu, dominantemente, os termos “via”, “ratio” e “organum” para referir-se aos caminhos da descoberta e avaliação do conhecimento (MENNA, 2014, p.12n).

Foi com esse tipo de informação e procedendo por analogia inversa no tempo (passado / presente) que conseguimos minimizar o nosso estranhamento em relação às Teorias de Droysen e de Seignobos, ou seja, a legítima possibilidade de a palavra e as coisas do “método” situarem-se como parte de uma Teoria (o Esquema de Droysen, versão 1882) ou serem transformadas, praticamente, em toda a Teoria da História (o “ensaio sobre o método”, de Langlois e Seignobos, e a primeira versão do Esquema de Droysen – 1857/8).

Quadro 2 – Métodos de análise e de síntese na Lógica Port-Royal (1662)
Análise
Síntese
Fins da Lógica
Descobrir a verdade
Provar a verdade aos outros
Designações de Método
Método de resolução
 
Método de invenção
Método de composição
 
Método de doutrina
Elaborado pelo autor a partir de Arnauld e Nicole (1668, p.391-392).

Na Lógica de Port-Royal (1662) – uma expressão exemplar da Lógica cartesiana (quadro 2) –, os jansenistas radicados em Paris, Antoine Arnauld (1612-1694) e Pierre Nicole (1625-1695), apresentavam apenas duas possibilidades de método, destinados, respectivamente, à resolução de problemas (problemas de palavras e de coisas) e à demonstração dos seus resultados.

Tal prescrição, situada na última parte do escrito jansenista, nos deu uma nítida ideia da profusão de termos e de significados para método (caminho para o descobrir / provar ou caminho analítico / sintético) que seriam empregados adiante em outros domínios e gêneros (quadro 2) e também no manual de Tardif (método de ensinar e método de investigar) que, por sua vez, se orgulhava de empregar a Lógica e a erudição francesas.

Uma dessas distinções (método como investigação e método como exposição) foi mantida na Arte de cultivar a razão (1712), texto seminal de Lógica em língua alemã, de C. Wolff (1735, p.46).

Wolff declarou que o conjunto de regras destinadas ao raciocínio e empregadas na Filosofia era o método matemático, ou seja, aquele que prescrevia o uso de sujeitos e predicados precisos, ordenados e admitidos como verdadeiros.

Wolff (1735, p.1, p.166-168) também referiu-se às verdades históricas como não demonstráveis e sim acreditáveis. Se esse tipo de conhecimento não possuía fundamentos incontestáveis (definições, axiomas e experiências claras), estabelecidos de modo irrefutável (via silogismos), “História” não seria, evidentemente, uma “ciência”, ele afirmou.

Esse raciocínio (entendido por nós a partir das premissas de Wolff) pode ter sido o problema que mobilizou os esforços de Johann Martin Chladenius (1710-1759) a construir uma Lógica para a História (História qualificada como Geschichtswissenschaft e não ars historica) a qual designou de Ciência Histórica geral (1752).

Era, então, o mesmo Chladenius abonado por Langlois e Seignobos no seu “ensaio sobre o método”. Contudo, apesar de oferecer caminhos para a aquisição da “certeza” e da “probabilidade” históricas, do “aprender uma História” e da “arte de escrever História” (temas, respectivamente, relativos à analítica, dialética, análise e composição), Chladenius (2013, p.231, p.257, p. 282, p. 292) não usou “método” ou “metodologia” (seja em latim, seja em alemão). Preferiu “regra” ou “regras gerais” para codificar o processo de produção do conhecimento histórico.6

Da segunda metade do século XVII ao início do século XIX, as Lógicas permaneceram como modelos de estrutura para os discursos sobre regramento da pesquisa e da exposição históricas e base para justificação dos métodos e de partes do método de escritos qualificados como “de História.” (CHLADENIUS, 1752, p. 21).

As mesmas dicotomias que acompanhamos no início desse texto seriam agora flagradas nos manuais enciclopédicos que circulavam nos Estados alemães, ganhando a estrutura de três ou quatro elementos e ressignificando o termo “metodologia histórica”.

No Esquema de ciências históricas auxiliares (1802), J. E. Fabri (1808, p.440-443) empregava esse termo7 para designar as coisas da “heurística”, “crítica”, “técnica” e “sofística” e constituir um domínio que servia à Cronologia, Genealogia, Diplomática, Heráldica, Numismática e à Geografia.

Era metodologia prescritora de princípios e regras para a “produção”, “composição” e “comunicação” históricas (regras para a Historik ou ars historica) e regras para o conhecimento das obras e dos conteúdos e os seus respectivos usos na vida prática (Historiografia).

Vemos aí uma estrutura similar (embora anterior) ao quadripartidismo de Droysen e de Bernheim, fundado em elementos da Lógica aristotélica: descoberta (heurística e crítica) / demonstração (concepção e representação).

Na Enciclopédia de ciências históricas auxiliares (1808) de J. G. Fesmaier a situação se inverteu: “método histórico” tornou-se elemento da “Crítica Histórica”, uma das ciências auxiliares históricas.

Tal método compreendia princípios para a apresentação (acadêmica e pragmática) (FESMAIER, 1802, p.202-293, p.308-309), cujas formas eram derivadas das regras da Lógica.

Para Carl Traugott Gottlob Schönemann (1765-1802), “metodologia abarcava as operações dos “estudos históricos” e do “ensino” histórico: preparação do material (busca e crítica de fontes) e tratamento do material (seleção, concatenação e representação) (SCHÖNEMANN, 1799, p.12) do mesmo modo que as díades privilegiadas pelos citados Moeller e Tardif.

Durante o século XIX, dada a sofisticação, por exemplo, nos escritos já canônicos de Kant e de Hegel, a apropriação das Lógicas se deu de modo mitigado (mesmo em termos de “método” – a palavra e a coisa atribuída pelos filósofos apropriados).

Na versão mais elaborada da lógica transcendental, inserta na Crítica da razão pura (1781/87),8 Kant (2013, p.96-97) dissertou sobre as regras do conhecer conceitual, isto é, sobre as leis que governavam o entendimento ou faculdade de pensar, mas distinguiu a Lógica do “uso universal do entendimento” (“Lógica elementar”) e a Lógica do “pensar corretamente sobre um certo tipo de objetos” (“órganon”).

Resultante da sua concepção fenomenológica (da separação entre o sujeito conhecedor e um objeto com hipotética existência em si mesma), a Lógica Geral Pura foi reservada ao estudo das formas do pensamento intuitivo ou conceitual, classicamente conhecidos como os imperativos categóricos tempo e espaço.

Sob a designação de “Lógica Transcendental”, o escrito de Kant (2013, p.40) determinava, desse modo, “a origem, o alcance e a validade objetiva” dos conhecimentos a priori (independentes dos objetos experimentados).

Foi justamente essa parte da Lógica kantiana (o entendimento do tempo como intuição pura e mais abrangente) que Droysen empregou para fundamentar parte da sua versão de Ciência Histórica. Ele caracterizou o domínio como modo de ver as coisas em sucessão (diferenciando-o da Geografia que, por sua vez, seria o modo de ver as coisas em simultaneidade). (DROYSEN [1882] 1977, p. 421; KANT, 2013, p. 71, p. 79-80).

Em polo oposto, foi justamente essa a parte da lógica de Kant que Xenopol reprovou em sua Teoria da História. Ele preferiu a concepção de tempo e espaço como coisas exteriores ao sujeito do conhecimento, apoiando-se na Lógica do inconsciente de Eduard von Hartmann (1842-1906).

Quanto à Lógica particular, que pensava objetos específicos constituintes de ciências particulares, ela não foi desenvolvida por Kant e se algo fizesse de semelhante, estaria, provavelmente, direcionado às Ciências Naturais.

Quem levou adiante a possibilidade de uma lógica particular aplicada à História foi Bernheim. Ele a desenvolveu sob a designação de “metodologia da História” (1889). Tratava-se de um novo domínio histórico que ofereceria os princípios e procedimentos práticos constituintes dos métodos empregados na pesquisa histórica, dentro dos mesmos critérios referidos e abonados por Kant.9

Mais à frente, a sofisticação de Kant, em termos da relação sujeito-objeto, foi ampliada por Hegel (2015, posição 697) que estabeleceu a integridade matéria-conceito (ou ser e vir-a-ser).

Hegel também tratava das leis do pensamento, mas admitia ser inapropriado abstrair a Lógica de todo “conteúdo” (o pensado): “uma vez que o pensar e as regras do pensar devem ser seu objeto, ela já possui imediatamente seu conteúdo peculiar.” Essas leis e regras do pensamento (forma e conteúdo da Lógica) constituíam para Hegel as coisas do “método” ou do “método científico”.10

Tais regras foram referidas intensamente na primeira parte do seu texto (doutrina do Ser). Contudo, foi o conjunto das operações distribuídas ao longo da sua Lógica (e experimentadas na constituição do Ser e da Essência) que ganharam algum espaço nos manuais de TMH produzidos na passagem do século XIX para o século XX.

Essa ideia hegeliana de que a realidade é pensamento (e vice-versa) e de que o pensado se configura nos movimentos de afirmação, negação e síntese (ou “ser”, “nada” e “tornar-se”) foi designada como “método dialético” e serviu de molde ao próprio Hegel para a invenção de uma História da Humanidade, provocando reações positivas e negativas por parte de escritores de TMH.

Em relação à forma dessa História (o método dialético), encontramos aprovações no texto de Collingwood, adversário do método experimental e de propostas realistas ingênuas do conhecimento.

Por outro lado, encontramos reprovação do método dialético no texto de Villari que defendia o “método experimental” e/ou o “método positivista” como freio à desreferencialização da realidade na representação disseminada do passado. As negações em termos de conteúdo, por seu turno, foram esboçadas na TMH de Labriola (embora, nesse ponto, já estejamos avançando muito mais para o campo da especulação metafísica).


Considerações finais

Nas histórias do método histórico ou nas histórias de como a História veio a se tornar “ciência”, é comum reivindicar a contribuição de um ou outro domínio de diferentes campos do conhecimento.

A Filosofia, em seus ramos retórico e dialético, mãe, madrasta ou concorrente da História, é o sujeito preferencial de comparações quando o século XIX ajuda a constituir o objeto historiado. A Lógica, ao contrário, tem merecido pouco atenção.

Com as breves informações sobre os conhecimentos e o ensino de Lógica e os conhecimentos e o ensino de História, via o exame de manuais propedêuticos em longa duração, esperamos que uma conjectura muito previsível tenha sido razoavelmente demonstrada e testada a respeito do tema: a ideia de que a arquitetônica dos mais conhecidos discursos sobre métodos históricos, produzidos na passagem do século XIX para o século XX, copia a arquitetônica dos manuais que ensinavam a arte de ordenar os raciocínios ou a Lógica, produzidos, principalmente, entre os séculos XVI e XIX.

A reflexividade de domínios dos Estudos Históricos em domínio da Lógica fica mais clara quando comparamos a segmentação (em quantidade e substância) flagrada em textos de Lógica e a segmentação operada pelo escritor de História que dele se apropriava, principalmente, ao tratar da divisão do methodus (histórico) em operações bi, tri ou quadripartite.

Entre meados do século XIX e meados do século XX, percebamos ainda alguns professores de Filosofia, produtores de manuais, impondo lógicas para a(s) ciência(s) da História – John Stuart Mill (1806-1873), Heinrich John Rickert (1863-1936), Wilhelm Maximilian Wundt (1832- 1920), Francis Herbert Bradley (1843-1924), William Brindley Joseph (1867-1943) e Henri Berr (1863-1954) – ou, de modo raro, aceitando a reflexão sobre objetos, fins e métodos produzidas por autodenominados historiadores como produtos dignos de figurar em compêndios gerais de Lógica – Susan Stebbing (1855-1943).

No mesmo período, contudo, assistimos à proliferação de manuais de TMH, com idêntico poder dos impressos de Lógica, legitimados que estavam com a instituição da História na condição de licenciatura em muitos países.

Nesse novo tempo, as escritas já praticavam verdadeiros programas de Lógica (busca da verdade, métodos destinados à investigação e à exposição), mas sem a preocupação de citar esse ou aquele filósofo ou sistema.

Além disso, incorporavam como históricas as questões relativas à natureza da verdade e às respectivas regras de validação, construídas sob ideais de imparcialidade e de objetividade.

A situação, agora, se invertia, estando as Lógicas dispersas no interior dos manuais de Teoria da História ou de Introdução aos Estudos Históricos.

Notas

1 A literatura sobre a ars historica é extensa. Consultamos apenas os textos da coletânea de Giana Pomata e Nancy Siraisi (2005) e os trabalhos monográficos de Antony Grafton (2005, 2007).

2 Para o mapeamento dos textos mais influentes na construção dos manuais de Lógica, consultamos sínteses de “História da Lógica”(FRANK, 1838; BLAKEY, 1851; NEIL, 1859; CROCE, 1917; BELNA, 2014), os volumes do Handbook of the History of Logic (GABBAY; WOODS, 2004/2009) e artigos monográficos sobre autores e manuais.

3 Segue a descrição das partes da Lógica de Aristóteles: 1. “Categorias” – formas do pensamento; “Interpretação” – formas gerais de expressão do pensamento (verdadeiro, provável ou falso); “Analíticos” (demonstração) – formas de expressão da verdade; “Dialética” (ou “Tópica”) – formas da probabilidade; e “Sofística” – formas do erro. O método (ou a Lógica) é constituído pelas três formas de expressão: Analíticos (demonstração), Dialética (tópica) e Sofística. Categorias e Interpretação são partes propedêuticas.

4 Uma das mais significativas, para o nosso trabalho, foi contada recentemente por Sellberg Erland (2016), que explora as disputas pelas significações de “método” (adquirir ou exibir conhecimento), de “ordo” (ensinar ou exibir conhecimento) ou da maneira correta de proceder (do geral para o particular e vice-versa).

5 [Anleitungzudenfuernehmsten historischen Wissenschaften].

6 [Die allgemeinen Regeln der hiſtoriſchen Erkentniß].

7 [Historische Methodologie]

8 Nas notas de aulas ministradas, desde 1765 e publicadas em 1800, método é definido como a “maneira pela qual há de se conhecer completamente um certo objeto, ao conhecimento do qual ele deve ser aplicado” (p.37). Método tem como objeto as regras e como fim a “perfeição lógica do conhecimento”. (KANT [1800] 1992, p.158, p.160, p.163).

9 “A lógica do uso particular do entendimento contém as regras para pensar corretamente sobre um certo tipo de objetos. [Pode ser denominada] o organon desta ou daquela ciência [e] é apresentada nas escolas, muitas vezes, como propedêutica das ciências.” Kant (2012, p.97).

10 Também grafa “método do cálculo infinitesimal”, “método do cálculo diferencial”, “método matemático” (geométrico e analítico).

Referências

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Para citar este texto:

FREITAS, I. Lógicas e Métodos – Das Filosofias às Teorias da História. Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Critóvão, v. 16, n. 31, p. 98 – 116, 3 fev. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/logicas-e-metodos-das-filosofias-as-teorias-da-historia/>.

Os teóricos da História têm uma teoria da história? Reflexões sobre uma não-disciplina | Zoltán Boldizsár Simon

Zoltan Boldizsar Simon Imagem UCL Lógicas e Métodos
Zoltán Boldizsár Simon | Imagem: UCL

“Os teóricos da História têm uma Teoria da História?” Esse título é intrigante, paradoxal e, ao mesmo tempo, autoexplicável. Sua resposta é fornecida ensaisticamente por Zoltán Boldizsár Simon, historiador nascido na Hungria e atuante na Universidade de Bielefeld (Alemanha). O texto foi publicado, inicialmente, na revista História da Historiografia, no mesmo ano, tornado livro pela Editora Milfontes. Com as apresentações de Bruno César Nascimento, editor, e de Luisa Rauter Pereira, coordenadora da “Coleção Fronteiras da Teoria”, percebemos que as dimensões, o caráter sintético da escritura e o contexto de lançamento estão plenamente adequados. Nascimento e Pereira querem textos inéditos em língua portuguesa, manuseáveis em salas universitárias. Textos que mobilizem a reflexão acerca do valor de determinados domínios acadêmicos sobre si mesmos e como instrumentos de interpretação de desafios globais impostos ao tempo presente – a exemplo dos conflitos por identidade étnica e de gênero e as ameaças do aquecimento global.

Considerando a interrogação quase kamikaze, o ensaio foi excelente escolha para a abertura e lançamento da referida coleção. Entretanto, considerando a repercussão por escrito em mais de 200 revistas brasileiras de História e, até no Google Acadêmico, a resposta dos nacionais à provocação do professor húngaro praticamente inexiste, apesar dos 300 downloads do artigo na História da Historiografia. Ainda assim, o autor conseguiu a atenção de Arthur Ávila, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que mostrou desconforto com a definição simoniana de Teoria da história como aquilo “que hoje fazemos dela”: se Teoria da História é “o que dela fazemos’, continua Ávila, “qual seria o sentido em se chegar a uma definição universalmente válida dela? […] Finalmente, para nós, que estamos no Sul global, este gesto mesmo que importante e defensável, não repetiria aquela velha divisão do trabalho intelectual que coloca o Norte como produtor de teorias, seja sobre o que for, e o meridião do mundo como mero aplicador ou reprodutor de teorias […] ?” (p.9). Tradutor e apresentador do ensaio, Ávila, porém, faz uma ponderação. Afirma que a maior contribuição da obra estaria no próprio questionamento e não, necessariamente, nas respostas ao problema. Penso que o contrário pode também ser verdadeiro, se levarmos em conta o contexto de produção da obra e o que ela oferece, implicitamente, à formação dos graduandos em História no Brasil. Leia Mais

Passés singuliers. Le “je” dans l’écriture de l’histoire | Enzo Traverso

Enzo Traverso Imagem Quatro Cinco Um Lógicas e Métodos
Enzo Traverso | Imagem: Quatro Cinco Um

Enzo Traverso es un intelectual que no requiere de mayores presentaciones. Sus investigaciones cruzan temáticas como la memoria, el antisemitismo, los totalitarismos, el pensamiento marxista y el sentido de la historia en la sociedad contemporánea. En Passés singuliers, aborda la problemática concreta relacionada con el énfasis individual asumido en su narrativa sobre el pasado, hasta ahora, tradicionalmente elaborada en tercera persona.

Al respecto, el autor plantea en este libro un conjunto de ejemplos que muestran el giro presente en los escritos de un conjunto de autores en donde, la voz propia aparece para otorgar elocuencia a su experiencia del pasado, reconstruido a partir de su testimonio de los hechos, introduciéndonos en un debate de carácter epistemológico acerca del rol de las subjetividades en el relato histórico. Leia Mais

L’épistémologie historique: Histoire et méthodes | Jean-François Braunstein, Iván Moya Diez e Matteo Vagelli

Jean Francois Braunstein Foto Zoe Ducournau 2 Lógicas e Métodos
Jean-François Braunstein | Foto: Zoé Ducournau

L’épistémologie historique. Histoire et méthodes (Paris: Éditions de la Sorbonne, 2019), organizado por Jean-François Braunstein e seus ex-alunos Iván Moya Diez e Matteo Vagelli, reúne algumas das comunicações apresentadas nas edições de 2015 e 2016 das Journées d’épistémologie historique.

Lepistemologie historique Lógicas e MétodosMais ou menos no mesmo período, meu colega Marcos Camolezi e eu fizemos e publicamos, no segundo número da revista Intelligere, uma entrevista com Braunstein, então supervisor do nosso estágio de pesquisa na Université Paris 1. Num dos momentos mais interessantes da conversa, Marcos lembrou que, nas décadas finais do século XX, a Epistemologia Histórica “parecia uma ocupação de velhos, um assunto fora de moda” e, antecipando uma resposta vindicadora, questionou: “qual a situação da epistemologia histórica hoje?” (Almeida; Camolezi, 2015, p.159). Leia Mais

Le travail de l’histoire | Étienne Anheim

Em 2010, Gérard Noiriel, no verbete Métier/communauté, incitava-nos à reflexão sobre o conteúdo da prática do métier de historiador. Relendo Marc Bloch, ele nos reportava às tarefas cotidianas que englobam o “ser historiador” em um contexto contemporâneo. Com a passagem de alguns anos, encontro, particularmente, em Étienne Anheim, especialista da cultura erudita do final da Idade Média no Ocidente, um grande esforço para, sociológica e historicamente, pensar acerca da experiência do trabalho do historiador em toda a sua generalidade.

Assim, para esta pergunta que silenciosamente nos acompanha: “o que é ser historiador?”, Étienne Anheim, professor da École des hautes études en sciences sociales (EHESS), em Paris, figurando como observador participante, lança-nos uma resposta: ser historiador é ser pesquisador, professor, orientador, supervisor, avaliador, editor, administrador; e, considerando que a prática historiadora age sobre o si em sua forma de interpretar o mundo, o historiador deve estar preparado para intervir no debate público quando instigado ou convocado. É no trânsito por essas múltiplas tarefas, posições e disposições entrelaçadas que o livro está organizado. Leia Mais

Uma latente filosofia do tempo | Reinhart Koselleck

Com relativo atraso, as principais obras de Koselleck encontram-se traduzidas no Brasil. Crítica e crise (2009 [1959]), O futuro passado (2006a [1979]), Estratos do tempo (2014 [2000]) e Histórias de conceitos (2020 [2006]), publicados pela Editora Contraponto, reúnem os textos principais do autor, na diversidade de direções em que ele desenvolve suas ideias. O trabalho de tradução é quase sempre excelente, com uma linguagem clara, notas explicativas e didáticas, que esclarecem as dificuldades inerentes à tradução de textos que envolvem discussões históricas e etimológicas complexas, como é o caso em Koselleck. Crítica e crise, o primeiro livro da série, faria uma exceção ao grupo, pois consta com frases alteradas, abreviadas e fundidas com outras, o que exigiria uma revisão completa para deixar o texto mais fiel ao original. A parte boa é que se trata de uma exceção no conjunto.

Dado esse passo importante, é natural que agora se abra o caminho para textos menos conhecidos, avulsos ou presentes em coletâneas fora do campo dos livros principais do autor. Essa é a via seguida por Uma latente filosofia do tempo, publicado pela Editora Unesp, com organização de Hans Ulrich Gumbrecht e Thamara de Oliveira Rodrigues (que também assina um excelente prefácio) e tradução de Luiz Costa Lima. O livro é composto por quatro textos: “Estruturas de repetição na linguagem e na história”, “Sobre o sentido e o não sentido da história”, “Ficção e realidade histórica” e “Para que ainda investigação histórica?”, retirados de uma obra publicada postumamente, em 2010, pela Suhrkamp, com titulo Sobre o sentido e o não sentido da história, na qual estão reunidos trabalhos que abarcam 40 anos da produção de Koselleck, alguns deles inéditos. A seleção de Gumbrecht e Thamara Rodrigues é inteligente e apresenta-nos um Koselleck heterogêneo e heterodoxo, defensor de uma variedade de teses, esquemas, sugestões e observações com os quais sempre aprendemos muito. Leia Mais

El oficio del historiador: Reflexiones metodológicas en torno a las fuentes | Yobenj Chicangana-Bayona, María Cristina Pérez Pérez e Ana María Rodríguez Sierra

Yobenj Chicangana Bayona Lógicas e Métodos
Yobenj Chicangana-Bayona | Foto: Museo Colonial

El oficio del historiador Lógicas e MétodosEl oficio del historiador. Reflexiones metodológicas en torno a las fuentes es un volumen colectivo en donde se reúnen textos que abordan diferentes temáticas y periodos, convocados por la misma premisa: reflexionar sobre las implicaciones, potencialidades y limitaciones del uso de fuentes primarias de diverso tipo en la investigación histórica. Se trata de una obra de corte metodológico e historiográfi­co, que sin duda aportará a la discusión sobre la práctica de la disciplina histórica en Colombia, en la línea de otros trabajos aparecidos recientemente.[1]

En la introducción, las editoras Yobenj Chicangana-Bayona,[2] María Cristina Pérez Pérez [3] y Ana María Rodríguez Sierra [4] llaman la atención sobre la necesidad e importancia de reflexionar pausadamente en torno a la materia prima de nuestro trabajo: las fuentes, ya que muchas veces las presuponemos y naturalizamos sin cuestionarlas, así como a menudo sucede con nuestras decisiones metodológicas. De allí la relevancia de tener presentes los desafíos, las dificultades, los cuidados, las maneras de búsqueda, selección y organización que implica el trabajo documental en la investigación histórica. Su propuesta es, entonces, presentar una compilación de experiencias de investigación a partir de las cuales los autores desarrollan reflexiones derivadas de su trabajo empírico con diversos tipos de archivos y documentos. “Son once artículos en los que se reflexiona sobre la importancia de las fuentes para el oficio del historiador, por medio del análisis del potencial significativo de estas y su tratamiento metodológico en el estudio de casos particulares” (p. x). Leia Mais

Canguilhem e a gênese do possível. Estudo sobre a historização das ciências | Tiago Santos Almeida

ALMEIDA Tiago S Lógicas e Métodos
ALMEIDA T Canguilhem 2 Lógicas e MétodosMarlon Salomão e Tiago Santos Almeida. “VI Colóquio de História e Filosofia da Ciência: As ciências humanas”. Goiânia, 2019 | Foto: PPGH/UFG

Este libro es la reelaboración de la tesis doctoral defendida en la Universidad de Sao Paulo por Tiago Santos Almeida, profesor en la Facultad de Historia de la Universidad Federal de Goiâs, y sin duda una de los mejores conocedores actuales de la obra del filósofo, médico e historiador de las ciencias Georges Canguilhem. La monografía ha sido prologada Carvalho Mesquita Ayres, profesor de Medicina Preventiva en la Universidad de Sao Paulo, y esto no es una casualidad. A diferencia de lo acontecido en España, los estudios sobre Salud Colectiva y Medicina Preventiva fueron marcados decisivamente en Brasil, desde su despegue en la década de 1970, por algunos de los trabajos más representativos de la tradición francesa en historia de las ciencias, en particular textos como Lo normal y lo patológico de Canguilhem y El nacimiento de la clínica, de Michel Foucault.

El desafío del libro consiste en dilucidar, a través de distintas calas en la obra de Canguilhem, hasta qué punto existe un “estilo francés” a la hora de pensar la historicidad de las disciplinas científicas. En su indagación, el autor no recurre sólo a los volúmenes publicados por Canguilhem. Avalado por una prolongada estancia de investigación en el CAPHÈS (Centre d’Archives de Philosophie, Histoire et Èdition des Siences), donde frecuentó a algunos de los principales especialistas y discípulos del pesador francés (Limoges, Debru, Braunstein), utiliza entrevistas y artículos poco conocidos del filósofo de Castelnadaury, y lo más importante, un importante acopio de los manuscritos inéditos procedentes del Fond Canguilhem, sito en el mencionado centro. Leia Mais

Uma introdução à história da Historiografia brasileira 1870-1970 / Thiago Nicodemo, Pedro Santos e Mateus de Faria

NICODEMO Thiago Lima Lógicas e Métodos
Thiago Lima Nicodemo / Foto: Jornal da Unicamp /

NICODEMO T et al Uma introducao a historia da historiografia brasileira 1 Lógicas e MétodosO título é chamativo: Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). O texto oscila entre o inventário das concepções de historiador ideal e a transmutação do objeto “historiografia” ou “história da historiografia”, na duração de um século: de reflexão dispersa em necrológios e artigos de jornal à disciplina curricular da formação universitária em História.

Thiago Lima Nicodemo (Unicamp), Pedro Afonso Cristovão dos Santos (UNILA) e Mateus Henrique de Faria Pereira (UFOP), os autores, são jovens pesquisadores da área de Teoria e História da Historiografia. Tentaram se livrar da história da historiografia brasileira como inventário de homens e livros em ordem cronológica, mas enfrentaram dificuldades comuns entre os que, em grupo, querem conciliar pensamentos e práticas historiográficas díspares na exposição de um discurso sobre a matéria. Leia Mais

History in Times of Unprecedented Change: A Theory for the 21st Century | Zoltán Boldizsár Simon

Não são poucos os intérpretes que tendem a enxergar a assim chamada filosofia da história a partir de uma divisão entre aqueles que seriam, por um lado, os interesses dedutivo-especulativos desse campo e por outro, as suas preocupações analíticas. Se a primeira dessas linhas de interesse se debruça sobre os sentidos e propostas da história vista como um processo, a segunda trata dos fundamentos da história entendida enquanto um saber (Tucker 2009, 3-4; Doran 2013, 6-7; Paul 2015, 3-5). É mais ou menos consensual, de igual modo, que essa divisão entre especulação e análise acentuou-se a partir da segunda metade do século XX, com o esgotamento dos grandes modelos filosóficos que visavam dotar de sentido o processo histórico, analisando-o sob a otimista ótica moderna do decurso do tempo. Incapaz de especular sobre “a história em si” (fragmentada pelos traumas da primeira metade do século passado), a filosofia da história passou a se preocupar cada vez mais com os contornos do próprio conhecimento histórico1. Nas últimas cinco décadas, essa divisão não apenas se intensificou como a filosofia da história viu o seu escopo ser reduzido drasticamente em duas linhas gerais de interesse: a análise das experiências temporais e o estudo das narrativas. Se no primeiro caso predominaram teses sobre as limitações das formas modernas de trato com o tempo (como a famosa discussão a respeito do “presentismo”), no segundo, prevaleceram estudos preocupados em desnudar o caráter incontornável da linguagem na produção de conhecimento e nas formas de relação com o passado. Por maiores que sejam os esforços em apartar essas duas tendências, elas apontam para uma característica comum tanto à experiência quanto ao conhecimento histórico nesse início de século XXI: para o imobilismo engendrado pelas consequências presentistas e narrativistas derivadas da filosofia da história contemporânea. Leia Mais

O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica | José Carlos Reis

O lugar central da teoria-metodologia na cultura histórica, de José Carlos Reis, é uma reunião de artigos, resenhas, prefácios, aulas, conferências e entrevistas publicados por Reis em coletâneas e periódicos brasileiros ao longo de seu compromisso como professor e pesquisador no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Lançada pela Editora Autêntica, na seção História & Historiografia, em maio de 2019, justamente por ocasião de sua aposentadoria, a última obra de Reis pode ser definida como uma obra-memória de sua notável atuação acadêmica.

O sentido da obra-memória de Reis está na passagem entre dois modos de praticar história: partindo de um dado reflexivo e existencial, chega a fazer com que entendamos a história como conhecimento e necessidade quase vital. Um modo de pensar e de viver, podemos dizer assim. Como modo de pensar, isso significa que a história é teoria, é trabalho com os conceitos, é escolha de métodos e emprego de linguagens, para conseguir elaborar, mediante o exame das fontes, imagens que sejam representações do passado, representações do passado em vários níveis. Como modo de viver, isso implica buscar entre essas imagens da história, de representações do passado, de formas como esses passados se apresentam para nós, algo que nos ensine a viver. Em síntese: uma experiência. Experiência não diz respeito só a uma história prática, mas também teórica, como uma forma anterior de escolha das coordenadas fundamentais para nos ajudar na relação com o mundo. Mesclar esses dois modos de praticar história foi a tarefa a que José Carlos Reis se propôs em toda a sua vida profissional, como vemos nessa e em outras de suas obras, como História & Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade, verdade (FGV, 2003), História: a ciência dos homens no tempo (EDUEL, 2009), A história entre a filosofia e a ciência (Ática, 2006), História da consciência histórica ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche, Ricoeur (Autêntica, 2011), pois comum a todas elas é a reflexão, o pensamento, enfim, o aprofundamento de questões sobre o passado. Leia Mais

O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: MAYER, Milena Santos. Revista Expedições, Morrinhos, v. 11, jan./dez. 2020.

“Os textos aqui reunidos formam uma constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com pés calçados no presente, com olhos no passado ou como um projeto de história futura” (CEZAR, 2019, p.12). É assim que o historiador Temístocles Cezar apresenta o livro “O Tecelão dos Tempos “publicado no ano de 2019 pela Editora Intermeios. Publicados anteriormente em outros livros ou revistas acadêmicas, os escritos são frutos de análises, pesquisas e apresentações do historiador Durval Muniz Albuquerque Junior em conferências, aulas magnas ou seminários. O autor de “A Invenção do Nordeste e Outras Artes” (1999), “Nordestino: Uma Invenção do Falo – Uma História do Gênero Masculino” (2003) e “História: A Arte de Inventar o Passado” (2007), dentre outros, apresenta a nova publicação rebatendo críticas e comentando a repercussão que o livro de 2007, dedicado também à teoria, que causou entre os colegas da academia.

Segundo Durval, as críticas iniciaram pelo próprio título, uma vez que os termos arte e invenção sugerem um debate polêmico e recorrente no campo da história diante da busca por uma cientificidade. Além das questões teóricas, o autor foi avaliado em relação a forma em que o texto foi construído e apresentado. Por esse motivo, o historiador dedica a apresentação do novo livro para rebater as críticas, justificar e argumentar o uso do ensaio como gênero de escrita. Para ele é possível produzir conhecimento histórico preocupando-se também com a forma e com a estética da narrativa. No decorrer da leitura é possível perceber a intenção em reforçar o entendimento de que o trabalho do historiador é um trabalho de escrita e que, portanto, a forma dessa escrita é essencial e um desafio constante. “Sem a reflexão crítica sobre a arte da narrativa não há ciência possível na historiografia” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2019, p. 16). Leia Mais

O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019. 276 p. Resenha de: SOUZA, Vitória Diniz de. A História como tecido e o historiador como tecelão das temporalidades. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.508-514, jan./jun., 2020.

A historiografia está em constante transformação, por isso, certas tendências foram sendo esquecidas com o tempo e outras surgiram para formular novas maneiras de produzir história. O livro do historiador Durval Albuquerque Júnior, O Tecelão dos Tempos, nos convida a refletir sobre a escrita da história e a inventar novos usos e sentidos para o passado. Essa sua obra pode ser encarada como um manifesto para os historiadores/as repensarem a sua prática e a abandonarem certos convencionalismos que marcam a tradição historiográfica.

O “Prefácio” é escrito por Temístocles Cezar, que define o livro como uma “constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com os pés descalços no presente, com olhos no passado ou como projeto de uma história futura” (CEZAR, 2019, p. 12). Sendo essa uma boa descrição de como esses textos se entrelaçam e convidam seus leitores a mergulharem em polêmicas discussões sobre a história e o seu estatuto hoje. De fato, a escolha do estilo ensaístico na escrita desse livro é ousada, principalmente, pela liberdade que esse gênero possibilita para quem escreve. Estilo narrativo que foi preterido pela historiografia por muito tempo, em especial, no Brasil. Nesse caso, o ensaio é uma maneira interessante para se iniciar discussões, aprofundá-las, mas sem as amarras conclusivas que certos textos exigem, como os artigos.

Essa obra está dividida em três partes, a escrita da história, usos do passado e o ensino de história, que estão organizadas de maneira sistemática, a partir das temáticas discutidas nos ensaios, articulando-se em uma diversidade de discussões que se interligam em diferentes momentos. Causando uma sensação de fazerem parte de uma mesma narrativa, com início, meio e fim, mesmo que não tenham sido escritas em ordem cronológica, ou que não sejam lidas na ordem apresentada. Por outro lado, pela sua heterogeneidade, cada capítulo inicia uma discussão independente das outras e rica em si mesma. Na primeira parte, “A escrita da história”, inicia a discussão sobre o trabalho do historiador e o estatuto da história enquanto disciplina, problematizando sobre o lugar do arquivo e sobre a prática historiadora – da análise documental ao seu processo de escrita. Enquanto isso, em “Usos do passado”, propõe reflexões sobre passado, memória, patrimônio, comemorações, traumas e esquecimentos. Dessa maneira, possui um olhar criativo sobre esses conceitos tão caros a história, como também, conceitualiza-os, explicitando seus significados e usos, e propondo uma (re)apropriação deles. Na terceira parte do livro, “O ensino de história”, centraliza as discussões acerca da disciplina histórica e o ensino da história na Educação Básica. Demonstrando que além de um erudito e pesquisador, ele também é professor, defendendo a necessidade de um ensino de história que se reinvente dada a situação atual da educação escolar.

Dando início, no capítulo que dá nome ao livro, “O tecelão dos tempos: o historiador como artesão das temporalidades”, defende as razões para que o trabalho do profissional da história seja considerado como de um artesão, pois  […]a história nasce como este trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno, solitário, infindável que se faz sobre os restos, sobre os rastros, sobre os monumentos que nos legaram os homens que nos antecederam que, como esfinges, pedem deciframento, solicitam compreensão e sentido (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 30).

As metáforas enriquecem o texto de maneira que o leitor pode compreender a atividade do historiador a partir da comparação com outros ofícios. Mas também, oferece ao profissional uma reflexão sobre a sua prática, principalmente, sobre a sua escrita que, muitas vezes, se vê enrijecida por um texto acadêmico sem vivacidade. Em certo momento, o autor compara o trabalho do historiador com o de um cozinheiro do tempo “aquele que traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 32).

Em seguida, no capítulo “O passado, como falo?: o corpo sensível como um ausente na escrita da história”, ele faz uma defesa da colocação do corpo, do sensível, das dores, dos sofrimentos, dos afetos, dos sentimentos como lugares para a história. A partir dessa perspectiva, ele aponta para a necessidade de se discutir novas maneiras de expressar as sensibilidades na narrativa histórica, criando novas estratégias que possam expressar na própria pele do texto essa presença, ignorada e mutilada das narrativas acadêmicas. Um corpo que é erótico, que sente afetos, raiva, desejo, rompendo, dessa maneira, com o pudor que cerca a historiografia.

As sensibilidades é um dos temas mais recorrentes ao longo dos capítulos, sendo que em “A poética do arquivo: as múltiplas camadas semiológicas e temporais implicadas na prática da pesquisa histórica”, Durval Albuquerque Júnior critica os historiadores e sua técnica de análise, afirmando que na busca pela informação, o pesquisador pode até se emocionar, pode até ser profundamente afetado pelo contato com a materialidade, mas pouco o leva em conta na hora da sua análise. Essa repressão à dimensão artística da pesquisa histórica leva a dificuldade que os profissionais da história têm de perceber, de lidar, de incorporar, no momento da interpretação, os signos emitidos pela própria escrita do documento. Em suma, a natureza da linguagem é ignorada, seus efeitos e dimensões são apenas transformados em dados. Para o autor o “trabalho do historiador é semiológico, ou seja, constitui-se na decifração, leitura e atribuição de sentido para os signos que são emitidos por sua documentação” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 64). Sendo assim, é preciso enxergar no documento as camadas do tempo, suas marcas, sua historicidade, sua materialidade, significados e sentidos que perpassem não apenas o racional, mas também, o emocional, o artístico.

A questão da poética na escrita da história se destaca no capítulo “Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico”, no qual Durval Albuquerque Júnior une dois campos diferentes que causam polêmicas entre os historiadores, a ficção e a escrita da história. Inspirado em uma pesquisa do biógrafo Guilherme de Castilho sobre o poeta Antônio Nobre, ele cria um conto fictício no qual personifica os documentos como personagens da história. Instigando o leitor a estar curioso sobre o destino das cartas e dos postais que esse poeta enviou para o também escritor Alberto de Oliveira. O mais interessante é como consegue articular questões teóricas e metodológicas da pesquisa histórica em uma narrativa ficcional, provocando o leitor e sensibilizando-o a imaginar as fontes e sua trajetória. Assim, a subversão do gênero que ele propõe ao construir um texto de história por meio da ficção é uma das inovações mais interessantes desse livro.

A discussão sobre história e ficção é polêmica, tendo sido abordada por uma vasta produção historiográfica. Nesse contexto, diferentes perspectivas acerca do estatuto da história enquanto uma “verdade” entram em conflito. Como é o caso emblemático do historiador Carlo Ginzburg com a historiografia considerada “pós-moderna”. No capítulo “O caçador de bruxas: Carlo Ginzburg e a análise historiográfica como inquisição e suspeição do outro”, Durval Albuquerque Júnior critica o posicionamento de Carlo Ginzburg em relação as suas discordâncias no meio acadêmico. Visto que, Ginzburg é considerado um dos maiores “inimigos” da historiografia “pós-moderna”, entrando em conflito com nomes como os de Michel Foucault e Hayden White. Sendo que, o historiador italiano chegava a transmitir, em certos momentos, xingamentos e ofensas contra aqueles de quem discordava. Durval Albuquerque Júnior critica o seu posicionamento e manifesta as razões pelas quais Carlo Ginzburg utiliza de um procedimento retórico estratégico do discurso inquisitorial e judiciário: a submissão da variedade de formas de pensar a um só conceito, em um só esquema explicativo, que simplifica, caricaturiza e estereotipa aquelas que são consideradas diferentes. Procedimento que o próprio Ginzburg criticou em seus trabalhos, como em Andarilhos do Bem (1988), O Queijo e os Vermes (1987), entre outros. É preciso reconhecer que a dita “historiografia pós-moderna” não se qualifica enquanto uma corrente de pensamento homogênea e coerente, na verdade, ela se apresenta mais como uma diversidade de perspectivas, métodos e teorias divergentes entre si que se aproximam menos pela uniformidade que pelo rompimento com a tradição moderna que marca a história. Para Durval Albuquerque Júnior, Ginzburg utilizava essa estratégia para reduzir em inimigo todos aqueles de quem discordava.

A seguir, as reflexões acerca do passado e da memória e de seus usos no presente ganham forma na segunda parte do livro. Como é o caso do oitavo capítulo, “As sombras brancas: trauma, esquecimento e usos do passado”, no qual o autor faz referência a literatura luso-africana e algumas reflexões proporcionadas pelas obras dos autores José Saramago, Eduardo Agualusa e José Gil em relação a memória, identidade e esquecimento. Com efeito, Durval Albuquerque Júnior discute sobre a questão do trauma na história portuguesa, que apesar de todo o processo de ser uma cidade histórica que constantemente exibe os símbolos e marcas do passado, ao mesmo tempo, ignora ou esquece dos traumas vivenciados, seja a experiência salazariana, como também, o processo de colonização exploratória nos países africanos, asiáticos e americano, como é o caso do Brasil. Para o autor, é função dos historiadores expor o sangue derramado e o “cheiro de carne calcinada” e clamar por justiça. Sendo assim, a história deve ser o trabalho com o trauma para que esse deixe de alimentar a paralisia e o branco psíquico e histórico, em referência a cegueira branca do livro Ensaio sobre a Cegueira (1995), de José Saramago.

Uma discussão semelhante se segue no nono capítulo, “A necessária presença do outro, mas qual outro?: reflexões acerca das relações entre história, memória e comemoração”, no qual Durval Albuquerque Júnior elabora acerca de como as comemorações e datas históricas são encaradas pela historiografia hoje, sobre as quais há um consenso de que precisam ser problematizadas, sendo as versões oficiais alvo de críticas que se transformaram em uma densa produção historiográfica. Ele conclui sobre a importância de “fazer da comemoração profanação e não culto, fazer da comemoração divertimento e não solenidade, fazer da comemoração momento de reinvenção do passado e não de cristalização e de estereotipização do que se passou” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 190). Seguindo essa perspectiva, no décimo capítulo, “Entregar (entregar-se ao) o passado de corpo e língua: reflexões em torno do ofício do historiador”, ele traz também para o debate a questão da “verdade” e do negacionismo histórico que tem sido uma ferramenta recorrente dos grupos de extrema direita no Brasil para desqualificar o conhecimento produzido pela história. Dessa maneira, recomenda maneiras para combatê-lo, como, por exemplo, através do uso da imaginação, da linguagem e da narrativa para emocionar, sensibilizar sobre os sofrimentos, corpos e tragédias ocorridas no passado, como é o caso do Holocausto e da Escravidão. Para o autor, esse é o meio mais eficaz para que as pessoas consigam ser afetadas pelo conhecimento histórico e possam aprender com ele.

Na terceira parte do livro, o foco da discussão foi o ensino de história. Assim, no capítulo “Regimes de historicidade: como se alimentar de narrativas temporais através do ensino de história”, o historiador paraibano estabeleceu um paralelo em termos de comparação entre regimes de historicidade e regimes alimentares. Levantando questionamentos sobre a qualidade do que os alunos estão sendo alimentados nas aulas de história e apontando para a necessidade de aulas mais atrativas, lúdicas, saborosas, sem, no entanto, perder a qualidade, a crítica e a historicidade. Nesse sentido, defende que os professores devem contar histórias que sejam realmente interessantes e que afetem, de fato, os alunos. Sendo responsabilidade dos docentes, ensiná-los a terem uma relação saudável com o tempo, com a diferença e com a alteridade. Nessa proposta de um ensino mais criativo, no décimo segundo capítulo, “Por um ensino que deforme: o futuro da prática docente no campo da história”, o autor provoca o leitor/professor a desconstruir sua visão de escola e da atividade docente, proporcionando uma prática que realmente revolucione. Ele discute sobre o estatuto da escola atualmente e sua “crise” enquanto instituição formadora. Um ensino que deforme é aquele que “investe na desconstrução do próprio ensino escolarizado, rotinizado, massificado, disciplinado, sem criatividade, monótono” (ALBUQUERQUE, 2019, p. 240).

No último capítulo, “De lagarta a borboleta: possíveis contribuições do pensamento de Michel Foucault para a pesquisa no campo do ensino da história”, tece críticas acerca do uso da obra de Michel Foucault na área da educação que se centralizam apenas na escola como instituição disciplinar e que não exploram outros olhares sobre a suas obras. Dessa maneira, ele lista uma série de recomendações para os pesquisadores na área de ensino de história para explorarem a obra de Michel Foucault de outra maneira, uma pesquisa que não repita o que já foi dito, mas que seja inventiva, ousada, evitando assim, certo dogmatismo.

Durval Albuquerque Júnior é um crítico da historiografia e tem uma extensa carreira. Em O Tecelão dos Tempos, ele reúne quatorze ensaios escritos ao longo dos anos, o que explica a variedade de discussões. Esse é um livro instigante que considero a melhor produção desse historiador até o momento. Ele possui uma escrita fluída, clara e objetiva, sendo uma preocupação recorrente a explicitação sobre o significado de conceitos e ideias discutidas, para assim evitar mal-entendidos. Esse livro deveria ser lido acompanhado de outra obra desse autor, História: a arte de inventar o passado, publicada em 2007, no qual ele faz outras duras críticas a produção histórica. Obra polêmica que causou desconforto por parte dos pares acadêmicos, questão tocada por ele na introdução.

Uma das marcas da sua escrita é a presença de inúmeros referenciais teóricos, citados e retomados em diversos momentos do texto. Pela clareza do texto, é uma obra tanto para os mais experientes em teoria da história, como também para os iniciantes. Pelo fato de serem ensaios, as discussões não se encerram nos capítulos, sendo interessante para o leitor procurar as obras citadas ao longo do texto e aprofundar esses assuntos individualmente. Assim, esse exercício contribui para a melhor compreensão dos assuntos abordados e para a visão de outras perspectivas.

De fato, o historiador é como um tecelão, que tece as tramas do tempo, compondo um tecido que, nesse caso, é a narrativa histórica. Sendo também, inclusive, cozinheiro, responsável por produzir sabores, delícias e dissabores no tempo. Portanto, fica a recomendação dessa obra tão rica de discussões pertinentes aos amantes da história e que também se dedicam a produzi-la. Durval Albuquerque Júnior além de historiador, é um poeta, que apesar de não escrever poesias, escreve uma história poética, sensível, afetiva, que emociona e nos faz relembrar dos prazeres de se produzir história.

Referências

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da História. Bauru: Edusc, 2007.

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019.

CEZAR, Temístocles. Prefácio. In: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019, p. 09-12.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Vitória Diniz de Souza – Graduação em História pela UEPB, Guarabira-PB, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação UFRN, Natal-RN. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail: vitoria4218@gmail.com.

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Haunting History: for a deconstructive approach to the past | Ethan Kleinberg (R)

Haunting History, livro publicado recentemente pelo historiador estadunidense Ethan Kleinberg explora os desafios que o diálogo com a desconstrução derridiana impõe à prática da história. O autor propõe que historiadores e historiadoras enfrentem as questões suscitadas por esse incômodo encontro, a fim de promover a persistente desconstrução da lógica de pensamento da história [1]. O livro chama a atenção pelas figurações narrativas empregadas por Kleinberg, que demonstra significativa preocupação com a íntima relação estabelecida entre forma e conteúdo da obra.

Ao mobilizar estórias de fantasmas, entre elas A Christmas Carol, de Charles Dickens, e The Legend of Sleepy Hollow, de Washington Irving, o livro ressalta o caráter espectral, fantasmático, indomável, desordenado e incômodo do passado. Diferencia-se por recorrer à literatura para refletir sobre o passado; ou seja, a literatura não opera como fonte empírica que diz sobre a sociedade que a produziu, mas como recurso provocativo, teórico e imaginativo. Essa estratégia permite trazer à narrativa um passado capaz de assombrar o presente como um espectro.

Em diálogo com um conto de Franz Kafka que versa sobre a construção de estruturas como a Grande Muralha da China e a Torre de Babel, Kleinberg lança indagações sobre as condições de averiguação do próprio passado. No conto, a Grande Muralha não foi construída de maneira contínua; algumas sessões foram construídas à princípio, espaçadamente, ao passo que as brechas deixadas foram preenchidas ao longo de séculos, de modo desordenado. O autor, então, pergunta ao seu leitor:

E se, de fato, algumas sessões da muralha nunca foram sequer construídas? E se mais tarde, com o tempo, passou-se a acreditar que essas lacunas eram partes faltantes da muralha que haviam sido destruídas, deterioradas, ou perdidas? [2]

A estória de Kafka sobre a Grande Muralha é ponto de partida para construção de uma interessante metáfora acerca da história. Há aqui a crítica a uma produção historiográfica que busca a produção de um snapshot do passado, tomado como reprodução fiel, ontológica, real. O autor coloca em cheque a capacidade do historiador – enquanto único e privilegiado observador – em distinguir e percorrer as lacunas presentes na grande muralha da história. Afinal, como diferenciar as partes construídas e perdidas daquelas que nunca foram sequer construídas? É possível dotar os “fatos históricos” de um caráter ontológico e separá-los das formas como foram representados narrativamente? Nesse sentido, Ethan Kleinberg confere ao passado um senso de mutabilidade que, se não espanta e assombra, certamente desestabiliza os parâmetros que regem a disciplina.

O primeiro capítulo do livro consiste em uma história intelectual [geist-geschichte] e uma história de fantasmas [geistergeschichte]. O autor narra a recepção da desconstrução pela historiografia estadunidense como uma história assombrada, cujo personagem principal – a desconstrução – age como um espectro que insiste em assombrar a prática disciplinar. Para isso, combinam-se recursos literários ligados às estórias de fantasmas e estratégias caras à história intelectual, de modo que convivem na narrativa, com pouca ou nenhuma cerimônia, atos de assombramento, conjuração, esconjuração e exorcismo, ao lado de citações de artigos, livros, entrevistas, resenhas, réplicas, e tréplicas. Os personagens são revistas, livros, acadêmicos, fantasmas, espectros e poltergeists. Forma e conteúdo convergem para apresentar a desconstrução como um fantasma incômodo, aceito por poucos, esconjurado por muitos, tratado por tantos como objeto de espantado ceticismo e culpado fascínio. Entre os fantasmas do período – giro linguístico, pós-modernismo, pós-estruturalismo, etc – a mais temida, a desconstrução, precisava ser exorcizada.

Como um poltergheist, a desconstrução fez sentir seus efeitos. Assombra os historiadores(as) precisamente na medida em que evidencia segredos tão bem escondidos da história: desnuda as escolhas autorais que participam da elaboração narrativa e argumentativa da produção historiográfica, põe em destaque a necessidade da imaginação para a prática da disciplina, evidencia as peripécias envolvidas no tratamento com a linguagem.

Para que a história entregue “verdade” descomplicada esse segredo [o espectro da revisão, a possibilidade de desconstrução] precisa continuar escondido, mas cada vez que o relato histórico de um evento é revisado, o próprio ato de revisão revela a instabilidade da verdade histórica e da possibilidade de recontar o que “realmente aconteceu”. [3]

O caráter fantasmático e incômodo da desconstrução se agrava na medida em que essa se torna um termo do senso comum que agrupava supostos “pós-modernos”, “pós-estruturalistas”, “relativistas”, além dos “desconstrucionistas” e de quaisquer historiadores(as) que com esses dialogassem. Em sua acepção mais popular, a desconstrução passou a ser conhecida como a “desestabilização de pronunciamentos autoritários” [4] , assumindo na academia estadunidense “o peso de uma posição política ou ideológica” [5] . A simplificação do modelo teórico derridiano contribuiu para que, mais tarde, em meio às nuvens de medo e à busca por verdades estáveis que sucedeu os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, muitos se unissem para esconjurar o fantasma. A desconstrução foi associada à Heidegger, ao nazismo e até ao terrorismo, definido como expressão violenta do enfraquecimento de verdades universais como a liberdade e a vida. Será que isso foi suficiente para livrar-se de vez do fantasma?

A construção narrativa do primeiro capítulo evidencia a ausência de um número expressivo de historiadores(as) que utilizam a desconstrução como aporte teórico ou metodológico e, contraditoriamente, a presença de um “número desproporcionado de artigos atacando-a […] como perigosa para a prática da história” [6] . A abordagem desloca a oposição binária que enquadra presença e ausência como meros antônimos, enquanto a linguagem do conto assombrado subverte a forma como a história tem pensado e narrado as relações entre passado e presente. O passado está, presente e ausente, como um fantasma. Ou ainda, presenças e ausências operam juntas para assombrar o presente e a história.

Ethan Kleinberg emprega a desconstrução em uma crítica do “quadro epistemológico da história ortodoxa”, seu “próprio sistema ideológico, suas categorias de representação”[7] . Para isso, o terceiro capítulo examina autores como Chladenius, Dilthey e Droysen – ligados ao que se convencionou chamar historicismo – e demonstra que nem mesmo entre eles há consenso acerca da possibilidade de uma forma universal de acesso aos fatos históricos “tais como ocorreram”. O resultado é francamente irônico quando lido em contraste com o primeiro capítulo, que demonstra o quanto os historiadores contemporâneos – aqueles que afirmam ter superado os historicistas – continuam operando sob uma compreensão do passado embasada no que Ethan Kleinberg define como realismo ontológico.

Para o autor, a história disciplinar aborda eventos históricos como pontos fixados e imutáveis do espaço e do tempo. O passado é ontologicamente real, verdadeiro e ordenado, e mesmo que o acesso a ele seja sempre limitado, suas condições de verificabilidade estão condicionadas epistemologicamente. A revisão, portanto, é permitida porque compreendida como um aprimoramento epistemológico e metodológico que permitiria aproximar-se mais da verdade sobre o fato, mesmo quando há o reconhecimento de que o fato nunca será representado em sua totalidade. Ou seja, para o realismo ontológico, o passado segue sendo compreendido como algo que, “realmente”, “ontologicamente”, “é”.

No quarto capítulo, Ethan Kleinberg afirma que a abordagem do passado embasada no realismo ontológico está intimamente ligada às formas analógicas que conferiram bases materiais para a produção historiográfica, como o advento da escrita, da imprensa e da máquina de escrever. Essa história está ligada a um “teto analógico”, que percebe o passado como alcançável por meio do método e da atenção profunda. O rompimento com esse teto analógico pode abrir novas possibilidades à história. Nesse sentido, o autor sugere o advento da era digital e de uma nova forma de hiper-concentração em múltiplas mídias e plataformas guarda afinidades com a desconstrução. Essa nova forma de acessar, processar e interagir com a informação abre portas para que pesquisadores(as) possam se relacionar com o passado por meio de abordagens que presem pelo não-simultâneo, o contraditório, o múltiplo, o descontínuo e o instável, elementos fundamentais a uma abordagem desconstrucionista. Essa reconfiguração conclama a disciplina a um repensar do próprio tempo. No quadro delineado pelo autor, esse presente marcado por “heterogeneidade, emaranhamento, polissemia e contextos flutuantes” se relaciona diretamente com um passado que está também permeado destas características. As relações dos(as) historiadores(as) com o tempo passam a ser entendidas como uma posição iterativa, entrelaçada no tecido no passado a partir do presente. Essa última assertiva permitiria imaginar o estatuto do passado de outro modo, e posicionar a prática da história como um discurso/ato performativo, “uma interpretação que transforma a própria coisa que interpreta” [8].

Em suas últimas páginas, o autor argumenta sobre uma fantologia [hauntology] [9] do passado, a assombrar o ofício dos(as) historiadores(as), a tocar e afetar o presente independentemente das vontades daqueles que pretendem domá-lo ou expiá-lo. Se para Michel de Certeau [10], um dos objetivos da operação historiográfica era constituir túmulos escriturários capazes de enterrar os mortos e abrir espaço para os vivos, para Ethan Kleinberg, o passado não pode ser exorcizado por meio da escrita da história, mesmo pelo(a) mais exímio(a) historiador(a). O passado possui um “caráter fantológico” [hauntological], está, presente e ausente. Segundo o autor, esse só pode possuir qualquer status ontológico de forma latente e aporética, como uma contradição irresoluta, como um fantasma. Ainda, entre passado e presente há uma porosidade, caminhos possíveis a trilhar, que não podem ser encerrados por meio da história disciplinar e que delimitam – sempre de modo provisório – quais passados são imaginados como possíveis.

O livro torna-se mais provocativo quando lido em conjunto à atuação do coletivo #theoryrevolt, que no ano passado publicou o manifesto Theses on Theory and History. O texto assinado por Ethan Kleinberg, Joan Wallach Scott e Gary Wilder argumenta pela escrita de uma “história crítica” e pelo estabelecimento de uma nova relação entre teoria e história. Quando o livro é lido contra esse pano de fundo, ganham destaque as experimentações do autor ao longo da obra – que considero bem sucedidas –, sobretudo o modo como integram-se forma e conteúdo e o engajamento inovador com a literatura e a desconstrução. Afinal, nas palavras do #theoryrevolt,

A história crítica não aplica teoria à história, nem pede por maior integração da teoria nos trabalhos históricos como que vinda de fora. Ao contrário, ela busca produzir história teoricamente orientada e teoria historicamente fundamentada. [11] [grifo original]

Notas

1. Todas as traduções fornecidas ao longo do artigo são de responsabilidade da autora.

2. KLEINBERG, Ethan. Haunting History: for a deconstructive approach to the past. Stanford: Stanford University Press, 2017. p. 73.

3. KLEINBERG, Ethan. Haunting History: Deconstruction And The Spirit Of Revision. History and Theory. Theme Issue 46 (December 2007), 113-143. p. 143.

4. KLEINBERG, Ethan. Haunting History: for a deconstructive approach to the past. Stanford: Stanford University Press, 2017. p. 32.

5. Ibidem, p. 34.

6. Ibidem. p. 15.

7. JOAN SCOTT apud Ibidem. p. 36.

8. DERRIDA, Jacques. Specters of Marx. New York: Routlegde, 2006, p. 63.

9. Nesse caso, adotamos a tradução empregada por André Ramos e André Luan Macedo em entrevista com o autor publicada pela revista História da Historiografia. Cf: RAMOS, André. Ethan Kleinberg: Teoria da História como Fantologia [Entrevista]. História da historiografia, n. 25, dezembro. Ouro Preto: 2017. p. 193-211.

10. CERTEAU, Michel de. The writing of history. New York: Columbia University Press, 1988.

11. KLEINBERG, Ethan; SCOTT, Joan W.; WILDER, Gary. Teses sobre Teoria e História. Trad. Andre Freixo e João Ohara. p. 5. Disponível em: https://www.academia.edu/36775977/Teses_sobre_Teoria_e_Hist%C3%B3ria_TRADU%C3%87%C3%83O_. Acesso em 10/07/2018.

Lídia Maria de Abreu Generoso – Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente é doutoranda em História pela mesma Universidade com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: generosolidia@gmail.com  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8130-1950


KLEINBERG, Ethan. Haunting History: for a deconstructive approach to the past. Stanford: Stanford University Press, 2017. Resenha de: GENEROSO, Lídia Maria de Abreu. A história e o fantasma da desconstrução. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.38, n.1, p.548-553, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides | Martinho T. M. Soares

Em sua tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, Portugal, Martinho Soares aborda uma lacuna relevante na história da teoria contemporânea da historiografia: o papel do paradigma historiográfico de Tucídides nas reflexões do filósofo Paul Ricoeur; o primeiro uma referência clássica que resiste pertinente e atual há milênios, o segundo talvez quem melhor sintetizou a polêmica sobre a relação entre histórica e ficção ao longo do séc. XX. O objetivo é em si problemático: Soares está ciente que Ricoeur cita Tucídides apenas em notas, não dedica nem uma página para análise específica de sua obra, e não apresenta indícios de conhece-la a fundo, para além de alguns de seus comentaristas modernos mais ilustres (SOARES, 2014, p.23). No entanto, Tucídides é um marco inaugural, exercendo inegável influência em intelectuais com quem Ricoeur dialoga, principalmente historiadores e teóricos modernos que o viam como paradigma de historiografia antiga. Se o filósofo moderno foi a pedra angular nos intensos debates do séc. XX sobre história e ficção, os estudos sobre a fortuna crítica da obra História da Guerra do Peloponeso extrapolam o próprio ambiente acadêmico, como demonstram os constantes apelos às lições tucideanas em situações geopolíticas contemporâneas2. Para cumprir tal tarefa Soares divide seu livro em duas partes: a primeira, mais longa, dedica-se exclusivamente à Ricoeur; a segunda aborda Tucídides, mas seguindo uma estrutura organizacional estabelecida com base na leitura da obra ricoeuriana.

A primeira parte é a própria sistematização da contribuição do filósofo francês que, nas palavras de Soares (2014, p.18), serviu de “pretexto para uma compilação, inédita em Portugal, de teorias (e pensadores), ora complementares ora antagônicos, sobre história e ficção”. Em quatro capítulos, Soares refaz o longo percurso da contribuição ricoeuriana: começa em Histoire et Vérité (1964) no capítulo I, passando pelos três volumes de Temps et Récit (1983- 1985) nos capítulo II e III, e finalmente se concatena em La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000) no último capítulo desta primeira parte do livro de Soares.

No capítulo I são abordadas as primeiras reflexões de Ricoeur sobre objetividade e subjetividade na interpretação histórica, que desembocam no capítulo II sobre a dialética entre explicação e compreensão histórica. Este segundo capítulo refaz o percurso duplo de Ricoeur que perpassa, de um lado, o eclipse da narrativa histórica, o qual envolve tanto a historiografia francesa dos Annales quanto o modelo nomológico de língua inglesa; e de outro lado, as teses narrativistas que, oriundas da filosofia analítica e da crítica literária, focam no papel da narrativa na historiografia, cujos nomes mais conhecidos são Hayden White e Paul Veyne.

A concepção narrativista, que pode ser simplificada na máxima “narrar já é explicar”, torna opaca a fronteira entre história e ficção, o que certamente serve de gatilho para a maior parte das reflexões de Paul Ricoeur. Contra ambas tendências – rejeitar a narrativa histórica em prol de seu caráter científico ou ofuscar seu caráter veritativo por conta da sua dimensão narrativa – Ricoeur interpôs sua dialética sobre o papel da compreensão narrativa à explicação histórica, restaurando a função da ficção na configuração narrativa histórica. O saber histórico procede da compreensão narrativa, resguardando seu caráter investigativo alicerçado na interpretação dos traços do passado, prática na qual a intenção do historiador não deixa de ter sua marca subjetiva, sem negar seu caráter epistêmico (SOARES, 2014, p.53, 76). Assim, Soares revisita as teses de Ricoeur de forma a sedimentar os instrumentos de análise com o qual abordará a obra tucideana.

Se a história precisa de narrativa para ser compreendida, a última não deixa de definirse pela sua relação com o tempo. O capítulo III de Soares concentra-se no itinerário de Ricoeur sobre o tempo desde a dimensão fenomenológica (tempo vivido) até histórica (tempo histórico e narrado). Soares sintetiza ideias já conhecidas de Ricoeur sobre a distentio animi de Agostinho de Hipona, a teoria das três mimeses e as abordagens da ficção do século XX sobre as aporias do tempo vivido, de forma a desembocar no axioma de que o tempo se torna humano na medida em que é articulado de modo narrativo. Deste longo percurso, Soares retém a narrativa enquanto tríplice mimese da prefiguração ética, configuração narrativa e refiguração receptiva (ou leitura). Tal tríplice noção de narrativa organiza a leitura que Soares faz da História da Guerra do Peloponeso na segunda parte da obra. Na fase final da vida intelectual de Ricoeur, o prestígio da narrativa havia se restabelecido na historiografia francesa, devido a fatores que vão do ressurgimento da história política, e perpassa a micro-história e principalmente a predominância do conceito de representação histórica. Daí que Soares concentre-se no capítulo IV sobre os conceitos de representação e representância, especialmente se a narrativa histórica e seu encadeamento do tempo resolve (ou não) as aporias da representação mnemônica enquanto presença do ausente. A questão envolve debates éticos intensos sobre a possibilidade de representação do holocausto judeu e o risco do fortalecimento do negacionismo histórico, com as teses narrativistas que ofuscam a fronteira entre histórica e ficção. Até aqui, pode-se parabenizar a leitura industriosa que Soares faz de Paul Ricoeur, mas não sem notar o longo percurso percorrido até finalmente concatenar tais reflexões com o texto tucideano.

A segunda parte volta-se para Tucídides em dois capítulos. O primeiro se preocupa com a noção de história e verdade na obra, revisitando discussões já consagradas sobre a noção de “ktema es aei” (tesouro para sempre) e sobre o procedimento de composição dos discursos na História da Guerra do Peloponeso. O segundo capítulo se desdobra na aplicação dos três estádios ricoeurianos da operação historiográfica na obra: a fase documental (prefiguração compreendida como testemunhos, indícios e prova documental), a fase narrativa, (explicaçãocompreensão e configuração narrativa), e a fase da refiguração ou leitura, que concentra-se nas estratégias retórico-persuasivos e seus efeitos de “fazer ver” (SOARES, 2014, p.405-406). Em contraste com Heródoto, Tucídides é lacônico e reticente ao expor suas fontes e procedimentos de investigação, logo Soares admite e enfatiza as dificuldades em abordar a metodologia histórica da obra, bem como sua inadequação para os parâmetros modernos (2014, p.502-504, 545-549). A leitura de Soares, portanto, desenvolve-se melhor quando aborda as estratégias persuasivas do autor ateniense, de forma a encontrar nelas ecos das teses de Ricoeur.

O estudo é industrioso e pertinente, mas desmembrar a análise em duas partes acaba por ser simultaneamente uma qualidade e um defeito da pesquisa. Sua exposição sobre Ricoeur revela excelência e domínio das discussões, por outro lado, alonga-se demasiadamente divorciada do seu segundo objeto de pesquisa. Isto significa que não teremos notícias de Tucídides pelas 360 páginas e 4 capítulos que compõem a primeira parte da obra. Da segunda parte, somente o segundo capítulo propõe interpelação direta entre Ricoeur e Tucídides, ou seja, de um volume de 600 páginas o leitor pode esperar tal confronto apenas na última centena, e ainda assim de forma tímida, ao que se segue uma conclusão extremamente sucinta.

No entanto, as sendas abertas pela pesquisa de Soares são profícuas, por exemplo, na abordagem do método de composição de discursos de Tucídides (I. 22.1-2) à luz das teses ricoeurianas. Desde Heródoto a dramatização (no sentido de “representação da ação”) de discursos e debates oratórios são conectores de acontecimentos que conferem sentido a estes tanto progressivamente (antecipam fatos ainda não narrados) como regressivamente (julgam e explicam fatos já narrados), assim o historiador revela ao leitor as disposições dos agentes históricos frente a uma ação inacabada, bem como expectativas frustradas ou não pelos acontecimentos desenrolados (SOARES, 2014, p.454-455). Ainda que construção subjetiva, os discursos ligam-se à interpretação dos acontecimentos, na medida em que funcionam como narração-explicação do sucesso ou insucesso das ações (SOARES, 2014, p.479). Tucídides na sua escrita não procura a descrição asséptica de acontecimentos, mas enreda-os narrativamente. Tal procedimento revela ressonância evidente com a tríplice mimese ricoeriana, na medida em que exige do historiador uma prefiguração ética na avaliação e seleção das fontes e traços do passado, bem como uma configuração narrativa na forma de ação (discurso e acontecimento), e por fim, subscreve a intenção deste em elementos persuasivos que visam alcançar a refiguração do leitor capaz de reconhecer o que foi ali prefigurado e configurado.

Soares desdobra-se com competência na apresentação destas questões, no entanto, lidar simultaneamente com a tradição milenar da hermenêutica tucideana e a profundidade das discussões de Ricoeur é, de fato, muito trabalhoso, e a pertinência destas fontes acaba por ofuscar a marca autoral de Soares. O diálogo entre duas referências fundamentais para a historiografia, no qual consiste a originalidade da obra, acaba ficando frágil na separação rígida das duas partes do livro.

Soares ressalta especialmente o papel da narrativa como uma forma da história “cativar o público”, “se dar a ler” (2014, p.30), em suma, “uma forma estilizada de apresentar a verdade”, sendo esta a “tese maior” que pretende expor (2014, p.483), e defende enfaticamente a fronteira entre história e ficção, e talvez por isso privilegia a função ornamental e persuasiva da narrativa. Afirmar isto parece subestimar o papel da narrativa na configuração do tempo histórico: as reflexões de Ricoeur e a metodologia de Tucídides apontam que a ficcionalização dos fatos está para além da persuasão e do elemento imagético (ou cor local) da história: ela é a forma privilegiada de expressar o pensamento e a compreensão do historiador sobre as ações humanas no tempo, resolvendo poeticamente o embaraço da distentio animi agostiniana e a própria noção aristotélica de história enquanto narrativa episódica, sem vínculo com o provável e o necessário. Sua discussão do confronto entre a Poética aristotélica com a obra de Tucídides (2014: p.552-565) faz excelente balanço bibliográfico da questão, mas não responde se Tucídides almejava configurar um tempo histórico nos moldes ricoeurianos a partir das suas generalizações, ou se ele de fato tentava se aproximar do cronista imaginado por Aristóteles que narra indiscriminadamente o que “Alcibíades fez ou sofreu”. Soares opta por descrever Tucídides como parte poeta e parte historiador (2014, p.561-565), e por fazer eco às teses que Aristóteles não reconhecia nele um historiador, mas sim um pensador político (2014, p.552- 558).

Esta indefinição, no entanto, tem implicações. Por exemplo, Soares afirma, com base em A. W. Gomme (1954), que os contrastes dramáticos de Tucídides residem nos próprios acontecimentos que “se sucedem no tempo, sem nada de relevante entre eles” (SOARES, 2014, p.492), o que faz parecer que o historiador apenas revela os acontecimentos sem precisar configurá-los narrativamente. Isto deixa em segundo plano a configuração narrativa que Ricoeur extrai da Poética de Aristóteles (“um por causa do outro” ao invés de “um depois do outro”) e faz parecer que Tucídides seguia uma sucessão natural dos eventos, e nãos os compôs e enredou numa síntese do heterogêneo. Tucídides poderia ter apresentado outros eventos menores entre a sucessão, poderia ter-se dado às digressões tipicamente herodoteanas, mas é na disposição das ações que reside o efeito dramático alcançado, que não se pode atribuir aos próprios acontecimentos sem subestimar o papel da configuração narrativa, que Soares claramente não ignora de todo, mas ao longo do texto dá mais ênfase ao seu papel ornamental e persuasivo, especialmente na sua discussão sobre o “fazer ver” o passado, sua exposição sobre os conceitos de enargeia e ekphrasis (2014, p.582-595).

Em conclusão, Soares faz justíssima representação das teses ricoeurianas e das principais discussões em torno da obra de Tucídides, mas na hora de enredá-las em conjunto na sua própria configuração narrativa, oferece ao leitor uma interpretação que, por vezes, subestima a complexidade da configuração narrativa histórica enquanto síntese do heterogêneo e ordenador do tempo humano e histórico, ao menos no que diz respeito na sua interpelação das teses ricoerianas com o texto tucideano. Esta característica não apaga o brilho das conquistas de Soares, pois o leitor da sua obra pode esperar excelente abordagem da contribuição de Ricoeur sobre história e ficção, bem como uma expedição competente aos debates em torno da obra tucideana, cuja sombra projetou-se desde as teorias positivistas e metódicas da história do séc. XIX até as teses narrativistas que agitaram o debate historiográfico no séc. XX.

Nota

2. Para um estudo de dois casos relevantes nos quais o paradigma tucidideano foi invocado em contextos geopolíticos contemporâneos ver PIRES, Francisco Murari. “O General Marshall em Princeton, Tucídides na Guerra Fria”. História da Historiografia n. 2, 2009, pp. 101-115.

Referências

GOMME, A. W. The Greek atitude to poetry and history. Berkeley: University of California Press: 1954

RICOEUR, Paul. Histoire et Vérité. Paris: Seuil, 1964 (2003).

______. Temps et Récit – Tome I. Paris: Seuil, 1983 (2005).

______. Temps et Récit – Tome II. Paris: Seuil, 1984 (2005).

______. Temps et Récit – Tome III. Paris: Seuil, 1985 (2005).

______. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris, Seuil, 2009.

SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Fundação Eng. António de Almeida: Porto, 2014, 638 pp.

Denis Renan Correa – Professor Adjunto II na área de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e estudante de doutoramento da Universidade de Coimbra.


SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2014. Resenha de: CORREA, Denis Renan. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides por Martinho Soares. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.388-393, ago., 2019.Acessar publicação original [DR]

História e Pós-Modernidade – BARROS (FH)

BARROS, José D’ Assunção. História e Pós-Modernidade. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2018. Resenha de: OLIVEIRA, Ana Carolina. História e pós-modernidade: uma polêmica na historiografia. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.547-552, jul./dez., 2919.

Perante as polêmicas na historiografia sobre uma história pós-moderna, as quais trazem à tona os debates sobre a aproximação da história com a ficção e com seu significado polissêmico, o embasamento argumentativo deve encaminhar aspectos teóricos e não de senso comum. Sendo assim, é necessário pontuar, de forma teórica e crítica, o conceito de pós-modernidade e o que isso representa na historiografia.

O livro História e Pós-Modernidade, escrito pelo autor José D’ Assunção Barros, possui o objetivo de pontuar questões que permeiam a discussão da pós-modernidade na história, compondo uma estruturação explicativa e básica sobre o tema. O autor procura expor referências e indicações de leituras, mas os seus capítulos são curtos, o que torna o livro uma introdução com possíveis caminhos de leituras, isso se deve à intencionalidade de Barros em escrever algo mais próximo de um manual, em pequenos capítulos, para aqueles que não têm conhecimento sobre o tema.

O livro contém treze capítulos que estão elencados na seguinte ordem: “Pós-Modernidade: referências iniciais”, “Pós-Modernismo: o conceito e algumas análises clássicas”, “A análise de Fredric Jameson sobre o pós-modernismo”, “Historiografia e Pós-Modernismo: a polêmica de Ankersmit”, “A crise da história total e a fragmentação da história”, “Narrativa e cognição histórica: interações e conflitos”, “Hayden White: a História como gênero literário”, “Resistências à redução da história ao discurso”, “Paul Ricoeur: tempo e narrativa”, “A Pós- Modernidade e os novos modos de escrita historiográfica”, “Traços do Pós-Modernismo: alguma síntese”, “Quem são os pós- modernos”, “Conclusões: a história pós-moderna e o contexto das crises historiográficas”. Os capítulos são escritos de forma acessível, para aqueles que queiram tirar dúvidas ou ter uma visão geral do tema.

A proposta de Barros foi de elaborar uma escrita que dialogasse com o contexto histórico e a promoção de discussões historiográficas, trazendo uma análise da pós-modernidade, sob a ótica de vários autores como Jameson e Ankersmit.

Barros começa seu livro com a discussão acerca do conceito de pós-modernidade, por tratar-se de uma definição conceitual que impõe consigo ambiguidades. Às vezes, pós-modernidade e pós-modernismo são usados como sinônimos, causando confusão. É no capítulo “Pós-Modernismo: o conceito e algumas análises clássicas” que as diferenças conceituais são apresentadas. Segundo Barros, a pós-modernidade significa um período específico da História Contemporânea, enquanto o pós-modernismo representa um campo da esfera cultural (BARROS, 2018, p. 11). Seguindo o conceito, a linha de pensamento da pós-modernidade é questionar a concepção de verdade clássica, a ideia de progresso ou de uma possível emancipação universal, como se a história tivesse um objetivo para ser atingido, o conceito de razão, a questão da identidade e objetividade, além das críticas contra as grandes narrativas.

A pós-modernidade surge da mudança histórica no Ocidente, quando o capitalismo se implanta na sociedade, na qual encontramos um mundo do consumismo e da indústria cultural. Por meio de uma análise marxista sobre a cultura e a história no pós-modernismo, Barros trabalha em seu capítulo “A análise de Fredric Jameson sobre o pós-modernismo”, com a posição de Jameson sobre a pós-modernidade, apontando para o poder imensurável que a mídia passa a conter. Tudo é comercializado, tanto produtos materiais quanto imateriais e com a historiografia não poderia ser diferente, pois ela transformou-se em um produto. Por conta do consumismo houve o crescimento de livros no mercado. Os historiadores passaram a escrever obras literárias ao estilo do romance histórico, para que seus livros chegassem à maior parte da população, além dos historiadores, visando à ampliação do lucro. O problema é que não fica nítido se nesses livros a obra é uma ficção para entretenimento literário ou se contém alguma metodologia científica (BARROS, 2018, p. 21-22). Segundo Jameson:  na cultura pós-moderna, a própria cultura se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma tendencial, uma crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se autotranscender. O pós-modernismo é o consumo da própria produção de mercadorias como processo (JAMESON, 1997, p. 14).

Da esfera cultural para a historiografia, Barros utiliza o artigo Historiografia e pós-modernismo, escrito por Frank Ankersmit, a fim de iniciar as discussões sobre a historiografia no capítulo “Historiografia e Pós-Modernismo: a polêmica de Ankersmit”. O artigo de Ankersmit trabalha a historiografia pós-moderna, mostrando uma quebra de paradigma, com a crítica de que a “crise das metanarrativas seria o traço principal da Condição Pós-Moderna” (BARROS, 2018, p. 27).

Por meio da historiografia pós-modernista, encontrada principalmente na história das mentalidades, é realizada uma ruptura com a tradição essencialista, no pensamento pós-moderno. O objetivo não é mais a integração, uma totalidade ou uma história universal. Para Ankersmit as principais diferenças entre uma história moderna e pós-modernista são:  Para o modernista, dentro de sua noção científica de mundo, dentro da visão de história que inicialmente todos aceitamos, evidências são essencialmente evidência de que algo aconteceu no passado. O historiador modernista seguia uma linha de raciocínio que parte de suas fontes e evidências até a descoberta de uma realidade histórica escondida por trás destas fontes. De outra forma, sob o olhar pós-modernista, as evidências não apontam para o passado; mas sim para interpretações do passado; pois é para tanto que de fato usamos essas evidências (ANKERSMIT, 2001, p. 124).

Portanto, não apontar para os padrões essencialistas no passado é, antes de tudo, a essência da pós-modernidade. Nesta fase da historiografia, parece que o significado adquiriu mais importância que a reconstrução, sendo o objetivo dos historiadores desvendar o significado do acontecimento no passado, para poder informar gerações atuais e posteriores. A historiografia pós-moderna é enquadrada em um paradigma historiográfico, em uma alternativa ao positivismo, historicismo, entre outros inúmeros existentes. Barros chama a atenção para a indagação que Ankersmit transmite “o nosso insight sobre o passado e a nossa relação com ele serão, no futuro, de natureza metafórica, e não real” (ANKERSMIT apud BARROS, 2018, p. 33), ou seja, é o momento de colocar em primeiro plano o pensar sobre o passado e em segundo lugar investigá-lo.

Para a corrente historiográfica pós-modernista “a História seria essencialmente construção e representação, com pouca ou nenhuma ligação em relação a uma realidade externa” (BARROS, 2018, p. 77). Desta afirmação surgem diversos posicionamentos. Existem aqueles que veem a história com ceticismo ou como uma possível alternativa de misturar história e ficção ou aqueles que relacionam a construção da história com práticas disciplinares e com um sistema de poder.

A História (ou as histórias) torna-se aqui profundamente subjetivada no que se refere a suas destinações. E, mais ainda, ao escrever uma história dirigida para um público específico, o historiador pode pensar isto socialmente – direcionando-a a grupos que cultivem identidades específicas, como a negritude, o feminismo, o ecologismo, o movimento gay, as identidades religiosas ou simplesmente pensar a destinação do seu trabalho em termos de públicos consumidores, pois o mercado editorial contemporâneo até mesmo o estimula a isto (BARROS, 2018, p. 78).

Aqui voltamos para a questão da superprodução historiográfica: por um lado existem obras que misturam história e ficção. Os historiadores escrevem romances históricos e apresentam uma narrativa sem problematização ou sem uma metodologia científica. Por outro lado, encontramos algo importante, como as histórias que foram deixadas de lado. Podemos aqui direcionar a história para um público, como a história das mulheres, a cultura africana, as diversas religiões excluídas; encontramos uma variedade de histórias que antes não seriam escritas e aceitas no meio acadêmico. Encontramos na historiografia um diálogo com a sociedade. Se antes os paradigmas historiográficos ou os grupos acadêmicos não aceitavam determinado tema, como os pesquisados na micro-história ou dos pós-modernistas, com o tempo esses aspectos importantes foram modificados.

Os historiadores dificilmente se assumem pós-modernistas, por conta das polêmicas e atritos na historiografia. O que implicaria ser um historiador pós-moderno? Seguindo um modelo de apresentação, Barros utiliza as definições de Ciro Flamarion Cardoso, no capítulo “Traços do Pós-Modernismo: alguma síntese”, para pontuar as cinco características principais de um historiador pós-moderno: “(1) a desvalorização da Presença em favor da Representação; (2) a crítica da origem; (3) a rejeição da unidade em favor da pluralidade; (4) a crítica da transcendência das normas, em favor da sua imanência; (5) uma análise centrada na alteridade constitutiva” (BARROS, 2019, p. 81-82). No entanto, são apenas tentativas de atribuir características, pois a rotulação de historiadores e suas pesquisas são difíceis.

Por fim, Barros apresenta muitos questionamentos interessantes. Um deles é a seguinte pergunta, no capítulo “Conclusões: a história pós-moderna e o contexto das crises historiográficas”: “Será a historiografia pós-moderna um produto das crises historiográficas, ou uma resposta a estas mesmas crises?” (BARROS, 2018, p. 99).

Em primeiro lugar, vivemos em uma época com alternativas para o historiador optar ao escrever história, conceitos e paradigmas. Como a história é devir, é natural que comecem a surgir novos paradigmas e questionamentos das concepções de história existentes. A crise acontece com frequência, é a partir dela que repensamos a própria forma de escrever e se essa ou aquela corrente historiográfica precisa ser modificada. Neste caso, podemos expor dois fatores: os “endógenos, que são aqueles que foram produzidos pelo próprio sistema em causa; e há os fatores exógenos, que são aqueles que intervieram de fora” (BARROS, 2018, p. 99).

Se analisarmos a historiografia do início do século XIX, por exemplo, nota-se que, com seu próprio desenvolvimento, surge a superconsciência histórica, o historiador contemporâneo começa a elaborar a sua própria consciência histórica, a qual condiz com a historicidade e relatividade da história que são frutos, desde as mudanças “dos desenvolvimentos da hermenêutica historicista à crescente tomada de consciência gerada pela própria prática historiográfica, ao se confrontar com níveis vários de subjetividade” (BARROS, 2018, p. 100). Este processo é algo que ocorreu no âmbito interno da história como campo de disciplina, pois o historiador entra em contato com “a natureza relativa e histórica daquilo que servirá de base material para a produção do conhecimento histórico: a fonte” (BARROS, 2018, p. 100).

As discussões em relação ao tratamento dos documentos foram debatidas já com os primeiros historicistas. O texto historiográfico não era mais visto com neutralidade ou como um documento oficial detentor de verdades inquestionáveis. As críticas documentais mostraram que um texto sempre carrega a subjetividade e o contexto da época de sua escrita. Com o tempo, o texto escrito pelo historiador passou a ser analisado da mesma forma, considerando a subjetividade. Já no século XX, o historiador contemporâneo constatou a necessidade de lançar críticas e refletir sobre a própria historiografia.

As obras com as discussões sobre a historiografia surgiram em 1970, como por exemplo, A Operação Historiográfica de Michel de Certeau, Como se escreve a História de Paul Veyne, A Meta História de Hayden White, entre outras, a partir de obras como estas “foi se desenvolvendo no historiador contemporâneo, enfim, aquilo que poderemos categorizar como uma superconsciência histórica” (BARROS, 2018, p. 101).

No entanto, o fator “endógeno” é um produto do próprio “sistema em causa”, ou seja, é a superconsciência histórica. Por se tratar de um processo interno da história, ela é produto e causa. Por conter a superconsciência, o historiador vê-se obrigado a repensar a historiografia que escreve promovendo uma transformação na historiografia. Já o fator “exógeno” é o conjunto de acontecimentos externos que afetam a história, como a reflexão vinda da linguística que trouxe questionamentos sobre os limites da narrativa histórica. Com esta reflexão surgiu a centralização das “práticas e representações de um setor da chamada historiografia pós-moderna que, no limite, passou a reduzir a Historiografia apenas ao Discurso” (BARROS, 2018, p. 102).

São inúmeras as crises na historiografia, como aponta Barros no capítulo “Conclusões: a história pós-moderna e o contexto das crises historiográficas”, sendo que uma delas é marcada pela afirmação de Fukuyama, em 1989, sobre o “fim da história”, que usou como argumento a queda do socialismo como um sinal de que a “história tinha chegado ao fim”, por atingir o capitalismo (BARROS, 2018, p. 102). Essa afirmação, de que a “a história tinha chegado ao fim”, recebeu mais críticas do que elogios, pois foi na realidade um efeito político e midiático e não um posicionamento pautado em argumentos históricos fundamentados e verossímeis. Por outro lado, a crise da cientificidade de 1980 proporcionou um questionamento da História Serial e gerou uma crise para os herdeiros da corrente historiográfica dos Annales. Para concluir, Barros afirma que:  as crises na história – das de baixo impacto às de alto impacto, das fugazes às de longa duração, das que trazem decadência às que permitem crescimento, das que perturbam às que autorregulam, das que são geradas por dentro às que vêm de fora – podem ser pensadas, em um plano mais alto, como partes importantes desta complexa história da historiografia. Os rumos da história pós-moderna, se assim podemos chamar a um certo setor da historiografia contemporânea, e também os futuros desenvolvimentos de uma série de outras propostas que não se adequem propriamente ao conceito de “pós-modernismo historiográfico”, ainda estão por se definir no interior desta mesma complexidade (BARROS, 2018, p. 104).

Portanto, estamos diante de um livro que contém vantagens e desvantagens. A vantagem é que os capítulos trazem uma leitura, que flui com explicações simples e objetivas. Outro ponto positivo é que Barros cita e indica várias obras para leitura sobre o tema. A desvantagem é que o livro se aproxima de um manual com capítulos curtos. Seria interessante se estes fossem densos, pois é um tema pouco trabalhado, mas acredito que o objetivo de Barros tenha sido o de apontar um panorama geral. Além de tudo, o livro compõe uma leitura dinâmica e agradável, com uma linguagem objetiva e didática, fato que impulsiona a leitura até o fim do livro, prendendo a atenção aos argumentos e indicações que Barros coloca em sua narrativa.

Referências

ANKERSMIT, Franklin Rudolf. Historiografia e Pós-Modernismo. Topoi, Rio de Janeiro, p. 113-135, mar. 2001.

BARROS, José D’ Assunção. História e Pós-Modernidade. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2018.

JAMESON, Fredic. Pós-Modernismo: a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Editora Ática, 1997.

Ana Carolina Oliveira – Mestranda na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis, estado de São Paulo (SP), Brasil. Atualmente é bolsista CAPES. E-mail para contato: nacarolinaoliveira1234@gmail.com.

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Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história – IEGELSKI (AHSS)

IEGELSKI Francini Lógicas e Métodos
Francine Iegelski/Divulgação UFF

IEGELSKI F Astronomia das constelações humanas Lógicas e MétodosIEGELSKI, Francine. Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história. São Paulo: Humanitas, 2016, 422 p. Resenha de: BRANDI, Felipe. Annales.  Annales. Histoire, sciences sociales, v.2, p.450-452 2019. Acessar publicação original.

En 1949, Claude Lévi-Strauss publiait, dans un numéro de la Revue de métaphysique et de morale consacré aux « Problèmes de l’histoire », l’article « Histoire et ethnologie », devenu dix ans plus tard la célèbre introduction d’Anthropologie structurale 1. Les deux disciplines qui donnent son titre à l’article y sont montrées comme un Janus bifrons : deux sciences soeurs, solidaires, mais investies de missions opposées. Alors que l’histoire s’en tiendrait au domaine du particulier et à l’étude des expressions conscientes de la vie sociale, l’ethnologie paraît atteindre un degré plus élevé d’abstraction àmême d’explorer les « possibilités inconscientes » et d’opérer le passage à l’universel. Les historiens ont vite compris que leur discipline se trouvait menacée d’être reléguée aux tâches subalternes d’une science de second rang : la collecte consciencieuse des matériaux empiriques dont il reviendrait à d’autres d’opérer la synthèse. Méfiants, ils sentaient que l’anthropologue n’avait insisté sur la complémentarité des deux disciplines que pour mieux les hiérarchiser. Conquérante et forte de ses attraits, la jeune ethnologiemontrait qu’elle s’apprêtait à détrôner son aînée. Depuis lors, le thèmede l’histoire dans la pensée de Lévi-Strauss a suscité l’un des grands débats qui, en France et ailleurs, ont marqué les sciences de l’homme du second XXe siècle – un débat que nous aurions tort d’imaginer dépassé. Le livre de l’historienne brésilienne Francine Iegelski en témoigne. Issu d’une thèse de doctorat soutenue à l’université de São Paulo en 2012, le volume, préfacé par François Hartog et enrichi d’une présentation de Sara Albieri, fraye son chemin au milieu d’une vaste littérature par l’originalité d’une démarche qui allie histoire des idées et réflexion théorique, afin de montrer que les questions posées par Lévi-Strauss à l’histoire peuvent encore nous guider parmi les interrogations actuelles de l’historiographie.

L’ouvrage d’Iegelski présente un triple intérêt. Tout d’abord, il se centre sur les écrits de Lévi-Strauss et montre que celui-ci a enrichi l’histoire, suivant lemêmemouvement par lequel il en a fait une espèce de contrepoint à son projet d’anthropologie sociale. Ensuite, ce travail se lance dans une histoire intellectuelle qui retrace les débats et les controverses ayant jalonné la réception historienne des idées de Lévi-Strauss, depuis l’article de Fernand Braudel sur la longue durée jusqu’aux écrits d’Hartog. Enfin, il change à nouveau de peau et s’engage dans une réflexion, plus théorique, sur les « expériences du temps ». Ce livre est en effet celui d’une historienne de métier, dont le but est de réfléchir sur l’histoire.

On lit avec profit les chapitres qui déclinent les significations diverses dont l’histoire apparaît investie au sein de l’oeuvre de Lévi-Strauss : elle désigne tantôt les expériences vécues des sociétés (le « champ événementiel », si l’on veut), tantôt l’attitude subjective que les différentes sociétés adoptent face au devenir, tantôt un savoir constitué au sein des sociétésmodernes, que ce soit sous la forme de l’histoire qu’écrivent les historiens ou d’un grand récit aux mains des philosophes et des idéologues. Des thèmes bien connus sont utilement revisités : les rapports entre histoire et ethnologie, le problème des discontinuités culturelles, celui de la contingence irréductible de l’événement et, finalement, la mise à nu des rapports entre mythe et histoire. Le mérite essentiel de cette traversée repose sur la gerbe d’informations moissonnées et sur un effort de décryptage d’autant plus estimable que la matière est spécialement compliquée. Au fil de ce parcours, le thème de l’histoire se diffracte au sein des écrits de Lévi-Strauss, tout en restant une constante.

Si l’analyse de l’oeuvre occupe la plus grande part du livre, l’originalité de l’initiative d’Iegelski est de ne pas s’y arrêter. L’autrice couronne son étude par l’histoire du retentissement des idées de Lévi-Strauss chez les historiens, au fil d’un récit truffé d’aperçus nouveaux. Elle propose une lecture intéressante du discours de Lévi-Strauss à l’occasion de la 5e Conférence Marc Bloch, que les Annales publient en 1983 sous le titre « Histoire et ethnologie », comme un écho à son article de 1949 qui ne fait qu’accuser l’écart entre leur conjoncture polémique respective. Cette dernière contribution de Lévi-Strauss dans les Annales atteste que le rapport entre les deux disciplines s’était radicalement transforméentre-temps ; en témoigne aussi, dans le même numéro, un autre article, cette fois signé Hartog, sur l’anthropologie de l’histoire où apparaît pour la première fois, sous une forme encore embryonnaire, la notion de « régimes d’historicité 2 ».

Un quart de siècle après que Braudel a proposé la longue durée comme une réponse à l’avancée de l’anthropologie structurale, Hartog lit Marshall Sahlins et envisage qu’un nouvel échange entre historiens et anthropologues soit désormais placé au niveau de l’événement, et non des « structures », mettant ainsi à l’épreuve l’idéequelerefusduchangement serait l’attitude prédominante des sociétés traditionnelles, supposées « froides », face à l’histoire. La rencontre de ces deux articles de Lévi-Strauss et d’Hartog est explorée par l’autrice comme une coïncidence pleine de sens, qui marque le moment où une conjoncture intellectuelle s’achève afin qu’une autre commence. En amont, l’étude des sociétés dépourvues d’écriture (donc sans archives ni histoire) s’opposait aux recherches consacrées aux sociétés engagées dans le devenir ; en aval, la manière dont les sociétés conçoivent leur inscription dans l’histoire devient un champ problématique commun, partagé par les spécialistes des deux disciplines.

D’une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, l’ouvrage se transmue ainsi en une histoire intellectuelle de la réception historienne de ses écrits, avant de se convertir en un essai sur la genèse de la réflexion sur les « expériences du temps » dans le travail d’Hartog. Les pages finales sont particulièrement novatrices, dédiées à l’influence des écrits de Lévi-Strauss sur le tournant réflexif de l’historiographie des années 1980 et sur l’avènement de cet outil d’investigation historique du temps qu’est la notion de « régimes d’historicité ». L’enjeu touche ici à l’actualité qu’acquiert au sein du travail d’Hartog la réflexion de Lévi-Strauss sur l’histoire. Après avoir remis en question l’idéal de progrès, Lévi-Strauss fut aussi l’un des savants à avoir reconnu les signes avant-coureurs d’un bouleversement des rapports au temps qui allait toucher les sociétés modernes en cette fin de siècle.

En 1993, Lévi-Strauss revient sur le binôme sociétés froides/sociétés chaudes qu’il avait autrefois proposé et signale que les « états » auxquels correspondent ces deux catégories ne sont pas figés, mais eux-mêmes soumis au devenir historique.

Il constate alors une double évolution, symétriquement opposée, qui atteint autant les sociétés traditionnelles (froides) que les sociétés modernes (chaudes) lors du dernier quart du XXe siècle : les premières, s’insurgeant contre le pouvoir des anciens colonisateurs, s’engagent dans l’histoire et « se réchauffent », tandis que les secondes suivent un mouvement inverse de « refroidissement », né de leur effort pour neutraliser les effets du temps et résister au devenir. Signe d’une perte de confiance dans l’avenir provoquée par les expériences traumatiques du XXe siècle (guerres, explosion démographique, ravages de la civilisation industrielle), ce processus de refroidissement au sein des sociétés chaudes recoupe, selon l’autrice, ce qu’Hartog appelle le basculement du « régime moderne d’historicité » vers le « présentisme ». Visiblement, les deux diagnostics convergent et se recouvrent. Pour Iegelski, ce refroidissement dont parle Lévi-Strauss est une expression de la fermeture du futur et de la montée d’un présent omniprésent qui caractérisent le moment « présentiste ». Dans sa préface, Hartog accepte volontiers ce rapprochement, mais se demande si l’on ne peut voir dans le présentisme un « hyper-réchauffement », où l’accélération est telle que le devenir se consume aussitôt, jusqu’à ne laisser de place qu’à un présent perpétuel.

De nouvelles perspectives de recherche s’ouvrent ainsi aux spécialistes de l’historiographie. Elles témoignent de la fécondité des réflexions actuelles sur la conscience historique des sociétés et leur rapport au temps 3. Dans une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, on peut certes regretter que l’autrice effleure seulement le thème des théories diffusionnistes, lequel recèle une piste importante pour comprendre comment les analyses des mythes chez l’anthropologue se situent face à un débat relatif aux processus d’acculturation précolombiens ainsi qu’aux guerres et aux migrations qui ont tantôt rapproché, tantôt séparé les hautes civilisations et les cultures de la forêt et de la savane. On eût aimé qu’Iegelski posât le problème des organisations dualistes en tant que traces de l’histoire perdue d’un ancien syncrétisme, des contacts et d’un vieux fonds culturel commun d’où seraient dérivées les cultures des hautes et des basses terres. L’obscurité enveloppant le passé américain a représenté, sans conteste, un redoutable obstacle qui n’a pas été sans déterminer très tôt les positions adoptées parLévi-Strauss à l’égard de l’histoire. Ces remarques n’enlèvent pourtant rien à la portée d’une étude qui se lance dans une lecture résolument historienne de la pensée vivante de Lévi-Strauss, en convoquant ses différentes réflexions sur l’histoire, en vue de mieux s’armer pour répondre aux défis historiographiques qui sont aujourd’hui les nôtres.

Felipe Brandi. E-mail: brandifelipe@yahoo.com AHSS, 74-2, 10.1017/ahss.2020.20.

Notas

1- Claude LÉVI-STRAUSS, « Histoire et ethnologie », in Anthropologie structurale, Paris, Plon, [1949] 1958, p. 3-33.

2 – Id., « Histoire et ethnologie », et François HARTOG, «Marshall Sahlins et l’anthropologie de l’histoire », Annales ESC, 38-6, 1983, respectivement p. 1217-1231 et p. 1256-1263 ; François HARTOG, Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris, Éd. du Seuil, 2003.

3 -Dossier « L’anthropologie face au temps », Annales HSS, 65-4, 2010, p. 873-996.

Crer em História | François Hartog

Lançado em 2017 no Brasil pela Editora Autêntica, o livro Crer em História é a produção de François Hartog lançada em Paris com o título Croire en l’histoire. O historiador, membro de importantes instituições como o Centre Louis-Gernet de Recherches Comparées sur les Sociétés Anciennes e o Centre de Recherches Historiques discorre sobre o crer e o fazer história em diferentes tempos, lugares e perspectivas para, por fim, indagar: ainda cremos em História?

Em quatro capítulos, além de introdução, intermédio e conclusão, Hartog descreve e comenta as diferentes tarefas atribuídas à história, bem como seus diferentes conceitos e interpretações. Nomes como Aristóteles, Halbwachs, Ricœur, Tolstoi, Sartre são evocados para colocar em debate a problemática das experiências de tempo e as formas de escrever – e talvez fazer – história para que se tente dar conta das questões que parecem cada vez mais apelar para a resolução dos impasses próprios da historiografia. Leia Mais

Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970) – NICODEMO et. al (A)

NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV, 2018. 238p. Resenha de: ALMEIDA, Letícia Leal de. História da historiografia brasileira: uma apresentação do percurso historiográfico. Antíteses, Londrina, v.12, n. 23, p. 850-857, jan-jul. 2019.

A História da Historiografia é um campo de discussão que se preocupa com a profusão dos discursos historiográficos, que visam compreender as relações que se estabelecem entre os historiadores, as instituições e a História. Buscando compreender as tensões entre o passado e as representações construídas na historiografia, os historiadores que se dedicam a essa perspectiva visam refletir sobre a emergência dos discursos, preocupações, critérios de validação e confiabilidade da historiografia.

O livro Uma introdução à história da historiografia (2018) foi construído a partir dos debates travados nos encontros do Seminário Brasileiro de História da Historiografia, bem como no Núcleo de História da Historiografia e Modernidade da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Em conjunto, Nicodemo, Santos e Pereira são historiadores que se têm dedicado à História da Historiografia, participando da organização dos encontros na UFOP, bem como na problematização da História da Historiografia enquanto campo de produção. Thiago Lima Nicodemo é professor de Teoria da História da Unicamp, com pesquisas desenvolvidas em torno da produção historiográfica de Sérgio Buarque de Holanda. Pedro Afonso Cristovão dos Santos é professor de Teoria da História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), com pesquisas sobre intelectuais do século XIX, com destaque a Capistrano de Abreu.

Mateus Henrique de Faria Pereira é professor associado de História do Brasil da Universidade Federal de Ouro Preto, com estudos em Historiografia no Tempo Presente, Intelectuais e Teoria da História.

O recorte temporal do livro visa contemplar discussões a partir da emergência da História da Historiografia no Brasil, desde o surgimento do moderno conceito de História no século XIX, além das apropriações e ressignificações das matrizes europeias no Brasil. Buscando compreender o percurso da História da Historiografia até a institucionalização da História nas Universidades e ao refletir sobre a elaboração da Cultura História brasileira e dos estudos desenvolvidos acerca desse tema, visa instaurar um lugar para as produções brasileiras na História da Historiografia. A maior parte do livro se centra no contexto após a institucionalização das Universidades.

No que se refere à História, a partir da estruturação dos cursos nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil, partir de 1930 (FERREIRA, 2013). O mérito do texto está em apresentar um fio condutor na emergência do historiador de ofício: a partir da preocupação dos historiadores em situar-se em relação às produções anteriores, problematizando a organização da Historiografia brasileira a partir de suas próprias tensões e especificidades, rompem, assim, com a perspectiva da relação centro-periferia, discutindo a produção dos autores na organização de conceitos e de critérios para a Historiografia no Brasil.

No primeiro capítulo, os autores constroem o percurso da Historiografia enquanto campo, ou seja, relacionando problemas, aportes teóricosmetodológicos, nos quais diversos autores buscaram compreender o passado brasileiro. Utilizando um recurso do Google, o Ngram Viewer2, buscaram localizar a palavra Historiografia e seus correlatos em outros idiomas, com destaque para o inglês, espanhol, francês, italiano e alemão, ressaltando, assim, a ascensão no uso da palavra Historiografia a partir do século XX, enquanto fenômeno transnacional. O crescimento, segundo os autores, se deve à estruturação dos primeiros cursos de História nas Universidades, o que ampliou consideravelmente a produção em História (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 23 – 25).

Nos capítulos seguintes, segundo e terceiro, destacam os primeiros esforços de se pensar a Historiografia Brasileira, como os livros de José Honório Rodrigues, desde a Teoria da História do Brasil, de 1949, até História da História do Brasil e a Historiografia colonial de 1979. José Honório Rodrigues é um dos autores basilares para se compreender o processo organização do ofício do historiador, do caráter amador-ensaísta ao historiador acadêmico (IGLÉSIAS, 1988).

Desde o gênero ensaístico, que misturava História e Política, os autores apresentam a emergência de novas formas de apreensão do tempo. A divisão da Historiografia no Brasil deveria considerar a produção desde o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, em 1838, até a organização das Universidades, momento em que a História iniciou o processo de organização disciplinar, definindo seus limites, enquanto uma tradição especializada.

A partir do processo de consolidação da disciplina e da emergência do historiador profissional, os autores discutem sobre a transição entre o intelectual polígrafo e o historiador acadêmico. Nesse sentido, referenciam a produção de Capistrano de Abreu, no Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, publicado em 1878.

Nesse texto, se discutiu sobre o caminho da História Nacional, apresentando um protótipo de historiador: Transparecem as qualidades que comporiam o historiador ideal: a erudição, o conhecimento em primeira mão das fontes, aliados a uma capacidade de fazer reviver, pela escrita, os eventos estudados e de ter empatia com o objeto (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 23-25).

Varnhagen, aos olhos de Capistrano, ao apresentar preocupações com as fontes e metodologias, próprias do métier do historiador, foi destacado pelos autores como precursor da Historiografia, compondo um estilo e uma escrita.

Desse modo, a História foi tecendo uma legitimidade enquanto produção de conhecimento. Em vista disso, a produção do século XIX se deu através da acumulação de informação e de fontes, além da crítica documental (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 64).

Ao retratar Varnhagen, Capistrano apresenta uma visão mais refinada do processo metodológico, enviesado pela perspectiva de verdade em História. Os autores esclarecem que, devido à essa produção, a partir do acúmulo exaustivo das fontes, marcada pelo viés cronológico, possui uma natureza diferenciada que visava articular presente, passado e futuro.

Outro texto fundamental, destacado pelos autores, publicado em 1951 por Sérgio Buarque de Holanda, foi O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos. Para Holanda, Capistrano seria o ponto de partida para a Historiografia, enquanto processo de definição dos estudos históricos. A contribuição desse texto é de incidir sobre os anos 20 e 30, momento em que vigorou a produção ensaística.

Sérgio Buarque de Holanda produziu ensaios interpretativos, enquanto uma preocupação desse período, contemporâneo aos estudos de Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, que analisaram as heranças coloniais, esses escritos visavam transformar a realidade brasileira. O gênero ensaísta-síntese visava articular instrumentos teóricos, influenciados por matrizes diferentes: americana, alemã e francesa, momento em que o meio de inserção dos intelectuais se dava através da crítica literária ou do serviço público. Os autores dão destaque a Sérgio Buarque de Holanda como um intelectual de transição, entre o intelectual polígrafo e o historiador universitário (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 74 – 75).

No terceiro capítulo, a organização das primeiras Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras no Brasil, com destaque à criação da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, criada em 1934 a partir da missão francesa, e da Faculdade Nacional de Filosofia de 1939, marca o início da organização da produção acadêmica.

Porém, a consolidação dessa produção só começaria a aparecer a partir de 1950, momento em que a pesquisa em História adquire um novo sentido orientada por problemas mais delimitados e mais aprofundados (FERREIRA, 2013).

Ainda nesse capítulo, os autores aprofundam as proximidades da produção acadêmica com a produção dos ensaístas. Nas Universidades, o processo de reflexão sobre o que fora produzido desde o século XIX apresentava rupturas e continuidades.

Holanda foi um dos intelectuais que defendeu a institucionalização universitária e a valorização do trabalho acadêmico. A partir da sua produção, de Raízes do Brasil de 1934, Monções, de 1945, até Caminhos e Fronteiras, de 1957, é possível compreender a preocupação do autor com as condições sociais da produção, bem como o refinamento de uma erudição em história. A produção de Holanda refletiu sobre a mudança na concepção de métodos e dos instrumentos teórico-metodológico, para além das generalidades, e visou afirmar uma cultura acadêmica a partir do discurso do historiador profissional, atento aos dilemas do presente.

A partir da institucionalização das Universidades, no quarto capítulo, os autores buscaram compreender a repercussão da produção acadêmica, com o aumento substancial da produção em História, tanto a partir da estruturação de instituições de fomento às pesquisas, quanto com a criação de cursos universitários e de um mercado editorial que permitiu a circulação dessas produções, como a criação de revistas acadêmicas, com destaque à Revista de História da Universidade de São Paulo. Dentro dessa dinâmica, vale ressaltar que a organização das Universidades estava alinhada à preocupação com a formação de professores e não de pesquisadores, por isso o cuidado estava centrado no ensino de História e na Didática da História.

No quinto capítulo, os autores aprofundam as discussões centrais do livro, sobre a organização da História da Historiografia como campo, no I Seminário Internacional de Estudos Brasileiros de 1971. Nesse seminário, Francisco Iglésias apresenta uma das primeiras concepções de História da Historiografia, enquanto exame exaustivo dos livros sobre História do Brasil e de um roteiro de textos importantes, reafirmando o papel de Capistrano de Abreu, como marco desse tipo de reflexão.

Segundo os autores, a História da Historiografia já havia sido mobilizada em 1961, a partir da publicação da Iniciação aos estudos históricos, de Jean Glenisson, com a colaboração de Pedro Moacyr Campos e Emília Viotti da Costa, ao referirse aos desafios da relação entre Teoria da História e História da Historiografia.

História geral da civilização brasileira, lançado em 1960, é outro livro central para História da Historiografia e foi organizado por Pedro Moacyr Campos e Sérgio Buarque de Holanda, com ênfase aos estudos sobre o Brasil imperial.

A partir da afirmação da Universidade como centro de produção em História, o quinto capítulo visou compreender o reconhecimento do trabalho do historiador, bem como as preocupações dos primeiros professores universitários. Desde a organização do primeiro simpósio da Associação Nacional de Professores Universitários, que aconteceu em Marília em 1961, bem como na produção das coletâneas de José Honório Rodrigues e das produções de José Amaral Lapa, até a inserção da História da Historiografia nos currículos universitários, os autores discutem sobre as implicações políticas e teórico-metodológicas desse processo nas produções acadêmicas a partir de 1960, a partir da inserção da História da Historiografia nos currículos universitários, que conciliava tanto a análise da produção dos historiadores quanto a História da História, esta como sinônimo de História da Historiografia.

Foi a partir de 1970 que se deram os embates em torno da inclusão da História da Historiografia enquanto disciplina separada da Teoria da História, presente nas produções de José Roberto do Amaral Lapa. Para este, a História da Historiografia deveria analisar criticamente a produção dos historiadores e a transformação do pensamento histórico, o que significava afirmar que a História da Historiografia possuía um objeto próprio, teorias e metodologias. A reafirmação desse campo rejeitava uma análise centro-periferia, pois buscava construir marcos a partir da própria produção historiográfica, não mais marcos políticos, como a fundação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro ou das Universidades. Além do mais, propunha uma investigação sobre métodos, pressupostos teóricos e formas de se escrever a Historiografia brasileira.

Isto posto, os autores buscaram compreender a organização do campo da História da Historiografia, embates e dilemas, expressos desde os primeiros textos reflexivos como em Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda, a organização das coletâneas como as de José Honório Rodrigues, até a institucionalização da disciplina nos currículos universitários. Enfim, o processo de composição de uma cultura histórica que aos poucos se tornou universitária, a partir do adensamento de projetos políticos, compreendendo sua dimensão prática e política. Como destacado pelos autores: Os tempos são de disputas intensas pelo passado e a dimensão ético-política da escrita da história volta a ser central. Também é hora de pensar nas práticas dos historiadores do passado, incluindo nossos mestres, como práticas arqueologicamente investigáveis. Também é hora de pensar se não é momento da história da historiografia e da teoria da história irem além (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018, p. 186).

Tal permite-nos compreender o processo de transformação da escrita em História no Brasil, bem como a organização de métodos e conceitos que consolidam a História da Historiografia.

A História da Historiografia, nesse sentido, permite compreender os balanços do fazer histórico, a partir da investigação sistemática acerca dos discursos produzidos sobre o passado, refletindo sobre as memórias construídas pelos autores em suas obras, suas posições teórico-metodológicas, tensões em torno da escrita da História, que, sob uma perspectiva presentista após os anos 70, visam compreender as novas experiências de apreensão do tempo.

O livro traz uma importante contribuição à historiografia, desde o recorte temporal realizado pelos autores, de 1870 a 1970, que permite compreender o percurso da História da Historiografia no Brasil. Por tratar-se de um balanço do tema, possibilita aos pesquisadores principiantes se inteirar dos debates, conhecer autores referenciais, enfim, compreender a especificidade da escrita da História no Brasil, além de vislumbrar um campo de pesquisa em plena expansão, como muitas fontes inéditas, novos problemas de pesquisa, à luz de novas perspectivas teórico-metodológicas.

Referências FERREIRA, Marieta de M. A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

IGLÉSIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 55 – 78, 1988.

NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV, 2018. 232 p.

Notas

2 O Google Ngram Viewer é um recurso do Google que mapeia a frequência da palavra pesquisada a partir de fontes de 1500 a 2008.

Letícia Leal de AlmeidaProfessora na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Doutoranda no Programa de Pósgraduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina. Email: leticialeal.historia@gmail.com.

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Teoria da História (v.1) Razão Histórica: os fundamentos da ciência histórica | Jörn Rüsen

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UnB, 1ª reimpressão, 2010. Resenha de: SOUZA, Fernanda Almeida de; URBAN, Ana Claudia. Revista de Educação Histórica, Curitiba, n.18, p.94-98, jan./jun., 2019.

Jörn Rüsen, professor emérito da Universidade de Witten/Herdecke (Alemanha), foi professor nas Universidades de Braunschweig, Berlin, Bochum e Bielefeld. Presidiu o Instituto de Estudos avançados (KWI), de Essen, de 1997 a 2007. É autor de obras fundamentais nos campos da teoria, da metodologia e da didática da História, assim como da história dos direitos humanos e das ciências da cultura. Sua obra encontra grande eco internacional no Brasil, em Portugal, na Espanha, no Canadá, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na África do Sul. É professor e conferencista visitante em diversas universidades alemãs e internacionais, notadamente no Brasil: Brasília, Curitiba, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo.30 Sua obra mais conhecida e estudada nos últimos anos nas Universidades e Pós-Graduação no Brasil é Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica publicado em três volumes: Razão Histórica (Volume 1); Reconstrução do passado (Volume 2); História Viva (Volume 3). A análise que apresento é sobre o Volume 1: Razão Histórica, na qual aponto os parâmetros relevantes da obra por eixos temáticos, e não seguindo a ordem da narrativa do livro.31

Jörn Rüsen é um filósofo da história, assim como outros autores desse campo de estudo, se propôs a fundamentar uma Teoria da História, sendo assim, conceituar a história como ciência está presente nas suas análises. O conceito de História como Ciência é apresentado a partir do questionamento, o que é ciência? O autor apresenta que cada área científica tem suas particularidades, logo, a história também tem sua especificidade. Mas é preciso uma reflexão além do fator das especificidades, para afirmar a História como Ciência se faz necessário também, refletir sobre o caráter comum que valida as diversas áreas das ciências, que é o procedimento metódico, de acordo com Rüsen (2010, p. 99) “o pensamento histórico é científico, portanto, à medida que procede metodicamente”. O parâmetro de História Ciência ocorre então, quando o processo histórico de regulação metódica da pesquisa, leva o conhecimento genérico à plausibilidade racional e controlável da ciência.

Observamos o gráfico de ideias que norteiam as explanações do livro Razão Histórica:

Figura Matriz disciplinar de Rusen1 Lógicas e Métodos

O gráfico é apresentado no livro sob perspectiva de explanar o conceito de matriz disciplinar. Para Rüsen a Teoria da História é vista com extrema importância, evidenciando que os historiadores necessitam primeiramente estar muito bem inseridos neste universo da História Ciência, faz uma análise firme e crítica dos propósitos que devem ter a Teoria na construção da Ciência da História, no sentido da história como produto da operação científica da história acadêmica ou investigativa, ou seja, faz parte da História Ciência reflexões profundas sobre o caráter específico do historiador, que para o autor é a especificidade do trabalho de dar sentido à experiência da mudança temporal do passado.

A Teoria da História tem de apreender, pois, os fatores determinantes do conhecimento histórico que delimitam o campo inteiro da pesquisa histórica e da historiografia, identificá-los um a um e demostrar sua interdependência sistemática. E como a pesquisa e a historiografia nada tem de estático, cabe à teoria mostrar como esse processo é dinâmico. Seu objeto são os fundamentos e princípios da Ciência da História. O termo técnico para descrevê-lo é matriz disciplinar: o conjunto sistemático de fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da Ciência da História como disciplina especializada. (RÜSEN, 2010, p. 29).

A matriz disciplinar apresentada no gráfico está propondo um processo lógico-dedutivo para fundamentar a Ciência da História. O ponto de partida é o vínculo entre História enquanto ciência (História Ciência) e o trabalho do historiador (Ciência da História) que ocorre, na medida em que o historiador para dar sentido à experiência do passado com o propósito de torná-lo presente, segue regras e métodos construídos pela História Ciência. O ‘sentido’ referido na obra, tem um caráter norteador, deve ser buscado pelas carências do presente, e esse processo racional pela busca de ‘sentido’ através das carências do presente, passa pelo campo das ideias, que seriam as perspectivas orientadoras da experiência do passado. A partir dessa estrutura racional do pensar, ocorre o uso do método, para concretizar os encaminhamentos da pesquisa. Esses fatores aparecem, em princípio, em todo pensamento histórico, “no entanto, articulados na matriz disciplinar da Ciência da História, eles adquirem a especificidade que permite distinguir o pensamento histórico constituído cientificamente do pensamento histórico comum.” (RÜSEN, 2010, p. 35).

O texto expressa que para Rüsen é primordial que a pesquisa histórica ou historiográfica se inicie não como forma de se encaixar ou adaptar-se a regras teóricas somente, ou que uma pesquisa se constitua a partir de interesses puramente pessoais ou quaisquer, dessa forma se produziriam histórias ‘não válidas’, ou seja, sem conexão com as demandas de interesse da sociedade presente, sem que o conhecimento produzido tivesse significado aos seus interlocutores. A história ‘válida’ então, seria aquela na qual o historiador estabelece seu objeto cognoscível através de um olhar cuidadoso a partir do seu presente, buscando observar quais são as carências da vida prática da sociedade, e a partir das carências sinalizadas, buscar um ‘sentido’ de conexão entre o passado e o presente, esse processo fundamenta o conceito de consciência histórica, explorado por Rüsen (2010, p. 57) “como a suma das operações mentais com quais os homens interpretam sua experiência na evolução temporal do seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo.”

Rüsen evidencia com clareza que a Ciência da História deve se movimentar pela consciência histórica, e que essa através de uma narrativa inteligível, consegue chegar ao âmbito de perspectivar o futuro.

“História” é exatamente o passado sobre o qual os homens têm de voltar o olhar, a fim de poderem ir à frente em seu agir, de poderem conquistar seu futuro. Ela precisa ser concebida como um conjunto, ordenado temporalmente, de ações humanas, no qual a experiência do tempo passado e a interação com respeito ao tempo futuro são unificadas na orientação do tempo presente. (RÜSEN, 2010, p. 74).

A valorização da consciência histórica é central na obra, bem construída e articulada por Rüsen, por exemplo, quando parte do princípio do questionamento, como surgem dos feitos a História? O autor para construir sua argumentação em favor da consciência histórica como resposta, fundamenta-se em bibliografias alemãs que responderam à pergunta em questão, ou de forma muito subjetiva ou de forma muito objetiva, os fatores de subjetividade (de Max Weber) e objetividade (do materialismo histórico) passam pela criticidade do autor, como forma de validar sua defesa por respostas históricas estruturadas a partir da matriz disciplinar.

Para Rüsen a matriz disciplinar e as conexões de orientações apresentadas nela: carências de orientação, diretrizes de interpretação, métodos; formas de apresentação, funções de orientação, é uma explicação teórica do tipo de racionalidade da constituição histórica de sentido, mas essas diretrizes não devem ser interpretadas como uma série de etapas sucessivas e estanques, ao contrário, esses fatores devem ser condicionados mutualmente representando uma forma de ‘pensar a história’ dentro de um conjunto sistemático e complexo.

Fazer uso da matriz disciplinar implica no uso de valoração da narrativa, para que todos os fatores apresentados na matriz possam ser articulados. Essa reflexão está no apêndice à edição brasileira e seu objetivo maior é articular a defesa da matriz disciplinar ao referencial teórico.

O apêndice mencionado, recebeu como título: a constituição narrativa do sentido histórico, no qual Rüsen explora o tema de forma bem argumentativa, mostrando por referenciais teóricos, como a questão da história narrativa foi tratada e refletida historicamente; o tema é explorado sob perspectiva do paradigma narrativista, onde para Rüsen como não existe uma racionalidade única, mas sim diversos tipos de racionalidade, trata-se agora de desenvolver “um tipo de racionalidade da constituição histórica de sentido na forma de um paradigma que resista à crítica feita à racionalidade até agora dominante no pensamento histórico moderno e que exprima em pretensões convincentes de racionalidade.” (RÜSEN, 2010, p. 169).

Para a narrativa histórica “é decisivo, por conseguinte, que sua constituição de sentido se vincule à experiência do tempo de maneira que o passado possa tornar-se presente no quadro cultural de orientação da vida prática contemporânea.” (RÜSEN, 2010, p. 155).

Rüsen argumenta com propriedade sobre as questões paradoxais da Ciência História, percebe isso como extremamente necessário, e expressa que o campo teórico da história não pode ser dado como finalizado, é necessário continuar explorando e ressignificando os teóricos e bibliografias. O livro também aborda outras temáticas próprias da Teoria da História, como, conceito de verdade, partidarismo, uso das fontes, humanismo, que não foram abordados, pois optei em encaminhar a resenha dentro do conceito que julguei ser a verdadeira alma do livro: a importância da consciência histórica estabelecida e guiada a partir da matriz disciplinar na produção da ciência da história. Como se trata de uma trilogia, os temas abordados em Razão Histórica continuam sendo explorados em perspectiva teórica em Reconstrução do Passado e História Viva.

Notas

30. www.joern-ruesen.de

31. Esta resenha foi produzida para a disciplina de Teoria da História (disciplina do Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR/ 2019), o objetivo estabelecido era buscar na leitura contribuições que pudessem dialogar com o projeto de pesquisa.

Fernanda Almeida de Souza – Professora da Rede Estadual de Ensino do Paraná, graduada em História, mestranda no Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR. E-mail: fernanda.giles.28@hotmail.com

Ana Claudia Urban – Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do Paraná – Setor de Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Mestrado Profissional em Ensino de História e Professora de Metodologia e Prática de Docência de História. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica (LAPEDUH – UFPR). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001- 9957-8838. E-mail: claudiaurban@uol.com.br

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L’épistémologie historique. Histoire et méthodes | Jean-François Braunstein, Iván Moya Diez e Matteo Vagelli

Desde hace poco más de dos décadas, puede constatarse un crecimiento de la epistemología histórica; primeramente, un desarrollo de su versión anglosajona: la “nueva” historical epistemology y luego, una revitalización de su versión francesa: la “vieja” épistémologie historique. A lo largo de estos años, se han multiplicado los eventos académicos, las publicaciones, las tesis, los proyectos de investigación y los espacios de formación dedicados a este “estilo”2 en epistemología.3

Al interior de este campo plural en expansión, la importancia del libro que aquí reseñamos reside en que, aún sin proponerse como tarea principal el definir qué es la epistemología histórica, sin embargo, al brindar en cada capítulo testimonios claros, matizados y originales de este estilo de pensar y hacer en epistemología inseparable de la historia de las ciencias, por añadidura nos permite arribar a otra definición de la epistemología histórica. Así, como intentaremos mostrar a continuación, las contribuciones de las dos secciones de este libro nos llevan a entender y a valorar, de manera renovada y recurrente, la historia, los métodos y los objetos propios de la epistemología histórica, lo que esta ha sido, su devenir presente y su actualidad. Leia Mais

Historisierung der Historik. Jörn Rüsen zum 80 – SANDKÜHLER; BLANKE (ZG)

SANDKÜHLER, Thomas; BLANKE, Horst Walter (eds.). Historisierung der Historik. Jörn Rüsen zum 80. Geburtstag, Wien ; Köln ; Weimar : Böhlau , 2018. WAGNER, Helen. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 214-218, 2019.

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Historicidade e objetividade – DASTON (HU)

DASTON, L. Historicidade e objetividade. Tradução: Derley Menezes Alves e Francine Iegelski (org. Tiago Santos Almeida). São Paulo: LiberArs, 2017. 143 p. Resenha de: SOUSA, Raylane Marques. Por uma história dos ideais e práticas da objetividade científica. História Unisinos 22(4):702-707, Novembro/Dezembro 2018.

A coletânea de artigos intitulada Historicidade e objetividade, de Lorraine Daston, historiadora das ciências e diretora do Instituto Max-Planck de História das Ciências de Berlim, publicada no segundo semestre de 2017 e correspondente ao primeiro lançamento da “Coleção Epistemologia Histórica”, da Editora LiberArs, constitui-se num desafio de historicização das ciências e num projeto de epistemologia eminentemente histórica. O livro em tela congrega um prefácio, uma apresentação e sete artigos e persegue o propósito que desvelaremos a seguir.

No prefácio, Lorraine Daston anuncia-nos a proposta da obra 1. A autora esclarece-nos que os artigos, com a ressalva de um, enquadram-se numa perspectiva de historicização das ciências e num programa de “epistemologia histórica”.  Se a intenção de Daston é construir um programa de epistemologia histórica, isto é, “a história das categorias e práticas que são tão fundamentais para as ciências humanas e naturais que parecem muito autoevidentes para ter uma história” (p. 9-10), o itinerário argumentativo que ela desenha nas sete investigações em pauta revela-o de forma coerente e original, uma vez que o objetivo embrionário da coleção desses artigos, tendo em conta o excelente esteio bibliográfico em que se sustentam, é justamente mostrar que a objetividade nas ciências, a atividade de observação, a elaboração de um fato científico e as formas de quantificação têm uma história e pensar sobre as especificidades dessa história nos leva “a repensar a história de como sabemos o que sabemos” (p. 10).

Na apresentação, intitulada “História das Ciências, Teoria da História e História Intelectual”, Tiago Almeida e Francine Iegelski (2017) apontam-nos os motivos que os levaram à tradução, à organização e à publicação de Historicidade e objetividade. Os autores esclarecem-nos que a execução desse projeto tem dois objetivos: o primeiro é de colocar o público brasileiro em contato com os debates mais fecundos da historiografia das ciências; e o segundo é de discutir o já consolidado “programa historiográfico” ou a “epistemologia histórica” de Lorraine Daston para a história das ciências. Os autores evidenciam igualmente que o programa ou a epistemologia histórica de Lorraine Daston se distingue dos programas historiográficos anteriores e contemporâneos porque foi capaz de incorporar as contribuições e se desviar dos defeitos das três principais escolas da história das Nas relações que estabeleciam entre o conhecimento e seus objetos, a primeira escola tinha o defeito de ser idealista, a segunda de ser estruturante, e a terceira de se aprisionar ao particular. Desse modo, como frisam os autores, em seu programa ou epistemologia histórica, Daston recusa a ideia, bem acolhida e propagandeada por essas escolas, segundo a qual “historicizar equivaleria a relativizar ou, o que é pior, invalidar” (p. 12), ao mesmo tempo em que recupera o método de comparação entre as ciências, apesar de suas diferentes especialidades. De acordo ainda com os autores, a originalidade da abordagem de Daston para a história das ciências reside no fato de ser um projeto de trabalho conciliador, favorável à reunião de pesquisadores de diversas áreas, dedicado ao estudo de categorias, conceitos, ideias, objetos e práticas basilares da ciência moderna. Além disso, a apresentação retrata que certo número de pesquisadores chegou ao campo da História das Ciências via Teoria e Metodologia da História e História das Ideias e Intelectual, e vice-versa. Tanto o campo da História das Ciências quanto os campos da Teoria e Metodologia da História e História das Ideias e Intelectual se interessam pela historicidade das ciências, pelas relações entre conceitos, ideias, discursos, textos e contextos, e pelas temporalidades e escritas da história. Assim, o fascínio por esses temas acabou por aproximar essas áreas de conhecimento e por favorecer o contato dos historiadores da história com os historiadores da ciência, além de familiarizar os primeiros com os trabalhos de Daston, principalmente aqueles textos que versam sobre a objetividade e seus significados e múltiplas formas de manifestação.

No artigo 1 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Objetividade e fuga da perspectiva”, Daston esforça-se por traçar uma história não linear e contingente da objetividade científica, história essa que vai do fim do século XVIII ao início do século XIX3. O texto inicia com uma explanação concernente aos múltiplos sentidos da palavra objetividade e suas variantes nos idiomas francês (objectivité) e alemão (Objektivität). Nessas duas línguas, a autora explica que a palavra é confusa e refere-se a um só tempo à metafísica, aos métodos e à moral. A primeira referência diz respeito à busca dos cientistas por uma verdade objetiva no conhecimento, a segunda diz respeito aos procedimentos objetivos que sustentam toda pesquisa científica, e a terceira diz respeito à conduta objetiva, imparcial e desapaixonada do investigador. Daston assinala, na continuação do debate do texto 1, que os pesquisadores dos Science Studies têm se interessado bastante pelo conceito de objetividade na atualidade, mas eles continuam focando nos problemas de existência e legitimidade, em vez de problemas históricos. De maneira efetiva, como a autora argumenta, a objetividade tem uma história, e um dos episódios que lhe permite falar de tal história é a emergência, no século XIX, do que ela chama de ideal de “objetividade aperspectivística”, isto é, a tentativa de eliminação de características individuais do conhecimento científico. Assim, é no esforço de compreender o ideal de objetividade aperspectivística que a autora tece uma história crítica desse conceito no primeiro texto. Lorraine Daston sugere também que é possível visualizar o desenvolvimento desse conceito na literatura estética e moral do século XVIII, como no caso dos autores Shaftesbury, Hume e Adam Smith. A autora nos diz que as discussões a respeito da “perspectiva” no século XVIII e XIX procuram a supressão e o distanciamento emocional do indivíduo e colocam afirmações morais e estéticas em lado oposto às afirmações científicas, a exemplo dos pensadores mencionados. Seguindo o seu raciocínio, a autora também procura investigar a situação do conceito nas ciências naturais, opondo as tentativas dos homens de ciência do século XIX de sacrificar os traços pessoais a práticas precedentes. A autora esclarece que as investidas desses homens de ciência de supressão de traços individuais eram como que uma precondição para a criação de uma comunidade científica justa, harmoniosa e coerente, assim como uma garantia de alcançar a verdade científica.

Finalmente, a autora conclui o texto 1 com uma breve reflexão sobre como e por que a história do conceito de objetividade aperspectivística ganhou uma camada moral. Segundo a autora, a objetividade aperspectivística prescrevia certa indiferença e desapego por tudo o que é pessoal. Os cientistas deveriam não apenas abandonar tudo o que lhes é próprio, mas também esquecer todo e qualquer reconhecimento de si mesmos. Ademais, os valores da objetividade aperspectivística contribuíram para que os cientistas pautassem a sua conduta em métodos mecânicos e observações morais. A par dessas informações, o primeiro artigo do livro diz-nos que a objetividade que Lorraine Daston nos apresenta como tendo uma história tem como base as seguintes críticas: em primeiro lugar, a objetividade nas ciências não é um “dado trans-histórico” (p. 16) e que busca “a estrutura última da realidade” (p. 17); e, em segundo lugar, a objetividade não é mecânica e que visa suprimir “a propensão universal humana de julgar e estetizar” (p. 17).

O artigo 2 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “A economia moral da ciência”, procura avaliar e desbancar uma antiga tradição que opõe fatos a valores. A espinha dorsal do presente texto é a ideia de que a ciência tem o que Lorraine Daston chama de “economia moral” e esta economia moral constitui o modo de conhecimento científico. Mais especificamente, a autora assevera que a ciência tem “certas formas de empirismo, quantificação e objetividade que não apenas são compatíveis com economias morais, elas exigem economias morais” (p. 38).

Segundo Daston, muito embora a ciência seja um exemplo de racionalidade e facticidade, ela não está isenta de afetos e emoções, valores, ideologias, normas e regularidades institucionais. Consoante a autora, “economias morais, ao contrário, são partes integrais da ciência: de suas fontes de inspiração, suas escolhas de temas e procedimentos, a peneira da evidência e seus padrões de explicação” (p. 42).

Embora as economias morais existam na ciência, para que elas servem e como elas estruturam as ideias-força de como os cientistas vêm a conhecer? Acerca dessas questões, Daston explica que uma economia moral é boa para a quantificação, o empirismo e a própria objetividade. As várias formas de quantificação têm economias morais. Os historiadores da ciência quantificam cientificamente, mas nem todos aspiram à exatidão matemática de suas mensurações, embora a precisão seja uma das virtudes mais observadas e louvadas entre eles. O empirismo também é um elemento fecundo em economias morais. Os três principais aspectos do empirismo da filosofia natural do século XVII, o testemunho, a facticidade e a novidade, apoiam-se e entrelaçam-se em valores e afetos. A objetividade, entretanto, é já uma economia moral. De acordo com Daston, duas de suas variantes mais importantes, ambas oriundas do século XIX, são: a “objetividade mecânica” e a “objetividade aperspectivística” (p. 59). A objetividade mecânica fundamenta-se em uma epistemologia da autenticidade e exige a eliminação de qualquer interferência pessoal no conjunto de observações da natureza. Já a objetividade aperspectivística assenta-se no lema “a visão a partir de lugar nenhum” de Thomas Nagel e combate as idiossincrasias de indivíduos e até de coletivos de pesquisadores em prol da verdade científica. Portanto, o elemento fundamental da discussão de Daston sobre as economias morais do conhecimento científico baseia-se na ideia de que o núcleo da ciência é moral e ressoa a voz do dever moral.

No artigo 3 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Uma história da objetividade”, Daston começa pontuando aspectos das três escolas que dominaram a história das ciências, a saber: a escola filosófica, a escola sociológica e a escola histórica. A escola filosófica é idealista e pensa a história das ciências como “a história da emergência e desaparecimento dos conceitos de natureza, dos sistemas metafísicos e dos quadros epistemológicos” (p. 69). Os historiadores filósofos da ciência associados a essa forma de pensar direcionam sua atenção para as teorias científicas e para a interlocução dessas teorias com outras áreas do conhecimento, como a filosofia e a teologia.

A escola sociológica concentra seu olhar sobre as estruturas sociais (tanto as microscópicas quanto as macroscópicas) da pesquisa científica. Os historiadores sociólogos da ciência que compartilham dessa tendência enxergam a ciência como uma instituição importante inserida na sociedade e que espelha a divisão dos poderes e a produção dos significados culturais. Já a escola histórica foca no local e no singular, aspectos que as outras duas escolas deixaram de lado. Os historiadores aliados a essa forma de pensar a ciência primam não apenas pelas teorias, mas também pelas práticas científicas e pelo trabalho nos arquivos. Outro aspecto basilar desse texto 3 é a apresentação do novo programa de Daston para a história das ciências. A autora finalmente explica o que entende por “epistemologia histórica” (Historical Epistemology): “a história das categorias que estruturam o nosso pensamento, que modelam nossa concepção da argumentação e da prova, que organizam nossas práticas, que validam nossas formas de explicação e que dotam cada uma dessas atividades de um significado simbólico e de valor efetivo” (p. 71). A singularidade da epistemologia histórica de Daston é que ela se relaciona à história das ideias, das práticas, dos afetos e emoções, dos valores e significados que organizam as economias morais das ciências. Daston estabelece novas perguntas para velhas questões. É principalmente nesse aspecto que a abordagem da autora se diferencia das demais que ordinariamente tomam a objetividade científica como desprovida de história.

No artigo 4 da obra Historicidade e Objetividade, intitulado “O que pode ser um objeto científico? Reflexões sobre monstros e meteoros”, Daston explica o que é e o que pode se tornar um objeto de pesquisa científica. A resposta da autora para esse questionamento é uma crítica construída com base na afirmação de Aristóteles de que as ciências se fazem a partir de regularidades: “daquilo que é sempre ou pelo maior período de tempo” (p. 79). Para Daston, porém, somente a regularidade não é suficiente para destacar um item do cotidiano ordinário e torná-lo objeto de investigação científica. É necessário ir além e observar “se uma classe de fenômenos é quantificável, manipulável, bela, experimentalmente repetível, universal, útil, publicamente observável, explicável, previsível, culturalmente significativa ou metafisicamente fundamental” (p. 79). Segundo Daston, esses critérios se justapõem e demonstram que a escolha dos objetos científicos vai além do simples critério de regularidade. Assim, um estudo sério do que é e do que não é objeto para a ciência deve levar em consideração esses critérios e como eles se sobrepõem à experiência normal do cotidiano e destacam alguns fenômenos como objeto de investigação e outros não. O objetivo de Daston nesse texto 4 é exatamente examinar, por meio de exemplos históricos, como e por que os objetos da filosofia preternatural se tornaram objetos de investigação da ciência em meados do século XVI e foram esquecidos no século XVIII. Segundo a autora, os objetos da categoria preternatural/além da natureza (sintetizados em dois grupos, monstros e meteoros) continuaram a existir nesse período, mas não despertaram mais interesse dos cientistas, porque os três princípios (ontológico, epistemológico e sensitivo) que mantinham tal categoria unida e em evidência foram desvelados. Daston defende que os objetos preternaturais foram escolhidos, em primeiro lugar, pelo princípio ontológico, que significa coisas e eventos fora da ordem cotidiana da natureza. Em segundo lugar, eles foram escolhidos pelo princípio epistemológico, que exige um trabalho mais pesado de coleta, explicação e fundamentação.

Em terceiro lugar, eles foram escolhidos pelo princípio da sensibilidade, que dá conta das maravilhas e, até mesmo, dos milagres e prodígios. De acordo com a autora, no entanto, a filosofia preternatural não teve morte espontânea. Os três princípios que a fundamentavam foram incorporados pela filosofia natural do final do século XVII e início do século XVIII. Além disso, a emergência de uma nova metafísica e uma nova sensibilidade dissolveu sua lógica, embora sem eliminar seus componentes, tornando-a irrelevante para os estudos científicos.

No artigo 5 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Sobre a observação científica”, Daston apresenta-nos a observação científica como um gênero epistêmico dotado de historicidade. A autora explica-nos que a observação é a prática científica basilar das ciências humanas e naturais. Embora tal prática não desperte o interesse das ciências enquanto objeto de investigação, alguns filósofos e positivistas lógicos se dedicaram a examiná-la no século XX, mais precisamente com intuito de fortalecer “a visão científica da observação como primitiva e passiva” (p. 91). Já os críticos da postura adotada por tais filósofos e positivistas lógicos defendiam a ideia de que as observações eram inevitavelmente entremeadas de juízos de valor e, por isso, não poderiam oferecer um julgamento imparcial quando entrassem em conflito. Segundo a autora, nas duas situações, a preocupação dos filósofos da ciência era epistemológica e estava assentada na filosofia de Kant, a saber: “haveria ou não haveria algo como uma observação científica não contaminada pela teoria?” (p. 91). No fundo, a preocupação desses filósofos era como higienizar a observação, evitando que ela fantasiasse e distorcesse os dados objetivos. Nesse texto 5, o objetivo de Daston é discutir as bases ontológicas da observação científica especializada, especialmente como esta reconhece e seleciona objetos para uma comunidade de cientistas.

Com efeito, como nos diz a autora, esta discussão ocupa algum espaço “entre epistemologia (que estuda como observadores científicos adquirem conhecimento acerca dos objetos por eles escolhidos) e metafísica (que investiga a realidade última das entidades observadas)” (p. 92). Assim, na perspectiva de Daston, a ontologia é algo como os cientistas preenchem o universo com percepções, retirando objetos do cotidiano comum, classificando-os e tornando-os objetos de investigação científica, e traduzindo- os em formas (textos-imagens-tabelas) ou numa linguagem popular a um coletivo ou a uma comunidade. De acordo com a autora, uma tentativa de historicização da observação científica pode ajudar a trazer à superfície práticas científicas tomadas até então como a-históricas e autoevidentes e conectar a história das ciências à história das sensibilidades e do eu, como também expandir o espaço das experiências científicas. Nesse sentido, o que constitui o mote desse texto 5 é a ideia que assim pode ser sintetizada: não existe ciência sem a prática da observação, e tampouco mundo articulado visível, audível ou táctil.

O artigo 6 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Science Studies e História das Ciências”, constitui-se como um desvio nessa coletânea, como afirma Lorraine Daston no Prefácio. Esse capítulo não explora episódios históricos, mas a situação de aproximação e estranhamento entre duas disciplinas que abordam o mesmo tema, neste caso, “ciência e tecnologia” (p. 109). O objetivo de Daston, nesse texto, é rastrear a situação de interdisciplinaridade e intercâmbio entre os Science Studies e a História das Ciências, bem como o presente e o futuro de ambos os campos. Assim, o texto divide-se em duas partes. A primeira parte traz um curto relato das conexões entre Science Studies e História das Ciências desde 1970. A segunda parte examina como seus caminhos se separaram na década de 1990 à medida que a História das Ciências se aproximava da História e os Science Studies se afastavam. A partir do relato sucinto da conexão entre os dois campos, com foco nos Science Studies, Daston destaca que os objetivos deste último campo se sintetizavam em “humanizar a ciência tornando-a mais social (ou pelo menos sociável) ou domesticá-la, também tornando-a mais sociável (ou pelo menos sociológica)” (p. 111), e se afastar de tudo o que “cheirasse a psicologia” (p. 111). De acordo com a autora, esses objetivos se apoiavam em dois princípios: em primeiro lugar, “a ênfase nas instituições e estruturas, não nos indivíduos e ações” (p. 111); e, em segundo lugar, o destaque de que “o social se baseava fortemente nas estratégias marxistas desmistificadoras da ideologia” (p. 112). Esses dois princípios sugerem, segundo Daston, que os Science Studies seguiram correntes distintas de pensamento: Karl Marx e Émile Durkheim, mas também a sociologia do conhecimento de Karl Mannhein, a filosofia-sociologia de Fleck, entre outras. Mas o componente-chave que estabeleceu o afastamento entre os Science Studies e a História das Ciências foi a leitura da obra A estrutura das revoluções científicas, de Thomas S. Kuhn, lançada em 1962. Assim, enquanto os Science Studies interpretaram a obra de Kuhn como uma exposição do relativismo, os historiadores das ciências, em contrapartida, extraíram lições diferentes e mais próximas da argumentação de Kuhn, a saber, que a História das Ciências não poderia mais ser entendida como progresso constante em busca de um télos e uma verdade última, mas deveria afastar-se das narrativas teleológicas. O ponto de aproximação entre os dois campos seria a crítica a uma visão positivista da história, que se definia por um método mecânico e apartado do social.

A outra metade do artigo 6 é dedicada à exposição dos motivos que levaram ao distanciamento entre os Sciences Studies e a História das Ciências. A começar com o esclarecimento do que é ciência e de como estudá-la, essa segunda parte prolonga a discussão a respeito do estranhamento entre os dois campos. Segundo Daston, os Science Studies se recusavam a aceitar a doutrina científica atual e concebiam as ideias de verdade e falsidade das proposições como insuficientes para sua aceitação. Além disso, eles achavam que uma explicação para ser completa deveria levar em consideração aspectos sociais, políticos e cognitivos. O motivo do distanciamento dos Sciences Studies com relação à História das Ciências foi a transparência dos relatos dos cientistas. Por meio de uma discussão pormenorizada sobre como os historiadores da ciência viam a ciência atual, Daston evidencia que eles eram menos desconfiados no que diz respeito às verdades e às falsidades das proposições, embora fossem extremamente descrentes quanto às narrativas da ciência do passado em relação à ciência presente. De acordo com Daston, talvez o principal motivo que levou ao distanciamento dos Science Studies da História das Ciências na década de 1990 tenha sido o debate acerca da “contextualização da ciência”. Enquanto o primeiro campo levantava a bandeira da “ciência em contexto” e contribuía para o fim da autonomia da ciência no que concerne à sociedade, o segundo campo também hasteava essa bandeira, mas explorava de forma mais detida o contexto histórico e trabalhava para sua ampliação e aprofundamento, incorporando novos conceitos, categorias e práticas das ciências sociais e, principalmente, da história.

No artigo 7 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Objetividade e imparcialidade: virtudes epistêmicas nas humanidades”, encontramos a desmistificação das relações entre as humanidades e as ciências que, por mais de um século, foram marcadas pelas oposições “Geistes versus Naturwissenschaften, ideográficas versus nomotéticas, interpretativas versus exploratórias, orientadas para o passado versus orientadas para o futuro” (p. 127). De acordo com Daston, desde pelo menos o século XVI, as humanidades e as ciências compartilham “métodos, instituições, ideias e virtudes epistêmicas” (p. 127). Imparcialidade e objetividade são duas das virtudes epistêmicas amplamente compartilhadas no século XIX2. Começando com uma sentença lapidar do jovem Nietzsche em sua II Consideração extemporânea: “Objetividade e justiça não tem nada a ver uma com a outra” (Nietzsche, 2017, p. 90), Daston apresenta-nos a crítica que o filósofo fez aos valores da imparcialidade e da objetividade, assim como aos estabelecimentos de ensino de seu tempo que supervalorizaram tais virtudes epistêmicas e as trouxeram para as humanidades. Segundo a autora, quando a história se tornou uma ciência empírica no século XIX, esses valores entraram em concussão e Nietzsche foi quem melhor percebeu os choques. O objetivo de Daston, nesse texto, é mostrar que os valores da imparcialidade e objetividade têm histórias próprias e precisam ser problematizadas.

Assim, Daston faz um esboço dos objetivos da imparcialidade e da objetividade na história, evidenciando como a imparcialidade foi difundida e praticada por historiadores ao longo dos séculos XVIII e XIX, especialmente em favor de uma história dos estados-nação. A autora assinala que, no século XVIII, a história consistia em narrativas dos eventos e das vidas dos grandes homens apresentadas como exemplos para formação do julgamento e do caráter do leitor. Nesse modelo de história, a imparcialidade não significava neutralidade de valor por parte do historiador, mas sim não tomada de partido de nenhuma das partes envolvidas na história – não engajamento político –, com objetivo de alcançar conclusões sólidas acerca de guerras e conflitos políticos do passado. Assim, por exemplo, Leopold von Ranke é um dos mais importantes historiadores associados a essa doutrina da imparcialidade. Heinrich von Sybel e Georg Gervinius, posteriormente, criticaram Ranke por sua imparcialidade e neutralidade. O jovem Nietzsche também teceu duras críticas ao historiador prussiano por sua imparcialidade e autoimposta “objetividade de eunuco”.

A sequência do texto 7 apresenta as técnicas da objetividade aplicadas à história, bem como certos aspectos do historiador objetivo. No centro do sentido de objetividade dos historiadores do século XIX está “o forte sentimento de restrição científica” (p. 133), que julgava até que ponto a evidência em mãos poderia ir. Daston constata que tanto os métodos e as técnicas da crítica histórica quanto certas atitudes objetivas do historiador diante de seu objeto assentam- se na polêmica entre filólogos clássicos e historiadores da antiguidade a respeito das declarações metodológicas de Tucídides em seus discursos. Segundo Daston, as duas principais questões que mobilizaram os estudos acadêmicos sobre Tucídides foram estas: “primeiro, em que medida o próprio Tucídides estava conscientemente aspirando ao padrão de história objetiva?; segundo, ele se manteve fiel a esse padrão, especialmente ao relatar discursos?” (p. 136). A autora explica que as palavras objetividade e subjetividade são produtos de meados do século XIX, logo a importação desses termos para as análises da obra e do método histórico de Tucídides é um equívoco. Daston recupera ainda a crítica de Nietzsche à religião ascética da objetividade que dominou e formatou os historiadores no século XIX. A autora está preocupada em entender como, em tão pouco tempo, o valor da objetividade se tornou uma virtude superestimada entre os historiadores. Nietzsche é a chave interpretativa para essa questão. O filósofo alemão farejou no culto da objetividade um ar de “autoengano”, “superstição” e “mitologia”, uma falsa religião e uma falsa fé. Nietzsche encarava a religião da objetividade e seus sectários como um verdadeiro problema, porque tal religião pregava a autorrestrição, o autossacrifício e exalava um odor desagradável de ascetismo que rapidamente se espalhara pelas instituições de ensino da Alemanha de seu tempo.

Por meio da exposição sistemática dos sete artigos que integram a obra Historicidade e objetividade, concluímos que Lorraine Daston compreende a objetividade de forma distinta daquela comumente compartilhada pelas doutrinas objetivistas, que associam à postura objetivista a ideia de que é possível “ver os fatos como eles realmente são”, isto é, conhecer a realidade em si e por si mesma. Daston consegue distanciar-se dessa tendência ao inserir a objetividade em uma perspectiva histórica, em um modo por meio do qual a objetividade não pode ser vista desvinculada de uma interpretação pluralista e multiforme da realidade. Nos sete artigos que constam nessa coletânea, interessa a Daston principalmente dissociar a objetividade – na área da História das Ciências, em particular – de concepções que a tomam como um dado a-histórico. Nesse sentido, no programa epistemológico dastoniano, à noção de objetividade é adicionada uma faceta interpretativa, já que a sua epistemologia histórica se relaciona à história das ideias e das práticas, dos afetos e das emoções, da moral e dos valores. Assim, Daston demonstra que a objetividade da ciência é tanto mais histórica quanto mais ela se mostrar relacionada aos muitos pontos de vista e às interpretações humanas.

Dessa maneira, consideramos essa obra como uma importante contribuição não só para os estudos pertinentes à historiografia, história, filosofia e sociologia das ciências e relacionados à historiografia, filosofia e teoria da história, mas também para clareamento de questões que envolvem o complexo e multifacetado conceito de objetividade científica, abrindo e iluminando o caminho para outras pesquisas, discussões e questionamentos sobre esse tema.

Referências

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DASTON, L.; GALISON, P. 2007. Objectivity. New York, Zone Books, 501 p.

DASTON, L. 2016. The Truth in the Leaves. Max Planck Research.

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NIETZSCHE, F. 2017. Segunda consideração extemporânea: Sobre a utilidade e a desvantagem da História para a vida. Organização e tradução: André Itaparica. São Paulo, Hedra, p. 29-146.

Notas

2 A título de esclarecimento, a escolha dos sete artigos que integram a obra em análise não foi feita por Lorraine Daston, mas pelo historiador brasileiro Tiago Santos Almeida. No prefácio, Daston explica que os sete títulos agrupados na coletânea foram escritos em diferentes momentos de sua trajetória intelectual e profissional e que alguns deles não trazem respostas satisfatórias a uma série de desconfortos teóricos e interpretativos suscitados pelo problema da objetividade nas ciências. No entanto, exatamente por essa razão, ela espera que os leitores brasileiros compreendam cada artigo como evidência de uma mente em ação, que se esforça para entender aspectos da história do conceito de objetividade científica.

2 Sobre a certeza, a precisão, a verdade e a objetividade como virtudes epistêmicas fundamentais da ciência, como características particulares que definem a identidade da ciência e a prática científica, ver também Daston (2016).

Raylane Marques Sousa  – Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em História. Campus Darcy Ribeiro, Instituto Central de Ciências, Norte, Bloco A, Subsolo (ASS 679-690), 70910-900, Brasília, DF, Brasil.

Fernand Braudel, Geohistória e Longa Duração: críticas e virtudes de um projeto historiográfico – RIBEIRO (PH)

RIBEIRO, Guilherme. Fernand Braudel, Geohistória e Longa Duração: críticas e virtudes de um projeto historiográfico. São Paulo: Annablume, 2017. 211 p. Resenha de: PAULINO, Davi Luiz. Geohistória e longa duração na obra de Fernand Braudel. Projeto História, São Paulo, v.63, pp. 387-395, Set.-Dez., 2018.

Guilherme Ribeiro, docente do Departamento de Geociências da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, desenvolve pesquisas acerca da História do Pensamento Geográfico, bem como a relação entre Geografia e História.

Fruto de uma complexa pesquisa de doutoramento com estágio na França apresentada em 2008 ao Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense, agraciada com o Prêmio Capes de Tese na área de Geografia, o livro busca mostrar o papel que a geografia cumpriu na formação da concepção de história de Fernand Braudel (1902-1985).

O referido estudo perpassa a trajetória intelectual do historiador francês, estudando obras como O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II, Gramática das Civilizações, Civilização Material, Economia e Capitalismo – Séculos XV-XVIII e a Identidade da França.

O autor aborda as origens epistemológicas do conceito de Geohistória demonstrando que a Geografia será importante como instrumento que o permitirá estudar as atividades humanas em transcursos diferentes de tempo. Braudel a “transforma em aliada de peso no esforço de superação do obsoleto meio acadêmico francês, além de pedra angular na apreensão da temporalidade de longa duração e em seu ousado intuito de reorganização epistemológica das Ciências Humanas”.1  Partindo de grandes nomes da ciência geográfica como Paul Vidal de la Blache, Alfred Philippson e Emmanuel de Martonne, Braudel clama por uma ciência que aborde o todo, ou seja, que não somente o meio físico-natural, mas também o homem, sendo o começo do que mais tarde seria conhecido como Geografia Humana.

Ribeiro elucida que a questão da Geohistória e determinismo em Braudel teria como objetivo esclarecer os aspectos frágeis da leitura que se fazia da geopolítica como simples estudo das ações políticas e partindo do conceito de geohistória ele encontraria uma representação ampliada da sociedade. Este posicionamento mostra a influência da escola alemã de Geografia e através dela, Braudel “valorizará a economia como um produto das relações sociais, que ao longo do tempo, constrói redes e distribui informações em variadas escalas” utilizando as categorias analíticas de “espaço (Raum), economia (Wirtschaft) e sociedade (Gesellschaft)” para construir seus estudos sobre “a economia mediterrânica no século XVI, no desenvolvimento da civilização material, economia de mercado e capitalismo na era moderna e na história da França sob a égide das estruturas de longa duração”2.

Em seguida, Ribeiro centraliza sua análise em O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II, obra resultante da tese de doutorado de Braudel apresentada a Sorbonne em 1947 e considerada um dos maiores livros de História do século XX. Obra em que a geohistória se faz presente do começo ao fim, o autor nos mostra como o historiador instrumentaliza-se da geografia para “desacelerar” a história e com isso desestrutura o passado, explicitando a dialética das durações com seus variados espaços revelando múltiplas temporalidades, partindo do tempo breve ao mais longo, o tempo das civilizações.

Segundo o autor, Braudel, ancorado nas estruturas de longa duração, considera que a história possui uma temporalidade mais duradoura, resistente a mudanças e que precisa ser compreendida não na brevidade dos acontecimentos, mas sim nas estruturas que sustenta o tempo longo.

Embora isto não queira dizer que há um menosprezo ao acontecimento por parte de Braudel, ele apenas defende que mesmo para entender as dinâmicas dos eventos é necessária a compreensão da longa duração.

Em O Mediterrâneo, é possível encontrar a centralidade do meio geográfico, isto porque, segundo Ribeiro, a história humana não se constrói fora do meio, mas sim a partir dele.

Com isso, no meio “estão contidas tanto as determinações quanto as possibilidades: é impossível parar a chuva ou conter o vento, mas é possível administrar as intempéries construindo diques ou drenando o solo, por exemplo”3, percebemos que sua análise prova que a questão geográfica está intrinsecamente atrelada as atividades humanas, portanto, há uma espacialização da ciência histórica.

Braudel sofreu críticas por sua posição determinista sob as atividades humanas, mas como podemos constatar no estudo de Ribeiro, há a defesa de que o meio age nas práticas dos homens, no entanto admite-se, que a ação do homem no meio seja de maior peso. Segundo o autor,  o “determinismo geográfico braudeliano” não é outra coisa senão a evidência que os aspectos naturais não estão separados e isolados das atividades humanas. Eles fazem parte de um todo onde o clima, o relevo, a hidrografia, o sítio e a posição jogam papel crucial na história das sociedades. Assim sendo, em certas situações e períodos, o meio determina esta ou aquela decisão, esta ou aquela resposta social de acordo com as possibilidades técnicas e culturais. Segundo, Braudel, alimentação, agricultura, produção de mercadorias, vestimentas, crenças, economia, relações internacionais, enfim, o conjunto da vida social é indissociável do meio.4  Essa explicação de Ribeiro é importantíssima para o debate acerca do determinismo geográfico, principalmente porque o biógrafo de Braudel, Pierre Daix, alegara que a ausência do capítulo intitulado Geohistória e determinismo teria sido suprimido da segunda edição de O Mediterrâneo porque Braudel teria abandonado esse posicionamento, tese refutada por nosso autor, pois segundo ele, abandonar a geohistória seria a renúncia da própria concepção braudeliana de história.

Ribeiro não crê em abandono do conceito, mas defende a tese de que geohistória fora substituída pelo conceito de espaço, lembrando que esse conceito está na origem da formação da epistemologia braudeliana.

Com essa problemática, o autor trabalhará sobre as críticas historiográficas acerca do pensamento braudeliano, as quais alegam que a história de Braudel é imóvel, partindo da primeira obra do historiador, Ribeiro busca demonstrar que a sua concepção histórica não é imóvel, pois permite a mudança.

Em razão de não só trabalhar a partir do tempo longo, mas sim dialeticamente com o tempo conjuntural e com o tempo tradicional, sendo assim, há em Braudel a presença de “um tempo geográfico, de um tempo social e de um tempo individual”.5  Ribeiro explicita a dimensão teórica da obra de Fernand Braudel. Entre seus elementos constitutivos estão…

a longa duração como uma possibilidade de releitura do tempo cronológico; a geohistória representando a articulação do espaço com o tempo e a preocupação em comparar épocas e escalas diferentes; a apreensão do passado não como algo pronto e acabado, mas como questão a ser problematizada; conexões entre o passado e o presente; busca de explicações pluricausais dos fenômenos.6  Criticada por ser empirista e descritiva, o autor mostra que essa crítica demonstra a compreensão distorcida da totalidade da obra braudeliana que realiza uma notável coerência entre a longa duração, geohistória e a história-problema. Como mostra Ribeiro, por mais que a obra seja descritiva, ela está amplamente ancorada em um embasamento epistemológico que a sustenta: as estruturas de longa duração. Braudel, com sua concepção de história total, abarca as escalas local, regional, nacional e, principalmente, mundial, visto que as atividades dos homens se encontram misturadas em ritmos temporais diferentes.

Ribeiro mostra que a história para Braudel não é a ciência do passado, muito menos a descrição documental, mas sim a explicação das temporalidades dos fenômenos e suas relações entre si, buscando as permanências e o predomínio das profundidades.

Partindo da busca por permanências e profundidades, a obra Gramática das civilizações ocupa um ponto importante na reflexão histórica, pois Braudel, segundo o autor, compreende por gramática o tempo ou as temporalidades, pois para o historiador, as civilizações possuem ritmos e estações diferentes, embora estejam em contato entre si. Partindo desse pressuposto, a estruturas da história são mutáveis, mas seus movimentos são perceptíveis através da longa duração.

A proposta de Ribeiro é demonstrar que na obra braudeliana há a percepção dos problemas sociais, como a desigualdade, por exemplo, e, que sua eliminação se dará a partir de uma abordagem estrutural. Braudel também considera importante, os eventos como a Revolução Russa e a Revolução Cubana, isto porque a seu ver, causaram forte impacto nas civilizações. O conceito de civilização assume importância no pensamento de Braudel, pois é por meio dele que “a geohistória alcança todas as esferas da vida social: seja a política, a economia, a cultura ou as mentalidades, nenhuma delas escapa a um determinado contexto espaço-temporal”.7  Sua análise sobre a obra Civilização material, Economia e Capitalismo, mostra que o termo material, não se trata somente de trocas econômicas ou a dinâmica financeira, mas sim a concretude da civilização em relação ao que a estabelece na condição de poderosos grupos culturais, como é possível perceber nas civilizações mediterrânea e atlântica.

Em As estruturas do Cotidiano, Ribeiro defende que as relações sociedade-meio estão na base formativa da modernidade, com uma profunda reorganização espacial, isto com base no próprio pensamento braudeliano, pois argumenta Braudel que os agrupamentos civilizacionais possuem características geográficas distintas. Nessa obra é possível compreender a amplitude da concepção braudeliana de história, visto que “a geohistória é além do estudo ampliado das relações homem-meio, uma ferramenta de análise das múltiplas escalaridades urdidas pelas práticas econômicas modernas”.8  Nos próximos volumes O jogo das Trocas e O tempo do Mundo faz-se presente o conceito de origem alemã economia-mundo (Weltwirtschaft) que diferentemente de economia mundial, representa um determinado “espaço” com profunda coerência econômica que se basta por si mesmo. Ribeiro exprime este conceito da seguinte forma:  Ao empreender o conceito de economia-mundo do ponto de vista geográfico, Braudel não o concebe apenas como delimitação cartográfica dos fenômenos econômicos, mas segundo um enfoque “vertiginoso” e “ativo” capaz de perscrutar como o jogo econômico cria e se reproduz a partir de determinada lógica espacial.9  Braudel fora tachado de “conservador” por parte de alguns historiadores, dentre eles, o brasileiro José Carlos Reis, mas como nos mostra o autor, por mais que a construção da concepção de história braudeliana passe por fora da questão das lutas de classe, ele não deixa de observar as tensões nas organizações sociais.

Aproximando-se de Lacoste, Braudel analisa o poder de quem controla e domina o espaço.

É possível perceber que na totalidade da obra braudeliana, A Identidade da França, segundo Ribeiro, seria o livro que possuí mais elementos que podem constituir um perfil político de Braudel. Ele retoma as origens da França buscando traçar a Identidade, ou seja, o típico de uma nação, embora para Braudel, é possível identificar aspectos de diversidade regional e cultural.

É interessante ressaltar que a obra de Ribeiro nos permite abordar que a tríade economia, espaço e sociedade perpassa toda a produção braudeliana, pois partindo da instrumentalização da geografia em sua concepção histórica, ela o permite adentrar em um passado longínquo, o tempo do mundo. Em A Identidade da França ele continua com seu tripé metodológico, pois é perceptível que…

seus três volumes revelam o movimento dos vilarejos aos burgos e às cidades, o sítio e a situação, as migrações, o papel das cidades na formação do mercado nacional e suas associações com as outras escalas; a urbanização e as estradas da Gália superando suas florestas; as villa galo-romana e suas muralhas protetoras e as cidades como loci privilegiados para o desenvolvimento da economia de mercado e, sobretudo, do capitalismo, a atividade econômica superior.10  Com esse panorama apresentado da obra braudeliana, acreditamos que o trabalho de Guilherme Ribeiro contribui sobremaneira para a reflexão acerca do pensamento de Fernand Braudel, principalmente pela atualização do debate e pela crítica aos críticos do historiador francês, como François Dosse, Yves Lacoste e José Carlos Reis, entre outros. A leitura do livro se faz necessário para o aprofundamento da discussão e abertura de novos caminhos para o estudo da obra e pensamento de Braudel.

Referências

RIBEIRO, Guilherme. Fernand Braudel, Geohistória e Longa Duração: críticas e virtudes de um projeto historiográfico. São Paulo: Annablume, 2017.

Notas

1 RIBEIRO, 2017, p. 30.

2 Ibid., p. 43-44.

3 Ibid., p. 55.

4 Ibid., p. 67.

5 Ibid., p. 79.

6 Ibid., p. 84.

7 Ibid., pp. 110-111.

8 Ibid., p. 127.

9 Ibid., p. 135.

10 Ibid., p. 178.

Davi Luiz Paulino – Graduando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). eto historiográfico. 1ª ed. São Paulo: Annablume, 2017.

História e narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica – MALERBA (PL)

Em História e narrativa: a ciência e a arte na escrita histórica, Jurandir Malerba, professor da UFRGS, reúne textos de importantes pesquisadores, filiados a diferentes áreas das Ciências Humanas, cuja temática nos convida a refletir em que medida a história se aproxima de um discurso científico e/ou artístico.

Resultado de uma disciplina ofertada no Programa de Pós-graduação em História da PUC-RS, o livro tem o mérito de trazer ao público que compartilha a língua portuguesa a tradução de estudos seminais para o campo da narrativa histórica, além de textos inéditos ou reeditados que evidenciam o reconhecimento e a competência de pesquisas produzidas por brasileiros no campo da teoria da história. Leia Mais

Teoria e Formação do Historiador – BARROS (RTA)

BARROS, José D’Assunção. Teoria e Formação do Historiador. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, 95p. Resenha de: FERREIRA, Breno Ferraz Leal. A formação do historiador e a especificidade de seu ofício. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, p.497-501, abr./jun., 2018.

Derivado de um artigo publicado na Revista Teias (v. 11, n. 23, 2010), Teoria e Formação do Historiador visa fornecer subsídios para futuros historiadores recém-egressos dos bancos escolares. Parte da constatação de que há um fosso entre o conhecimento senso comum sobre a história, partilhado por profissionais de outras áreas e curiosos em geral, e o que é ensinado nos cursos de graduação voltados a esse específico campo do saber. Nesse sentido, a obra pretende justamente auxiliar os novos estudantes a tomarem consciência dessa diferença, trabalhada normalmente no primeiro ano dos cursos de História em disciplinas iniciais muitas vezes denominadas por Introdução aos Estudos Históricos. É justamente nesse momento da formação, quando o jovem futuro historiador começa a compreender as discussões teóricas e metodológicas, que são próprias à produção do conhecimento histórico, que se inicia a transição de um mero interessado em história para um historiador profissional.

De autoria do historiador José D’Assunção Barros, professor do programa de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Teoria e formação do historiador é composto por sete capítulos curtos, nos quais sintetizam-se discussões anteriormente desenvolvidas nos três volumes iniciais, dos cinco que compõem, até o momento, a coleção do mesmo autor denominada Teoria da História, também publicada pela Vozes. Sempre ressaltando ser uma obra de caráter introdutório, o autor opta apenas por, numa linguagem didática e simplificada, apresentar as linhas-mestras do conteúdo da obra anterior, propondo-se a servir também como estímulo para a leitura daquela. A intenção é assinalar as principais diretrizes das que considera serem os três principais (não únicos) paradigmas da historiografia do século XIX: Positivismo, Historicismo e Materialismo Histórico. A escolha por essas correntes da historiografia se dá pelo fato de se constituírem, segundo o autor, como discursos historiográficos que almejam o estatuto de ciência, formando-se como as primeiras Teorias da História.

Estes paradigmas são desenvolvidos nos capítulos 5 e 6, enquanto que, no capítulo 7, são feitas as últimas considerações. Nos capítulos iniciais, todavia, o autor centra seus esforços para apresentar questões conceituais que serão depois necessárias para um adequado entendimento dos paradigmas historiográficos. Inicia-se (capítulo 1) com uma discussão em que assinala o momento histórico em que foram concebidas as primeiras Teorias da História (o que é bem diferente das Filosofias da História e, mais ainda, do pensamento histórico em geral), isto é, entre o final do século XVIII e o início do XIX. O autor examina em seguida o que é teoria (capítulo 2), as diferenças entre teoria e metodologia (capítulo 3) e o que é Teoria da História (capítulo 4).

O autor entende as teorias (em geral, não apenas as da História) como modos de se ver o mundo. O conhecimento é, assim, produzido a partir de pontos de vista. Em outras palavras, não há uma via única para a produção do saber. Porém, uma visão de mundo não configura necessariamente uma teoria (as religiões são um exemplo). O autor aponta que a constituição de uma teoria depende também do estabelecimento de conceitos e categorias que são empregados para a leitura de um determinado campo de fenômenos. Nesse sentido, qualquer Teoria da História necessariamente implica na existência de conceitos e noções próprios.

Contudo, antes de analisar propriamente o que é uma Teoria da História, Barros opta por desenvolver uma diferenciação entre teoria e método. Se a teoria se relaciona a um “modo de ver”, uma metodologia implica num “modo de fazer”. O trabalho do historiador compreende também a seleção e o estabelecimento dos materiais com os quais lidará (no caso, chamados de fontes). A escolha do método variará de acordo com a perspectiva teórica a ser adotada e, dependendo do objeto de estudos e dos dados que tiver em mãos, o pesquisador poderá propor entrevistas, construir gráficos, comparar discursos… E deverá também saber interpretar esse material.

Somente a partir do século XIX é que podemos, todavia, falar em Teorias da História, como destaca o autor. Almejando reconfigurar a História dotando-a de um estatuto científico, os historiadores passaram a abandonar o entendimento de que constituía um gênero literário. Essa mudança foi acompanhada da profissionalização do trabalho do historiador, assegurando-se um lugar específico para a História nas universidades. A partir de então, a expressão Teoria da História foi utilizada em diferentes sentidos, referindo-se ao “conjunto global de artefatos teóricos (conceitos, princípios, perspectivas) disponíveis aos historiadores”, aos “grandes paradigmas teóricos” e também a “objetos historiográficos específicos” (como à Revolução Francesa) (p. 44-45).

Os dois capítulos seguintes tratarão justamente dos grandes paradigmas teóricos constituídos no século XIX, todos pensando-se – por diferentes concepções – como ciência: Historicismo e Positivismo (capítulo 5) e Marxismo (capítulo 6). Os positivistas, como ele diz, procuravam se aproximar do modelo das ciências naturais, aspirando à neutralização da subjetividade do pesquisador. A proposta era enxergar as regularidades, leis gerais que operariam por trás das ações humanas, as quais poderiam ser derivadas inteiramente por meio da documentação. Caberia ao historiador “imparcial” deixar os documentos falarem, não havendo qualquer tipo de problematização na produção do conhecimento histórico. Essa pretensão de objetividade, embora não explicitamente rechaçada por Barros, é indiretamente afastada. Já na Introdução, o autor havia argumentado que o pensamento senso comum entende ser a função do historiador narrar “os fatos tal como aconteceram”, isto é, uma história neutra em que se baseiam, por exemplo, os proponentes do “escola sem partido”. Contrapondo-se a esse tipo de pensamento, Barros parte do pressuposto do inescapável relativismo do sujeito. Sobre a velha questão da utilidade da História, sentencia que “a missão essencial do historiador é (…) fornecer à sociedade diversas interpretações problematizadas sobre o que aconteceu” (p. 8). Os fatos são importantes também, mas desde que interpretados pelo historiador. Subjaz o entendimento de que essa é uma resposta possível, não única nem definitiva.

Já os demais paradigmas descartam, como deixa claro, a pretensão à neutralidade. Os historicistas recusam por completo o modelo das ciências naturais. Não veem a subjetividade do sujeito como um problema: pelo contrário, entendem residir nisso exatamente a especificidade da história. A pretensão de se explicar os fenômenos é substituída pela tarefa da compreensão. A grande contribuição do Historicismo para a historiografia é, segundo Barros, a atenção dada à questão da historicidade de todas as coisas. Esse paradigma, como afirma, deu origem a correntes da historiografia que chegaram até os dias atuais e, pode-se dizer, isso não se deu por acaso. O relativismo do sujeito é praticamente um consenso entre historiadores profissionais da atualidade, enquanto que as noções positivistas não frutificaram depois das críticas por parte da historiografia do século XX (especialmente dos Annales), ficando relegadas ao senso comum.

O Materialismo Histórico, por sua vez, também tem na ideia de consciência histórica um ancoradouro, aponta Barros. A partir de Marx e Engels, desenvolveu fundamentos (Dialética, Materialismo e Historicidade) e conceitos (práxis, luta de classes, modo de produção, determinismo, revolução, ideologia) que lhes são inerentes. Algumas das noções nas quais o marxismo é baseado foram, como o autor deixa claro, resultado de ressignificações e reelaborações de ideias e conceitos preexistentes, mas que formaram uma teoria inteiramente nova para a compreensão da realidade. Diferentemente do Positivismo, por exemplo, que atentou principalmente para a política, o marxismo voltou-se principalmente para as bases socioeconômicas das sociedades, e aí reside uma de suas principais contribuições, conforme aponta o autor. As correntes historiográficas marxistas figuram entre as mais importantes até a atualidade, destacando-se a Escola Inglesa, que, reavaliando a teoria marxista precedente, trouxe a cultura para primeiro plano.

Sempre deixando claro que esses paradigmas não são os únicos, a obra pouco avança sobre as mudanças da historiografia nos séculos XX e XXI (pensamos aqui particularmente nas principais críticas feitas à corrente historiográfica positivista pelos historiadores que vieram a fundar a revista dos Annales em 1929 – Marc Bloch e Lucien Febvre – e pelas gerações subsequentes, que, condenando a ideia da neutralidade do historiador, aproximaram a história das ciências sociais e propuseram novos objetos e perspectivas teóricas), nem retroage sobre o pensamento histórico anterior ao XIX. Todavia, cumpre bem o papel a que se propõe, isto é, o de fornecer uma discussão introdutória aos alunos de graduação sobre Teoria e Metodologia da História.

Breno Ferraz Leal Ferreira – Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Estágio Pós-Doutoral na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista FAPESP. São Paulo – SP – Brasil. E-mail: breferreira@gmail.com.

Manifiesto por la Historia – GULDI; ARMITAGE (PR-RDCDH)

GULDI, J.; ARMITAGE, D. Manifiesto por la Historia. (traducción de Galmarini, M. A. The History Manifesto, 2014). Madrid: Editorial Alianza, 2016. 292p. Resenha de: HERNÁNDEZ, Juan Jesús Botí; GIMÉNEZ, David Omar Sáez. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.141-143, 2017.

La edición de Manifiesto por la Historia que aquí reseñamos es una traducción al castellano de Marco Aurelio Galmarini del original publicado en inglés por la Universidad de Cambridge en 2014. Sus autores son Jo Guldi y David Armitage: Jo Guldi es profesora en la Universidad de Brown, en Providence (Estados Unidos), y ha dedicado buena parte de su obra a estudios sobre la historia de Gran Bretaña y, sobre todo, a la política económica. Por su parte, David Armitage es profesor en la Universidad de Harvard, especialista en historia intelectual e historia del mundo.

Aunque hay quien ha señalado la originalidad del título de la obra, subrayando especialmente el término manifiesto como algo provocador y poco usual, lo cierto es que no se trata de algo novedoso, pues viene a unirse a una serie de títulos que se han publicado en la última década, sirviendo de ejemplo el conocidísimo La utilidad de lo inútil de Nuccio Ordine (2013), que también se publicó con el subtítulo Manifiesto, y que coincidía en algunos aspectos con el contenido de esta obra.

El conjunto del libro consiste en una dura crítica a la hiperespecialización y el cortoplacismo, planteando la Historia como una ciencia que, ante el avance de las nuevas tecnologías y la pérdida de perspectivas a largo plazo para enfrentar problemas como pueda ser el cambio climático, ofrezca respuestas globales y aporte una visión crítica. Manifiesto por la Historia es, por tanto, una dura pero necesaria autocrítica que plantea que los propios especialistas han debilitado la ciencia histórica, haciéndole perder peso e influencia, creando la idea de que ante grandes problemas como crisis económicas, climáticas, bélicas, etc., la Historia no puede aportar nada.

Esta idea, que a muchos les puede parecer absurda, está cada vez más asentada en el imaginario colectivo, y día a día vemos cómo la ciencia histórica, junto a otras disciplinas sociales y humanísticas, va desapareciendo de los planes de estudios, de los presupuestos nacionales, etc. Según los autores, esta pérdida de utilidad pública es culpa de los propios historiadores, que desde mediados del siglo XX han venido constriñendo sus estudios a aspectos cada vez más especializados, contrayendo sus escalas temporales y generando una obra tremendamente compleja y alejada de las necesidades reales de la sociedad, e incluso del entendimiento del gran público.

El libro está estructurado en introducción, cuatro capítulos y una conclusión. Además, viene acompañado de un índice de figuras y un índice analítico que remite a conceptos, autores, acontecimientos históricos, etc.

La introducción, bajo el título ¿La hoguera de las humanidades?, realiza un recorrido exhaustivo por la problemática que ya hemos planteado, describiendo cuáles son esas dificultades que plantea el mundo actual, inmerso en una crisis acelerada. Desde la primera línea la autocrítica está presente y, sirviéndose de la fórmula con que Karl Marx y Friederich Engels introducían su Manifiesto del Partido Comunista, Guldi y Armitage afirman: “Un fantasma recorre nuestra época: el fantasma del corto plazo”. Así, ya en la introducción, los autores hacen alusión a la importancia del papel de la Historia en la sociedad: “La Historia es una espada de dos filos, uno que abre nuevas posibilidades para el futuro y otro que deja atrás el ruido, las contradicciones y las mentiras del pasado”.

El primer capítulo se titula Avanzar mirando hacia atrás: el surgimiento de la ‘longue durée’. En él se deja claro que la historia a largo plazo no es algo novedoso, sino por el contrario algo que viene de mucho tiempo atrás y que fue progresivamente abandonado en las décadas finales del siglo XX. Para ello se exponen las obras y aportaciones de distintos autores, con especial mención a Fernand Braudel como creador del concepto de longue durée. En este capítulo se puede observar una cierta añoranza del pasado historiográfico, haciendo continuas alusiones a la influencia que los historiadores tuvieron en disciplinas como la economía o la política en tiempos pretéritos. Aunque también se exponen los peligros y los errores que supuso en aquellos tiempos, tales como el presentismo. Así, por poner un ejemplo, declaran los autores en relación a los tiempos de Braudel: “La Historia a largo plazo era una herramienta para dar sentido a las instituciones modernas, hacer comprensibles los programas utópicos y concebibles por la sociedad los programas revolucionarios”.

A lo largo de toda la obra son abundantes, excesivas en algún punto, las referencias a la problemática del cambio climático, y quizá en este ejemplo extraído del primer capítulo podamos comprender cuál es el planteamiento acerca de la utilidad pública de la Historia que plantean estos dos historiadores: “el papel de la Historia no debería consistir solamente en vigilar la información sobre la responsabilidad respecto del cambio climático, sino también en señalar las direcciones alternativas, los atajos utópicos, las agriculturas distintas y los modelos de consumo que se han desarrollado mientras tanto”. En este primer apartado se afirma que cada vez más personas miran a la Historia en busca de respuestas a problemáticas a largo plazo como esta, por lo que inmediatamente surge el interrogante: ¿están preparados los historiadores para ofrecer esas respuestas? Guldi y Armitage señalan que la Historia puede ofrecerlas, pero que la visión cortoplacista que ha marcado la investigación y la enseñanza de esta disciplina en los últimos tiempos no.

El segundo capítulo, titulado El pasado breve, o la retirada de la ‘longue durée’, expone cuáles han sido esos cambios que han llevado a abandonar la longue durée de Braudel en favor del cortoplacismo. En él se describe cómo en la segunda mitad del siglo XX la disciplina comenzó a promover una concentración y concreción de fuentes e interrogantes y, por tanto, también del período y materia investigados. De esta manera se propició una hiperespecialización que llevó a saber mucho sobre aspectos cada vez más reducidos, descuidando así los grandes interrogantes, que quedaban sin responder.

Este proceso conllevaba una elitización, quedando así el debate y la exposición de resultados reducidos a pequeños círculos de eruditos, y agravando a su vez la crisis de utilidad social que pudiera tener la Historia. Guldi y Armitage citan a autores que ya en los años ochenta habían puesto en duda la contribución de la excesiva especialización a campos fundamentales como la educación.

El tercer capítulo se titula Lo largo y lo corto. Cambio climático, gobernanza y desigualdad a partir de la década de 1970. En este apartado del libro se analizan las tres problemáticas que le dan título (cambio climático, gobernanza y desigualdad), para concretar todo lo dicho hasta el momento y demostrar cómo la falta de investigación histórica en estos temas en particular ha generado una serie de mitologías e ideas distorsionadas que, a menudo de forma consciente, han condicionado la forma en que hoy la sociedad entiende algunos de ellos. Señalan los autores que la ausencia de historiadores ha propiciado la presencia de especialistas menos cualificados procedentes de otras disciplinas que han asumido la responsabilidad de condensar el conocimiento de siglos y milenios. Así, se cita como ejemplo en el libro la forma en que los economistas han construido un discurso a largo plazo que ha idealizado la economía de libre mercado.

El cuarto capítulo nos trae de nuevo al presente y nos propone un tema de suma actualidad ya desde el título: Grandes cuestiones; big data. Aquí nos plantean los autores que la sobrecarga de información es en sí misma un síntoma de la crisis de pensamiento que venimos padeciendo, y que tanto para el estudio histórico como para otras ciencias y la vida cotidiana se han hecho indispensables las herramientas de búsqueda de información. De hecho, los expertos se han dado cuenta de que para mantener la capacidad de persuación necesitan condensar big data para crear un relato conciso y divulgativo. La utilización de palabras clave es un ejemplo de este fenómeno de recogida de datos, que obviamente se ha expandido a distintos tipos de software (Google Book Search, Paper Machines…). Según los autores, gracias a estas herramientas se facilita la comparación de informaciones cuantitativas, lo que ayuda a producir modelos comparativos de variables a lo largo del tiempo y, por tanto, hace de la Historia “un árbitro de los principales discursos del antropoceno”.

Al fin, llegamos a la conclusión titulada, donde los autores realizan un balance general de todo lo expuesto y concluyen tres líneas a seguir en la escritura de la Historia: la apertura al gran público, haciendo accesibles y comprensibles los relatos elaborados por los historiadores; la atención y empleo de nuevas herramientas de visualización, en especial digitales, por parte de los historiadores; y, por último, la fusión entre lo “micro” y lo “macro”. En relación a este último aspecto, hay que señalar que ya en los capítulos anteriores los autores habían dejado clara su posición favorable también a la microhistoria y, en general, a líneas de investigación más reducidas, tan solo criticaban su generalización, hegemonía y condicionamiento en las tendencias de investigación recientes. En la conclusión vuelven a aclarar esta cuestión defendiendo que lo “micro” representa lo mejor de la metodología del historiador, mientras que lo “macro” plantea los auténticos interrogantes de interés común, por lo que insisten en alcanzar un equilibrio entre ambas concepciones.

No obstante, lo más interesante de la conclusión es el tono optimista que emplea. Se incide en la idea de que desde hace algunos años se vienen publicando estudios que siguen estos criterios, que la ciencia histórica está cambiando y que comienza a corregir errores. Se defiende que no todo está perdido y que, según los autores, los historiadores pueden y deben volver a ocupar el papel de maestros públicos, de guías sociales, que ya ocuparan en tiempos pasados aunque sin renunciar a la rigurosidad. Esto queda especialmente claro en las líneas finales del manifiesto: “¡Historiadores del mundo, uníos! Hay un mundo por ganar, antes de que sea demasiado tarde”.

Nos gustaría terminar diciendo que el manifiesto-ensayo ofrece al historiador un punto de vista novedoso basado en teorías que podrían parecer desfasadas por su antigüedad. Desde nuestro punto de vista, los autores aciertan al buscar en el pensamiento de Braudel un enfoque adecuado para la investigación histórica, pero falla a la hora de plantearlo en su texto. Precisamente por tratarse de un manifiesto, sus ideas no son desarrolladas de manera adecuada, quedan en cierta medida expuestas pero no se profundiza en su entendimiento, con lo que en ocasiones no se termina de comprender el propósito de los autores, o la forma en la que se deberían desarrollar estas ideas. Esto contrasta bastante con otras secciones del manifiesto donde el planteamiento se vuelve farragoso y repite hasta la extenuación algunos conceptos, sobre todo los relacionados con big data y cambio climático. En esos dos apartados es donde los autores, en lugar de incidir en su teoría, se pierden en la explicación de ejemplos que, a veces, no resultan del todo útiles, y quedan como una mera enumeración de ejemplos y casos concretos que no llevan a ninguna parte.

No obstante, debemos incidir en la idea de que el mensaje general que expone esta obra es absolutamente necesario en los tiempos actuales ante la aparente pérdida de utilidad social de la disciplina histórica, y de su progresiva destrucción y marginación por parte de instituciones y autoridades.

Juan Jesús Botí Hernández – Profesor de Secundaria – Ad Absurdum

David Omar Sáez GiménezProfesor de Secundaria – Ad Absurdum

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What is history for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography | Arthur Alfaix Assis

What is history for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography, escrito pelo historiador Arthur Alfaix Assis, é fruto de seu trabalho de doutoramento na Universidade de Witten/Herdecke, na Alemanha. O autor por ele pesquisado, Johann Gustav Bernhard Droysen, um dos grandes nomes da historiografia alemã do século XIX, nasceu no dia 6 de julho de 1808, na pequena vila de Treptow, na Pomerânia, e faleceu em 1884, em Berlim. Criador da Escola Prussiana, estabeleceu referências metodológicas, teóricas e estruturais para a pesquisa em história. Em princípio, com algum respaldo na teoria hegeliana, posteriormente, diferenciando-se claramente desta, submetendo todo material das fontes a exames críticos e filológicos, no senso estrito dos termos. Dentre suas obras, destacam-se História de Alexandre, o Grande, publicada em 1833, que veio posteriormente a fazer parte do livro História do Helenismo, composto por dois volumes, tendo sido o primeiro deles publicado em 1836; História da Política Prussiana, composta por catorze volumes, publicados entre 1855 e 1886, e finalmente, Historik, livro em que apresenta os parâmetros e sistematização da pesquisa e do estudo históricos, e posteriormente, Grundriss der Historik, um resumo explicativo do trabalho anterior de imensa importância, no qual se expõem todos os níveis de procedimentos metodológicos da história enquanto disciplina e enquanto ciência, apresentando de maneira ordenada as diferentes formas de operação historiográfica, a saber: a heurística – Heuristik; a crítica das fontes – Kritik; a interpretação – Interpretation; e a exposição histórica – Topik ou Darstellung. Forma-se, assim, uma valiosa articulação entre metodologia e sistematização histórica, introduzindo no meio científico a ideia da função antropológica da história, excluindo definitivamente qualquer relação com aspectos teológicos. Leia Mais

Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico – AURELL et al (S-RH)

AURELL, Jaume; BALMACEDA, Catalina; BURKE, Peter;  SOZA, Felipe. Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico. Madrid: Ediciones Akal, 2013, 494 p.  SILVA, Wilton Carlos Lima da. Outras palavras: sobre manuais e historiografias¹. SÆCULUM REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.v

Entre minhas aventuras recentes se inclui uma tentativa de praticar exercícios e alongamentos através de aulas de Pilates, que resultaram ao mesmo tempo em uma rápida melhoria de minhas condições físicas de homem obeso e sedentário ao custo de algumas pequenas dores musculares e certas sequelas em minha autoestima – se a traição amorosa dói, no entanto pode ser relativizada pelas minhas particularidade e as do objeto do meu desejo, já a percepção de que seu próprio corpo está lhe traindo e que isso acontece porque somente você é o responsável dói o dobro.  No entanto, em meio ao desconforto pela constatação de minhas limitações físicas e certo orgulho pela persistência estoica naquela atividade que expunha de forma inquestionável uma de minhas muitas limitações, uma sobrinha, que é fisioterapeuta, me consolou: “Pilates é assim. Se está fácil é porque você não está fazendo direito!”.  Ensinar história, particularmente na universidade, é um desafio de mesma natureza e que poderia ser descrito de forma bastante semelhante – quando é feito de forma simples e fácil é porque não está sendo bem feito.  A tensão entre as exigências de uma boa formação, as limitações de tempo e de recursos para a construção de um bom curso, os diferentes níveis de envolvimento e cognição dos alunos, a intensa e extensa produção historiográfica contemporânea, a acessibilidade limitada aos textos, as dificuldades de intercâmbios intelectuais, as tendências corporativas e de endogêneses teórico-metodológicas, a crescente especialização do trabalho docente, entre outros aspectos do ensino universitário, tornam o surgimento de bons manuais algo extremamente necessário e positivo.  No caso brasileiro, o destaque confirmado pelas seguidas edições de Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia3, de 1997, e o surgimento de Novos domínios da História4, em 2012, ambos manuais organizados por Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, entre outros exemplos possíveis, demonstra a importância desse tipo de publicação enquanto ferramenta de trabalho para professores e pesquisadores.  Publicações semelhantes em outros idiomas oferecem uma vantagem a mais, além do mapeamento e da ordenação de natureza didática e expositiva de um campo amplo e múltiplo que qualquer historiografia dinâmica apresenta, a possibilidade do reconhecimento de convergências e divergências temáticas e teórico-metodológicas são um ganho difícil de desprezar.  Nesse sentido, Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico é um livro com quatro autores, de três países distintos e diferentes especialidades, o que se traduz em um panorama historiográfico rico e diferenciado5.  A ambição de se oferecer uma história da historiografia, pelo menos em língua inglesa, tem outros respeitáveis representantes recentes em distintas tradições intelectuais, como A History of Histories: epics, chronicles, romances and inquiries from Herodotus and Thucydides to the Twentieth Century (2007), um alentado volume de 553 páginas do historiador inglês John Burrow6, A global History of History (2011), outro volumoso livro, de 605 páginas, do professor anglo-canadense Daniel Woolf7, ou The Oxford History of historical writing (2011-2012) que é uma obra coletiva, em cinco volumes, que envolve uma infinidade de autores e editores distintos por volume8. Embora todas as três tenham méritos indiscutíveis nenhuma delas está livre de algumas críticas e questionamentos.  O historiador inglês Keith Thomas fez uma elogiosa resenha do livro de Burrow, professor emérito de Oxford, na qual reconhece no autor, uma das maiores autoridades sobre a história intelectual dos séculos XVIII e XIX e, na obra, o resultado de um enorme esforço de erudição, com texto um muito agradável e repleto de observações agudas9.

Embora também assinale a existência de alguns pequenos equívocos só perceptíveis por especialistas, como por exemplo, a inclusão de somente duas mulheres entre os historiadores dignos de nota (Anna Commena, um princesa bizantina do século XII, e Natalie Zemon Davis, a autora norte-americana de O retorno de Martin Guerre10) ou seu escopo de análise limitado a historiadores da Europa e da América do Norte (particularmente os que escreveram em inglês ou estão disponíveis em tradução).  Por sua vez o livro de Woolf, que já havia organizado A global Encyclopedia of historical writing11, de 1998, impressiona pela combinação de uma significativa erudição com um estilo agradável e didático, utilizando-se de mútuas referências entre textos e imagens, em um esforço de apresentação de uma abordagem claramente desvinculada da perspectiva eurocêntrica, e que em busca de uma perspectiva verdadeiramente global, ao longo de seus nove capítulos, valoriza escritos históricos da América do Sul, Coréia, Tailândia, Islândia, Tibete e Pérsia ao lado de outros da Antiguidade Greco-Romana, do Renascimento e do Iluminismo no Ocidente.  Os dois últimos capítulos, inclusive, intitulados respectivamente “Clio’s empire: European historiography in Asia, the Americas and Africa” e “Babel’s tower: history in the Twentieth Century”, trazem duas questões extremamente interessantes: a questão da força e influência dos modelos intelectuais europeus na historiografia não europeia e a poliglosia do discurso historiográfico contemporâneo.  Curiosamente, talvez como sintoma de nosso isolamento intelectual, quer pela questão idiomática quer por limitações da produção local, nas dezesseis páginas do índice onomástico da edição em inglês não existe nenhuma referência sobre a historiografia brasileira.  Finalmente, a extensa obra financiada por Oxford tem uma clara preocupação em afirmar tanto a excelência acadêmica de sua equipe internacional de estudiosos quanto a ênfase na diversidade cultural.  O volume 1, com 672 páginas, é organizado por Andrew Feldherr12 e Grant Hardy13, oferecendo ensaios de diversos autores sobre o desenvolvimento da escrita histórica a partir do antigo Oriente Próximo, da Grécia clássica, Roma, e do Leste e Sul da Ásia desde as suas origens até 600 d.C.  O volume 2, também com 672 páginas, sob coordenação de Sarah Foot14 e Chase F. Robinson15 reúne vinte e oito especialistas que buscam apresentar a diversidade da escrita da história na Europa e na Ásia entre 400-1400, realçando tanto características regionais e culturais quanto abordagens temáticas e comparativas sobre gênero, guerra e religião, entre outros aspectos, que se fazem nos trabalhos de historiadores do período delimitado.  O volume 3, com 752 páginas, é organizado por quatro especialistas, o argentino Jose Rabasa16, o japonês Masayuki Sato17, o italiano Edoardo Tortarolo18, e o canadense, já citado, Daniel Woolf19, abordando o período entre 1400 e 1800, em ordem geográfica de leste a oeste, da Ásia as Américas, com as principais contribuições da escrita da história no período.  O volume 4, com 688 páginas e organizado pelo australiano Stuart MacIntyre20, Juan Maiguashca21 e Attila Pok22, apresenta ensaios sobre a historiografia no mundo entre 1800 e 1945, abordando um leque de culturas e países que se estende do pensamento histórico e da erudição europeia passando por Estados Unidos, Canadá, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, México, Brasil e América do Sul espanhola, além de China, Japão, Índia, Sudeste da Ásia, Turquia, o mundo árabe e da África Subsaariana.  Finalmente, o último volume, de número 5, com 744 páginas e organizado pelo sinólogo Axel Schneider23 e pelo canadense Daniel Woolf, que também participou da organização de um dos volumes anteriores, apresenta um arco temporal que se estende de 1945 até os dias atuais, discutindo distintas abordagens teóricas e interdisciplinares para a história assim como buscando demarcar particularidades e similitudes entre historiografias nacionais e regionais.  O diferencial de Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico, em contraste com as obras anteriormente citadas, segundo seus próprios autores, é que o time de quatro pesquisadores permite superar as limitações de formação de um único especialista (o caso dos trabalhos de Burrow e Woolf) ao mesmo tempo em que o número relativamente reduzido de colaboradores permite a articulação do texto enquanto um panorama mais articulado e menos semelhante a um jogral com temas estanques – o caso do manual de Oxford –, resultando em uma combinação específica de volume informacional e inteligibilidade do quadro panorâmico.  A famosa frase de Gaston Bachelard, que compara o conhecimento a uma fraca lanterna que é utilizada para iluminar um grande sótão, de modo que iluminar um dos cantos do aposento é deixar boa parte dele na escuridão, é uma imagem recorrente para descrever toda obra de síntese.  Assim como os três textos referenciados anteriormente apresentam problemas e soluções para o pesquisador ou docente interessado em ampliar ou compartilhar seus conhecimentos em uma perspectiva global da produção historiográfica, o mesmo se percebe no volume de Aurell, Balmaceda, Burke e Soza.

Esse trabalho, inclusive, apresenta mais duas particularidades, uma de dimensão geracional, pois Burke pode facilmente ser reconhecido como um autor consolidado em termos de tempo, extensão da obra e diversidade de temas, Aurell e Balmacera seriam autores de produção mais recente, com obras bem referenciadas, mas que ainda estão se constituindo, e Soza é um jovem pesquisador, e o foco linguístico cultural, pois o historiador inglês, casado com uma brasileira, tem tanto familiaridade com a tradição intelectual de língua inglesa e francesa, como também em português, e os demais autores, enquanto conhecem a historiografia europeia, também transitam pela produção de língua espanhola – entre outros aspectos isso permitiu, em contraste com algumas das obras citadas, que a produção espanhola e portuguesa aparecesse desde de a Idade Média e houvesse um capítulo específico sobre a América Latina (assim como outros dois sobre a historiografia chinesa e a árabe).  O esforço em resgatar a prática da cultura historiográfica enquanto rede de relações que envolve produtores do conhecimento, seus receptores e os mecanismos de conservação e divulgação aproxima a estrutura do trabalho da obra clássica da história da literaturas Mimésis24 (1946), de Erich Auerbach, na qual a apresentação do cânone divide espaço com o incentivo a descoberta e a busca dos originais. Para isso, ao final de cada capítulo há um conjunto de indicações bibliográficas e comentários sobre as principais tendências teórico-metodológicas, os autores e as obras mais representativas de cada período.  Em termos estruturais, os dois primeiros capítulos, sobre a antiguidade greco-romana (p. 09-94) ficam a cargo de Catalina Balmaceda; o terceiro capítulo, do período medieval (p. 95-142), é abordado por Jaume Aurell; os capítulos 4º, do Renascimento e a Ilustração (p. 143-182), e 5º, sobre historiografia islâmica e chinesa (p. 183-198), são escritos por Peter Burke; o 6º, sobre historicismo, romanticismo e positivismo (p. 199-236), o 7º, sobre a transição do século XIX ao XX (p. 237-286) e o 8º, sobre o giro linguístico e as histórias alternativas (p. 287- 340), são tratados por Jaume Aurell e Peter Burke; enquanto que o 9º e último capítulo (p. 341-437), sobre historiografia latino-americana, é assinado por Felipe Soza25.  Além da oportunidade de entrar em contato com características das obras de autores pouco conhecidos na tradição intelectual brasileira, como os árabes Ibn Khaldun e Mustafa Naima, os chineses Sima Qian e Ouyang Xiu ou o indiano Ranajit Guha, o livro destaca-se pela síntese rica e ampla sobre a historiografia latino americana.  Em geral os manuais enfrentam o desafio de equilibrarem-se entre a representação da extensão de um conhecimento sobre o qual se projetam e a síntese didática e acessível de um vasto campo de conhecimento, buscando oferecer um que o detalhismo do especialista.  Com certeza todos os trabalhos aqui citados, e em especial, pelas particularidades anteriormente expressas, o livro Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico cumpre de forma exemplar tais ambições, merecendo inclusive uma tradução para o português.  Quem ler, comprovará.

Notas

1 Este texto é resultado de um estágio de pesquisa realizado na Universidade de Sevilha, Espanha, entre janeiro e fevereiro de 2016, com bolsa do Programa de Movilidad de Profesores e Investigadores Brasil-España, da Fundación Carolina.

3 CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

4 CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos domínios da História. Rio de  Janeiro: Campus; Elsevier, 2012.

5 Jaume Aurell é Professor Titular de Historia Medieval e Teoria da História na Universidade de Navarra, Espanha; Catalina Balmaceda, professora de Historia Clássica do Instituto de Historia da Pontifícia Universidade Católica, Chile; Peter Burke, professor emérito da Universidade de Cambridge, Inglaterra; e Felipe Soza, professor adjunto do Instituto de Historia da Pontifícia Universidade Católica, Chile.

6 A obra foi traduzida para o português. Ver: BURROW, John. Uma História das Histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Tradução de Nana Vaz de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2013.

7 A obra foi traduzida para o português. Ver: WOOLF, Daniel. Uma História global da História. Tradução de Caesar Souza. Petrópolis: Vozes, 2014.

8 FELDHERR, Andrew & HARDY, Grant (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 1: beginnings to AD 600. Oxford: Oxford University Press, 2011. FOOT, Sarah & ROBINSON, Chase F. (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 2: 400-1400. Oxford: Oxford University Press, 2011. RABASA, José; SATO, Masayuki; TORTAROLO, Edoardo & WOOLF, Daniel (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 3: 1400-1800. Oxford: Oxford University Press, 2011. MacINTYRE, Stuart; MAIGUASHCA, Juan & POK, Attila (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 4: 1800-1945. Oxford: Oxford University Press, 2011. SCHNEIDER, Axel & WOOLF, Daniel (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 5: historical writing since 1945. Oxford: Oxford University Press, 2012.

9 THOMAS, Keith. “Mapping the world – a History of Histories: epics, chronicles, romances and  inquiries, from Herodotus and Thucydides to the Twentieth Century”. The Guardian, Londres, 15 dez. 2007. Disponível em: <http://www.theguardian.com/>. Acesso em: 20 out. 2015.

10 DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

11 WOOLF, Daniel (org.). A global ecyclopedia of historical writing. Londres: Taylor & Francis; Nova York: Routledge, 1998.

12 Professor de Antiguidade Clássica na Universidade de Princenton, EUA.

13 Professor da História de Religiões na Universidade da Carolina do Norte, EUA.

14 Professora de História das Religiões na Universidade de Oxford, Reino Unido.

15 Professor da Universidade de Nova York, especializado em História islâmica.

16 Professor da Universidade de Harvard, EUA, especialista em literatura e estudos pós-coloniais.  17 Professor da área de Teoria da História e Historiografia da Universidade Yamanashi, Kyoto, Japão.  18 Professor de História Moderna e de Historiografia da Universidade de Turim, Itália.  19 Professor da Queen’s University, Kingston, Canadá.  20 Professor da Universidade de Melbourne, Austrália.  21 Professor especialista em História da América Latina da Universidade de York, Toronto, Canadá.  22 Professor da Academia Húngara de Ciências, Budapeste, Hungria.  23 Professor da Universidade de Gottingen, Alemanha.

24 AUERBACH, Erich. Mimésis: a representação da realidade na Literatura Ocidental. Tradução de G. B. Sperber. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.  25 Sobre História e historiografia da/na América Latina, ver também: MAIGUASHCA, Juan. “História marxista latino-americana: nascimento, queda e ressurreição”. Almanack, São Paulo, UNIFESP, n. 7, mai. 2014, p. 95-116. Disponível em: <http://www.almanack.unifesp.br/>. Acesso em: 21 out. 2015.

Wilton Carlos Lima da Silva Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis. Professor Livre-Docente do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP Assis. Coordenador do MEMENTO – Grupo de Pesquisa de Memórias, Trajetórias e Biografias (UNESP Assis/ Diretório CNPq). E-Mail: <wilton@ assis.unesp.br>.

https://periodicos.ufpb.br/index.php/srh/article/download/29242/15841

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A Clio Tucidideana entre Maquiavel e Hobbes: os olhares da história e as figurações do historiador – PIRES (HP)

PIRES, Francisco Murari. A Clio Tucidideana entre Maquiavel e Hobbes: os olhares da história e as figurações do historiador. Porto Alegre: Armazém Digital, 2014. PANEGASSI, Rubens Leonardo Panegassi. Sobre o estatuto epistemológico da História. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 28, n. 53, 5 jan. 2016.

R. G. Collingwood: A Research Companion – CONNELLY et al (IJHLTR)

CONNELLY J R G Collingwood A research companion Lógicas e MétodosCONNELLY, James Connelly; JOHNSON, Peter Johnson; LEACH, Stephen. R. G. Collingwood: A Research Companion. London: Bloomsbury, 2015.  293p. Resenha de: HUGHES-WARRINGTON, Mamie. International Journal of Historical Learning Teaching and Research, London, v.13, n.2, p.14-15, 2016.

In 1992, I became the fortunate owner of a small photocopied guide to the R. G. Collingwood papers in the Bodleian Library, Oxford. This much-thumbed, much-annotated booklet became the first item in a collection of transcriptions and notes that soon spilled over the limits of a single folder and settled into a row of boxes that continues to grow today.

Such was the lot of a researcher on the life and works of Robin George Collingwood (1889– 1943), philosopher, archaeologist, historian and luminary of Oxford University in the first half of the twentieth century. Until now. Connelly, Johnson and Leach’s companion for researchers admirably fulfils its aims of providing a comprehensive and systematic listing of materials by and on Collingwood and of placing those materials in the context of a detailed chronology of his life (p. 2).

The book is helpfully divided into eight sections, covering a biography, a chronology of life events, letters, unpublished and published works by Collingwood and his commentators and details of the many archive holdings. The largest section – a description of correspondence – is arguably the most helpful, for the volume and scattered nature of holdings provides a considerable challenge to any budding researcher. The chronology is also a powerful aide to understanding Collingwood’s battle with failing health, which he describes rather poignantly in a 1941 letter to Christopher Hawkes as the time ‘since the superincumbent sword of Damocles became clearly visible, and here I am driving a pen, though not well’ (p. 137).

To those who would argue that it is an important rite of passage for new researchers to find materials for themselves, the simplest rebuttal is that comprehensive aids for research assist in the development of a comprehensive and nuanced understanding of the ideas and life events of individuals and groups. Moreover, they minimise the risk of misunderstandings that arise from not having considered particular materials, protecting students, early career researchers and those interested in Collingwood because of his connections to others from the dreaded ‘but you haven’t read x’ of the experienced Collingwood researcher.

There is a little to quibble about the book. The biography (pp. 3–6) gives the reader little sense of The Idea of History as a posthumous collection brought together by Collingwood’s student, T. M. Knox, or of the significant discovery in 1993 of missing chapters from The Principles of History in the basement of Oxford University Press. The published Collingwood is only the tip of an extensive manuscript collection that shows the evolution of his thought at work.

Nor does the book give the reader a sense of what to expect when they see a Collingwood manuscript for the first time. Collingwood’s handwriting is far from challenging as far as philosophers go, and his use of recycled exam scripts provide a helpful reminder of the Oxford in which he worked. But readers do need to be warned about his liberal use of ancient Greek terms, as well as his predilection for quoting from poems without noting their source. What was customary intertextual reference in Oxford of the 1930s can take the present day reader by surprise, and the best remedy is to begin with the revised editions of Collingwood’s philosophical work – starting notably with David Boucher’s edition of The New Leviathan (1992) – as they contain transcriptions and explanatory notes to a significant group of manuscripts.

Finally, the collection does not explicitly give the reader a sense of the balance of Collingwood’s interests in toto, as distinct from a year-by-year summary. This is a significant gap, as an analysis of the Collingwood corpus can remind us not to pass over his contributions to aesthetics when we see the vast lists of writings on archaeology, metaphysics and the philosophy of history.

But these are minor quibbles, and given the significant opportunities for research posed by a still largely untapped group of writings, this Research Companion is a welcome introduction to those new to Collingwood studies.

Marnie Hughes-Warrington – Australian National University, Australia. E-mail: marnie.hughes-warrington@anu.edu.au.

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Teoria da História (v.1) Princípios e conceitos | José D’Assunção Barros

Pode um historiador ser considerado culto e competente sem nenhuma preparação teórico-metodológica? Pode um professor, mesmo dos Ensinos Fundamental e Médio, ensinar sem nenhuma bagagem teórico-metodológico? A epistemologia deve ficar restrita à alguns pequenos círculos ou deve envolver todos os membros da comunidade de historiadores?1 São sobre tais questionamentos que o livro “Teoria da História: princípios e conceitos fundamentais”, de José D’Assunção Barros, se propõe a discutir. Na obra, o autor apresenta explicações fundamentais para a compreensão da História como campo de conhecimento, com suas próprias peculiaridades teóricas e metodológicas. Leia Mais

O desafio historiográfico – REIS (AN)

REIS, José C. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. 160p. (Coleção FGV de bolso. Série História). Resenha de: SALGUEIRO, Eduardo de Melo. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 407-415, jul. 2014.

José Carlos Reis, autor de diversas obras sobre teoria e filo­sofia da história, apresenta, em O desafio historiográfico, uma porção de temas que vem inquietando os historiadores, sobretudo em relação às crises que a ciência da história tem enfrentado desde os meados do século XX. Neste sentido, logo na introdução, o autor lança diversas questões sobre o “fazer” a história e o “ser” historiador. Conforme ressalta, seu livro “[…] tem a pretensão de propor uma reflexão ao mesmo tempo fácil e densa, rápida e profunda […] sobre o ‘desafio historiográfico’” (p. 7).

Qual seria esse desafio? Ou seriam desafios? No decorrer dos seis capítulos do livro (alguns inéditos, outros reorganizados a partir da sua vasta publicação), Reis intentará mostrá-lo[s]. No primeiro deles – homônimo ao título do livro –, o autor inicia a discussão evidenciando algumas das questões que mais têm importunado os historiadores ao longo das últimas décadas. Com “irônico sadismo”, Reis pretende com isso provocar, ou melhor, “irritar” os profis­sionais da história, expondo uma porção de críticas que a área tem sofrido, pois, na sua visão, “[…] o ganho com isso é enorme! É o fim do dogmatismo, da solene e hipócrita confiança no ‘ofício’”, uma vez que promove “o enfraquecimento dos sérios e pedantes tência de fontes; o esquecimento de reserva, isto é, aquele que é rever­sível, um tesouro profundo que pode ser recuperado; e o esquecimento manifesto, aquele que é conscientemente manipulado, apagando-se situações “constrangedoras” da história de um país, por exemplo.3 Como controlar tais abusos e vencer os esquecimentos? Seria a historiografia capaz de proteger a memória? Na leitura de Reis, Ricoeur acredita que sim, pois uma memória  […] instruída, esclarecida pela historiografia, e uma histo­riografia capaz de reanimar a memória declinante, que a rea­tualiza, que reefetua o passado, podem ser uteis à vida […] na busca do reconhecimento de si dos indivíduos em seus grupos, dos grupos em relação aos outros e da humanidade como união universal dos grupos e indivíduos (p. 45).

Ainda no segundo capítulo, o autor apresenta-nos as três fases da operação historiográfica elaboradas por Ricoeur. A fase documen­tária, momento em que o historiador procura coletar dados exte­riores, a partir dos problemas e das hipóteses por ele lançados; a fase da explicação/compreensão, momento em que o pesquisador organiza a massa documental na tentativa de compreendê-la e interpretá-la; e a terceira fase, que é a da representação narrativa, isto é, o fecha­mento da operação historiográfica – sem nos esquecermos, claro, da recepção e apropriação dos leitores.

No fechamento do capítulo, José C. Reis afirma mais uma vez que Ricoeur procura reunir memória e historiografia, pacificar a sua “relação difícil”, demonstrando que o objetivo de ambas é o mesmo: vencer o esquecimento. O objetivo maior da memória-historiografia é a “reconciliação com a vida”, que se realiza “no perdão”, por meio de um trabalho de luto, de “psicologia coletiva” que a historiografia acaba exercendo (p. 61). Tal concepção, no entanto, pode ser criti­cada se levarmos em consideração os perigos que existem com a perspectiva apaziguante ricoeuriana, pois é muito mais fácil para o opressor esquecer-se das atrocidades que cometeu do que para o oprimido se esquecer das que sofreu, e temas como o Holocausto e o Golpe Militar estão aí para nos mostrar como não é fácil achar uma justa medida entre o perdão e a justiça.

No terceiro capítulo, o autor retoma algumas das discussões feitas no início do livro e se dedica a nos mostrar o debate em torno da narrativa histórica, evidenciando especialmente as críticas feitas por Hayden White, que provocaram diversas crises na histo­riografia. O historiador norte-americano é categórico ao sinalizar que o discurso historiográfico não seria realista, pois os historia­dores fazem apenas a construção de versões por meio de um “arte­fato verbal em prosa”, e que a “[…] história é uma representação narrativa das representações-fontes”, não havendo oposição entre história e ficção (p. 64); “o passado como tal” é inacessível e o passado ao qual os historiadores podem ter acesso – seus traços ou restos documentais – é constituído por textos (discursos), e não por uma realidade extradiscursiva – um referente externo ao discurso (FALCON, 2011, p. 170). Em resumo: não há cientificidade na operação historiográfica.

Para fazer tal análise, Reis abordará principalmente a obra Tempo e narrativa4, de Ricoeur, que faz uma profunda discussão acerca dessas indigestas questões apontadas por White. Segundo nosso autor, Ricoeur defende o realismo histórico, pois “[…] o tempo vivido não é inenarrável”, “[…] as narrativas históricas são ‘variações interpretativas’ do passado […] mas [são] realistas”, uma vez que “[…] as intrigas variam, mas as datas, os documentos, os personagens, os eventos, os locais, são os mesmos”. Exemplifi­cando, Reis ressalta que existem várias configurações narrativas sobre a Revolução Francesa ou o Golpe de 64, “[…] mas elas não podem alterar [seus] dados exteriores” (p. 69-76). No decorrer do capítulo, entretanto, ele nos mostrará que, para Ricoeur, apesar de inicial­mente heterogêneas e opostas, as narrativas histórica e ficcional também se entrecruzam, porém sem se confundir.

Como exemplo de tal afirmação, no último tópico do capí­tulo, há uma análise do debate feito por Ricoeur acerca da obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico à época de Felipe II, de Braudel, que “[…] seria um exemplo revelador do caráter produtivo do entrecruzamento entre narrativa histórica e ficcional” (p. 83) e que evidencia o fato de que não há um “retorno à narrativa” – na prática, nunca houve “nem partida nem abandono”, pois mesmo as primeiras gerações dos Annales nunca abandonaram a narrativa, uma vez que “sociedades”, “classes”, “mentalidades” e inclusive o “Mediterrâneo” são “quase-personagens” de uma narrativa, já que “mesmo a mais estrutural é construída a partir das fórmulas que governam a produção das narrativas (CHARTIER, 2002, p. 86-87), o que, claro, não invalida o discurso histórico.

No quarto capítulo, o autor faz uma descrição geral das princi‑pais características dos Annales, mostrando aquilo que houve de inovador na sua prática historiográfica, em oposição à historiografia tradicional oitocentista. Segundo Reis, os primeiros Annales são parti­dários de uma “história-problema”, que se opunha à historiografia tradicional, acusada de ser meramente narrativa, descritiva e despro­blematizada, pois pretendia apenas “[…] narrar os eventos políticos, recolhidos nos próprios documentos, em sua ordem cronológica, em sua evolução linear e irreversível, ‘tal como se passaram’”. Na “história-problema”, o historiador escolhe seus objetos no passado a partir de interrogações do presente (p. 93). Para obter tal êxito, os Annales inovaram de várias maneiras: a noção de “fato histórico” como construção, em oposição ao “fato dado” nos documentos (escola metódica); a ampliação e a variedade do uso das fontes histó­ricas; e a ambição de uma história total e global. Unindo-se a tais propostas, os annalistes propuseram o uso da interdisciplinaridade.

Ainda que breve, tal discussão servirá como uma antessala para o debate feito no capítulo seguinte, Annales versus marxismos: os paradigmas históricos do século XX. Nesse capítulo, o autor faz inicial­mente uma abordagem acerca das principais diferenças entre a modernidade iluminista e a pós-modernidade para poder, poste­riormente, situar os Annales e o marxismo. No primeiro caso, o projeto moderno iluminista é eminentemente racional e constrói um sujeito singular-coletivo absoluto e consciente, e a história é um processo inteligível com um final claro, isto é, “[…] a vitória da razão, que governa o mundo” (p. 105). Para tanto, segundo Reis, a modernidade desprezava o presente e o passado, lançando seu olhar para o futuro e provocando, assim, uma “aceleração da história”. Esse é um dos pontos em que recaem as críticas a tal projeto, pois a “intervenção radical da realidade histórica” acabou por produzir um nível de agressão que não trouxe progresso e feli­cidade. Daí emerge uma visão anti-iluminista, que pretende pôr fim ao “projeto moderno” em favor de um “pós-moderno”.

O pós-modernismo é dividido em duas fases: a primeira delas é ligada ao estruturalismo, que criticava a noção de “sujeito­-universal”, uma vez que, para os estruturalistas, “[…] o homem não é só sujeito, mas também objeto” (p. 108). Entretanto, ali ainda havia uma tentativa de “[…] produzir uma inteligibilidade ampliada da história”, “um discurso da razão” (p. 110) – não mais centrada no sujeito absoluto, pois “sua verdade é oculta” e fica além da ilusória, falsa e aparente razão. Na segunda fase, mais conhecida como pós­-estruturalista, radicalizavam-se algumas posições, incluindo-se até mesmo os primeiros estruturalistas nas críticas, por ainda manterem um discurso racionalizante. Nas palavras de Reis, a  pós-modernidade desconstrói, deslegitima, deslembra, desmemoriza o discurso da ‘razão que governa o mundo’ […], aborda um mundo humano parcial, limitado, descentrado, em migalhas […], assistemático, antiestrutural, antiglobal” (p. 111), e “o conhecimento histórico é múltiplo e não definitivo: são in­terpretações de interpretações (p. 112).

“Onde situar os Annales e os marxismos?”, nos pergunta Reis. Em primeiro lugar, é difícil situá-los, pois ambos não são homo­gêneos e talvez isso seja até um componente positivo, conforme ressalta, talvez “[…] a heterogeneidade interna dos dois grupos permita alguma aproximação e colaboração” (p. 114). Neste sentido, o autor divide sua discussão em três leituras, enfatizando espe­cialmente as diferenças entre o marxismo-soviético e os Annales: uma primeira que valoriza aquilo que é comum; a segunda, que nos mostra sua oposição; e uma terceira que os considera simples­mente diferentes, isto é, nem complementares nem opostos, apenas “[…] vistos como teorias, hipóteses de trabalhos que só têm valor e só podem dialogar porque são ‘diferentes’” (p. 115), e só assim é possível obter elementos para a escrita de uma história plural, e não totalitária. A respeito da sobrevivência ou não de ambas as correntes – Annales e marxismo –, tudo dependerá do resultado do embate entre “o projeto moderno” versus “pós-modernidade”, uma vez que ainda não há total abandono do iluminismo.

O último capítulo da obra pareceu um tipo de apêndice, que teve como intenção inserir a historiografia brasileira em um debate teórico até então eminentemente norte-americano-eurocêntrico. A discussão ali feita é válida e importante, mas seria mais apropriada em outra ocasião, pois é curioso que uma abordagem tão rica tenha sido feita em um capítulo tão curto. Cremos que o ideal seria dedicar uma obra de mesmo perfil (isto é, versão de bolso) somente às contribuições de Freyre, já que tal investida nos pareceu solta e sem conexão direta com os demais capítulos. De qualquer modo, é importante frisar que Reis intentou abrir uma discussão sobre “ser historiador do/no Brasil” no sexto capítulo. No entanto, como tal tarefa seria impossível de ser realizada em tão pouco espaço, o autor apresenta apenas a contribuição de Gilberto Freyre, sobre­tudo no que tange ao seu talento como narrador e como precursor de uma porção de temas inovadores na historiografia, uma vez que “[…] descobriu, ao mesmo tempo que os franceses dos Annales, a história do cotidiano […] das mentalidades coletivas, a renovação das fontes da pesquisa histórica” (p. 144) etc. Isso significa dizer que, apesar de toda a contradição e a polêmica que cercam a obra e a figura de Gilberto Freyre, ele também foi um inovador, e não somente um reprodutor de tendências europeias, não desconside­rando, é claro, que boa parte de sua formação acadêmica foi feita nos Estados Unidos, sob forte influência alemã.  O desafio historiográfico é uma importante contribuição, espe­cialmente para historiadores mais jovens, pois José Carlos Reis consegue fazer um debate extremamente complexo muito didatica­mente, e isto é louvável. Não podemos deixar de dizer, entretanto, que algumas questões são tão resumidas que podem dificultar a compreensão de um leitor iniciante, exigindo, de certo modo, uma leitura prévia de alguns temas ou uma busca em outra bibliografia, como o próprio autor avisa na introdução da obra.

Ademais, além de advertir contra um dos maiores males da escrita da história e de seus profissionais, isto é, a tendência “parri­cida” em relação aos nossos mestres e às correntes historiográficas anteriores a nós, o que ficou subentendido é o fato de que Reis inclina-se a aceitar a proposta ricoeuriana, isto é, a via do diálogo e da “não dogmatização” do saber histórico. O ideal, na visão do autor, é caminharmos sempre pela via da compreensão, ainda que os embates sejam inevitáveis. Neste sentido, faz-se necessário aproveitarmos o que há de importante nas mais diversas vertentes historiográficas, sem incorrermos no erro de ficarmos cegos e per‑didos em uma só visão.

Notas

1 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain Fran­çois. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

2 Ricoeur – diz Reis – pondera, entretanto, que em algumas profissões, como o teatro, por exemplo, a “memória artificial” é uma poderosa arma contra o esquecimento (p. 37).

3 Helenice Rodrigues da Silva dá um exemplo típico em relação ao esquecimento mani‑festo. Diz ela que, nas comemorações dos “500 anos do Brasil”, foram “esque‑cidos” “os massacres indígenas, a escravidão negra, as violências da história”, em prol dos “mitos fundadores e das utopias nacionais (o ‘paraíso tropical’ e o ‘país do futuro’)” (2002, p. 432).

4 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2010.

Referências

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

FALCON, Francisco J. C. Estudos de teoria e historiografia, volume I: teoria da histó­ria. São Paulo: Hucitec, 2011.

SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 425-438, 2002.

Cláudia Regina Bovo – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Mato Grosso, doutoranda em História/Unicamp. Endereço Eletrônico: claubovo@yahoo.com

A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber – MATA (AN)

MATA, Sérgio da. A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. 236p. Resenha de: CUNHA, Marcelo Durão Rodrigues. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 417-426, jul. 2014.

Na linha de estudos atuais no campo da história intelectual e das ideias, o professor Sérgio da Mata realiza em A fascinação webe­riana: as origens da obra de Max Weber um trabalho que, dentre outros objetivos, busca elucidar as bases do encantamento intelectual, da sedução que a obra de Max Weber suscita na comunidade acadê­mica em todo o mundo.

A “fascinação” – termo cunhado na década de 1950 por Nelson Werneck Sodré – denota, segundo o historiador mineiro, um tipo de tentação intelectual que, de forma ambivalente, poderia levar ao mesmo tempo à obliteração da autonomia da obra de um autor, bem como à sua consequente abnegação no campo das ideias.

Na contramão deste caminho entre fascinação e sacrifício do intelecto, Sérgio da Mata traz um instigante estudo acerca do legado weberiano, desde a dívida do intelectual para com a Escola Histórica Alemã até os caminhos e as fronteiras da recepção de sua obra em terras brasileiras.

Ancorados num extenso trabalho de pesquisa em arquivos e bibliotecas alemãs, os estudos reunidos pelo Weberforscher brasileiro baseiam-se em uma melhor compreensão dos chamados “anos de aprendizagem”, de formação histórico-jurídica do intelectual alemão, antes do seu tardio sociological turn, ao fim da primeira década do século vinte.

 Com o princípio metodológico básico de analisar apenas o que antecede esse marco, preocupando-se com o “início” e o desen­volvimento progressivo da vida intelectual weberiana, o autor evita a tendência a panoramas retrospectivos ou a um tipo de teleolo­gismo muito comum em abordagens sobre obra de Weber, ainda perceptível em trabalhos recentes, como os de Francisco Teixeira e Celso Frederico (TEIXEIRA; FREDERICO, 2011), ou no artigo de Gerhard Dilcher (DILCHER, 2012).

Tendo como pressuposto a elevação feita pelo próprio Weber da ciência histórica à categoria de Grundwissenschaft, o pesquisador enxerga na formação intelectual do autor de A ética protestante uma perspectiva que seria sempre e decididamente histórica. Essa ideia de um approach weberiano às ciências históricas – que há alguns anos causaria estranhamento a leitores desatentos – é a base do argu­mento de Mata em boa parte de sua obra.

Em um exercício de história contrafatual, o autor chega mesmo a sustentar que, caso a carreira de Weber tivesse se encerrado em 1909, este dificilmente estaria situado entre os fundadores da moderna sociologia alemã.

É em tal provocação que reside a tentativa por parte do histo­riador de reconstrução da trajetória de Weber dentro daquilo que denomina a “era de ouro do historicismo”. Discordando de interlo­cutores que tendem a observar na virada do oitocentos ao século vinte o germe de uma crise da ciência histórica, Mata vê, pelo contrário, na fundamentação epistemológica do historicismo – realizada por Dilthey, Schmoller, Bernheim, Windelband e Rickert no período – uma indissociável gênese da obra e da metodologia weberianas.

É justamente fugindo da sombra da sociologia de Max Weber que o autor inicia todo um capítulo acerca daqueles anos de apren­dizagem em Heidelberg, Göttingen e Berlim – “três templos da ciência histórica oitocentista” (MATA, 2013, p. 35) –, quando o jovem “jurista” formar-se-ia em um ambiente intelectual ampla­mente influenciado pela Weltanschaung histórica.

Mata busca aqui identificar algumas das figuras que mar‑caram o início da trajetória intelectual do estudante oriundo de Erfurt para concluir que Weber foi, nem mais nem menos que qualquer contemporâneo seu, o resultado dos estilos de pensamento histórico

 

419.

Anos 90, Porto Alegre, eentão vigentes. Seus laços familiares com o eminente historiador Hermann Baumgarten, a simpatia inicial pelo trabalho de Heinrich von Treitschke, além do convívio do jovem Max com o círculo de Theodore Mommsen, são alguns dos muitos indícios que corro­boram a tese do autor.

Desconstruindo a ideia de que Weber teria rejeitado, ou mesmo se oposto à ciência histórica de seu tempo, o historiador nos prova o contrário a partir de um olhar atento sobre a pouco estudada primeira fase da carreira do intelectual germânico. Considerando a perspectiva trazida por Mata nesse primeiro capítulo, torna-se fácil concordar com sua assertiva, segundo a qual “Max Weber começou a tornar-se o Max Weber que conhecemos no berço esplêndido do historicismo alemão” (MATA, 2013, p. 35).

Mas, longe de limitar a ascendência intelectual do jovem autor aos domínios da Ciência Histórica, Mata fornece-nos o panorama de toda uma constelação de ideias e relações intelectuais que teriam influenciado a formação do economista e historiador do direito Max Weber.

A partir da leitura sincrônica de alguns dos mais importantes estudos históricos e econômicos publicados pelo autor até 1905, Mata é capaz de identificar um padrão metódico comum na obra do então professor de Heidelberg. Ao tratar em especial da concepção plural das relações de causalidade e, ao mesmo tempo, da tendência de Weber a enfatizar determinadas macrodeterminações em função do problema específico elucidado, o pesquisador contesta aquelas leituras que tendem a exagerar a perspectiva “idealista” do autor alemão.

É este apurado exame dos primeiros trabalhos de Weber que permite ao historiador chegar a duas conclusões gerais: primeiro, que Weber (ao menos na primeira fase de sua carreira) não teria proposto nem se tornado refém de uma “teoria” histórico-social abrangente. Segundo, que somente o desconhecimento em relação à obra weberiana explicaria por que se chegou a ver no autor de Erfurt uma versão idealista de Marx. E são justamente as preocu­pações práticas que permitem ao historiador identificar uma “clavis weberiana” – especialmente nos vinte primeiros anos da trajetória intelectual do autor. Por trás da inteligência teórica, Weber falaria sempre em uma intenção prática.

 

 

Na trilha do que persegue nas digressões teóricas de um Weber prematuro, Mata procurará, entretanto, nas publicações tardias do intelectual turíngio, sinais de uma possível concepção filosó­fica da história. Principalmente no que tange à sua percepção do processo de racionalização ocidental e no caráter inexorável que atribui ao conceito de Rationalizierung, o autor brasileiro irá buscar no resultado das investigações empíricas weberianas possíveis liga­ções com a obra do historiador escocês Thomas Carlyle.

Por sua “extraordinária força ética” e pelo ideal de reforma social em harmonia com a recusa a toda alternativa que implicasse a subversão violenta da ordem, Carlyle tornara-se bastante sedutor aos olhos da intelectualidade alemã do fin-de-siècle. Do autor de Past and Present, Weber herdara, por exemplo, aquela ampla dimensão atribuída ao trabalho na modernidade e as idiossincrasias da noção de “heroís‑mo carismático” no cerne do processo de burocratização ocidental.

Exercício semelhante é feito pelo autor no que diz respeito à dívida weberiana ao pensamento do filósofo neokantiano Hein­rich Rickert. Distanciando-se da apressada leitura de Ivan Domin­gues (DOMINGUES, 2004) e dos equívocos cometidos por Fritz Ringer (RINGER, 2004) na análise de tal relação, Mata insiste na necessidade de entendimento dos pressupostos rickertianos para melhor compreensão dos fundamentos do pensamento histórico de Weber. Do autor de Os limites da formação de conceitos nas ciências naturais, Weber extraíra a ideia de que as pré-condições à caracteri­zação de um trabalho de história como científico seriam: objetivi­dade, contextualização e imputação causal. Weber teria expressado bem esta preocupação de Rickert ao observar que o historiador que abre mão dessas pré-condições comporia “um romance histó­rico, não uma verificação científica”.

Além disso, do filósofo prussiano, teria sido importante para o economista político aquele abrangente conceito de cultura – segundo o qual o cultural seria qualquer realidade investida não apenas de sentido, mas de valor – e o seu ideal de “verdade” como um valor do qual a ciência jamais poderia abrir mão. Longe de expressar um relativismo, o perspectivismo histórico weberiano, como exposto por Mata, estaria muito mais próximo daquele modesto ideal de verdade defendido por Rickert. 420  Marcelo Durão Rodrigues da Cunha.

Abertas tais perspectivas críticas quanto à análise das origens do pensamento histórico weberiano, Sérgio da Mata amplia o debate no quarto capítulo, ao tratar da discussão em torno da “teoria” dos tipos ideais, desenvolvida por Weber. É realizando uma história do próprio conceito em tela que o autor relativiza a originalidade da tal aspecto do pensamento teórico-metodológico do intelectual alemão.

Expressando uma tentativa de fundamentar a perspectiva tipologizante nas ciências naturais, o autor alerta que a noção de “tipo” havia se tornado um jargão na Alemanha entre fins do século dezenove e início do vinte. Como reverberação da Methodenstreit entre economistas alemães e austríacos – envolvendo nomes como Gustav von Schmoller e Carl Menger (RINGER, 2000) – e do debate, igualmente intenso, que contrapôs historiadores políticos a historiadores culturais (ELIAS, 1997, p. 117), Mata verifica a percepção de alguns daqueles limites do historicismo que contri­buíram para a reformulação epistemológica da disciplina histórica na Alemanha guilhermina. Nas discussões entre Eberhard Gothein, Dietrich Schäfer e Ernst Troeltsch, seria perceptível o embate acerca da utilidade de categorias tipológicas que visassem a extrapolar os limites do singular na representação de fenômenos históricos.

É também na ciência jurídica e na ligação de Weber com o jurista Georg Jellinek que Mata identifica como o autor do artigo sobre a “Objetividade”, de 1904, teria feito uso dos “tipos empíricos” de Jellinek, invertendo seus polos – os denominando “tipos ideais” – de modo a se distanciar de seu elemento propriamente normativo, – aproximando-os do que classificava como “ciências da realidade”.

A dívida de Weber para com a teologia – e aqui destacam-se as formulações de Ernst Troeltsch – é ressaltada como igualmente importante naquilo que se tornaria tão central em sua obra. Como uma espécie de conceito jurídico “desnormativizado”, o tipo ideal weberiano representaria uma forma de compromisso entre o aban­dono e a conservação da filosofia da história, sendo, nesse sentido, uma “forma resignada da filosofia da história”. Mais do que simples‑mente comprovar que não há originalidade na “teoria” weberiana dos tipos ideais, Mata é capaz de trazer novamente à tona uma série de debates entre eruditos que outrora padeciam em um longo período de esquecimento.

Ao tratar de outro controverso aspecto da obra de Weber, a “isenção de valor” ou “neutralidade axiológica” (Wertfreiheit) do conhecimento histórico social, o autor opta por reconstruir a evolução de tal sentido na obra de Weber, contrapondo a posição do intelectual às de alguns de seus contemporâneos. Em trabalhos como o ensaio sobre a “Objetividade” ou em A ética protestante, além do diálogo com as obras de Rickert e Schmoller, o histo­riador evidencia, em um primeiro momento, que há na obra de Weber uma preocupação com o “dever ser” (Sollen) do erudito que extrapola o campo propriamente epistemológico, estendendo-se também à ética da prática pedagógica.

Mata conclui que Weber sustenta a opinião segundo a qual o historiador, o jurista e o sociólogo podem e devem ter sua própria visão de mundo, sua ética e suas convicções políticas, mas não a ciência histórica, o direito e a sociologia enquanto tais. Weber afir­maria querer se afastar dos adeptos de uma neutralidade axiológica “radical”, para quem a historicidade dos postulados éticos deporia contra a importância histórica destes. Ao mesmo tempo, julgaria que não cabe à ciência empírica valorar positivamente uma ética só por ela ter dado forma a épocas e culturas inteiras. Nesse sentido, a neutralidade axiológica weberiana residiria, em última análise, numa transposição da ética da convicção para o campo gnosiológico.

Apontando o caráter estritamente formal da solução weberiana para o problema dos valores, além de sua posição pouco conse­quente do ponto de vista filosófico, Mata joga luz sobre o tão atual debate acerca das relações entre ciência e consciência moral.

Dando prosseguimento ao debate acerca da influência do pensamento weberiano na ciência histórica, o pesquisador ambi­ciona, no sexto capítulo, compreender os motivos do amplo desco­nhecimento a respeito da obra de Weber – tanto no Brasil quanto no exterior – e do seu legado para o ofício dos historiadores.

Dedicando-se ao entendimento de alguns importantes aspectos da visão de Weber sobre a ciência histórica, Mata analisa a opinião do intelectual frente aos escritos de três relevantes historiadores – Leopold von Ranke, Karl Lamprecht e Eduard Meyer – de modo a melhor aproximar-se de sua própria visão a respeito do tema.

Em tal exercício, o historiador conclui que tudo parece afastar as posições de Weber, sobretudo, do segundo desses autores. Os argumentos apresentados na polêmica com Meyer levam-no, toda‑via, a concluir que entre a história “positivista” de Lamprecht e a história compreendida como “ciência cultural” de Weber existiam evidentes afinidades eletivas. Mata percebe que ambos se reconhe­ciam como representantes de uma história cultural que desafiava abertamente os rígidos cânones historiográficos vigentes.

A aproximação com o trabalho do Weber historiador no atual momento do que classifica como “crises de sentido intersubjetivas” seria, segundo Mata, profícua na medida em que – distanciando-se de uma perspectiva de exagero do ficcional – este versaria sobre uma ciência preocupada com os desdobramentos do real.

Nos capítulos seguintes, o autor reitera tal posição referente à relevância da Weberforschung no presente, ao analisar o uso do conceito de “despotismo oriental” e o debate acerca da existência de uma posição religiosa e de uma teologia política na obra de Max Weber.

No primeiro caso, em um pequeno excurso complementar, Mata empreende uma elucidativa avaliação dos escritos weberianos acerca da situação política na Rússia do início do século vinte. Em sua análise, o autor conclui que Weber surpreendentemente mantém sua opinião a respeito do suposto imobilismo russo – de forma coerente com o que era pensado pelos fundadores do mate­rialismo histórico em sua noção de “despotismo oriental”.

No segundo, Mata reserva dois capítulos inteiros para debater a complexa relação do autor em tela com a teologia e a prática reli­giosa. A partir de uma perspectiva própria à história das ideias, o historiador enaltece a importância do homo religiosus Max Weber para o “estudioso da religião Max Weber”. Em uma minuciosa análise da trajetória dos estudos teológicos de sua família, além das rela­ções do jovem jurista com seu primo Otto Baumgarten, o autor percebe que, longe do que era pregado por Friedrich Schleierma­cher, Weber entendia que vida religiosa interior e ação transforma­dora no mundo não deveriam nem poderiam se contradizer.

Mais adiante, ao discutir a existência de uma teologia política por trás da Ética protestante, o autor traz – em recurso a elementos sociopolíticos, acadêmicos e biográficos do contexto de produção da obra – uma surpreendente interpretação do mais conhecido trabalho do intelectual alemão. Levando em consideração elementos biográ­ficos, além da posição do autor diante da política de seu tempo, Mata é capaz de perceber no estudo de história cultural weberiano tanto a expressão tardia do Kulturkampf1 quanto um tratado de teologia política.

Tratando ainda do clássico estudo de Weber, o historiador irá desconstruir no capítulo seguinte o que considera a formulação do mito de A ética protestante e o espírito do capitalismo como obra de socio­logia. Considerando a forma pela qual o autor emprega as categorias de “tipos ideais” – “uma construção mental destinada à medição e caracterização sistemática de conexões individuais, isto é, impor­tantes devido à sua especificidade” (WEBER apud MATA, 2013, p. 180) –, Mata percebe em tal recurso heurístico a tentativa por parte do autor de facilitar a identificação e a análise de realidades percebidas como singulares, que seriam, em última instância, histó­ricas. Além disso, declarações do próprio Max Weber e uma análise do contexto de produção historiográfica do período corroboram a tese do historiador mineiro, segundo a qual A ética protestante teria sido concebida, antes de tudo, como um estudo de história cultural.

Uma última e relevante preocupação de Mata em seu traba‑lho diz respeito à recepção da obra de Max Weber entre historia­dores brasileiros desde o início da difusão de seus escritos em terri­tório nacional ao longo do último século. De uma favorável leitura de suas ideias durante as décadas de 1930 e 1940 – em interlocu­tores como Sérgio Buarque de Holanda e José Honório Rodrigues – à crítica e incompreensão de sua “interpretação espiritualista da História” Mata busca em nossa historiografia aquele “elo perdido” entre a obra weberiana e sua interpretação por interlocutores locais.

Neste caminho de reconstrução de itinerários e desmistifi­cação de noções há muito atreladas à herança weberiana, o autor brasileiro erige novas perspectivas úteis à apreciação do “mito de Heidelberg” e de sua obra. Como alternativa a uma ótica dema­siado contextualista, Mata opta por trabalhar com a noção de cons­telações intelectuais e suas delimitações (HEINRICH, 2005, p. 15-30) – ou “espaços de pensamento”. Tal esforço metodológico, conforme buscou-se demonstrar no curto espaço desta resenha, é coroado pelo sucesso da análise do autor em combinar contextos e insights biográficos, fornecendo-nos um panorama das principais conquistas da obra histórico-sociológica de Max Weber.

Se um dos objetivos de Sérgio da Mata – conforme exposto em suas últimas digressões – estava associado à compreensão de um autor dedicado à história como ciência da realidade, pode-se considerar que seu trabalho cumpre à risca a intenção de trazer à tona tal debate. De posse daquela “coragem diante do real” e diante da recente tendência à “ficcionalização de tudo”, Mata é capaz de perceber em seu estudo o quanto o legado de Max Weber se mostra cada vez mais relevante ao entendimento do real enquanto vocação e profissão também no mundo contemporâneo.

Notas

1 Política implementada pelo chanceler Otto von Bismarck entre 1871 e 1878 com o objetivo de secularizar o Estado alemão e eliminar a influência da Igreja Católica Romana sobre a cultura e a sociedade germânica do período.

Referências

DIEHL, Astor Antônio. Max Weber e a história. Passo Fundo: Ediupf, 2004.

DILCHER, Gerhard. As raízes jurídicas de Max Weber. Tempo social, v. 24, n. 1, p. 85-98, 2012.

DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 2004.

ELIAS, Norbert. “História da cultura” e “história política”. In:______. Os ale­mães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

HEINRICH, Dieter. Konstellationsforschung zur klassischen deutschen Philo­sophie. In: MUSLOW, Martin; STAMM, Marcelo (Hrsg.). Konstellationsforschung. Frankfurt am Main: C.H. Beck, 2005.

HÜBINGER, Gangolf. Max Weber e a história cultural da modernidade.

RINGER, Fritz. O declínio dos mandarins alemães: a Comunidade Acadêmica Ale­mã, 1890-1933. São Paulo: Edusp, 2000.

______. A metodologia de Max Weber. São Paulo: Edusp, 2004.

TEIXEIRA, Francisco José Soares; FREDERICO, Celso. Marx, Weber e o mar­xismo weberiano. São Paulo: Cortez, 2011.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.

______. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Marcelo Durão Rodrigues da Cunha – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista Fapes. E-mail: marceloduraocunha@gmail.com.

O conceito de História. | Reinhart Koselleck, Christian Meier, Horst Günther e Odilo Engels

O historiador, filósofo e político italiano, Benedetto Croce (1866- 1952), inspirou-se na filosofia hegeliana para sua concepção teórico-metodológica da história. Aqui nos interessa aquele aspecto do pensamento de Hegel que concebe o conceito como um “universal-concreto”, no sentido de estabelecer “a ligação entre as concretas particularidades do mundo empírico e os princípios gerais do Pensamento” (CONSTANTINO, 2013, p. 286). Assim, temos que o Idealismo croceano perceberia o conhecimento sempre como “conhecimento de conceitos e por meio de conceitos” (CONSTANTINO, 2013, p. 286).

No entanto, este pressuposto não redundaria em uma história dos conceitos. Mais que mera expressão, a Begriffsgeschichte trata-se de uma disciplina que deve determinada parcela da intelectualidade alemã (historiadores, filósofos, linguistas, juristas) seus primeiros empreendimentos de vulto já em meados do século XX. Prevaleceria aqui uma preocupação com “as mutações de termos e significados em sua relação com o invólucro sociocultural” (ASSIS; MATA, 2013, p. 10). Nesse sentido, o “conceito” seria compreendido não propriamente na acepção hegel-croceana, uma vez que o filósofo alemão, assim como Dilthey, era passível de críticas pela “baixa contextualização de ideias e conceitos utilizados no passado, no anacronismo daí derivado e na insistência metafísica da essencialidade das ideias” (JASMIN, 2005, p. 31). O “conceito” seria, antes, compreendido como “resultado de um processo de teorização” na descrição de uma “experiência histórica concreta” (KOSELLECK, 1992, p. 135-136). Desse modo, teríamos um conceito que guardaria em si uma experiência empírica que lhe seria correspondente, da qual decorreria “seu caráter único articulado ao momento de sua utilização” (KOSELLECK, 1992, p. 138). Daí que, para entendermos o conceito de história (ou, precisamente, a história do conceito de história), devemos entender as variações de seus usos e significados ao longo do tempo. Leia Mais

Tempo presente e usos do passado / F. F. Varella, H. M. Mollo, M. H. F. Pereira e S. Mata

A profusão de acontecimentos e velozes transformações que marcaram “o breve século XX” provocaram nos historiadores, especialmente após a Segunda Grande Guerra, o interesse por investigar as questões de seu próprio tempo. Enfrentando preconceitos historiográficos estabelecidos no século XIX, quanto à (im)possibilidade de historicização do presente, os que se dedicaram a essa empreitada atravessaram décadas de questionamentos acerca da legitimidade científica de seus estudos. Nessa trajetória de enfrentamentos, que resultou na institucionalização da chamada história do tempo presente, a criação de institutos em vários países europeus voltados para a abordagem do pós-guerra e as demandas sociais pelo conhecimento da história próxima – muitas vezes, guiadas pela ideia de justiça e “preservação” da memória, a “aceleração” do tempo e o contexto de renovação historiográfica, a partir dos anos 1970 – exerceram importante papel, no terço final do século passado.

No Brasil, especificamente, a preocupação com problemas relacionados ao tempo presente começou a ganhar fôlego na historiografia nos anos 1990, como atesta, por exemplo, a tradução e publicação de importantes obras de historiadores europeus dedicados à análise do presente e luta por sua legitimação como objeto de investigação histórica. O surgimento de revistas especializadas, a instituição de laboratórios, grupos de pesquisa e a promoção de eventos com foco na temática demonstram o crescente espaço que o tempo presente vem conquistando na constelação das preocupações historiadoras em nosso país. Leia Mais

Varnhagen no caleidoscópio – GUIMARÃES; GLEZER (H-Unesp)

GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; GLEZER, Raquel (orgs.). Varnhagen no caleidoscópio. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2013, 451 p. Resenha de: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. História [Unesp] v.32 no.2 Franca July/Dec. 2013.

O crítico Sílvio Romero, na sua idiossincrática História da Literatura Brasileira, destaca, reiterada vezes, o quão variado eram os talentos e o quão empenhado era o patriotismo daqueles homens de letras que iniciaram suas atividades intelectuais no Brasil durante a primeira metade do século XIX. Romero salienta, sem dúvida com o propósito torto de fustigar os seus contemporâneos “demasiado cosmopolitas”, que eram homens cientes das imensas carências intelectuais do Brasil e orgulhosos de serem patriotas, homens que atuaram como romancistas, dramaturgos, pedagogos, administradores, políticos, médicos higienistas, historiadores, em suma, que atuaram onde sentiam que o país independente, ainda em processo de construção, deles necessitava para galgar um lugar entre as nações “civilizadas” do mundo, como então se dizia.

Exageros à parte, é por certo característico da atuação de grande parte dos homens de cultura brasileiros do Oitocentos o marcado espírito patriótico — “tudo para o Brasil e pelo Brasil”, como vinha estampado na capa da renomada revista Niterói — e uma produção intelectual extensa e variada — que ia do romance histórico aos relatórios provinciais —, da qual, não raro, mesmo os pesquisadores conhecem somente a parcela mais luminosa. Daí a importância e o interesse do lançamento de Varnhagen no caleidoscópio, obra coletiva, coordenada pelas pesquisadoras Lúcia Maria Paschoal Guimarães e Raquel Glezer, que traz para o leitor um panorama amplo e extremamente instrutivo da variada produção escrita de um dos mais importantes homens de cultura do Brasil oitocentista, Francisco A. Varnhagen.

Varnhagen… não é uma coletânea de artigos — formato que arrebata poucos leitores ultimamente — sobre a obra do renomado historiador; trata-se antes de uma obra coletiva, estruturada com esmero, que intercala ensaios analíticos e escritos do próprio Visconde de Porto Seguro, tudo precedido por uma introdução das coordenadoras, dando a conhecer as linhas gerais da obra e o percurso de vida do analisado. O eixo ou eixos do livro são, sem dúvida, aquilo que poderíamos denominar núcleos documentais: os escritos do próprio Varnhagen, uns menos outros mais conhecidos, todos, no entanto, ofuscados por seus trabalhos históricos e literários de grande vulto.

O primeiro eixo documental, composto por registros epistolares, nomeadamente por Oito cartas de Francisco Adolfo de Varnhagen a Diego Barros Arana (1864-1865), é precedido por dois ensaios analíticos, que preparam o leitor para a devida exploração das potencialidades interpretativas dos documentos que vai encontrar. No primeiro deles, a pesquisadora Raquel Glezer analisa uma outra correspondência do Visconde de Porto Seguro, aquela mantida, entre 1839 e 1849, com o português Joaquim Heliodoro Cunha Rivara, dando especial atenção às profundas relações de amizade que uniam os dois intelectuais, mas também, e sobretudo, ao circuito intelectual a que ambos pertenciam.

Em seguida, Lucia Maria Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves descortinam para o leitor uma outra faceta de Varnhagen, a de diplomata. Explorando, em larga medida, a sua correspondência oficial, os pesquisadores traçam um quadro de seu périplo, entre 1860 e 1867, por diversos países da América Latina — Paraguai, Cuba, Colômbia, Equador, Venezuela, Chile e Peru —, onde cumpriu a delicada missão de defender os interesses de uma monarquia num mundo de repúblicas. A sua movimentada passagem pelo Chile e pelo Peru merece uma atenção mais detida dos autores. Aí, o representante monarquista da única monarquia das Américas, coerente com os princípios liberais que cultivava, posicionou-se, a despeito das diretrizes do seu governo, contra as ações da coroa espanhola, numa querela que esta manteve com as repúblicas do Pacífico ao longo dos anos de 1864 e 1865.

O segundo eixo é constituído pelo interessante Grande jornada a vapor, um relato de viagem no qual Varnhagen nos conta a rápida visita — 14 dias somente — que fez, em 1867, acompanhado da esposa e do filho, a 15 estados dos Estados Unidos da América. O relato da “escapadela” do Visconde ao vizinho do norte, logo depois de intempestivamente deixar as suas ocupações diplomáticas nas repúblicas do sul da América, é precedido por um ensaio da pesquisadora Lúcia Paschoal Guimarães, onde aprendemos um pouco sobre os antecedentes e as condições da viagem, compartilhamos de alguns detalhes pitorescos nela ocorridos e, acima de tudo, encontramos uma síntese dos comentários do viajante acerca da progressista, ordenada e próspera sociedade norte-americana, uma sociedade em que as mulheres gozavam de uma liberdade excessiva para os seus olhos, politicamente liberais mas moralmente conservadores.

O terceiro eixo traz o peculiar Memorial orgânico, um pequeno livro publicado inicialmente em 1849, que traça um “diagnóstico das deficiências da formação brasileira”, de um ponto de vista geopolítico e econômico, e apresenta uma ampla gama de propostas destinadas a superar os problemas do país e conduzi-lo para o rol das nações civilizadas. O ensaio que o precede, assinado pelo pesquisador Arno Wehling, trata de esmiuçar os diagnósticos e soluções propostos por Varnhagen, avaliando os seus impactos na política local, situando-os no ambiente político-cultural do Império e identificando os princípios gerais que os orientam.

Arremata este instigante Varnhagen no caleidoscópio um quarto eixo documental, no qual o leitor encontra o curioso A origem turaniana dos americanos tupis-caraíbas e dos antigos egípcios indicado pela filologia comparada, um minucioso escrito interessado em demonstrar, sobretudo através do estudo de variantes linguísticas, que os nossos tupis eram originários de um velho continente. De autoria do pesquisador Temístocles Cézar, o ensaio que o antecede, abrindo para o leitor possibilidades de interpretação do escrito, dedica-se a situar os esforços de Varnhagen no sentido de encontrar uma origem egípcia para os selvagens do Brasil numa discussão mais abrangente: aquela, tradicional na cultura do Ocidente, relativa ao binômio antigo/moderno.

Ao término da visualização do caleidoscópio Varnhagen, o leitor, de certo modo, reencontra, com muito mais nuances e detalhes, aquele tipo social, característico do Oitocentos brasileiro, instintivamente construído por Silvio Romero: o intelectual com múltiplos interesses culturais, dedicado a um sem número de atividades e movido por um saliente patriotismo, um patriotismo que, como tão bem demonstra a vida e a obra de Varnhagen, retórico ou não, passível ou não de críticas no tocante às direções que propunha para a pátria, movia e dava coerência aos escritos e ações dos homens de letras de então.

Jean Marcel Carvalho França – Professor Livre-docente de História do Brasil Colonial do Departamento de História da UNESP e autor, entre outros livros, de Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999), Visões do Rio de Janeiro Colonial (José Olympio Editora, 2000), Mulheres Viajantes no Brasil (José Olympio Editora, 2008) e A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII (José Olympio Editora, Editora UNESP, 2012).

Linguagem, cultura e conhecimento histórico: ideias, movimentos, obras e autores | Diogo Roiz da Silva

Diogo da Silva Roiz é mestre em História pela Unesp de Franca- SP e Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e tem se dedicado à produção de textos na área de Teoria da História e Historiografia, autor de diversos artigos e livros na área. Na obra intitulada “Linguagem, cultura e conhecimento histórico: ideias, movimentos, obras e autores”, Diogo Roiz nos apresenta seis capítulos, divididos em duas partes. Na primeira delas, intitulada “História e Literatura”, destaca os debates teóricos em torno de tal questão, sobretudo no que tange ao período pós-1960, posteriormente à denominada “virada linguística”, mostrando como os historiadores procuraram responder às críticas efetuadas pelas obras de Friedrich Nietzsche, Hayden White, entre outros. Na segunda parte da obra, “Literatura e História”, Roiz exibe algumas possibilidades de empreender um estudo utilizando fontes literárias, mostrando o quanto elas podem ser prósperas para a pesquisa histórica.

O que é instigante no trabalho é o fato de o autor fazer alguns importantes questionamentos, tais como, “De que maneira os historiadores se posicionaram, quando, a partir dos anos 1960, se tornou mais corriqueira a evidência de uma relação ambígua no campo dos estudos históricos, ao ser situado entre a ‘ciência histórica’ e a ‘arte narrativa’?”, ou então, “como as fontes literárias podem ser utilizadas na pesquisa histórica?” (ROIZ, 2012, p. 13). Leia Mais

História e Historiografia: exercícios críticos | Jacques Revel

A obra “História e Historiografia: exercícios críticos”, do historiador Jacques Revel, é composta por nove artigos que refletem sobre o debate historiográfico no decorrer do século XX, em especial nas últimas décadas. No capítulo inicial, intitulado: “Construção francesa do passado: uma perspectiva historiográfica”, Revel propõe uma discussão sobre a historiografia francesa desde os fins da Segunda Guerra Mundial. Através dessa incursão, o autor analisa a contribuição dos franceses para a produção historiográfica. De acordo com sua concepção reflexiva, o debate historiográfico mediante novas proposições paradigmáticas, adquiriu certa retomada antes da Guerra, com as contribuições de Bloch e Febvre, porém esse não seria o marco inicial para tais discussões, esse debate teria sido proposto bem antes de 1929, ano de ascensão dos Annales.

Em 1870, as Universidades Francesas estavam passando por certa “elaboração da política universitária”. Isso porque a França via-se derrotada face aos conflitos políticos e econômicos protagonizados contra o novo “Reich” da Alemanha, o que alimentou junto aos franceses um sentimento de “revanche”, que, dentre outras coisas, impulsionou um modo de se repensar o ensino universitário no país. A disciplina história teve um papel fundamental nesse processo, pois serviu para reanimar uma nação que tinha sido humilhada pelos Alemães. Diante desses acontecimentos, o saber histórico passou por renovações. Tal proposição foi gestada no fim do século XIX, visava romper com a literatura e ganhar o status de ciência, constituindo-se como um saber “metódico”. Outras ciências como: geografia, psicologia, economia e em especial a sociologia de Durkheim vivam também um processo de renovação.

A mudança de paradigma proposta ao saber histórico subsidiou críticas por parte de outras frentes intelectuais. Os discípulos de Durkheim, por exemplo, criticavam a história mediante seu pleito em busca do lugar de ciência. Um deles, François Simiand, a criticava por argumentar que os acontecimentos factuais – campo de reflexão da história – não ofereceriam subsídios suficientes para arvorar ao status científico. As ponderações feitas por Simiand, e demais rivalidades, contribuíram com a proposta de Bloch e Febvre que absorveram tais críticas e propuseram uma nova forma de se pensar e escrever o conhecimento do passado.

O segundo artigo: “Mentalidades: uma particularidade francesa? História de uma noção e de seus usos”, o autor, a princípio, se volta a discutir a etnologia da palavra mentalidade e a partir dessa projeção promove uma análise em torno de seu significado. Revel assevera que o termo passa a ser difundido nos “vocabulários científicos” das diversas ciências como: antropologia, psicologia, sociologia e história, no decorrer do século. Dentre essas ciências o autor destaca a psicologia como sendo de suma importância para o debate nas áreas humanas. No desenvolvimento da análise são citados vários exemplos de estudiosos que se debruçaram no estudo da psicologia para a compreensão do social, dentre eles podemos citar o historiador Lucien Febvre que procurava compreender sobre a natureza das representações coletivas, se apoiando no conceito de “psicologia histórica”.

Revel volta às discussões associadas ao conceito e à aplicabilidade do termo ligado ao conhecimento social, retomando através de sua análise referências sobre os primeiros historiadores que desenvolveram uma abordagem histórica a partir do conceito “mentalidade”, e elencando os debates travados entre os campos da sociologia, psicologia e história, a respeito de sua apropriação, o que fez com que o conceito adquirisse amplitude em outras esferas intelectuais para além do seu domínio “mátrio” – França – apesar de ser afirmado como um gênero caracteristicamente francês.

O artigo seguinte: “A instituição e o Social”, tem por abordagem os debates e os discursos produzidos pelos historiadores em torno do modelo e conceito de “instituição”. Revel procura demonstrar que quando se pensa na categoria instituição a primeira dificuldade apresentada vem a ser a definição da palavra. Seguindo esse pressuposto, o autor propõe em seu artigo três formas de compreensões conceituais. O primeiro visa caracterizar a instituição como uma dimensão jurídica e política. O segundo traz a instituição num conceito mais amplo que se refere ao funcionamento e organização de determinados domínios, respondendo assim a uma demanda coletiva da sociedade. A última concepção, mas não menos importante, procura compreender a instituição como “toda a forma de organização social”.

A partir dessas conceituações, o autor constrói apontamentos em que relaciona a instituição e campo social. O primeiro conceito alimenta a lógica política quando se pensa nas questões institucionais, ligada à disciplina erudita. Durante muito tempo a historiografia prendeu-se a uma noção na qual considerou as instituições como locais que serviam para os arquivamentos de documentos, tornando assim sua compreensão restrita. Porém, outra compreensão para o termo, arrolando um sentido mais amplo, foi desenvolvida por Durkheim, da tradição sociológica moderna, sendo bastante difundida atualmente. Nesta baliza de pensamento elas seriam “criadoras de identidades” do núcleo social, isso porque os “fatos sociais são compreendidos como instituição”.

Revel relembra que, há muito, a tradição de pensamento sociológica foi desprezada pelos estudiosos, restringindo assim ao estudo político-jurídico, mas com o passar dos anos a abordagem sócio-histórica foi adquirindo vários adeptos. Essa mudança é chamada pelo autor de “evolução historiográfica”, onde os estudiosos passaram a tratar as relações sociais como constructos das instituições. Outro ponto abordado pelo autor vem a ser o estudo da posopografia ou biografia coletiva que seria um método utilizado na história, o qual permite observar os grupos sociais em suas dinâmicas internas e seu relacionamento com outros grupos.

O artigo “Michel de Certeau historiador: a instituição e seu contrário” vai desenvolver uma análise sobre a importância dos estudos de Certeau e o quanto este intelectual continua sendo amplamente estudado na academia por conta de suas pluralidades e perspectivas. Para iniciar essa análise, o Revel traz três momentos diferentes da obra de Certeau. O primeiro exemplo é uma obra em que Certeau tematiza sobre a espiritualidade jesuítica no início do século XVII. Jacques Revel procura dissertá-la demonstrando que a mesma se apresenta como uma não separação das experiências individuais e coletivas das instituições sociais. O segundo exemplo vem a serem os escritos que permeiam “A operação historiográfica”, discussão que ganhou força no terreno dos historiadores na contemporaneidade. De acordo com Revel a marca maior da operação historiográfica diz respeito à assertiva sobre a compreensão do oficio do historiador que ganha legitimidade a partir do lugar social na qual é produzido. O terceiro exemplo seria a imagem do próprio Certeau como um homem que gostava de viver em grupo, um homem plural.

No artigo subsequente “Máquinas, estratégias e condutas: o que entendem os historiadores”, Revel objetiva analisar o pensamento de Michel de Foucault e como esse pensador influenciou os historiadores em suas produções intelectuais, assim como a sua recepção na historiografia. O autor mostra que Foucault preocupou-se em pensar a função do autor, reflexão que os historiadores não tinham atentado em fazer até àquele momento. Para Revel os textos de Foucault são interpretados de diversas formas muitas vezes o deformando por completo. Em um texto de Foucault é como se existissem vários Foucault’s, isso porque os leitores construíram várias imagens muitas vezes deturpadas sobre ele. O “incômodo” de Revel nesse sentido refere-se ao fato que diversos historiadores se encontram satisfeitos com determinadas leituras reducionistas que são feitas ao pensador francês.

Para aprofundar sua análise o autor traz três imagens dele. O primeiro Foucault foi “descoberto” nos anos 60, este se aproxima muito das propostas dos Annales, e, assim como os historiadores de sua geração, Foucault produzia uma história estrutural. O segundo Foucault é aquele que trouxe a tona o conceito de “estratégia”, conceito esse que fez bastante sucesso entre os historiadores durante os anos 70. O terceiro é o Foucault seria aquele preocupado com as “condutas”, onde voltou-se a pensar sobre as relações de poder. A partir dessas três imagens, Revel vai elaborando uma análise de algumas obras consideradas importantes (Historie de La sexualité, L’ Archéologie Du savoir e etc.), trazendo conceitos de fundamental importância para a compreensão da trajetória de Foucault e assim este era visto pelos historiadores.

O artigo “Siegfried Kracauer e o mundo de baixo”, o Jacques Revel procura mostrar algumas reflexões feitas a partir da obra de Kracauer, onde este faz críticas sobre o campo da história. Primeiramente, Revel descreve uma pequena biografia do autor, assinalando inicialmente que este não era historiador e o seu interesse pela história aconteceu tardiamente, mas isso não o impediu de fazer um debate sobre o ofício de estudar o passado. Em sua obra History. The last things before the last. Kracauer traz algumas discussões sobre a cientificidade da história, historiadores, filmes e literatura.

De acordo com Revel, a questão da cientificidade da história é discutida em sua obra maneira enfática. Seguindo esta proposta, Kracauer alimenta a compreensão da história como uma disciplina da ciência social. Ele também promove um debate filosófico sobre as propriedades epistemológicas da história apoiando-se nas ideias de Dilthey, tomando por base os argumentos produzidos desde o fim do século XIX sobre tal discussão. Para ele a história pode reivindicar-se enquanto ciência social, a partir do momento em que ocorrem fenômenos que podem ser analisados e compreendidos em suas relações a partir de determinadas regularidades.

A segunda argumentação vem a ser do ofício dos historiadores, onde este trabalha com as fontes, que para ele são a “incompletude e a heterogeneidade das experiências humanas no tempo”. Revel relembra que Kracauer descrevera o modo como eram vistas as fontes no século XIX, sendo entendidas como detentoras de uma verdade absoluta e incontestável. Dando continuidade às suas reflexões, ele fala sobre literatura e filmes. Para ele, é importante se pensar no conceito de realidade. Segundo Revel, Kracauer faz uma analogia entre o literário e o historiográfico: o primeiro é livre de qualquer distinção realista, pois este vai compor a realidade a qual está inscrito, já o historiador não possui essa liberdade e é preso uma realidade limitada pelos indícios e fragmentos do passado que ganham personificação através das fontes.

O sétimo artigo “Recursos Narrativos e Conhecimento Histórico”, o autor vai abordar algumas contribuições do historiador Lawrence Stone que investiu nos programas de história científica entre os anos de 1930 e 1960. Segundo Revel, era necessário reintroduzir no debate historiográfico as questões da história científica, os dois historiadores que se encarregaram de tal desafio foram Stone e Carlo Ginzburg. Ambos produziram trabalhos no qual pensavam sobre tal problemática, a fim de “resgatar” o problema da narrativa na abordagem historiográfica.

Além desses autores Jacques Revel relembra a contribuição de outros pensadores sobre essa problemática. Podemos destacar a pessoal de Momigliano que se propôs a também pensar sobre as funções e os usos da narrativa, assim como Paul Ricoeur que aferiu um profundo debate sobre tal tema em muitos de seus trabalhos. O autor esclarece o quanto esse debate sobre a narrativa histórica já perdura por algum tempo, e que ainda se revela instável.

Revel também nos mostra a mudança na concepção de história ao longo dos anos. Se antes a compreensão histórica era vista como um “repertório de exemplos e lições a serem seguidas”, ela passou por inúmeras transformações, o que o autor chamou de “virada capital da historiografia”. Para ele, essa mudança ocorreu principalmente por conta de dois fatores. O primeiro fator vem a ser a desqualificação da retórica como instrumento de conhecimento. O segundo é a própria mudança na concepção de história que alimentamos. Com todas essas transformações, alterou-se também o papel do historiador, sua relação com o objeto, e, concomitamente, exercício crítico das fontes históricas.

No penúltimo texto, “A biografia como problema historiográfico”, como o titulo indica, é feita uma análise da utilização da biografia no campo historiográfico. A biografia como gênero amplamente utilizado nas produções historiográficas, possibilita uma variedade de públicos leitores, o que facilita a sua popularidade. Outro aspecto retratado por Revel vem a ser a conjuntura científica em torno da biografia. Nesse foco Revel toca nos debates referentes a duas questões que permeiam o tema: o “problema da biografia histórica” e “a biografia como problema”. Esse debate, para o autor, é “tão velho como a própria historiografia”. Para começar a discussão Revel compara os escritos de Aristóteles entre poesia e história. A poesia ou qualquer outra narrativa de ficção permitem a generalização, a modelagem da experiência humana, já a história está submetida à experiência, e no caso da biografia essa experiência é voltada para o indivíduo.

Com relação a uso da biografia como gênero historiográfico esta se encontra limitada a utilização das fontes. O ponto central do projeto biográfico é a importância de se analisar uma experiência singular e situá-la no contexto social, isso torna tal gênero pautado em complexidade. Para finalizar o autor propõe a utilização de três tipos de biografias: biografia serial (prosopografia), a biografia reconstruída em contexto e biografia reconstruída a partir de um texto (frequentemente utilizado na autobiografia).

O último artigo, intitulado “O fardo da memória”, é dedicado a discutir a experiência histórica e a memória da França. Nele, Revel destaca três tipos de memórias. A primeira é a comemoração. No final do século XX a França teria celebrado muitos fatos importantes do passado francês (datas comemorativas). A segunda forma de memória é a patrimonialização a questão da consciência com o patrimônio, que aconteceu tanto no campo ideológico como nas construções de museus. A terceira forma é a produção da memória, a própria mudança na escrita da história, o que antes era restito aos grandes homens passou estar vinculado às memórias esquecidas, ou seja, historiadores e memorialistas começaram dar visibilidade às narrativas da história “vista de baixo”. Para Revel essas três formas estão interligadas e contribuem para se pensar a memória com relação à história francesa contemporânea

A proposta feita por Jacques Revel à luz de tais perspectivas centra-se em torno de pensar a produção historiográfica na França, do século XX até a contemporaneidade. A partir desse foco, o autor procurar mostrar em sua obra os movimentos e as transformações sofridas no ambiente acadêmico, o hasteamento das disciplinas ao status de ciência, assim como a influência dos Annales na “construção” do conhecimento histórico, através da renovação da pesquisa histórica.

Em sua plenitude, o livro revela um enriquecedor conteúdo, propondo ao leitor apontamentos e compreensão acerca das ciências sociais e suas contribuições no campo historiográfico. O Revel procurou explanar sua proposta, mostrando ao longo dos nove artigos a importância das ciências sociais e sua proximidade com a história.

Referência

REVEL, Jacques. História e Historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Ed UFPR, 2010.

Samila Sousa Catarino – Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Campus Clóvis Moura.


REVEL, Jacques. História e Historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Editora UFPR, 2010. Resenha de: CATARINO, Samila Sousa. Nos rastros da História: análise da obra “História e Historiografia – Exercícios críticos”, de Jacques Revel. Vozes, Pretérito & Devir. Piauí, v.2, n.1, p. 330- 335, 2013. Acessar publicação original [DR]

 

Teoria da História (v.1) Princípios e conceitos | José D’Assunção Barros

Iniciamos esta resenha nos remetendo a algumas questões feitas por José Carlos Reis, em um instigante e provocante artigo. Diz o autor: “Pode um historiador ser considerado culto e competente sem nenhuma preparação teórico-metodológica?”, ou então, “Pode um professor, mesmo do ensino fundamental e médio, ensinar história sem nenhuma bagagem teórico-metodológica?”.2

Reis está entre os historiadores mais dedicados especialistas a abordar as questões teórico-metodológicas da disciplina da História no Brasil e, a seu lado, outro proeminente historiador, José D’Assunção Barros igualmente tem feito sua parte. Este último, escritor de tantos artigos e livros, vem igualmente despertando a atenção do público leitor especializado em História, com uma trajetória consagrada ao estudo de Teoria, Metodologia e Historiografia, propondo que debatamos e discutamos tais esferas do nosso ofício desde o início da graduação nas diversas licenciaturas em História espalhadas pelo país.

Barros, tal como José C. Reis, avalia que é essencial para qualquer profissional da História, ter denso conhecimento teórico sobre sua área de atuação. Conforme ressalta o autor,

A Teoria da História constitui um campo de estudos fundamental para a formação do historiador. Não é possível desenvolver uma adequada consciência historiográfica, nos atuais quadros de expectativas relacionadas ao nosso ofício, sem saber se utilizar de conceitos e hipóteses, sem compreender as relações da História com o Tempo, com a Memória ou com o Espaço, ou sem conhecer as grandes correntes e paradigmas teóricos disponibilizados aos historiadores da própria história da historiografia.3 Não por acaso o livro aqui resenhado, “Teoria da História, Vol. I. Princípios e conceitos”, foi lançado originalmente em 2011 e, já no ano de 2013, encontra-se em mais uma edição, a terceira. Tal obra faz parte de um ambicioso projeto, que contará com seis volumes, cinco dos quais já foram publicados.

Ainda que negue ser do tipo “especialista” que se dedica a um único tema, conforme relatou em recente entrevista,4 José D’Assunção Barros tem ocupado lugar de destaque na área de Teoria, produzindo uma respeitada bibliografia acerca do tema, tanto em formato de artigos, ou em seus livros, tais como, “O campo da História”5 e “O projeto de pesquisa em História”6. Isso não significa que o referido autor esteja limitado à “Teoria e Metodologia”, pois como se sabe, pesquisou temas medievais em seu mestrado e doutorado, além de ter estudado a música, lançando há pouco tempo o livro “Raízes da música brasileira”,7 dentre outros, confirmando sua transitoriedade em diversos assuntos.

Trata-se, neste sentido, de um projeto que vem de longa data, amadurecida no decorrer dos anos em que o autor tem publicado dezenas de textos sobre Teoria e Metodologia. Segundo Barros, sua principal intenção foi pensar a coleção “Teoria da História”, “como um livro que buscasse suprir as demandas, nos cursos de graduação, para a disciplina que recebe este mesmo nome”.8

Desse modo, no primeiro volume de sua coleção, o autor pretenderá situar seus leitores sobre questões pertinentes ao “Campo Disciplinar”, “Teoria”, “Metodologia”, “Escola histórica”, “Paradigmas Historiográficos”, dentre outros temas. Sua preocupação em ser didático está presente, e esta é uma de suas características, isto é, fazer da “Teoria da História” um tema que possa ser atrativo e, ao mesmo tempo, indispensável para o estudante de graduação.

No capítulo inicial, de suma importância para toda a coleção, Barros pretenderá mostrar essencialmente o que são Teoria e Metodologia, quais as suas diferenças, e em que momento elas se aproximam e mantém o que ele chama de “confronto interativo”. Segundo o autor, tal cuidado é pertinente e necessário, pois “não são raras, por exemplo, a confusão entre ‘Teoria’ e ‘Método’ e, mais particularmente, entre Teoria da História e Metodologia da História”.9

Para tanto, inicialmente o autor tem a louvável preocupação de apresentar para o seu leitor o que é exatamente uma “disciplina”, ou um “campo disciplinar”, pois uma vez que ele está a falar de História enquanto disciplina, é bastante produtiva sua preocupação em esmiuçar tal questão, evidenciando como todo “campo disciplinar”, seja da Química, Física, Astronomia, Geologia, Medicina, etc., possui uma história e se modifica com o tempo, conjuntamente com suas práticas e objetos. Neste sentido, Barros – apoiado em Bourdieu -, entende que as regras de um campo disciplinar se transformam e podem ser redefinidas a partir de seus embates internos.

Assim, o autor é bastante instrutivo na sua tentativa de reflexão sobre quais elementos são necessários para que exista uma disciplina, ou um “campo disciplinar”. Desse modo, ele nos apresenta um quadro, com dez características, apresentadas da seguinte maneira. Toda a disciplina é constituída, antes de tudo, por, 1) “campo de interesses” (por exemplo, a História e o estudo daquilo que é humano e nas mudanças dos níveis no tempo e no espaço que ocorrem na história); 2) “singularidades” (isto é, conjunto de parâmetros definidores que justificam sua existência. No caso da História, a consideração do tempo, o uso de fontes, etc.); 3) “campos intradisciplinares” (os desdobramentos dentro da própria disciplina em “microdisciplinas”, tais como “História Cultural, “Micro-história”, “História Política”, etc.); 4) “aspectos expressivos”; 5) “aspectos metodológicos”; 6) “aspectos teóricos” (estes três tópicos se referem ao fato de que nenhuma disciplina se desenvolve sem que sejam construídas certas práticas discursivas, metodologias e teorias); 7) “oposições e diálogos interdisciplinares” (ainda que tenha sua singularidade, todo campo de saber está inserido em uma constante luta disciplinar, desde o seu surgimento, e o diálogo entre várias disciplinas é inevitável); 8) “interditos” (aquilo que se coloca como “proibido” ou “interditado” para os praticantes de uma determinada disciplina, mas que pode se alterar com o tempo); 9) “rede humana” (trata-se do próprio ato de fazer, isto é, os próprios indivíduos de um determinado campo o modificam, com maior ou menor grau de impacto, no exercício de seu ofício); 10) “olhar sobre si” (seria a reflexão sobre o campo, no caso da História, isso se dá por meio de disciplinas como a Historiografia, que é uma tentativa de compreender e analisar historicamente o desenvolvimento dos trabalhos históricos).10 Serão mais de vinte páginas dedicadas a explicar os aspectos inerentes a um “campo disciplinar” e que são bastante úteis para a compreensão de todo o texto, pois situa o leitor, a compreender melhor o funcionamento das disciplinas como um todo e, especialmente a História. Após esse tópico, José D’ Assunção Barros irá se debruçar na tentativa de deixar claro o que é “Teoria” e “Metodologia”, suas aproximações e peculiaridades. Segundo o autor, a teoria seria um “modo de ver” e a metodologia, um “modo de fazer”. Nas suas palavras,

A “teoria” remete (…) a uma maneira específica de ver o mundo ou de compreender o campo de fenômenos que estão sendo examinados (…) Por outro lado, a Teoria remete ainda aos conceitos e categorias que serão empregados para encaminhar uma determinada leitura da realidade (…)

Já a “Metodologia” remete sempre a uma determinada maneira de trabalhar algo, de eleger ou constituir materiais, de extrair algo específico desses materiais (…) A metodologia vincula-se a ações concretas (…) mais do que o pensamento, remete à ação e a prática.11

No entanto, conforme já foi mencionado, o autor enfatiza que há um “confronto interativo” entre ambas, nos mostrando como isso se dá, pois como informa, é frequente que uma decisão teórica possa encaminhar um tipo de escolha metodológica ou vice-versa. O “Materialismo Histórico” foi utilizado como exemplo pelo autor,

(…) não é raro que o Materialismo Histórico – um dos paradigmas historiográficos contemporâneos – seja referido como um campo teórico-metodológico, uma vez que enxergar a realidade histórica a partir de certos conceitos como a “luta de classes” ou como os “modos de produção” também implica necessariamente uma determinada metodologia direcionada à percepção dos conflitos, das relações entre condições concretas imediatas e desenvolvimentos históricos e sociais. [Deste modo] Uma certa maneira de ver as coisas (uma teoria) repercute de alguma maneira numa determinada maneira de fazer as coisas em termos de operações historiográficas (uma metodologia).12

Desta maneira, teoria e metodologia são, nas suas palavras, “irmãs siamesas” e que “vivem” inseparáveis na prática da pesquisa científica e, evidentemente, da operação historiográfica.

No capítulo seguinte, intitulado de “Teoria da História e Filosofia da História”, dividido em três subcapítulos -, Barros mostra o encontro entre a historiografia e a ciência a partir da Teoria, e o papel desta última na formação do historiador, “ontem e hoje”, além de explicar as diferenças entre teoria e filosofia da História.

O autor faz um percurso acerca da teorização da História enquanto conhecimento científico, nos mostrando que se antes do século XVIII havia uma Historiografia, entretanto, não se pode falar que existia uma “Teoria da História”. Para ele, tanto as filosofias da História quanto as teorias da História são enunciadas em uma nova era historiográfica que data da passagem do século XVIII para o XIX e que existira entre ambas, cumplicidades e diferenças.

No campo da História, institucionalmente profissionalizada a partir do século XIX, pode-se falar que emergem os primeiros paradigmas historiográficos, que eram o Positivismo, o Historicismo e o Materialismo Histórico. Segundo Barros, uma “Teoria da História, ou um paradigma historiográfico, corresponderá a uma certa visão histórica do mundo, ou mesmo a uma a uma determinada visão sobre o que vem a ser História”.13

Além disso, faz uma observação bastante importante nos mostrando que dependendo de sua filiação teórica, o historiador poderá “ver” o mundo e “pensar” a historiografia de um modo ou de outro, o que não anula, evidentemente, que o mesmo transite por diversas correntes teóricas. Neste sentido, diz ele, com certeira observação:

Diante do amplo conjunto de teorias que se disponibilizam ao historiador, será sempre preciso escolher, pois não existem fórmulas consensuais com vistas a entender ou praticar a história. Em termos de Teoria, cada historiador está condenado a ser livre.14

Para finalizar, Barros apresenta efetivamente as diferenças entre as teorias da história e as filosofias da história. Para ele, as primeiras preocupam-se com a escrita e o ofício da História-Disciplina, enquanto as segundas procuram decifrar o sentido da história-processo. Em termos bastante didáticos, dirá o autor que as “filosofias da história” “podem ser entendidas como um gênero filosófico que produz uma reflexão ou especulação sobre a história”,15 ou, em outras palavras, sobre seu fim. O autor, no entanto, pondera que ainda que as especulações sejam bem mais limitadas nas teorias, elas existem num “certo nível”. Basta ver os casos do Positivismo de Comte, que pensava em um “fim da história” com a “sociedade positiva”, ou então o Marxismo e sua “sociedade sem classes”.

Para simplificar, o autor nos apresenta um ilustrativo quadro mostrando as principais características das filosofias da história e das teorias da história. Em tal ilustração, as primeiras teriam

maior carga de especulação filosófica, preocupação primordial com o sentido da história, produzidas predominantemente por filósofos, que seriam muito mais realizações pessoais dos filósofos, enquanto as segundas carregariam consigo uma menor carga de especulação filosófica, preocupação primordial com a realidade histórica percebida através das fontes, produzidas predominantemente por historiadores e cientistas sociais, espaços de discussão coletiva de setores da historiografia.16

Assim, será a partir do século XIX, com o afastamento das filosofias da história e a partir da formação da comunidade científica dos historiadores e sua institucionalização, que esse profissional passará a teorizar e pensar incessantemente no seu ofício. Isso significa dizer que com a Teoria da História, o “campo disciplinar” História passou a “olhar sobre si”. Desde então, a “Teoria da História estabeleceu-se como um horizonte obrigatório para todo historiador que aprende e desenvolve seu ofício”.17

O terceiro e último capítulo é mais extenso e aborda uma porção de questões que são divididas em cinco subcapítulos. Barros apresentará essencialmente os principais conceitos para o estudo de Teoria da História. Primeiramente o autor divide a Teoria da História em três direções: a primeira seria aquela mais geral, ou seja, o “campo de estudos que examina todos os aspectos teóricos envolvidos na produção do conhecimento histórico”; a segunda, Teoria da História II, mais voltadas às “grandes correntes de concepção da História no interior de cada paradigma (ex: variações do Positivismo […] do Materialismo Histórico), ou mesmo ‘entre’ os paradigmas e até independente deles”; e a terceira, Teoria da História III tem ligação aos problemas mais particulares, ou seja, “sistemas coerentes para a compreensão de processos históricos específicos (a Revolução Francesa, o Nazismo, etc.) desenvolvidos por um ou mais historiadores”.18

Além dessas três, o autor nos mostra alguns outros importantes conceitos, tais como Matriz disciplinar, “Conjunto de preceitos e atributos da História (forma de conhecimento) que é aceito pela ampla maioria dos historiadores”; Paradigma Historiográfico, isto é, “Grandes linhas dentro da historiografia (…) que apresentam uma forma específica de conceber e lidar com a História”, como por exemplo, o Positivismo, Historicismo e Materialismo Histórico; Escola Histórica, “grandes conjuntos coerentes de historiadores, unidos por um programa de ação em comum”; e Campo Histórico, que se divide em dois, pois seria tanto “Modalidades no interior da História, que estabelecem conexão umas com as outras” e, “subespecializações da História”.19 Devemos lembrar, claro, que Barros dedica todo restante de sua obra para esmiuçar tais conceitos. Trata de mostrar as especificidades das Ciências Humanas em relação às Ciências Naturais e Exatas, enfatizando, por exemplo, a ideia de que o historiador, desde a sua graduação, deve ter consciência de que não existe apenas um paradigma historiográfico “verdadeiro”. Por esta razão, pode exercer a liberdade para transitar em vários deles, ou, pelo menos, respeitá-los e aceitá-los como plausíveis dentro do grande campo disciplinar que é a História, para não cair naquilo que José Carlos Reis chama de “pirronismo histórico”.20

Para citarmos um exemplo, no tópico quarto do terceiro capítulo, o autor indica que devemos nos afastar de alguns vícios que, segundo ele, são nocivos ao historiador. Para citar alguns, o péssimo costume de atacarmos autores pessoalmente, em vez de fazermos uma discussão eminentemente teórica, ou então, o “fetiche do autor”, isto é, o endeusamento de determinados teóricos como se fossem os únicos corretos, ou até mesmo a fé cega em um único paradigma ou teoria, como se todos os outros fossem errados. Nas suas palavras, não podemos incorrer no erro de transformarmos determinadas correntes teóricas em dogmas, uma vez que tal atitude “pode transformar uma boa ciência em má religião” (p. 256).

Nesse sentido, o texto de José D’Assunção Barros tem diversas qualidades, desde sua notória erudição, quanto sua disposição em auxiliar (jovens) pesquisadores, pois nessa obra, a principal característica ali encontrada, reside nas suas cirúrgicas explicações dadas ao pesquisador da Ciência da História. Com uma boa quantidade de exemplos, diversos quadros explicativos, e uma narrativa bastante suave, acreditamos que o autor foi bem-sucedido em seu objetivo, uma vez que tal obra merece atenção dos professores de Teoria da História da graduação. No entanto, não se trata de ser apenas uma obra de apresentação da Teoria da História, trata-se de uma demonstração de que não é possível escrever uma história problematizada, sem que haja um exercício teórico-metodológico na orientação das nossas pesquisas e do nosso ensino de História.

Notas

  1. REIS, José Carlos. O lugar da teoria-metodologia na cultura histórica. Revista de Teoria da História, ano 3, n. 6, dezembro de 2011, p. 5.
  2. BARROS, José D’Assunção. Teoria da História Vol. I. Princípios e conceitos. 2013, p. 11. Os grifos são nossos.
  3. ROIZ, Diogo da Silva. Teoria e Metodologia da História no Brasil: entrevista com José D Assunção Barros. Historiae: revista de história da Universidade Federal do Rio Grande, v. 3(1), p. 249-258, 2012.
  4. BARROS, José D’Assunção. O Campo da História – especialidades e abordagens. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. v. 1. 222p.
  5. BARROS, José D’Assunção. O Projeto de Pesquisa em História. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. v. 1. 236p.
  6. BARROS, José D’Assunção. Raízes da música brasileira. Ed. Hucitec, 2011.
  7. ROIZ, Diogo. Op. Cit., p. 256.
  8. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 12.
  9. Id., p. 19-40.
  10. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 65-67. Os grifos são nossos.
  11. Ibid., p. 73.
  12. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 87.
  13. Id., Ibid., p. 91-92. Os grifos são nossos.
  14. Id., Ibid., p. 117.
  15. Fizemos um resumo de tais características, que são apresentadas mais detalhadamente em BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 126.
  16. Id., Ibid., p. 147.
  17. Id., Ibid., p. 163.
  18. BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., 2013, p. 163.
  19. REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2010.

Eduardo de Melo Salgueiro – Doutorando em História – PPGH/UFGD. Universidade Federal da Grande Dourados. Bolsista CAPES. Dourados / Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: eduardomsalgueiro@gmail.com.


BARROS, José D’Assunção. Teoria da História Vol. I. Princípios e conceitos. Petrópolis/RJ. Editora Vozes, 3ª Ed., 2013, 319 p. Resenha de: SALGUEIRO, Eduardo de Melo. Teoria e Metodologia em debate: maneiras de “ver” e “fazer” história. Outros Tempos, São Luís, v.10, n.16, p.316-322, 2013. Acessar publicação original. [IF].

 

Le Présent dans le Passé. Autour de quelques Périclès du XX e siècle et de la possibilite d’une vérité en Histoire | José Antônio Dabdab Trabulsi

O professor José Antônio Dabdab Trabulsi, da UFMG, já nos acostumou a saborear, com frequência, seus livros publicados em Besançon, todos bem argumentados e escritos, uma satisfação tanto para especialistas, como para o público culto mais amplo. Dabdab presenteia-nos, agora, com um volume que recolhe suas reflexões sobre leituras dos séculos XX e XXI de um dos mais reverenciados personagens históricos de todos os tempos, Péricles, o líder ateniense do século V a. C., retomado, tantas vezes, ao longo dos séculos, por literatos, intelectuais e governantes. A primeira e principal premissa do autor está enunciada nas palavras introdutórias:

Para o historiador, um horizonte de verdade é necessário, ou então a profissão se tornaria impossível ou sem sentido. Mas a confiança de poder chegar a ela é ingênua, segundo me parece. A História, como o diz, de forma sublime de De Sanctis, como comentarei no livro, antes que mestra da vida, é sua discípula; a História é uma estranha mistura de conhecimento e opinião, motivo pelo qual nunca será possível extirpar a parte relativa à opinião; e, em não podendo, não será jamais possível chegar à verdade (p. 15).

O volume congrega alguns dos principais historiadores que se debruçaram sobre a figura singular de Péricles, como Gaetano de Sanctis (com dois capítulos), Mario-Attilio Levi, Léon Homo, Marie Delcourt, Donald Kagan, A. Burn, assim como uma série deles que contribuíram para um número recente do Nouvel Observateur. Predominam latinos (francófonos e italianos), mas não falta o mundo anglo-saxão. Dabdab lamenta não dominar o idioma alemão (“a língua de Goethe me é inacessível”, p. 11) e não considera a hipótese de obras relevantes em outros idiomas – como o castelhano, o português ou o grego moderno. Quantos de nós não faríamos escolhas semelhantes? Nada desmerece tais eleições, mas, de toda maneira, são reveladoras de um viés generalizado e que não está muito atento à produção que poderíamos chamar de periférica, oriunda de centros de estudos menos centrais e tradicionais. Mais do que um defeito, esta é uma manifestação da centralidade que ocupa na reflexão historiográfica, mesmo em autores de fora daqueles ambientes, das grandes narrativas e dos cânones. Não riamos, para parafrasear Horário (Sátiras 1,1, 69: Quid rides? De te fabula narratur), pois se trata do nosso discurso sobre o passado, que mesmo quando almeja a liberdade nem sempre consegue desvencilhar-se de escolhas fundadas na autoridade e na tradição.

Dabdab elogia, assim, de forma inspiradora os lampejos da única autora estudada, assim como condena, de forma peremptória e reiterada tudo que cheire e apoio ao imperialismo e apoia toda manifestação mais simpática à democracia grega antiga, assim como reitera as críticas à democracia representativa moderna, simulacro frágil da ateniense. Dabdab não hesita em julgar e condenar, de forma cabal, os autores: “visão inaceitável” (p. 169, 177), a respeito de Paul Veyne, “opiniões anti-povo” (p. 75), “preconceito bem francês contra os comerciantes” (p. 83), “um erro fundamental” (p. 124), “uma ingenuidade – ou cegueira – do historiador” (p. 125), “como tantos outros, Burn se recusa a ver as realidades frente a frente” (p. 155). Tais afirmações ex auctoritate, condenações peremptórias, não combinam bem com os objetivos gerais de Dabdab, que, como ele explicita tantas vezes, consiste em valorizar o povo, a democracia e a criticar os usos do passado para os fins mais nefastos e destruidores, como no fascismo, para citar um caso paradigmático e muito bem explorado no volume.

Tais observações, de modo algum, diminuem os méritos da obra, que são muitos, a começar pela obstinada intenção do autor de mostrar como o presente, como as circunstâncias dos autores analisados e os contextos históricos e sociais, foram determinantes em suas análises do passado. Em outras palavras, como Péricles serviu, ao longo do tempo, para políticas mais ou menos libertárias ou opressivas. Para uns e em determinadas circunstâncias, o dirigente grego foi um ditador, um limitador do povo inculto, como se tivesse sido um Mussolini – ou, poderíamos dizer, um Perón ou um Vargas. Para outros, Péricles representou parte de um sistema no qual as pessoas comuns, os cidadãos (não a maioria, que era escrava) podiam se expressar e no qual parte da elite podia ter uma atuação que favorecia essa mesma massa e certa liberdade, em geral. Autores de nossa época, como Veyne, seriam menos otimistas com relação ao plethos (muitos), e mais atentos à parrhesía (franqueza) e ao tema da diversidade, palavra pouco presente no volume de Dabdab.

O volume de Dabdab, tão logo esteja disponível em vernáculo, poderá contribuir, de forma significativa, para uma discussão tão necessária sobre a relação entre passado e presente. Sua relevância ultrapassa, em muito, os âmbitos estreitos da academia, dos estudiosos da Antiguidade, poucos que somos, mas atinge o cerne dos temas de nosso tempo: democracia, verdade, imperialismo (temas presentes no volume), mas também, mesmo na ausência, diversidade, liberdade e franqueza. Sua leitura não deixará de enriquecer e sua discussão só tende a contribuir para uma sociedade menos fundada na hierarquia.

Pedro Paulo Abreu Funari –  Universidade Estadual de Campinas.


TRABULSI, José Antônio Dabdab. Le Présent dans le Passé. Autour de quelques Périclès du XX e siècle et de la possibilite d’une vérité en Histoire. Besançon: Presses Universitaires de Franche-Comté, 2011. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.9, n.9, p.179-181, 2013. Acessar publicação original [DR]

 

Novos Domínios da História – CARDOSO; VAINFAS (CTP)

CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. Resenha de: MOURA, Luyse Moraes. Novos Domínios da História, de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 10 – 10 de dezembro de 2012.

Publicado pela primeira vez em 1997, Domínios da História tornou-se uma obra de referência para os profissionais da área de história e das demais ciências humanas e sociais. O livro foi organizado por Ciro Flamarion Cardoso – Professor Titular de História Antiga e Medieval da Universidade Federal Fluminense (UFF) – e Ronaldo Vainfas – Professor Titular de História Moderna da Universidade Federal Fluminense (UFF) –, e contou com a colaboração de numerosos autores, resultando na compilação de diversos ensaios sobre teoria e metodologia da História.

Porém, mesmo com a contribuição de vários autores, o livro não contemplou alguns temas e aspectos da disciplina histórica e, em razão disso, os mesmos organizadores decidiram preparar um novo volume com características semelhantes às do primeiro. Novos Domínios da História foi lançado em 2012, pela Editora Elsevier, com o propósito de complementar a obra publicada em 1997.

Neste novo livro, que também contou com a participação de diversos autores, novos campos da História foram explorados a exemplo da “História do Tempo Presente”, tema de Márcia Menendes Motta. Em seu texto, Motta discute as relações entre História, memória e tempo presente; e comenta sobre o surgimento e consolidação da História do Tempo Presente. Entretanto, ao mencionar os trabalhos desenvolvidos no Brasil inseridos neste novo campo disciplinar, a autora restringe as produções do Laboratório do Tempo Presente (UFRJ) à temáticas relacionadas apenas à América do Sul. Além disso, sua exposição exclui a possibilidade de pesquisas sobre a HTP desenvolvidas em outras regiões do país, que não o Sudeste. Nesse sentido, Motta não menciona, por exemplo, os trabalhos do Grupo de Estudos do Tempo presente (UFS).

Assim como a “História do Tempo Presente”, a “Nova História Militar”, apresentada por Luiz Carlos Soares e Ronaldo Vainfas; e a “Micro-história”, tema de Henrique Espada Lima, também são abordadas nesta obra. Tais autores analisaram as proposições dessas novas áreas de conhecimento e apontaram os principais desafios que a elas se impõem.

Além dos novos territórios explorados, o livro também apresenta algumas exposições sobre domínios da história bastante tradicionais que, nas últimas décadas, passaram por um processo de renovação. São os casos da “Nova História Política”, tema de Sônia Mendonça, Virginia Fontes e Ciro F. Cardoso; da “Biografia Histórica”, tema de Benito Shmidt; e da “História das Relações Internacionais”, abordada por Estevão R. Martins. Nestes capítulos, foram avaliados os avanços que cada um desses campos pôde alcançar ao longo dos últimos anos.

Algumas temáticas apresentadas no livro anterior foram atualizadas, passando a compor, também, o presente volume. Dentre as quais, podemos citar as relações entre “História e Antropologia”, tema de Maria Regina C. de Almeida; e a “História dos Movimentos Sociais”, campo que vem despertando nos últimos anos um crescente interesse entre os pesquisadores, e que foi abordado no livro por Hebe Matos. Uma outra temática também foi retomada nesta obra: os usos da informática no ofício do historiador. No capítulo “História e Informática”, Célia Tavares reflete sobre o impacto das novas tecnologias para a produção e divulgação do conhecimento científico.

Diferindo da edição de 1997, Novos Domínios da História apresenta abordagens mais profundas sobre certos campos da história, como “História e Cultura Material”, tema da contribuição de Marcelo Rede; “História e Imagem”, temática de Ulpiano de Menezes; “História e Fotografia”, abordada por Ana Mauad e Marcos Brum Lopes; “História e Cinema”, tema de Alexandre Valim; e “História e Textualidade”, tema de Ciro F. Cardoso. De acordo com os organizadores, esses domínios ganharam uma maior notoriedade no livro devido aos avanços e à especialização que vêm alcançando nas últimas décadas.

A “História Oral”, tema que não esteve presente no livro anterior, também ganhou espaço neste novo volume. Em seu ensaio, Marieta de Moraes Ferreira evidencia que a história oral, apesar de ter sido alvo de críticas de muitos historiadores nos anos 1960 e 1970, tornou-se no século XXI uma metodologia fundamental nas pesquisas realizadas no Brasil, sobretudo, nas relacionadas a temáticas contemporâneas.

Em Novos Domínios da História a introdução e a conclusão desempenham a função de equilibrar as discussões apresentadas ao longo dos capítulos. A introdução, escrita por Ciro F. Cardoso, apresenta os problemas específicos da epistemologia das ciências sociais e humanas, e discorre sobre as três modalidades básicas do conhecimento histórico: o reconstrucionismo, o construcionismo e o desconstrucionismo. A conclusão, elaborada por Ronaldo Vainfas, dialoga com a introdução, analisando os “novos domínios” da história apresentados no livro a partir da tipologia epistemológica desenvolvida por Ciro F. Cardoso na parte inicial da obra.

Como bem indicam os organizadores no prefácio do livro, nos dias atuais a história apresenta uma grande diversidade de abordagens, temas e conceitos. Sendo assim, Novos Domínios da História, ao oferecer um panorama amplo e atualizado dos domínios da história – novos e antigos –, torna-se extremamente útil aos estudiosos e profissionais da história, podendo interessar também aos que atuam nas demais ciências humanas e sociais.

Referências

CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

Luyse Moraes Moura – Graduanda em História/UFS. Bolsista PIBIC/CNP sob orientação do Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente. E-mail: luyse@getempo.org.

Acesso à publicação original

Teoria da História (v. 4) Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história | José D’Assunção Barros

BARROS, José d’Assunção. Teoria da História, vol. IV. Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2011, 447p. Resenha de: MARQUES, Juliana Bastos. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 485-489, jul. 2012.

Paul McCartney, reconhecido como um dos compositores populares mais prolíficos e talentosos do mundo contemporâneo, costuma citar com frequência que nunca quis aprender teoria musical, para que o conhecimento formal não o prejudicasse ao compor.

Essa “ingenuidade teórica” também constitui mais em benefício do que em um eventual empecilho para o leitor na compreensão do texto do professor José d’Assunção Barros, em sua ousada proposta de empregar a teoria musical para construir uma metáfora de compreensão da historiografia.

O volume aqui resenhado faz parte de uma série dedicada à apresentação e discussão de temas fundamentais sobre Teoria da História, sendo precedido por um primeiro volume que trata de conceitos mais abstratos e gerais, além de dois outros com uma análise da história da historiografia a partir do seu estabelecimento como disciplina profissional no século XIX. Ainda não publicados, mas já anunciados, seguem outros dois volumes sobre as tendências mais recentes formuladas no séc. XX. Nesse sentido, o volume IV mostra-se como um interlúdio (a alusão ao termo é intencional) dentro da proposta da coleção, retomando a apresentação de alguns autores já analisados em outros volumes (Ranke, Marx, Benjamin) e introduzindo capítulos relativos ao pensamento de Droysen, Weber, Ricoeur e Koselleck. A proposta é utilizar a metáfora do acorde musical para classificar e explicar as infl uências intelectuais durante a carreira acadêmica dos autores citados, o que se apresenta também como uma proposta geral para eventuais estudos seguintes com outros autores que pensam o fazer historiográfico (como se vê, não necessariamente historiadores). Coloca-se para avaliação, portanto, uma questão primordial: se e como a metáfora funciona e o quanto é útil para o que se propõe.

O autor explica, no primeiro capítulo, de forma simples, os conceitos que utiliza e o desconhecimento prévio de teoria musical por parte do leitor não deverá trazer grandes dilemas para a compreensão da metáfora. Logo de início, explica-se o que é um acorde musical: “[…] um conjunto de notas musicais que soam juntas e assim produzem uma sonoridade compósita” (p. 15). Assim, classificar um autor dentro da proposta significa traçar essas “notas” que comporiam o acorde, que podem ser tanto correntes teóricas específicas que formariam sua identidade teórica e/ou historiográfica (por exemplo, a Hermenêutica em Ricoeur), como também infl uências pessoais (a religiosidade em Droysen) ou técnicas metodológicas (o “comparativismo” em Max Weber). O único autor dentre os analisados que parece se encaixar mais diretamente na compilação de um acorde que o defina é Ranke, que Barros classifica como “monódico”, por causa da constância das infl uências nele detectáveis durante toda a sua vida – assim, o acorde de Ranke seria constituído pelas “notas” Historicismo ou crítica documental como “nota fundamental”, estilo, Fichte, religiosidade e nacionalismo (o idealismo hegeliano apresentar-se-ia como uma “antinota”, termo cuja correspondência musical me escapa). Todos os outros autores, em maior ou menor grau, têm complexidades classificatórias tais que parece impossível construir apenas um único acorde que os abarque, dilema que Barros resolve com o fato de que diferentes acordes consonantes entre si podem ser construídos no tempo de acordo com as mudanças inerentes às trajetórias intelectuais analisadas.

O texto não procura uma rigidez classificatória, como pode parecer à primeira vista, mas o resultado disso nos diferentes capítulos é irregular. As análises de Ricoeur e Koselleck, talvez não por coincidência os autores mais recentes, beneficiam-se de uma atenção maior às ideias originais dos próprios autores, em especial no segundo caso. Dado que o texto de Barros é deliberadamente claro e fl uente (como ele anuncia no primeiro livro), tais capítulos servem como introduções bastante úteis a questões tais como o embate hermenêutico entre a subjetividade e a objetividade em Ricoeur, ou as refl exões sobre o tempo e o progresso em Koselleck – por vezes, o texto lembra claramente o formato de uma aula.

Para o eventual historiador que também conheça teoria musical, no entanto, a metáfora parece incompleta, às vezes afl itiva no que lhe falta. Um acorde musical jamais existe sozinho, sendo apenas a expressão mais sucinta da harmonia determinada dentro de uma tonalidade (dó maior, mi bemol menor, assim por diante), quando não ao menos em relação a uma pauta e clave que o localize sonoramente. O acorde de, digamos, fá maior, é definido primariamente como o conjunto da tônica (nota principal, o próprio fá maior) e as notas que soam harmonicamente mais próximas a ela dentro da série harmônica, no caso a terceira e a quinta a partir da tônica dentro da escala, portanto lá e dó. A rigor, qualquer outra nota poderá fazer parte do acorde dentro da tonalidade de fá maior, considerada sua relação harmônica com a nota principal. Sendo assim, é possível notar que a lógica fundamental de um acorde é a própria relação entre as notas (os intervalos entre a tônica e quaisquer outras notas que o acorde forme), determinada pela tonalidade como um conjunto – isso sem mencionar outras formas musicais que não o sistema tonal, também possíveis. Ora, essa complexidade está ausente da metáfora de Barros, que usa o acorde apenas como um empilhamento de “notas” em cima de uma nota fundamental (nunca chamada de tônica no texto), sem relacioná-las entre si e à suposta tonalidade que as constitui.

Por exemplo, se supomos que a tônica de Max Weber seja o Historicismo (p. 131) – aliás, por que a tônica de um autor não pode ser o próprio autor? Ou o autor seria a tonalidade como um todo? –, qual seria a relação (tecnicamente falando, o “intervalo”) da tônica com as “notas” filosofia neokantiana (sua “nota de topo”, termo que também me escapa: seria uma sétima maior ou simplesmente a nota mais aguda?), ou com o já citado “comparativismo”? Uma forte quinta justa ou uma sutil sexta maior? Para a teoria musical, essas diferenças são absolutamente determinantes quando se constrói um acorde. Como a “tríade temática fundamental” da política, economia e religiosidade de Weber poderiam se constituir em uma só “nota” (p. 140)? E os “harmônicos ocultos” de Marx e Nietzsche, como se relacionam com o acorde? Não seria o caso de se estabelecer uma sequência harmônica dos acordes de autores em constante mudança como Ricoeur ou Foucault, como em um coral de Bach, ou também uma eventual melodia das obras do autor também seria expressiva dentro da metáfora? A própria ideia de melodia parece quase desimportante dentro do conjunto da metáfora, até que surge, no capítulo sobre Koselleck, quando Barros propõe que o “[…] devir histórico (ou a sensibilidade humana diante desse devir) apresenta na verdade uma natureza musical, impulsionando-se a partir de melodias que se entrelaçam e que se contraponteiam, umas convergindo com outras, outras em relação de divergência” (p. 294). A melodia significaria então o movimento histórico humano no meio de onde se tocam os acordes de cada pensador? É uma pena que Barros não desenvolva essa ideia em todo o texto, pois ela me parece rica em possibilidades, bastante coerente e de uma poesia encantadora.

Acredito que o autor esteja plenamente consciente dessas questões, dado que também tem sólida formação musical. Minha impressão sobre qual seria o motivo dessas relações fundamentais não serem explicitadas na metáfora é que requereriam um trabalho exponencialmente mais complexo e demandariam um conhecimento musical bem mais avançado do leitor para compreender todas as relações harmônicas realmente embutidas na metáfora do acorde musical. Nesse sentido, entendo a proposta de Barros até mesmo como um convite, ainda que não explicitado, para que essas nuan ces musicais sejam futuramente analisadas, por historiadores ou por músicos. Embora a princípio isso pareça um esforço de classificação direto demais, a teoria musical comporta, nos dias de hoje, uma liberdade muito maior de relações sonoras do que a harmonia tradicional de Bach, assim como é evidente que não se pode classificar as influências e a trajetória intelectual de um determinado autor dentro da história do pensamento histórico também em rígidos paradigmas ou etiquetas.

Sendo assim, o livro tem o mérito de ultrapassar em muito seu caráter didático, que em si já é bastante louvável, dada a clareza da explicação providenciada pelo autor sobre as trajetórias intelectuais dos autores analisados. Como um trabalho experimental, no entanto, é o primeiro passo de muitos a serem dados no sentido da interdisciplinaridade profunda que é sim possível entre História e Música, pois são ambas realizações eminentemente humanas que se constroem no tempo e têm historicidades ligadas a influências e a regras, transcendendo-as em busca de ordenações originais para representar o mundo.

Juliana Bastos MarquesProfessora Adjunta. UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Pós-Doutorado em História pela USP (Universidade de São Paulo). Email: leirunirio@gmail.com. Endereço: Rua Dr. Júlio Otoni, 278 fundos. Bairro Santa Teresa. Rio de Janeiro/RJ. CEP 20241-400.

Qual o valor da história hoje? | Márcia A. Gonçalves, Helenice Rocha, Luís reznik e Ana Maria Monteiro

Coletânea resultante de um seminário ocorrido em 2010, intitulado o valor da história hoje, o livro organizado pelos historiadores Márcia de Almeida Gonçalves, Helenice Rocha, Luís Reznik e Ana Maria Monteiro, lança uma interrogação que desloca a certeza presente no título original para um ponto ignoto, ao qual concorrem os mais diversos juízos, e que como a própria apresentação da obra sugere, tem a intenção de indicar o caráter movediço do dilema.

Qual o valor da história hoje? revisita a problemática relação constituída entre a teoria da história e a didática da história, só que com a singularidade de uma argumentação tecida com base em objetos pouco habituais neste tipo de tema: é a tensão resultante da inter-relação entre memória e história, e a necessidade do ingresso de debates sobre questões do tempo presente – ou ao menos que estabeleçam ligações com ele – na sala de aula, que orientam as discussões.

A obra reúne as reflexões de um significativo contingente de pesquisadores com estudos voltados principalmente para questões de teoria e método. O desafio do livro reside na conciliação entre as abordagens mais atinentes à epistemologia da disciplina histórica e aquelas que partem de elementos vinculados aos aspectos cognitivos da pedagogia. O primeiro ponto de convergência é a temática que atravessa as divisões do livro: as permissões e interdições impostas pelos sentidos atados à experiência – a vivência e a sua correlata memória –, ao estabelecimento do discurso histórico. Um segundo ponto, este inferido por um menor número de textos, está no entendimento de que um dos lugares onde essa questão se apresenta com maior riqueza é a sala de aula.

O efeito das aproximações e distanciamentos entre os textos se nota na ordem instituída pela organização dos capítulos. Como as rubricas, memória, tempo, e ensino de história, perpassam a maioria dos textos, de fato, parece impossível que se imputasse classificações fechadas que satisfizessem indubitavelmente alocações conjuntas ou separações dos textos. Ainda assim, o resultado é bastante inteligível.

A coletânea se divide em três partes: Formas de escrever e ensinar história, Memória e identidade e Tempo e alteridade. Apesar de atenderem a designação dos subcapítulos, a organização dos textos indica o estabelecimento de uma gradação que ultrapassa os aspectos mais visíveis. Tempo e alteridade relaciona os artigos que melhor trataram da relação entre os formatos e tipos de transmissão da narrativa e a sala de aula; Memória e identidade se apresenta como uma miscelânea de textos que guardam significativa distância entre si, aproximadas em grande parte por discussões que circundam a bandeira do nacionalismo e os sentidos de identidade; e Formas de escrever e ensinar história ensaia uma discussão relativa à variação de tropos, problemas, e parâmetros de subjetividade na escrita da história.

Uma característica que fica clara é que enquanto alguns textos, como os de José Ricardo Oriá Fernandes e Margarida de Souza Neves, acerca da literatura de Viriato Correa, e da relação entre cartografia e memória, respectivamente, buscam suas respostas em elementos pertinentes à pesquisa no âmbito acadêmico, salientando um determinado valor da cultura histórica que se prolonga até o espaço escolar, outros se baseiam em manifestações contíguas à sala de aula, atentando para aspectos que vão das interpretações e entonações presentes no discurso do professor ao desdém dos alunos quanto à possibilidade de futuro, como é o caso dos textos Alteridade e ensino de história: valores, espaços-tempos e discursos de Cecília M. A. Goulart e Aprender e ensinar o tempo histórico em tempos de incerteza: reflexões e desafios para o professor de história, de Sônia Regina dos Santos.

Apesar da existência de dois vieses de análise, a prevalência dos questionamentos acerca das vicissitudes de uma pedagogia da história, para o entendimento do valor da história hoje, fica clara mesmo quando olhamos os artigos em separado. Embora a Parte I seja, dentre as três divisões, a única a trazer no título uma referência direta ao ensino, a temática predomina nos títulos ou conteúdos dos textos. As exceções ficam por conta dos artigos: O valor da vida dos outros… de Márcia de Almeida Gonçalves, Uma província em disputa: como os fluminenses lidaram com a memória imperial na década de 1920, de Rui Aniceto Nascimento Fernandes, e Memória e reconhecimento: notas sobre disputas contemporâneas pela gestão da memória na França e no Brasil, um trabalho conjunto de Lucianna Heymann e José Maurício Arruti.

Apresentando, respectivamente, a singularidade dos valores cognitivos dos relatos vivenciais, os usos políticos da construção memorialista, e as disposições e disponibilidades da gestão da história quanto às reivindicações e anseios reparatórios, os citados artigos procuram a atualidade da disciplina na reavaliação de velhos tópicos. A vinculação destes textos com os demais artigos se dá, principalmente, pelas opções de abordagem e teóricos mobilizados. É nítida a preocupação em estabelecer as diferentes modalidades de apreensão de passagem do tempo, e as subjetividades que derivam de cada definição.

Da fenomenologia de Husserl à crítica moral nietzschiana, vemos uma variedade de formas de inquirição das bases teóricas das principais acepções e conceitos de tempo histórico, e de suas inclinações meta-históricas, trabalhadas por um copioso número de perspectivas, tanto em função dos objetivos dos autores dos artigos, quanto pela diversidade de pensadores evocados. Apesar disto, no conjunto da obra, as preferências são claras: Wilhelm Dilthey, François Hartog, Reinhart Kosseleck, Jörn Husen, e Paul Ricouer recebem um tratamento mais aprofundado.

A pluralidade dos usos da história é uma premissa fundamental na organização da obra. Dado que, inclusive, engendra interessantes antíteses. Se na narrativa sobre as transformações das percepções do conceito de história, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, mergulhamos na história da história e somos apresentados às dissoluções e afirmações de sentido desta maneira de explicar o mundo, mais adiante recebemos a interdição de Valdei Lopes de Araújo à imputação de sentido, e somos recomendados a também mostrarmos aquilo que, do ponto de vista de uma tradicional ética presente nas análises historiográficas, não encontram amparo. Em que pese o fato de que mostrar: “a tragédia, a injustiça, o, o horror como parte integrantes de nossa condição”, nem sempre fez parte do discurso historiográfico, a asserção nos remonta a uma perspectiva contemporânea de história.

Este é um ponto fundamental. A condição humana como o valor premente da história hoje, surge como um discurso comum, e dá a uniformidade à coletânea para apresentar experiências e olhares distintos sobre a história, sobre a educação, ou sobre ambos. Se as definições, e conceitos sobre temporalidade ocupam uma parte considerável do livro, remetendo a uma maior proximidade com a academia, o reconhecimento de como esses conceitos podem ser instrumentalizados para produzir uma ética – vincada ao presente e a partir da sala de aula – nos dá a conhecer uma série de pesquisas e propostas que instigam a construção de um ensino de história diferente, abrangendo desde as séries mais elementares. Indo além, podemos dizer que os artigos colocam em xeque o próprio modelo de ensino de história.

O panorama que os textos descortinam reflete a preocupação em levar para o ambiente escolar a perspectiva de uma necessária orientação em relação a cultura histórica ampla, oferecendo alternativas à dominante narrativa canônica, muitas vezes derivadas do livro didático, e às concepções que parecem atemporais. É nessa chave que podemos interpretar as investigações encetadas pelas supracitadas Cecilia M. A. Goulart e Sônia Regina Fernandez, e por Luis Fernando Cerri e Helenice Rocha.

Esses textos ilustram a diversidades de interpretações que atualmente suscitam os relatos ou as conformações históricas. Tomando como referência apenas os dois últimos: em Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história, de Cerri, se destacam as tonalidades e margens de discordância sobre os aspectos tradicionais e as novas questões em relação à nação e ao sentimento nacional entre os alunos. Já em A leitura da aula de história como experiência de alteridade, de Helenice Rocha, é reveladora a discussão que apresenta a maneira como os comentários e leituras com base no livro didático são modeladas pelas representações construídas pelo docente, não somente acerca dos conteúdos, como também da capacidade de entendimento do corpo discente.

Está claro que a publicação indica a ideia de que a história hoje é móvel, e essa mobilidade confronta tabus e abre novas perspectivas. Prova disso são as reiteradas citações sobre as possibilidades de produção de saberes pela incorporação de um viés anacrônico na aula de história. Perpassa-se o juízo de que os embates em torno do tempo, em torno da história, estão presentes de diversas formas a todo tempo, e em todo lugar; o que de maneira implícita reforça a sua contraparte: a experimentação da história está para além dos formatos que procura imprimir o historiador. Por isso, o livro também ilustra uma imposição de um fazer específico e profissional sobre um campo aberto.

A concepção da vigência de uma atualidade permeada de referências históricas, presente com clareza em Ana Maria Monteiro, com Tempo presente no ensino de história: o anacronismo em questão e Carmem Teresa Gabriel, e seu Que passados e futuros circulam nas escolas de nosso presente?, por exemplo, também circunda os outros textos. Eles sinalizam para o ensejo de uma reelaboração da figura do historiador/ educador diante deste quadro, em que a apreciação das narrativas põe em evidência um caráter valorativo da história concernente tanto à sua faculdade de orientação, quanto à sua capacidade em reafirmar e desqualificar memórias no jogo de legitimação de legados e realidades, que se sobrepõe, excluem-se e se complementam.

Apesar da miríade de possibilidades sugeridas e defendidas, e questões postas, a sintonia entre os artigos, e o objetivo claro da realização de uma problematização do campo, arrefecem, no leitor, o típico afã da obtenção de respostas definitivas. Todavia, os encaminhamentos são muito sugestivos. Na verdade, a sensação é de que a vertigem causada pelo profundo abismo, derivado do afastamento entre a sala de aula e a academia, já nos deixa menos mareados. Como ‘orientação’ desponta como a insígnia de Qual o valor da história hoje?, reafirmando a incerteza e a condição humana do fazer histórico, pode-se atribuir está qualidade à publicação, em termos de mapeamento das dificuldades a serem enfrentadas e de propostas que precisam ser evidenciadas.

O que se vê não é uma contraposição, e nem mesmo de complementaridade entre teoria da história e didática da história, mas a idéia de um prolongamento não-hierárquico entre os dois fatores. Se durante muito tempo, o precipício forjado entre ensinar e pesquisar se afigurou como virtualmente intransponível, hoje os esforços de superá-lo são explícitos, sendo Qual o valor da história hoje? parte integrante desse movimento. Fincando estacas nos dois lados do dilema, os artigos reunidos na coletânea procuram estender uma ponte obre a falha, possibilitando que a interpenetração de conceitos e a circulação de saberes gere para a disciplina histórica algo maior que a soma das partes.

Welinton Serafim da Silva.

GONÇALVES, Márcia de Almeida; ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís; MONTEIRO, Ana Maria Orgs). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. Resenha de: SILVA, Welinton Serafim da. Construindo pontes, superando abismos: o valor da conciliação entre o ensino e a pesquisa em história. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.8, n.8, p.345-350, 2012. Acessar publicação original [DR]

 

El Hilo y las Huellas. Lo verdadero, lo falso, lo ficticio | Carlo Ginzburg

El libro de Carlo Ginzburg debe ser considerado un referente para los investigadores y estudiosos de la historia. Su grandeza reside en una valiosa teoría interpretativa para el oficio del historiador y una manera de pensar la vida cotidiana. Sus 492 páginas representan un compendio de ensayos con temas muy diversos unidos por el relato (hilo) y la búsqueda permanente de las zonas opacas de documentos (huellas). Su importancia está en exponer las múltiples relaciones entre la verdad histórica, lo falso; lo real y lo ficticio como categorías que se entrelazan y retroalimentan. Porque “lo verdadero es un punto de llegada, no un punto de partida” (p.18). Enfrentando de manera categórica el escepticismo y relativismo posmoderno. En la presentación del libro, Ginzburg, se define como un seguidor de Bloch. En cuanto le interesan los relatos escritos (memorias) de personajes “santos” de la Edad Media, que dejan dilucidar la mentalidad o subjetividad de quien registra la información. Asimismo, su pasión por leer a contrapelo (W. Benjamin) los textos. Es decir, aquellas voces no controladas o que están fuera de la intención del autor (p.13:14). Esto sería lo opaco, las huellas de los textos y pequeños fragmentos que se van uniendo durante el proceso de la investigación. Leia Mais

Dicionário dos Historiadores Portugueses – Da Academia Real das Ciências até ao final do Estado Novo – MATOS (LH)

MATOS, Sérgio Campos de (Coord). Dicionário dos Historiadores Portugueses – Da Academia Real das Ciências até ao final do Estado Novo. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2015. Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História, v. 62, p. 193-197, 2012.

1 Excelente ideia a de produzir um dicionário deste teor. Já existem noutros países europeus, Espanha, França ou noutros países mais distantes como o Brasil. Mas o dicionário português apresenta numerosas singularidades. Ser on-line, até agora este tipo de obras tem sido editado em papel. Também é novidade ser lançado no site da Biblioteca Nacional de Portugal uma obra em construção, os e-books costumam editar-se completos, este produto virtual assemelha-se às antigas edições em fascículos. Por enquanto tem só 30 entradas e listas das futuras entradas agrupadas por historiadores, temáticas, instituições e revistas. São essas listas que permitem compreender um pouco melhor o sentido da construção da obra, que anuncia como ponto de partida a Academia Real das Ciências e como ponto final o dia 25 de abril de 1974. As fronteiras são discutíveis. Na minha opinião ou se começava em Fernão Lopes ou em Alexandre Herculano, tal como têm sido as escolhas de outros países: em França, Christian Amalvi (2004) optou por principiar em Grégoire de Tours, em Espanha (2002) optou-se por 1840.

2 Mas intrigante e pouco claro é o ponto final: 25 de abril de 1974, data do final do Estado Novo. O que se entende por isso? Incluem-se os historiadores já existentes nessa data, ou seja que tinham obra publicada até então? Uma rápida leitura da lista dos nomes on-line mostra que não. Será em função da carreira universitária? Ou o doutoramento? Também não se acerta. Continuam a ser evidentes as ausências, além de tal não se coadunar com o critério anunciado de incluir autodidatas e personalidades de diferentes formações e não só académicos, o que, sendo sempre adequado, ainda o é mais quando se conhece o poderoso filtro ideológico e político que foram as instituições universitárias durante o Estado Novo. Mas tendo incluído Álvaro Cunhal, dever-se-ia incluir também Mário Soares, autor de As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga, com prefácio de Vitorino Magalhães Godinho (Centro Bibliográfico, Lisboa, 1950). Aliás a obra de Álvaro Cunhal, As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média, só consta como editada em 1975, no Catálogo da BNP e é pena que a edição clandestina anterior não esteja depositada na BNP. O interesse de homens políticos pela escrita histórica, que explica a inclusão de vários outros nomes, é uma tradição portuguesa, que se deve valorizar hoje, face à «transmutação» atual de gestores tecnocratas em políticos, com demasiada frequência falhos de cultura histórica.

3 A grande notoriedade posterior a 1974 parece explicar a presença de autores que não tinham quase nada publicado no domínio da historiografia até o dia 25 de abril de 1974 e só depois daquela data, às vezes vários anos mais tarde, é que vieram a publicar obras de vulto de natureza histórica. O crivo não foi pois a relevância científica das obras publicadas antes de 1974, critério que é evidente não ter sido aplicado. O critério da morte terá sido o que explica uma dessas presenças, a de João Bénard da Costa, segundo me foi explicado pelo coordenador. Mas mesmo seguindo esse critério, continuam as ausências. Não constam Rómulo de Carvalho, Ana Maria Alves, César de Oliveira, Sacuntala de Miranda, Maria Ioannis Baganha, Jill Dias, António Candeias, entre outros. O critério da morte, adotado no caso francês, para evitar a tendência hagiográfica, podia até ter a vantagem de rejuvenescer o dicionário português. Estando prevista a sua conclusão em 2015, estarão excluídos desta obra 41 anos de produção historiográfica portuguesa! Por acaso trata-se, como é geralmente sabido, de um período de intensa renovação da historiografia e das ciências sociais em Portugal. Mas mesmo entre os autores clássicos encontrei uma lacuna inexplicável: como se pode omitir José Acúrsio das Neves autor da História das Invasões Francesas?

4 Uma boa ideia foi incluir os historiadores estrangeiros que escreveram sobre a história de Portugal, aliás bem poucos, mas também houve aqui esquecimentos importantes, recordo apenas H. E. S. Fisher, Rebecca Catz ou ainda Lucia Perrone que não constam, mantendo-se aqui a falta de um critério de escolha compreensível. E eis que se descobre nova indefinição: será que não se inclui a historiografia sobre as antigas colónias?

5 Autores estrangeiros prestigiados que estudaram a história colonial portuguesa em África, como Herman Bauman, Beatrix Heintze, David Birmingham, Allen Isaacman, Douglas Wheeler, René Pélissier, Basil Davidson não constam, embora várias das suas obras tenham sido editadas nos anos 50, 60 e início de 70. Foram fundamentais nesta área, numa época em que entre os portugueses quase só funcionários do Estado Novo escreviam sobre a África dita «portuguesa», sobretudo no que se refere aos séculos XIX-XX.

6 E como explicar também a reduzida presença de brasileiros, cuja produção sobre a história colonial portuguesa no Brasil é enorme? Consta Novais, cujo primeiro livro data de 1975 (portanto fora do período demarcado), mas não se avistam vários autores, alguns bem anteriores, como Tarquínio de Sousa, Alice Canabrava, E. Viotti da Costa, Carlos Guilherme Mota, entre tantos outros. Infelizmente o francês Abade Raynal escreveu o célebre livro O estabelecimento dos portugueses no Brasil (1770) antes de 1779, data da criação da Real Academia das Ciências.

7 Em relação à Asia, como se pode omitir Donald F. Lach, autor do notável livro Asia in the making of Europe (1.ª edição1965, reeditado 1971), em que se dedica a Portugal diferentes capítulos em cada um dos 4 volumes desta grande obra? Como ainda não se traduziu este livro magistral? Pannikar, autor de Asia and western dominance – a survey of Vasco da Gama epoch of Asian History (1959), também não está previsto. Só me tenho referido a autores com obra dentro das balizas atuais deste dicionário, ainda que as considere questionáveis. Talvez Gaston Perera, historiador do Sri Lanka, que estudou a ocupação portuguesa no seu país, em obras recentes, tendo falecido subitamente em 2011, pudesse também ser incluído…

8 A dificuldade em excluir a produção de 38 anos de intensa vida científica ou intelectual torna-se evidente quando se consultam as duas únicas entradas temáticas já existentes, História de Arte e História Cultural, a bibliografia referida é num caso posterior a 1979 e no outro a 1990. E naturalmente que a baliza temporal também ultrapassa largamente 1974 nas biografias e bibliografias ativas e passivas de algumas das principais entradas já existentes.

9 Consultando a lista das instituições, encontram-se as Faculdades de Letras e de Direito, mas aqui também as ausências surpreendem, não constam nem o ISCEF (predecessor do ISEG), nem sequer o GIS, predecessor do ICS, nem a Faculdade de Economia de Coimbra, nem o ISCTE (a comemorar este ano os 40 anos de existência). Quanto às revistas, só constam revistas fundadas antes de 1974, mas está indicado como termo limite do âmbito em consideração a data de 2011-2012, quando elas ainda existem. Porém, nenhuma das novas revistas que surgiram nesse período estão incluídas: a Revista da História das Ideias, a Revista de História Económica, a Ler História, entre outras. Ainda mais estranha é ausência da Revista de Economia, que antes de 1974 publicou estudos importantes de história.

10 Face às balizas temporais adotadas surpreende menos que ao mencionar as fronteiras da história com outras ciências humanas, se não refira nem a sociologia, nem a ciência política, embora já existissem com nome camuflado. O regime estado-novista tinha os seus gostos (des-gostos) linguísticos e semânticos. É mais um lapso.

11 Na apresentação on-line conclui-se que o dicionário será acrescentado regularmente com novas entradas e poderá beneficiar com sugestões críticas dos seus leitores. Aqui ficam as minhas. No que me diz respeito, embora o meu primeiro livro, que é o texto também da tese de doutoramento, tenha sido publicado em 1971, e tenha tido grande impacto e embora tenha vários artigos publicados em revistas estrangeiras e portuguesas prestigiadas antes do 25 de abril, e já então fosse professora universitária, espero e prefiro estar viva em 2015 e continuar a escrever e a publicar a meu gosto, a estar morta para ser incluída no dicionário, o que mesmo assim seria incerto… Desejo também nessa altura festejar os longos anos de José Manuel Tengarrinha, alguns bem menos de José Sasportes, de Maria Beatriz Nizza da Silva, e meus também. Todos nós com obra publicada antes de 1974 somos ainda demasiado jovens para este dicionário desatualizado de 41 anos. O dicionário espanhol, publicado em 2002, avançava até 1980, e mesmo assim foi criticado por não se prolongar mais. Bem equilibrada e transparente foi a opção do Dicionário Histórico de Economistas Portugueses, organizado por José Luís Cardoso, incluindo na sua seleção dos economistas aqueles que tivessem completado 70 anos à data da publicação. Útil também salientar que o critério de relevância científica, em detrimento de funções universitárias, administrativas, políticas ou outras, presidiu a essa escolha, assim como a prioridade dada à análise da obra científica, reduzindo a parte biográfica, em geral já retratada em outras obras de referência. O que também não constituiu norma comum nas entradas já disponíveis neste dicionário.

12 Não há nenhuma referência a um motor de busca por nomes ou temas, de forma a cruzar informação. Seria desde já útil. Quem se interessasse por António Sérgio poderia encontrar a referência à polémica com Mário de Albuquerque, referida por Ana Leal Faria, mas que não mereceu a atenção de Romero de Magalhães, com ou sem razão, essa não é a questão. Esperemos que, no que parece ser o primeiro dicionário virtual do mundo neste domínio, esta funcionalidade seja introduzida rapidamente. Não o fazer seria um desperdício dos novos meios tecnológicos. Um contrassenso. Mais um.

13 Sem qualquer sombra de dúvida, este dicionário merece ser revisto, remodelado com base em critérios transparentes e naturalmente atualizado – prolongando-o até o final do século XX, para não constituir uma ocasião perdida de prestar um excelente serviço à comunidade científica, evitando um considerável desperdício de meios humanos e financeiros, e podendo vir a contribuir para uma boa imagem nacional e internacional das instituições envolvidas, a Biblioteca Nacional de Portugal e o Centro de História da FLL-UL.

Miriam Halpern PereiraProfessora catedrática emérita do ISCTE-IUL e investigadora do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. E-mail: miriam.pereira@iscte.pt

Acessar publicação original

Nova História em Perspectiva – NOVAIS; SILVA (NE-C)

NOVAIS, Fernando A; SILVA, Rogerio Forastieri da (orgs.). Nova História em Perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Resenha de: FLORENTINO, Manolo. História, Sentido e Totalidade. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Nov, 2011.

Certa vez, em meio a uma reunião científica, foi sugerida a um alto gestor público a extinção dos cursos de mestrado no Brasil. A ideia partiu de um colega da área tecnológica, físico ou químico, não recordo bem. “Para que mestrados? É pura perda de tempo! Deveríamos selecionar nossos alunos diretamente para o doutorado!”, argumentou incisivo o colega. A resposta não tardou. O alto funcionário contestou na lata que, com as devidas exceções, as graduações brasileiras são muito ruins. Ao que, acrescentou, as pós-graduações do país eram legalmente soberanas para tornar obrigatórios ou não os mestrados como etapas da formação de seus alunos.

Ponto para o burocrata!

Pois a verdade é que, ao menos para o caso de História, os mestrados representam momentos de intenso exercício prévio à obra que se supõe resultará do doutorado. O motivo? A mais antiga dentre as chamadas ciências sociais, a História é, sobretudo, uma disciplina argumentativa — aspecto em que se sobressai dentre a chamada área de humanidades —, mas fundada na correta escolha e utilização de fontes de tipos diversos. Mais que isso, sua abrangência é enorme, seu objeto é, ao fim e ao cabo, indelimitável, o que por certo lhe imprime um caráter altamente artesanal e subjetivo. Mais claramente: argumentação aplicada ao tempo, à mudança, a partir do manejo de corpos documentais cujo escopo vem aumentando nas últimas décadas em função da imensa diversidade temática que cada vez mais caracteriza o ofício de historiador. É, pois, saudável que, ao menos no campo do saber historiográfico, nossos alunos passem por essa etapa preparatória fundamental encarnada nos cursos de mestrado.

Quando menos por isso é de grande importância para estudantes e especialistas em teorias da História a publicação do primeiro tomo da antologia de fôlego (três volumes no projeto original) organizada pelos professores Fernando Antonio Novais e Rogério Forastieri da Silva. Trata-se de trabalho cujo objetivo explícito é inserir a chamada Nova História na história geral da historiografia, enquadrando-a analiticamente em um tempo, em uma conjuntura. Afinal, como alertam Novais e Forastieri na longa e densa introdução à antologia, lenta e imperceptivelmente também a Nova História vai se tornando história.

A estrutura do primeiro volume de Nova História em perspectiva está centrada na apresentação de propostas e desdobramentos. Por propostas entenda-se trazer ao público novas traduções dos manifestos axiais dos nomes mais importantes de cada uma das três fases dos Annales. Daí os textos clássicos de Lucien Febvre, expoente da primeira fase, caracterizada pelo diálogo mais intenso entre a História e, sobretudo, a Sociologia; de Fernand Braudel, catalisador da segunda etapa, quando a interação entre a História e a Economia predominava; e, por fim, os lineamentos apresentados por Jacques Le Goff e Pierre Nora, que na década de 1970 impuseram novos rumos, marcados sobretudo pela maior abertura dos historiadores à Antropologia (ou, como querem Novais e Forastieri, sobretudo com a Etnografia) — a fase da Nova História propriamente dita.

Seguem-se os desdobramentos da avassaladora velocidade com que a Nova História se impôs nos meios acadêmicos ocidentais, contemplados neste primeiro volume da antologia pelas análises de André Burguière, Carlo Ginzburg, Emmanuel Le Roy Ladurie, Hayden White, Joyce Appleby, Lynn Hunt, Margaret Jacob, Massimo Mastrogregori, Maurice Aymard, Michel Vovelle, Natalie Zemon Davis, Philippe Ariès, Pierre Chaunu e Stuart Clark. Fecha o volume o texto de James Harvey Robinson, verdadeiro achado arqueológico, publicado originalmente em 1912 sob o sugestivo e antecipatório título de “A nova história”.

O que está em jogo aqui é, a partir de textos seminais, contribuir para o entendimento de como, na perspectiva dos organizadores da antologia, em pouco mais de quatro décadas os sucessivos grupos de profissionais agregados ao redor dos Annales acabaram, não sem profundas descontinuidades, por contribuir para instaurar um cenário historiográfico marcado pela extrema pulverização temática e — com as devidas exceções — por uma “pobreza teórica verdadeiramente capuchinha”, nas palavras de Novais e Forastieri.

É evidente, pois, a natureza crítica da longa introdução escrita pelos organizadores à Nova História inaugurada por Le Goff e Nora a partir do lançamento dos três volumes do hoje clássico Faire de l’histoire1. Os argumentos apresentados são eruditos, elegantes e fundados em uma lógica ferrenha.

De início nos é mostrado didaticamente o que vem a ser o fundamento da história-discurso, que corresponde à necessidade da criação da memória social. É estabelecida então a diferença entre a narrativa mítica, própria da constituição da memória coletiva entre os primitivos, e a narrativa histórica propriamente dita, ancorada, ao contrário da primeira, na temporalidade. Como diria certo filósofo, a história-discurso da civilização funda-se na necessária simbolização do homem no tempo.

A anterioridade da História em relação às Ciências Sociais demanda, logicamente, levar em conta o impacto do surgimento destas últimas sobre a História, e não o contrário. Nesse sentido, o século xix é muito bem localizado pelos organizadores como representando o ponto de inflexão na história do discurso historiográfico, instaurando a forma propriamente moderna de fazer História a partir do diálogo com as Ciências Sociais nascentes. Com uma importante diferença: enquanto as Ciências Sociais sacrificam a totalidade pela conceitualização, a História faz o inverso, sacrifica a conceitualização pela totalidade. Pela simples razão de que o historiador visa explicar para reconstituir um passado necessariamente total — ainda que se foque tal ou qual de seus aspectos —, enquanto o cientista social visa reconstituir para explicar.

É a partir desses pressupostos que Novais e Forastieri se posicionam criticamente em relação à terceira fase dos Annales, a da chamada Nova História. Em primeiro lugar, reconhecem que ela conforma um desdobramento das fases anteriores, na medida em que mantém, em termos gerais, o princípio básico de interlocução com as Ciências Sociais. A ruptura, entretanto, a caracteriza quando se detecta a diminuição desse diálogo e a afirmação de certa tendência à desconceitualização — dialoga-se muito mais com a Etnologia do que com a Antropologia, segundo os organizadores. À desconceitualização sucede uma imensa pulverização temática (a “História em migalhas” da qual fala François Dosse) e, pior, a descaracterização da natureza necessariamente total da história, dado que nenhum acontecimento pertence exclusivamente a uma única esfera do existir. Detalhe, bem explicitado por Novais e Forastieri: não se deve confundir esferas da existência (economia, política etc.) com níveis de realidade (estrutura, conjuntura etc.) — toda esfera da existência comporta necessariamente os vários níveis de realidade.

Em termos gerais, estou de pleno acordo com os organizadores deste primeiro volume de Nova História em perspectiva. Observando melhor o perfil de grande parte da produção historiográfica recente, é fácil capturar nele uma enorme gama de ceticismo — corolário do relativismo —, e mesmo de cinismo e niilismo. Mas lembro aqui ser necessário nunca deixar de duvidar. Da importância política da dúvida e do ceticismo que sempre marcaram a civilização ocidental contemporânea discorrem muito bem Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margareth Jacob, na “Introdução a Telling the Truth about History“, presente na antologia de Novais e Forastieri.

Mesmo reconhecendo os traços gerais desenhados por Novais e Forastieri, no entanto, insisto no que há de extremamente positivo na crítica ao consagrado, seja ele estabelecido pela tradição ou pelo mercado. No mínimo porque a iconoclastia ou o simples exercício legitimado do espírito de porco abrem campo para todas as formas de expressões artísticas, historiográficas ou teóricas possíveis, inclusive para a apaixonada defesa que Novais e Forastieri fazem do marxismo, na segunda parte de sua introdução. Da importância criadora dos momentos de maior peso do ceticismo na cultura ocidental falam, por exemplo, no campo da literatura, os grandes nomes da ficção norte-americana entre 1920 e 1945 — Scott Fitzgerald, John Dos Passos e Ernest Hemingway, apenas para ficar em alguns dos mais conhecidos.

Por que os cito em um contexto no qual a discussão sobre a natureza na Nova História é o centro? Pelo simples fato de que, com todos os seus problemas, consigo capturar nesse movimento historiográfico a expressão da radicalização do conflito entre a sociedade e o indivíduo, este definitivamente sufocado pelas teorias totalizantes em todos os campos das Humanidades até as décadas de 1970 e 1980 (a longa censura não declarada à obra de Norbert Elias é disso apenas um exemplo). Há no movimento, pois, mais do que desvios em relação às modernas regras que definem o ofício do historiador. Há nele um grito pela localização do sujeito individual na História e a firme decisão de resgatar a tolerância e a diversidade como traços constitutivos da moderna civilização.

Notas

[1Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 1974.         [ Links ]

Manolo Florentino – Professor do Instituto de História da UFRJ

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Relações de força: história, retórica, prova | Carlo Ginzburg

Fazer História (de qualquer tipo, e especialmente a história cultural) nos idos atuais sem se render às incertezas, fraquezas e ambiguidades do paradigma dito pós-moderno é uma façanha que poucos conseguem levar adiante. Optar por este caminho e, para além disto, avançar no debate e na construção de uma história com procedimentos realistas (para não dizer científicos), ancorada solidamente na pesquisa documental e na busca da verdade, é tarefa ainda mais ingrata, a qual se impôs Carlo Ginzburg, com esmero e galhardia. São poucos os que fazem esta opção, e muitíssimo poucos os que a realizam a contento, como este italiano, autor – entre outros clássicos da historiografia contemporânea –, de Os andarilhos do bem, O queijo e os vermes, História Noturna, além de importantes ensaios para se discutir um novo paradigma para a história, ciência do homem. Leia Mais

Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos | Reinhart Koselleck

No Brasil, o nome de Reinhart Koselleck tem, cada vez mais, se tornado familiar entre os que estudam história, sobretudo para aqueles particularmente interessados nas discussões teóricas da disciplina. Nascido no ano de 1923 em Gorlitz, Alemanha, Koselleck doutorou-se em 1954 com a tese Kritik und Krise [2], publicada cinco anos depois. Foi professor nas universidades de Bochum, Heidelberg e Bielefeld e co-autor do monumental “Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politish-zocialen Sprache in Deutschland” [Conceitos básicos de história. Um dicionário sobre os princípios da linguagem político-social na Alemanha] [3], obra em nove volumes publicados em Stuttgart entre 1972 e 1997. [4] Koselleck faleceu em 2006, aos 82 anos de idade.

Tanto a tese doutoral quanto os dicionários refletem uma preocupação do autor com a questão da semântica dos conceitos fundamentais, sobre os quais o primeiro trabalho permitiu um desenvolvimento inicial [5]. O nome de Koselleck encontra-se profundamente associado à chamada escola da “história dos conceitos” (Bregriffsgeschichte), que o autor, juntamente com seus antigos mestres, Otto Brunner e Werner Conze (que participaram da organização do monumental dicionário), iniciou em finais da década de 1960. A história dos conceitos propõe uma análise das mudanças ocorridas no conteúdo e utilização dos conceitos para um entendimento mais profundo das transformações históricas de duração mais ampla, sobretudo no período entre 1750 e 1850, que Koselleck chama de Sattelzeit e que marca, para o autor, a emergência da modernidade [6]. Discorrendo sobre a importância da história dos conceitos, Koselleck aborda a relação entre este “campo particular de estudos” (p. 104) e a história social. Para ele, a história dos conceitos não apenas contribui para a história social, como esta não pode ser praticada sem aquela, pelo menos no que se refere ao recorte cronológico trabalhado pelo autor: “Desde que a sociedade atingiu o desenvolvimento industrial, a semântica política dos conceitos envolvidos no processo fornece uma chave de compreensão sem a qual os fenômenos do passado não poderiam ser entendidos hoje” (p. 103). Por isso, conclui Koselleck, “A história social que queira proceder de maneira precisa não pode abrir mão da história dos conceitos, cujas premissas teóricas exigem proposições de caráter estrutural” (p. 118).

A proposta de uma história dos conceitos retoma, em parte, o projeto diltheyano de uma tradição hermenêutica orientada a reconstruir os significados que se sedimentam nas objetivações empíricas do sentido [7], mas esta retomada já aparece tematizada pelo “giro linguístico” [8] de Hans-George Gadamer, um dos mestres de Koselleck, para quem a linguagem é “a primeira interpretação global do mundo” que, por sua vez, “é sempre um mundo interpretado na linguagem” [9]

Em Futuro Passado, os ensaios reunidos proporcionam tanto uma síntese das perspectivas da história conceitual e da teoria da história quanto um resumo do próprio percurso historiográfico realizado por Koselleck, que a partir do estudo da linguagem buscou assinalar as transformações das quais emergiu a modernidade europeia no Sattelzeit [10]. Na argumentação de Koselleck, um dos elementos centrais que caracteriza essa modernidade diz respeito exatamente à nova percepção do tempo. De forma geral, a questão do tempo histórico, sua definição e apreensão constituem a linha que perpassa todos os ensaios que compõem este livro de Reinhart Koselleck, obra cuja primeira publicação data de 1979. Até a publicação da presente edição, o público brasileiro podia ter acesso principalmente a partir das edições francesa e espanhola [11], fato que certamente impossibilitava uma maior aproximação das contribuições teóricas de Koselleck; razão pela qual a presente edição foi (com justiça) tão bem saudada.

O livro divide-se em três partes: Sobre a relação entre passado e futuro na história moderna, Sobre a teoria e o método da determinação do tempo histórico e Sobre a semântica histórica da experiência, num total de quatorze ensaios dedicados a investigações que, se por um lado incidem sobre diversos aspectos da teoria da história, por outro guardam entre si uma questão comum: o tempo histórico. Interessa-nos apresentar esta questão e a forma como ela é tratada pelo autor. Para tanto, assumiremos uma postura dinâmica em relação ao texto, recorrendo ora a uns ensaios, ora a outros, sem, contudo, realizarmos uma apreciação detalhada de cada item especificamente. Antes, porém, situemos o autor no debate acerca do tempo na história.

Quando Marc Bloch propôs como definição do objeto da ciência histórica a fórmula “homens no tempo” [12] estava longe de simplificar a questão, como talvez possa sugerir as duas palavras concatenadas. Mesmo deixando de lado a discussão ontológica sobre o homem, cuja saída proposta pelo filósofo Ernst Cassirer é, para o historiador, bastante adequada [13], resta-nos saber, afinal, de que “tempo” está se tratando.

José Carlos Reis, comparando as noções de tempo nos Annales, Paul Ricouer e Koselleck, assinala que os conceitos de “permanência” e “simultaneidade” parecem ser centrais na perspectiva do tempo histórico dos Annales:

Os Annales, e Braudel em particular, construiriam o conceito de “longa duração”, que ao mesmo tempo incorpora e se diferencia do conceito de estrutura social das ciências sociais. A longa duração é a tradução, para a linguagem temporal dos historiadores, da estrutura atemporal dos sociólogos, antropólogos e lingüistas. [14]

Se admitirmos esta concepção como sendo a que Marc Bloch empregava em sua definição, muito embora ela seja apresentada de uma forma um tanto simplificada por José Carlos Reis, será possível percebermos a peculiaridade de Koselleck nos que diz respeito ao tratamento desta questão. Em comum, está o fato de que ambas concepções apresentavam o tempo histórico como uma alternativa aos tempos da natureza e da consciência [15]. Instaura-se um “terceiro tempo”. Não obstante esta convergência entre Ricouer, Annales e Koselleck, a definição do tempo histórico em cada um possui diferenças importantes entre si. Interessanos, contudo, indicar a definição proposta por Koselleck.

Já no prefácio do livro Koselleck expõe a hipótese central de sua argumentação. Para ele, é na relação entre o passado e o futuro, na distinção entre ambos que se constitui o tempo histórico. Partindo de uma terminologia antropológica o autor define: “… entre experiência e expectativa, constitui-se algo como um „tempo histórico‟” (p. 16). Isto é, na forma como cada geração lidou com seu passado (formando seu campo de experiência) e com seu futuro (construindo um horizonte de expectativa) surgiu uma relação com o tempo que permite que o caracterizemos como tempo histórico. A modernidade, diz Koselleck, caracteriza-se pelo progressivo afastamento entre experiência e expectativa: “só se pode conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então” (p. 314). Este, por sua vez, é um tempo não apenas histórico, mas historicizado, de vez que a forma como cada geração operou esta relação entre passado e futuro pôde ser alterada. Assim sendo, Koselleck afirma que “à medida que o homem experimentava o tempo como um tempo sempre inédito, como um „novo tempo‟ moderno, o futuro lhe parecia cada vez mais desafiador” (p. 16). A experiência do novo, imprevisto, parece ter se acentuado no contexto da revolução francesa. Ali o tempo histórico sofreria uma mudança de orientação, e é por isso que o autor concentra-se na análise deste período, observando como esta nova consciência pôde ser expressa através da linguagem, na criação de conceitos de movimentos que pareciam emancipados do passado: ruptura radical, que marca ainda hoje nossa relação como o passado e com o futuro. Vale dizer: com o tempo histórico.

Koselleck fornece, portanto, as duas ideias centrais da nossa modernidade (inaugurada, no que diz respeito à questão do tempo histórico, pela filosofia da história): um futuro inédito e um tempo passível de aceleração (pp. 35-36). Segundo o autor, foi predominante na cristandade ocidental, até o século XVI, a expectativa do fim do mundo (p. 24), cujo adiamento constante não destruía (pelo contrário, até reforçava) sua certeza e espera. A modernidade define uma nova forma de relacionamento dos homens com o tempo e, de alguma forma, com a história.

A emancipação do futuro em relação ao passado é observada de forma muito arguta por Koselleck ao estudar as transformações conceituais por que passaram as ideias de “história” e “revolução”. O autor aponta que, no âmbito da língua alemã, o termo estrangeiro Historie “que significava predominantemente o relato, a narrativa de algo acontecido” foi sendo preterido pela palavra alemã Geschitchte, significando

originalmente o acontecimento em si ou, respectivamente, uma série de ações cometidas ou sofridas. A expressão alude antes ao acontecimento [Geschehen] em si do que a seu relato. No entanto, já há muito tempo ‘Geschichte’ vem designando também o relato, assim como ‘Historie’ designa também o acontecimento. (p. 48)

Esta substituição no seio da língua alemã acusa a superação (ou, pelo menos, o desgaste) das noções tradicionais de história, que a dotavam da capacidade pedagógica e exemplar: a história magistra vitæ. Já o conceito de “revolução”, que designava, originalmente, um movimento circular, passa a apontar – a partir da revolução francesa – para um estado de organização que não mais retornará à sua origem. Abre-se ao desconhecido, inaugura um novo horizonte de expectativa que não mais está desenhado no campo de experiência. Por fim, é necessário assinalar que o conceito traz junto de si uma ideia de aceleração do tempo (p. 68). Se hoje tal ideia nos parece normal, no advento desta modernidade de que vimos falando ela possuía um significado importantíssimo:

Quando Robespierre conclamou seus cidadãos a apressar a revolução para trazer a liberdade à força, pode-se enxergar por trás disso um processo inconsciente de secularização das expectativas apocalípticas de salvação. (p. 69)

É assim que, para o autor, pode-se inferir da disputa linguística uma nova consciência do tempo por partes dos agentes. Com isso, acreditamos que é possível obtermos uma ideia geral sobre a forma como Koselleck aborda a questão do tempo histórico: mostrando-o como uma criação histórica, por isso mesmo suscetível as modificações ao longo da própria história.

Notas

1 Mestrando em História pelo PPHR (Programa de pós-graduação em história da UFRuralRJ) – Bolsista Capes. E-mail: brunohistrural@yahoo.com.br

2 No Brasil, a obra foi publicada conjuntamente pelas editoras Contraponto e Eduerj: KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Contraponto e Eduerj, 1999.

3 Seguindo a tradução fornecida por Elias Palti. PALTI, Elias. “Introdución”. In: KOSELLECK, Reinhart. Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Barcelona: Ediciones Paidós, 2001. [pp. 09-32], p.09.

4 Além deste dicionário, sobre o qual há um detalhamento razoável no texto de apresentação do Professor Marcelo Jasmim para o livro Futuro Passado ora analisado, existem ainda outros dois dicionários que aparecem comentados no texto de Elias Palti: Historisches Wörterbuch der Philosophie [Dicionário de filosofia de princípios históricos], publicado na Basiléia em 1971 e Handbuch politisch-sozialer Grundbegriffe in Frnkreich, 1680 – 1820 [Manual de conceitos político-sociais na França, 1680-1820], publicado em Munich em 1985. PALTI, Elias. Op. cit., p.09 (a tradução em português segue a tradução para o castelhano proposta por Elias Palti)

5 Tal como sugere o Professor Marcelo Jasmim: JASMIM, Marcelo. “Apresentação”. In: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006. [pp.09-12], p.09. Todas as referências no corpo do texto dizem respeito a este livro.

6 PALTI, Elias. Op. cit., p.09.

7 Idem, p.14.

8 Agradeço as sugestões de Walter Luiz de A. Neves, quem me indicou a referência de Elias Palti e com quem realizei um estudo conjunto do livro de Koselleck, que serviu de base para a escrita de parte do presente texto.

9 GADAMER, apud in: PALTI, Elias. Op. cit., p.14 (tradução livre).

10 JASMIM, Marcelo. Op. cit., p.09.

11 A edição original teve como título Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten. Frankfort: Suhrkamp Verlag, 1979. A edição francesa data de 1990: Le Futur Passé. Contribuition à la sémantique des temps historiques. Paris: Editions de L‟École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990. A edição espanhola apareceu em 1993: Futuro Pasado: para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona: Paidós, 1993.

12 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

13 O filósofo neokantiano, ao reportar-se ao debate filosófico acerca da natureza humana, afirma, seguindo Ortega Y Gasset, a ruptura com o pensamento eleático no que se refere à teoria grega do ser. Isto é, uma libertação do naturalismo; libertação esta que afirma o caráter distintivo do homem na história, não mais na natureza. CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. pp. 279-280.

14 REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2006, p.198.

15 A noção de que o tempo histórico constitui um “terceiro tempo” remete inicialmente ao nome de Paul Ricouer, nos diz José Carlos Reis. Assim, o tempo histórico atua no vão entre outros dois tempos: “Se o tempo da consciência é mortal, finito, tendência do ser ao nada, e se o tempo da natureza é permanência, reversibilidade e tendência ao ser, pois o que foi retorna, ele [o historiador] deve procurar inscrever o que passa no que não passa, o irreversível no reversível…” REIS, José Carlos. Op. cit., p.183.

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006.

PALTI, Elias. “Introdución”. In KOSELLECK, Reinhart. Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Introdución de Elias Palti. Barcelona: Ediciones Paidós, 2001.

REIS, José Carlos. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2006.

Bruno Silva de Souza – Mestrando em História pelo PPHR (Programa de pós-graduação em história da UFRuralRJ) – Bolsista Capes. E-mail: brunohistrural@yahoo.com.br


KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora Puc-RJ, 2006. Resenha de: SOUZA, Bruno Silva de. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.226-231, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

A história escrita. Teoria e história da historiografia | Jurandir Malerba

A teoria da história é mais do que apenas um pensamento sistemático sobre a História e sua escrita; a narrativa história se mostra, cada vez mais, complexa, por suas tensões entre fatos e ficções, verdade e imaginação, objetividade e subjetividade, fontes documentais e as retóricas do discurso; a historiografia não é apenas o discurso circunstanciado sobre as obras históricas, mas fixa-se, cada vez mais, em todo discurso sobre o passado. O que a coletânea de textos organizados por Jurandir Malerba nos mostra, em resumo, é um ‘fazer história’ mais denso e articulado, com as questões de nosso tempo.

Ao reunir as contribuições de Horst Walter Blanke, Massimo Mastrogregori, Frank Ankersmit, Jörn Rüsen, Angelika Epple, Masayuki Sato, Arno Wehling, Hayden White e Carlo Ginzburg, nos oferece uma mostra do resultado dos debates das últimas décadas a respeito da história da historiografia, da teoria da história, da epistemologia histórica, quanto ao princípio de realidade, ao gênero, a comparação e a narrativa. Para ele:

O critério principal para a seleção dos textos que constituem a presente obra foi a intenção de compor um painel, o mais amplo possível, dos campos problemáticos presentes na construção de uma teoria da historiografia, com vistas ao aprimoramento prático de uma revigorada história da historiografia. Nesse sentido, os textos […] reunidos oscilam da reflexão teórica acerca do conceito de historiografia para a reflexão crítica de uma epistemologia da história, passando necessariamente pelas potencialidades e limites metodológicos que cada caminho apresenta. Tratam-se, como é notório, de autores consagrados do pensamento histórico contemporâneo, provenientes das mais distintas tradições nacionais e simpatias teóricas.[1]

Para articular tais textos, o autor os posicionou em quatro blocos, a saber: a) os de que “o foco recai primordialmente sobre o conceito de historiografia e o estatuto teórico do texto historiográfico”, como se vê no texto de Blanke, Mastrogregori e de Arkersmit; b) “por ensaios com propostas mais teórico-metodológicas para o campo da história da historiografia propriamente dita”, como nos casos de Rüsen, Sato e de Epple; c) “discussão teórica da prática historiográfica para o campo da epistemologia”, em que se apresentam Wehling; d) e, no último “seria quase um exemplo das implicações políticas do exercício historiográfico, que tomamos propositadamente no exemplo-limite da história do Holocausto”, por meio do debate entre os textos de White e Ginzburg.

Além dos textos ora indicados, a coletânea ainda é enriquecida com o capitulo de Malerba, que indica os principais eixos das discussões sobre teoria e história da historiografia ocorridas no século passado. Para ele, haveria, sem dúvida, uma tensão entre, de um lado, o “anti-realismo epistemológico, que sustenta que o passado não pode ser objeto do conhecimento histórico ou, mais especificamente, que o passado não é e não pode ser o referente das afirmações e representações históricas”[2] , e, de outro, o “narrativismo, que confere aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso, inerentes a seu estatuto linguístico, a prioridade na criação das narrativas históricas.”[3] Em ambos os casos, a pesquisa histórica esteve ancorada em matrizes, senão frágeis, ao menos em constante pressão, e com necessidade de justificação perante as outras áreas do saber. Mas, o “caráter auto-reflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador da História no conjunto das ciências humanas.”[4]

Para Blanke, a “história da historiografia é uma atividade nova”, que esteve ao lado “do desenvolvimento da história como disciplina independente e com pretensões científicas”, com início “na época do iluminismo.”[5] Suas características estariam balanceadas entre tipos (história dos historiadores, história das obras, balanços gerais, história da disciplina, história das idéias históricas, história dos métodos, história dos problemas, história das funções do pensamento histórico, história social dos historiadores, história da historiografia teoricamente orientada) e funções (afirmativa e crítica). Não por acaso, Mastrogregori ressaltará que as “possibilidades de contato são certamente inúmeras”[6], visto a complexidade da tarefa de se efetuar adequadamente uma história da historiografia. Para Ankermist, tal tensão “nos confronta diretamente com o problema do relativismo resultante da historicização do sujeito histórico.”[7] Como nos indica Rüsen, a “historiografia é uma maneira específica de manifestar a consciência história”, porque “apresenta o passado na forma de uma ordem cronológica de eventos apresentados como ‘factuais’, ou seja, com uma qualidade especial de experiência.”[8] Por isso:

Não há cultura humana sem um elemento constitutivo de memória comum. Ao relembrar, interpretar e representar o passado, as pessoas compreendem sua vida cotidiana e desenvolvem uma perspectiva futura delas próprias e de seu mundo. História, nesse sentido fundamental e antropologicamente universal, é uma reminiscência interpretativa do passado de uma cultura, que serve como um meio de orientar o grupo no presente. Uma teoria que explica esse procedimento fundamental e elementar de dar sentido ao passado consoante à orientação cultural no presente é um ponto de partida para a comparação intercultural. Tal teoria tematiza a memória cultural ou a consciência histórica que define o objeto de comparação em geral. Ela serve como definição categórica do campo cultural no qual a historiografia toma forma. […] [e] a historiografia aparece, na sua estrutura geral da consciência histórica ou memória cultural, como uma forma específica de uma prática cultural básica e universal da vida humana.[9]

Ao levarem a cabo uma intensa discussão sobre o caso do Holocausto, White e Ginzburg promovem uma verdadeira investigação a respeito do lugar do enredo na narrativa histórica e de que maneira se configura o princípio de realidade, que dá forma e modela o discurso histórico.

Em todos esses aspectos, a coletânea em pauta, traz mostras de um panorama rico e denso dos intensos debates que circunstanciaram a produção da história da historiografia no século passado, cujas marcas e implicações ainda vemos nos resultados apresentados pela pesquisa histórica.

Notas

1. MALERBA, op. cit., 2006, p. 8.

2. MALERBA, op. cit., 2006, p. 13.

3. MALERBA, op. cit., 2006, p. 14.

4. MALERBA, op. cit., 2006, p. 15.

5. MALERBA, op. cit., 2006, p. 27.

6. MALERBA, op. cit., 2006, p. 87.

7. MALERBA, op. cit., 2006, p. 98.

8. MALERBA, op. cit., 2006, p. 125.

9. MALERBA, op. cit., 2006, p. 118

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).


MALERBA, Jurandir. (Org.) A história escrita. Teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Teoria da história e historiografia. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.6, p.367-371, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica – MALERBA (HH)

MALERBA, Jurandir. A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica. Rio de Janeiro: FGV, 2009, 146 p. Resenha de: HURBY, Hugo. Caminhos da historiografia latino-americana. História da Historiografia, Ouro Preto, n 05, p.212-217, setembro 2010.

O recente livro de Jurandir Malerba atesta o rico momento no qual os historiadores se encontram. Recuperando o que lemos em número recente neste periódico, “a História da Historiografia vai ocupando um espaço cada vez mais importante no ateliê dos historiadores” (GUIMARÃES 2009, p. 258). Espaço assaz fértil de reflexão sobre o nosso próprio métier. O autor é professor com trânsito por várias instituições, pesquisador experiente e escritor/tradutor de difundidos e instigantes trabalhos. A editora é renomada pela qualidade de suas publicações e especial atenção dedicada à História. Momento propício, autoria qualificada e editoração incentivadora reúnem-se em A história na América Latina: ensaio de crítica historiográfica.

Oriundo de pesquisas do autor para compor a volumosa Colección Unesco de Historia General de América Latina (MALERBA 2006a), o livro tem por objetivo refazer os itinerários da historiografia latino-americana, a fim de perceber o processo de mudanças a partir da década de 1960. O intuito de compreender essa trajetória parte de duas premissas: considerar os anos 60 ponto de inflexão da cultura ocidental e não perder de vista as fortes e ambíguas relações que os intelectuais latino-americanos mantêm com os centros hegemônicos, Estados Unidos, Inglaterra e a França.

Pequeno em suas dimensões, o livro é grande na pretensão analítica e pesado nas críticas. Introdutoriamente, o autor nos dá uma ampla visão da historiografia ocidental através do contexto intelectual na “transição paradigmática”, que tem os anos de 1968 e 1989 como dois marcos simbólicos.

De um a outro se observa o paulatino recrudescimento do “pós-estruturalismo” desembocando nas proposições “pós-modernas”. Ressalvados o sincretismo e as imprecisões que tais termos carregam, o autor problematiza dois postulados ligados a essas correntes de pensamento: a teoria da linguagem e a negação do realismo. O texto preliminar fecha com uma questão de suma importância e próxima a muitos pelo impacto nos cursos de graduação de onde somos.

Malerba reflete, com muita propriedade, sobre a presença do marxismo na historiografia latino-americana: aparato teórico, metodológico e ideológico fomentador de forma vivaz do debate a partir da segunda metade do século XX. Aqui inicia a análise crítica do autor sobre trabalhos específicos de intelectuais latino-americanos, nos quais vislumbramos o pulsar da tradição marxista na Argentina, Peru, México, Brasil. Tal tradição criativa e influente, deveras afetada pelas grandes transformações mundiais, passou a sofrer pesadas críticas, suscitando o chamado “pós-marxismo”. Se esses momentos “pós” na América Latina recebem atenção pela perda da referência na totalidade em que se inserem, Malerba aponta, igualmente, para a saudável retomada de uma tradição problematizadora, que mistura os ensinamentos do marxismo mais arejado com os aportes do movimento historiográfico francês dos Annales.

Esse diálogo dos Annales com o marxismo renderia, conforme o autor, o que de melhor se produziu nos últimos 30 anos na historiografia latino-americana nos campos da história econômica e história social. A produção na América Latina, nessas duas modalidades de escrita histórica, é mapeada no primeiro capítulo, intitulado “Décadas de 1970 e 1980”. Nele, o autor nos apresenta o labor de historiadores econômicos no Brasil, Argentina e Chile, ainda na primeira metade do século XX, cujos esforços foram conjugados na Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). A partir dos problemas de desenvolvimento da região, o autor analisa a eclosão de teorias da dependência como pensamento genuinamente formulado por intelectuais latino-americanos para explicar o presente através do passado. A validade de teorias como essas, sob visão macrossocial e histórica, acabaria por sucumbir no cenário acadêmico diante do contexto de fragmentação da “transição paradigmática”.

Ao longo da década de 1970, a História econômica, gradualmente, assumiu grande prestígio e vitalidade. De maneira muito didática, Malerba esquematiza os temas abordados pela história econômica distribuídos nos períodos colonial, nacional e século XX. Destes, o campo da economia colonial foi um dos que mais impulsionou a historiografia econômica na América Latina. Guiados pelo autor, acompanhamos os trabalhos de vários pesquisadores, com destaque para os estudos de história agrária no Brasil. Ainda no primeiro capítulo, o diálogo do marxismo com os Annales nos é mostrado ao seguirmos o itinerário da história social através da pertinente seleção de publicações. A ampliação dos horizontes temáticos da história social deu-se, principalmente, pelas pesquisas sobre escravidão, trabalho e movimentos sociais.

Especificamente sobre a história social do trabalho, para além da constatação de renovação acarretada pelo marxismo britânico, Malerba nos mostra como a abordagem tradicional, concentrada quase exclusivamente nas ideologias das classes trabalhadoras, seus líderes e suas relações formais com os partidos políticos, vai sendo superada. A produção historiográfica sobre a classe operária e o mundo do trabalho na América Latina se altera mediante o impacto das profundas transformações globais. Através da “nova história social”, os pesquisadores passam a enfatizar a diversidade das experiências entre as massas trabalhadoras, fugindo das pretensões generalizantes. Questões de gênero, etnicidade, desenvolvimento da cultura popular, formação de identidades e vida cotidiana (daqueles que não participaram de sindicatos ou partidos políticos de trabalhadores) são exemplos que Malerba nos traz para mostrar a incorporação de leque mais amplo de tópicos na história social do trabalho nesses países.

No período de transição democrática, na década de 1980, os pesquisadores latino-americanos se esmeraram por conhecer o papel de resistência da sociedade civil organizada. O tumultuado momento contribuiu para a força desse campo através do tema dos movimentos sociais. Novas preocupações e objetivos acabaram por transformar a natureza dos movimentos sociais e as relações entre eles (sindicalistas, gays, feministas, ambientalistas). Não obstante tal diversificação, o foco do interesse dos historiadores recaiu sobre as questões de identidade e cultura. No entanto, de forma perspicaz, Malerba mostra como a produção acadêmica passa a adotar postura mais cautelosa do que a celebrativa inicialmente. Posição que, no entanto, ainda não conseguiu afastar a militância das pesquisas.

No segundo capítulo, “Décadas de 1980 e 1990”, Malerba avança na análise tendo a “nova história política” e a “nova história cultural” como dois campos que melhor caracterizam a produção latino-americana nos últimos decênios do século. No primeiro campo, o autor seleciona dois temas de destaque na historiografia. Nas pesquisas sobre a construção do Estado e da Nação na América Latina independente (século XIX) percorremos os estudos na Argentina, México, Colômbia, Peru e Brasil. O movimento de revitalização na história política é observável quando os pesquisadores tornaram mais complexas questões como a emergência de identidades nacionais, ruptura do pacto político entre colônia e metrópole, variedades de federalismos, participação de grupos camponeses e indígenas. Os trabalhos historiográficos sobre os regimes populistas e ditatoriais, igualmente, foram merecedores da atenção dos pesquisadores na história política.

Até então trabalhando com foco nos sujeitos, processos político-partidários e na história do Estado e das elites no poder, as historiografias nacionais começaram a renovar essa abordagem tradicional.

Considerando a “nova história cultural” como outro campo importante de estudos no período, Malerba problematiza o seu próprio advento e caracterização na historiografia. Mais recentemente, segundo o autor, apesar das amplas pretensões, os pesquisadores envolvidos neste campo se identificariam pela referência a um corpo canônico de obras, referências teórico-metodológicas, escolha de certas fontes e uso de “jargão” especializado sobre representações, textualidade, relações de poder, subalternidade e identidades sexuais e raciais, intimidade e privacidade, cultura popular. Se, aparentemente, a agenda do campo está definida, Malerba aponta que sua forma de execução se caracteriza por certa “mestiçagem” na abordagem e “liberdade criadora” na prática para além do receituário prescrito. A pujança da história cultural pode ser percebida nos dois exemplos selecionados pelo autor. Tanto na história do cotidiano e da vida privada, como na de relações de gênero, fica visível o imbricamento desse campo com os demais trabalhados ao longo do livro.

Seguindo a forma clara e didática que acompanha os parágrafos do livro, a parte final comporta importante orientação bibliográfica. Complementa aquelas referências trabalhadas ao longo do texto, indicando sucintamente uma série de trabalhos de pesquisadores em diferentes países, não só latino-americanos. A rica bibliografia apresentada e trabalhada pelo autor nos permite adentrar em balanços historiográficos gerais e regionais, e nas discussões teóricas.

O ensaio de crítica historiográfica de Jurandir Malerba, em sua pretensão de síntese, delineia tendências na historiografia latino-americana ao selecionar publicações de maior representatividade nos campos e momentos historiográficos. Autores, livros e grupos de pesquisas em diversos países da América Latina alicerçam o ensaio como linhas mestras ou tendências majoritárias na historiografia. Linhas ou tendências que se cruzam, mesclam, dialogam através de fronteiras porosas. O caráter seletivo, pois panorâmico, como o próprio autor adverte, fez com que outras vertentes na produção historiográfica não fossem contempladas. Somos precavidos, ainda, para o descompasso entre as trajetórias nas diversas historiografias nacionais, em que os campos escolhidos assumem, em alguns casos, rótulos distintos. Porém, ao final da leitura do livro, ficamos convictos de que os quatro campos selecionados – história econômica, política, social e cultural – são expressivos para mostrar o turbilhão que varreu o ateliê de Clio, a partir da década de 1960, fragilizando teorias, projetos, modelos, métodos, certezas, verdades. E para mostrar também o quanto os profissionais da História, ainda hoje, se encontram afetados por uma transição em aberto.

Diante dessa caminhada pela historiografia latino-americana, em um momento de guinada radical nas formas de se conceber e praticar a história, a análise de Malerba permite enxergarmos, claramente, três questões. Os historiadores latino-americanos reiteraram seu papel de importadores de pensamentos, modismos, pastiches, cópias. As problemáticas “vindas de fora”, típicas de sociedades liberais desenvolvidas, refletiram, muitas vezes, os anseios e as demandas da cultura do pesquisador estrangeiro (latino-americanista) e não necessariamente os dos povos pesquisados. Haveria a hegemonia de uma literatura estrangeira como “substrato teórico da produção local”. Através de “clichês”, avulta a dificuldade dos historiadores em assimilar as reflexões teóricas daquela literatura na orientação de suas pesquisas e na própria construção dos textos. Mas fugindo do “imperialismo científico” ou da “expansão do capitalismo no Terceiro Mundo”, Malerba adverte para a complexidade do intercâmbio acadêmico Norte-Sul. A crescente aproximação dos intelectuais latino- -americanos da intelligentsia nos centros hegemônicos, em especial estadunidense, permitiu a entrada de novos personagens e temáticas na agenda dos pesquisadores. Esse ingresso conduziu a uma sofisticação metodológica ao exigir novos tratamentos para certos tipos de fontes. A segunda questão está na importância do pós-estruturalismo e seus sucedâneos na destruição de “velhas verdades engessadas”. No entanto, contribuíram negativamente para a perda da percepção global da sociedade latino-americana, de sua história e de suas relações com o resto do mundo. O afastamento epistemológico das abordagens holísticas e totalizantes fez diminuir o alcance das “teorias”, fragmentando-as. Por fim, a análise de Malerba indica a premência da democratização da produção e circulação de informações pelo ambiente acadêmico latino-americano para possibilitar a definição de nova agenda para os estudos históricos que atenda aos interesses de seus povos.

Se a proposta do autor não consegue iluminar todo amplo espaço que o título do livro alude, aceitemos o estímulo dado por Malerba a fim de que problematizemos as hipóteses e percepções lançadas, perscrutemos outros campos e a produção dos demais colegas latino-americanos. O importante é não perdermos de vista a abrangência dos estudos históricos, já que a carreira acadêmica nos conduz a questões cada vez mais reduzidas, descoladas muitas vezes do todo. Em razão disso, a leitura dessas sínteses é extremamente importante, não só para o estudante, mas para o próprio pesquisador experimentado que se preocupa em se ver (para se colocar) como integrante de uma disciplina em crise de crescimento.

Para finalizar essa resenha crítica, permito-me lançar quatro indicações suscitadas pela provocante leitura do ensaio. Como exemplos recentes da salutar dinâmica entre os historiadores latino-americanos, lembremo-nos do II Encontro da Rede Internacional Marc Bloch de Estudos Comparados em História (Porto Alegre, outubro de 2008) e do IX Congresso Internacional da Asociación de Historiadores Latinoamericanos y del Caribe (ADHILAC), em maio de 2010, na Colômbia. Esperanças de trocas fecundas, igualmente, estão focadas na nascente Universidade Federal da integração Latino-Americana (UNILA). Outro ponto está na possibilidade de pensarmos, desde já, a trajetória da historiografia latino- -americana na primeira década do século XXI. Somente no Brasil, além da irrigação nesses campos trabalhados por Malerba, tivemos a proliferação de novas “plantações”. Por exemplo, a quantidade de simpósios temáticos nos dois últimos encontros da Associação Nacional de História (ANPUH) é expressiva: 76 em 2007 e 85 em 2009.

Na visada historiográfica pós-muro, para além dos centros citados – Estados Unidos, França e Inglaterra – poderíamos ir além refletindo sobre a relação dos historiadores latino-americanos com os centros de pesquisa alemães e italianos através da pós-graduação e/ou crescente aumento das publicações aqui traduzidas. Por fim, reitero os esforços do professor e pesquisador Jurandir Malerba na problematização da historiografia contemporânea materializados, principalmente, em Esboço crítico da recente historiografia sobre a independência do Brasil (MALERBA 2006b), A história escrita (MALERBA 2006c) e Historiografia contemporânea em perspectiva crítica (MALERBA; ROJAS 2007), ao lado dos quais este novo livro sobre a historiografia na América Latina passa a fulgurar.

Bibliografia

GUIMARÃES, L. M. P. Entrevista para Valdei Lopes de Araujo. História da historiografia, 3:237-258, Ouro Preto, set. 2009.

MALERBA, J.; ROJAS, C. A. (org.). Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. Bauru: Edusc, 2007.

_____. Nuevas perspectivas y problemas. MARTINS, E. de R.; PEREZ BRIGNOLI, H. (org.). Teoría y metodología en la Historia de América Latina.

Madrid: Trotta, 2006a. p. 63-90. (Colección Unesco de Historia General de América Latina, v. 9) _____. Esboço crítico da recente historiografia sobre a independência do Brasil (c. 1980-2002). In: _____. (org.). A independência brasileira, novas dimensões. Rio de Janeiro: FGV, 2006b. p. 19-52.

_____. (org.). A história escrita, teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006c.

Hugo Hruby Doutorando Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) hugohruby@yahoo.com.br Rua Assunção, 395/101 Porto Alegre – RS 91050-130 Brasil.

Théorie critique de l’histoire. Identités, expériences, politiques | Joan W. Scott

Joan Scott, professora do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, Estados Unidos, tem se dedicado, há tempos, ao estudo da epistemologia do estudo da História, a partir de um ponto de vista crítico. Este volume retoma considerações de Scott e ele desenvolve outras, de forma original e criativa, a começar pela definição, logo no início, da História como crítica, com uma citação de Theodor Adorno sobre a importância da crítica, definida por “resistir às opiniões estabelecidas e às instituições existentes… a democracia define-se pela crítica, nada menos”.

Para além da Escola de Frankfurt, Scott volta-se para história de Michel Foucault, na medida em que a crítica se exerce não mais na busca de estruturas formais de caráter universal, mas na pesquisa histórica sobre como nos constituímos como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos. A busca de como e de que maneira, os homossexuais ou os trabalhadores se tornaram um problema abre novas oportunidades de conhecimento. A “verdade”, como um sistema de padrões compartilhados, deixa de ser uma entidade transcendente, como pressupõe a História positivista. Scott questiona a História normativa, fundada no conceito de prova. Já em 1989, Lionel Gossman mostrava que “uma narrativa determina a prova tanto quanto a prova determina a narrativa”. Leia Mais

História: a arte de inventar o passado | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

O livro História: a arte de inventar o passado, do Doutor em História Social Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, reúne em dezesseis capítulos artigos anteriormente publicados em periódicos. Os textos, que discutem as mudanças dos paradigmas na ciência histórica, estão divididos em três partes: a primeira aborda a relação entre história e literatura; a segunda apresenta as contribuições de Foucault para a história e a última traz alguns aspectos sobre o trabalho do historiador.

Uma ideia que perpassa todo o livro é a da “invenção”. Segundo o autor, a própria utilização desta palavra já indica mudanças no campo histórico, simbolizando que o historiador não trabalha com verdades e que, quando lida com as suas fontes, não se desvencilha de sua subjetividade. Se pensarmos a história do prisma da invenção, nos afastaremos das categorias homogeneizantes e universais, pensando a ciência como uma construção. Leia Mais

História: a arte de inventar o passado | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE JR Durval Muniz Lógicas e Métodos
Durval Muniz Albuquerque Jr. Foto: TV Afiada /

ALBUQUERQUE JR D M A arte de inventar o passado Lógicas e MétodosO livro História: A arte de inventar o passado, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, é a reunião de 16 artigos do autor sobre a escrita da história, ou mais precisamente, sobre o ofício do historiador na contemporaneidade.

O livro foi dividido em três partes: na primeira parte, o autor estabelece as relações da história com a literatura e o lugar (ou lugares) que os mesmos ocupam; na segunda parte, dedica-se a refletir sobre as idéias de Michel Foucault e sua pertinência para o trabalho historiográfico e na terceira parte, Durval agrupou seis ensaios, que embora tenham temas diferentes, têm como eixo a reflexão sobre a escrita (ou escritas) da história.

O autor abre o livro com uma belíssima introdução na qual primeiramente fala da recorrência cada vez maior da palavra invenção em várias áreas do saber e de como essa assinala uma mudança paradigmática. A partir daí, o autor estabelece uma analogia entre o ofício do historiador e “a terceira margem do rio”1 do conto de Guimarães Rosa. Segundo Durval, entre as celeumas criadas em torno da História Social versus História Cultural, localizando a História Social ao lado da materialidade, da objetividade, da realidade do fato histórico e a História Cultural ao lado do simulacro e do discurso, o historiador, com a ajuda da literatura, deveria se posicionar em uma terceira via, uma terceira margem. Leia Mais

Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios | Ciro Flamarion Cardoso

Produzida pelo professor/pesquisador Ciro Flamarion Cardoso, Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios, nos fornece uma ampla discussão no que se refere à teoria da História. Ao dialogar com diferentes tendências historiográficas, o autor promove uma série de debates em torno da questão de como se “fazer História”.

Com sua postura marxista, acredita que a História só possa ser interpretada através das condições materiais que compõem cada sociedade e não pela consciência, linguagem ou religião que cada uma possui. Apóia as primeiras gerações dos Annalles por privilegiarem as estruturas e a longa duração, refutando veementemente o positivismo por restringir-se apenas à história factual e a curta duração. Leia Mais

História: a arte de inventar o passado – Durval M. Albuquerque Jr

Os historiadores brasileiros não têm a tradição de publicar obras que versem sobre discussões teórico-metodológicas. Nas últimas décadas, o número de pesquisas históricas cresceu vertiginosamente, em todas as regiões do país, porém, esse crescimento não foi acompanhado na mesma proporção pelas pesquisas focadas em torno das questões atinentes ao processo de produção do conhecimento da disciplina. Isto é, no mínimo, preocupante, pois o ofício do historiador jamais pode prescindir da dimensão epistemológica. O fazer histórico engloba a etapa empírica (que consiste no trabalho de coleta e cotejamento das fontes) e a etapa epistemológica (que consiste na interpretação das fontes coligidas, a partir do diálogo com a historiografia especializada e à luz dos instrumentos conceituais e pressupostos teóricos). Não basta descrever e narrar os fatos; deve-se interpretá-los, explicá-los, a partir de problemas e hipóteses de pesquisa e tendo em vista categorias analíticas e correntes historiográficas. São justamente as questões epistemológicas da historiografia contemporânea o tema central do livro História: a arte de inventar o passado, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Leia Mais

História: a arte de inventar o passado | Durval Muniz Albuquerque Junior

Às vezes sigo o (dis)curso, às vezes saio das margens, transbordo, alago, arrasto em meu caminho outras formas organizadas e as transformo em novas formas, e ambas compõem o meu existir de rio. Às vezes objetivado, às vezes sujeitado, às vezes objetivo, às vezes subjetivo, sempre os dois ao mesmo tempo, eu sou rio e eu sorrio, eu, natural e humano, cursivo e discursivo, invento na história e a História (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 36).

O livro de Durval Muniz Albuquerque Junior História: a arte de inventar o passado reúne uma coletânea de 16 artigos que têm por objetivo refletir sobre a escrita da História, com destaque para a relação entre História e Literatura, bem como fazer uma análise sobre o pensamento de autores de significativa importância para a historiografia contemporânea, entre eles Michel Foucault. Leia Mais

Historia reciente. Perspectivas y desafíos para un campo en construcción – FRANCO; LEVÍN (IA)

FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia (Compiladoras). Historia reciente. Perspectivas y desafíos para un campo en construcción. Buenos Aires: Paidós, 2006. 352p. Resenha de: RÚA, Santiago Cueto. Intersecciones en Antropología, Olavarría, n.9, ene./dic., 2008.

Historia Reciente, libro compilado por Marina Franco y Florencia Levín, tiene en principio dos objetivos: por un lado, intervenir en el campo historiográfico con la voluntad de que la historia cercana se legitime como disciplina; y por el otro, reflexionar en torno al pasado reciente y a las distintas formas en que se lo ha abordado en nuestro país.

El libro se propone como parte de un escenario de dos escalas distintas: a nivel global, refiere a la novedad de los estudios de historia reciente, cuyos orígenes datan de mediados del siglo pasado, y están ligados a las experiencias traumáticas europeas; a nivel nacional, esa particularidad se suma a ciertas dificultades que la historiografía ha tenido para estudiar nuestro pasado cercano, a diferencia del recorrido que ya tienen otros desarrollos académicos como por ejemplo la sociología o las ciencias políticas.

Las compiladoras proponen trabajar a través del diálogo con otras disciplinas y con otros actores/ protagonistas extra académicos de ese pasado. Esta intención se materializa en el libro, dado que está compuesto por una serie de artículos que comparten una orientación temática, pero no más que eso. Es decir, su riqueza está precisamente en que su objeto, la historia reciente, es analizado desde distintas miradas: historia, educación, sociología, antropología y ciencias políticas. El conjunto de textos plantea problemas sumamente dispares, y los analiza con enfoques diversos.

Dada esta particularidad, la reseña se ve obligada a distinguir ciertos temas que recorren el texto, aún a riesgo de ocultar otros, cuando no de omitir el mismo tratamiento para todos los trabajos. Por ese motivo se resaltan tres ejes: 1. el vínculo entre historia y memoria;2. la tensión entre compromiso y distanciamiento por parte de los investigadores; 3. el tratamiento de las fuentes.

Historia y memoria

Varios de los autores (Franco y Levín; Traverso; Sábato) coinciden en que el vínculo entre historia y memoria suele ser pensado desde dos polos que no ayudan a comprender bien la cuestión. El primero, asociado a perspectivas “positivistas”, rechaza la memoria por subjetiva y poco confiable. El segundo, coloca a la memoria en un lugar de privilegio tal, que pretende borrar sus diferencias con la historia.

En el capítulo escrito por las compiladoras “El pasado cercano en clave historiográfica” se señala que la articulación correcta permite vincular la historia y la memoria como dos discursos sobre el pasado con regímenes distintos de legitimación; la primera está asociada a la veracidad, y la segunda a la fidelidad. Desde la historia se puede corregir la memoria, pero no se la debe invalidar, porque allí aflora la subjetividad. El historiador debe servirse de la memoria sin rendirse ante ella. Ese riesgo se corre, señalan las autoras, cuando se sobrelegitima la voz de los testigos. El relato debe por un lado, ponerse en diálogo con otras fuentes, y por otro, historizarse para reconocer lo decible y lo indecible de determinados momentos históricos. Se evita de este modo fetichizar el testimonio.

Enzo Traverso, cuyo trabajo se titula “Historia y memoria. Notas sobre un debate”, señala que otra de las vinculaciones entre estas formas de acercamientoal pasado surge a partir de mediados del siglo XX, a través de la presencia social permanente de la memoria “como religión civil” y la obligación de los historiadores de hacerse cargo de ello. Este autor marca diferencias entre ambas, pero no para distanciarlas sino para ponerlas en interacción. La memoria es subjetiva, no necesita pruebas para quien la porta; se modifica con el tiempo; es una visión del pasado siempre mediada por el presente. La historia, que surge de la memoria, también se escribe desde el presente, pero pasa por otras mediaciones. Para constituirse como campo del saber debe emanciparse de la memoria, aunque no rechazarla; comprenderla, pero no someterse a ella. El historiador debe pasar la memoria por un tamiz objetivo, empírico, documental y fáctico.

Hilda Sábato por su parte, en “Saberes y pasiones del historiador”, agrega otro matiz a este vínculo. Según esta autora la memoria se asocia a la búsqueda y construcción de identidades, mientras que la historia se desembaraza de ese trabajo. Sin embargo, esto no supone que sus tareas sean opuestas sino complementarias. De este modo puede llevarse a cabo una puesta en cuestión mutua que favorezca el mejor acercamiento al pasado. Algo semejante señala Kaufman (“Los desaparecidos, lo indecible y la crisis”) para quien el trabajo del historiador no sólo no se opone al del testigo, portador de memoria, sino que ambos se retroalimentan.

Sergio Visacovsky muestra, en “Historias próximas, historias lejanas”, de qué forma entre la historia y la memoria puede entrometerse la etnografía, como una manera de acercarse al pasado que parte de las perspectivas de los actores, y del modo en que estos elaboran la linealidad temporal. Como se ha dicho, la memoria es una mirada del presente que construye y reconstruye el pasado. El autor muestra que el pasado no es lineal y es reestructurado de acuerdo a los problemas del presente

En el trabajo de Elizabeth Jelin, “La conflictiva y nunca acabada mirada sobre el pasado”, se encuentra un modo distinto de articular las dos formas de abordar el pasado que se vienen analizando. La autora hace una historia de la memoria. Su objeto es el Cono Sur, sobre todo las posdictaduras argentinas, chilenas y uruguayas, y su marco de referencia es al igual que en varios de los trabajos, el caso alemán. Allí se analiza cómo las distintas sociedades van variando las formas de interpretar el pasado traumático, y cómo esos cambios no necesariamente deben terminar enclausura, justamente porque cambian los actores que los reconstruyen, y con ello las preguntas e inquietudes. Puesto que, además, la intensidad del dolor impide el cierre del recuerdo y porque la memoria no es lineal, y ello impide que haya garantías de que a medida que pasa el tiempo ese pasado quede cada día más lejos. Para terminar, la autora valora esta dimensión abierta y permanentemente revisitada de la memoria, y se pregunta si esa no será su forma “normal”.

or último, en el capítulo “Historia reciente de pasados traumáticos. De los fascismos y colaboracionismos europeos a la historia de la última dictadura argentina”, Daniel Lvovich incorpora una lectura diferente acerca del vínculo entre historia y memoria. Lo hace a través de la mención de dos autores argentinos, Tulio Halperín Donghi y Luis Alberto Romero, quienes a diferencia de las miradas hasta aquí citadas advierten sobre la necesidad de establecer una ruptura entre memoria e historia. El primero de estos historiadores señala que para analizar el caso de la última dictadura argentina es imprescindible mantener una memoria del horror, y ligada a eso marca la incapacidad de la historiografía de captar los sentidos fundamentales de lo vivido. Por su parte Romero, en un sentido opuesto, considera que la memoria fue útil en la faz cívica, pero obtura el saber histórico. De ese modo el saber académico historiográfico es el único modo de comprender el proceso dictatorial.

La posición de Lvovich, por su parte, sostenida en un análisis de las dictaduras europeas, señala que el rechazo a esos gobiernos se ha articulado con estudios históricamente valiosos. En ese sentido se espera, de acuerdo con este autor, que del equilibrio entre distancia y compromiso puedan salir aportes historiográficos sustanciales. Ese es el segundo eje de este libro.

Compromiso y distanciamiento

Este eje parte de una idea que las compiladoras ponen en juego en la introducción, según la cual a los historiadores del pasado cercano se les exige mucho, no sólo académica, sino también política, civil y moralmente. Allí se encuentra el problema de combinar el distanciamiento crítico, propio de las lógicas académicas de producción de conocimiento científico, con el compromiso que puede sentirse en relación a sujetos cuyos valores políticos y/o principios morales se comparten.

sto se puede vincular a un proceso que describe Traverso, a partir del cual la idea de la memoria como “religión civil” está estrechamente asociada al testigo como “víctima” (y no, por ejemplo, como “vencido”). Así, la “empatía” con la víctima puede jugar en contra de esa distancia que el discurso académico supone. Además de esta tensión que incluye un problema de orden político, hay otra más estrictamente académica señalada por Franco y Levín. Se trata de la dificultad de construir un discurso propio de las ciencias sociales cuando algunas de las categorías utilizadas son a su vez del uso común de los actores estudiados. Los ejemplos de “genocidio” o “guerra” sirven para explicar la dificultad que supone el tratamiento de esos conceptos. Se pretende evitar la repetición sin mediaciones de lo que la antropología llamaría “categorías nativas”, tanto como el aislamiento positivista de esos conceptos.

La cercanía del uso de los conceptos está asociada claramente a la proximidad temporal entre el objeto y el investigador. La historia, señalan las autoras, suele hablar de procesos que suceden más lejos en el tiempo. Para hacer justicia con la voluntad interdisciplinaria que anima a las compiladoras, se puede agregar que el mismo problema tiene la antropología del presente. Ya no en el tiempo, sino en el espacio, este conflicto aparece en momento en que deja de ser sólo antropología de lugares lejanos.

Silvia Finocchio, en su trabajo titulado “Entradas educativas en los lugares de la memoria”, plantea que la historia reciente no fue abordada durante muchos años en la escuela porque no cumplía con la condición de lejanía, pensada como garantía de neutralidad. Así, muchos docentes además de no tener demasiados materiales para su tratamiento, se encuentran con el rechazo de parte de algunos alumnos y/o padres para estudiar la Dictadura, porque su lectura impugnatoria estaría sesgando su análisis. Vale decir, se espera neutralidad por parte de la historia y también de la escuela.

Roberto Pittaluga, en “Miradas sobre el pasado reciente argentino. Las escrituras en torno a la militancia setentista” advierte acerca de otros inconvenientes que el tratamiento del pasado reciente tuvo en la academia argentina de la posdictadura. Estas dificultades también pueden leerse desde la tensión entre distancia y compromiso. Hay varios elementos que explican porqué no hubo acercamientos historiográficos sustantivos en esa época. Por un lado, el perfil académico profesional se constituye por esos años en oposición al del intelectual comprometido de las décadas anteriores. Con esa transformación pierde la pasión política a manos de una neutralidad que la proximidad temporal aún no garantizaba. Por otro lado, esa misma profesionalización académica se enfrentaba con las experiencias anticapitalistas que (no) se constituían como su objeto de estudio. En tercer término, la revaloración de lo democrático (guiada por un sentido de la democracia) buscó su tradición en otras épocas más “democráticas” de nuestra historia. Por último, en muchos casos había un componente autobiográfico, puesto que varios académicos habían sido ellos mismos protagonistas de esa historia que no lograba constituirse como objeto de estudio.

Recién en los noventa, dice este autor, comienzan a realizarse estudios valiosos sobre aquellas experiencias. Para eso fue necesario escapar a una lectura de aquel período que ponía en el centro de la escena víctimas despolitizadas. Sin embargo, ese campo de estudios recién está en formación, y si bien logró al menos en parte incorporar la perspectiva de los protagonistas de las militancias setentistas, otro riesgo que debe evitarse es construir relatos demasiados cercanos a aquellas prácticas, porque así se pierde el valor del análisis.

Uso de las fuentes

Como se indicaba al comienzo, Franco y Levín pretenden que la historia reciente se construya como campo legítimo. Para ello es indispensable disputar el sentido de la historiografía con aquellas miradas más positivistas. Se trata de un enfrentamiento con quienes creen en el valor absoluto del documento escrito y subestiman la capacidad heurística de la historia oral. Como se observó antes, tampoco esto supone creer que el relato oral conlleva una verdad indiscutible. En todo caso, cada una de las fuentes tiene sus elementos a favor y otros que juegan en contra. Es necesario destacar que por un lado, su valor depende del tipo de preguntas que se quieran responder, y por el otro, la cercanía con el objeto no implica un problema sin resolución.

Ludmila da Silva Catela, en “Etnografía de los archivos de la represión en Argentina” advierte sobre la equivocación que supone tratar los archivos como la verdad. Los documentos escritos no dicen la verdad en mayor medida que lo hace la historia oral. Por eso el valor de los archivos de la represión no está en ellos mismos, sino en la apropiación que los distintos actores realizan de ellos. Así, diferentes actores los constituyen en territorios de la memoria donde disputan sentidos de la verdad en un proceso dinámico y no exento de conflictos. La autora plantea entonces la necesidad de una utilización no positivista de las fuentes, teniendo en cuenta que tanto en su producción (para este caso los distintos servicios de inteligencia que construyeron los archivos de la represión) como en su posterior uso, lo relevante es la presencia de actores que a través de su utilización disputan sentidos sobre lo social, el pasado y el presente.

El trabajo de Vera Carnovale, “Aportes y problemas de los testimonios en la reconstrucción del pasado reciente”, comparte con el de da Silva Catela la necesidad de evitar el uso positivista de las fuentes. La autora reflexiona en torno a cómo debe utilizarse la historia oral para dar cuenta del pasado. En primer lugar, señala que los relatos orales muchas veces resultan más útiles para comprender el sentido de las prácticas y las subjetividades que para conocer “los hechos”. En segundo lugar, la historia oral, al igual que cualquier otra fuente, requiere de la puesta en diálogo con otros registros a fin de realizar un control sobre su veracidad. En tercer lugar, la autora señala el valor de los relatos orales para dar cuenta de aquello que en el pasado fue reprimido. Lo indecible claramente varía con el paso del tiempo, de allí que en el presente pueda hablarse de cuestiones que en el pasadoresultaba imposible. En el mismo sentido, la historia oral permite desnaturalizar aquello que otrora se les presentaba como natural a los sujetos. Para finalizar, Carnovale no pretende reemplazar lo oral por lo escrito sino hacer un aporte para la mejor utilización de ambos tipos de fuentes, por eso señala que el testimonio a pesar de no ser estadísticamente representativo, sí lo es de determinados procesos y dinámicas que de otro modo son difíciles de conocer por el investigador. Para cerrar este último eje, en línea con lo que dicen las autoras anteriores, aparece el trabajo de Kaufman quien por un lado, pone en cuestión la veracidad de los archivos de la represión; y por el otro, señala que el historiador, quien tiene habitualmente al paso del tiempo como enemigo de sus tareas, carga a su vez con el problema de que esos documentos fueron hechos de modo clandestino y pensados no para trascender sino para pasar al olvido.

El valor de este libro se encuentra en su carácter programático. La posibilidad de desarrollo de esta nueva disciplina se efectivizará en la medida que pueda ir dando cuenta de algunos de los problemas aquí planteados. Lejos de brindar reglas a seguir, los trabajos aquí compilados complejizan la cuestión al tiempo que brindan su aporte para estos nuevos desarrollos. En la medida que la historia reciente vuelva fecundo su vínculo con otras disciplinas y articule de un modo crítico su relación con los actores protagonistas de ese pasado, podrá realizar aportes académicos acordes con el camino señalado por estos trabajos.

Santiago Cueto Rúa – CONICET, CISH-UNLP. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Calle 48 entre 6 y 7, 8vo Piso, Oficina 813. E-mail:santiagocuetorua@yahoo.com.ar

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História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história – Durval M. Albuquerque Jr.

Era de profissão encantador de palavras.

Manoel de Barros[1]

Durval Muniz de Albuquerque Júnior é de profissão historiador, o que não o impede de ser também um ‘encantador’ de palavras. História. A arte de inventar o passado, seu último livro, é uma coletânea de artigos sobre teoria da história articulados a partir de uma temática central: as diferentes formas de se pensar e de se escrever a história. Tarefa em geral árdua, ela é aqui tratada de modo rigoroso mas, ao mesmo tempo, sem a severidade de quem apenas quer dar lições. Como Michelet, Durval Muniz em vez de simplesmente redigir, escreve.[2] Escrita audaciosa, provocativa, criativa e elegante, não diria, contudo, que ele escreva com uma “linguagem de em dia-de-semana”, como suplica um ‘famigerado’ personagem de Guimarães Rosa.[3] Mas que ele nos conduz para o terreno ‘nebuloso’ e ‘temerário’ da arte literária, disso, não tenho dúvida. Cuidado, historiadores! Durval Muniz, tal como Foucault, é um desses ‘sujeitos’ perturbadores da boa ordem científica, desses que se colocam entre o sono dogmático e a vigília epistemológica ‘só’ para provocar a polêmica.

Prefaciada por um historiador da história, Manoel Salgado Guimarães, que ressalta o papel da obra no conjunto da produção historiográfica brasileira recente e o percurso intelectual do autor, o livro divide-se em três partes: na primeira é discutida a relação entre história e literatura; após, uma seção inteira dedicada à obra de Michel Foucault; e, por fim, uma reunião de artigos variados. Esses textos, quase todos curtos — o que não subtrai sua capacidade argumentativa —, são antecedidos por uma introdução na qual Durval Muniz procura problematizar e inserir no contexto contemporâneo a noção-chave do título — ‘invenção’: “A História possui objetos e sujeitos porque os fabrica, inventa-os, assim como o rio inventa o seu curso e suas margens ao passar. Mas estes objetos e sujeitos também inventam a história, da mesma forma que as margens constituem parte inseparável do rio, que o inventa”, explica-nos ele com auxílio de uma analogia baseada em conto das Primeiras estórias.[4]

Ainda nessa parte introdutória, o autor debruça-se sobre outros aspectos relacionados à questão, entre os quais a divisão artificial entre a perspectiva cultural e a social. Eu gostaria de chamar atenção, entretanto, para uma outra dimensão que pode passar desapercebida em uma primeira ou rápida leitura: a da ‘evidência’ da história; ‘evidência’, palavra mais próxima da retórica e da filosofia que da história. Para Durval Muniz a idéia de que “os fatos se impõem ao historiador como evidência” é uma falácia, na medida em que ele dissimula o trabalho de construção não apenas do documento histórico mas também da própria escrita da história (p.32, 35). O autor inscreve-se assim em um momento reflexivo que a própria disciplina vem atravessando na última década, como bem demonstra um livro recente de François Hartog, cujo objetivo também é o de questionar a suposta evidência da história.[5]

Os artigos que compõem a primeira parte podem ser lidos como uma tentativa de fraturar a clássica oposição entre literatura e história. O autor busca dissolver a certeza manifesta do ‘evidente’ desencontro entre literatos e historiadores: “meu objetivo não será separar a História da Literatura, não será encontrar seus limites e suas fronteiras, mas articulá-las, pensar uma com a outra” (p.44). De Clarice Lispector, passando pela hilária dupla Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, pelo sisudo Kafka, chegando ao desconcertante poeta Manoel de Barros, Durval Muniz atinge plenamente seu propósito: ele os articula e os pensa, e de forma extremamente inovadora. Não imaginemos, entretanto, que estejamos diante de um “culto ao texto”, isto é, que nada existiria fora dele, que a realidade textual seria a promotora incontestável de toda a revelação e verdade sobre as coisas pretéritas.[6] Um estudo sobre os diferentes modos de os historiadores servirem-se da linguagem não significa, necessariamente, a queda em perspectivas negadoras da possibilidade do conhecimento.[7]’Inventar’ e ‘imaginar’ são verbos que fazem parte das metodologias silenciosas, ou silenciadas, da historiografia: “a interpretação em História é a imaginação de uma intriga, de um enredo para os fragmentos de passado que se têm na mão”, todavia, ressalva importante, “isto não significa esquecermos nosso compromisso com a produção metódica de um saber, com o estabelecimento de uma pragmática institucional, que ofereça regras para a produção deste conhecimento, pois não devemos abrir mão também da dimensão científica que o nosso ofício possa ter” (p.63-64). O autor chega mesmo a falar nos limites impostos pelo “nosso arquivo” (o pronome possessivo preserva a primeira parte, enquanto o arquivo preserva a segunda; p.64). Trata-se de uma resposta prévia à provável objeção de um pós-modernismo-relativista do qual devemos manter as crianças afastadas? Talvez. O certo é que Durval Muniz sabe ser doutor quando quer. Mesmo optando em situar sua produção em um discurso sobre a pós-modernidade (sinceramente não sei qual razão o leva para esse debate, ainda um embate de grandes narrativas, que visam mais desqualificar o outro do que contribuir para um entendimento sociocultural do mundo em que vivemos), o autor deixa claro que não rompeu com os princípios da ‘operação historiográfica’ de um autor que lhe é caro, Michel de Certeau.[8]

Consagrada aos trabalhos de Foucault, a parte seguinte do livro é composta de seis capítulos. No primeiro desses estudos, o autor nos apresenta um estudo comparativo entre o Menocchio de Ginzburg e o Rivière de Foucault. Através de uma consistente crítica ao historiador italiano, Durval Muniz demonstra como seu personagem “termina se explicando pelo contexto mesmo em toda sua singularidade”, enquanto no dossiê organizado por Foucault acerca de Rivière a preocupação não é a de explicar suas palavras e os atos, “mas como estas palavras e estes atos foram silenciados” (p.105). O capítulo seguinte tem por objetivo analisar a obra de Foucault, de certa forma, à luz do próprio Foucault, quer dizer, como suas pesquisas relacionam-se com sua existência, com seus costumes, de onde o autor extrai a idéia nietzschiana de que o pensamento do francês deve ser mais do que discutido, usado. A reflexão seguinte relaciona-se à noção de experiência em Foucault confrontada àquela de Edward Thompson. Para Durval Muniz, enquanto o filósofo evita essencializar as experiências históricas ao negar-lhes um caráter tão-somente fundante, o historiador inglês as limita, em última instância, a serem efeitos fundacionais das classes sociais. Os dois estudos que se seguem procuram analisar, sempre a partir de Foucault, a questão do objeto em história, e a importância do ‘jogo’ na história (o exemplo explorado pelo autor não podia ser mais apropriado: o futebol) e sua correlata desconsideração pela historiografia como resultado de uma luta de poder.[9] Por fim, uma homenagem a Foucault, um homem que “morreu de rir”, dele (da doença que o vitimou, por exemplo) e dos outros, sobretudo dos poderes instituídos (p.193).

Destacaria, nos ensaios esparsos, a crítica de Durval Muniz à história oral. A conversão do oral em escrito, que anula significativamente a manifestação gestual e as emoções do ato de fala, a possível interferência do roteiro e, finalmente, a presença mesma do historiador-entrevistador como personagem da entrevista, são algumas da questões levantadas pelo autor, que não chega a investir em respostas mais aprofundadas. Sua relativa desconfiança (pois não há uma desconsideração pelos avanços realizados por inúmeros pesquisadores nesse campo) em relação às possibilidades da história oral, segundo ele “indefinida entre uma técnica, um método, uma postura teórica”, leva-o a se perguntar: “terá ela conseguido converter a derrota histórica das oralidades para a escritura?”. Não lhe parece: “até porque ela seria um agente infiltrado, que continua em busca dos segredos dos que falam para escrevê-los, tornando-os documentos, inscrevendo-os como monumentos” (p.234). Acredito que mais do que simplesmente provocar os historiadores da história oral, Durval Muniz busque no debate produtivo com esses profissionais respostas às suas inquietações, pois para ele, o que temos no final é “a reafirmação do poder dos que escrevem, dos que dominam a escrita sobre os que falam, os que apenas verbalizam seus conhecimentos, suas experiências. A história é mais um artefato que reafirma a dominação dos que escrevem sobre os que falam” (p.233). Convenhamos, não é todo sujeito com o dom da escrita que reconhece isso…

Finalmente, tentando não deixar passar em branco aquele que, em minha opinião, é o texto mais sensível e poético de Durval Muniz neste livro, sua homenagem a um grande amigo,[10] eu me permito uma ‘invenção’ (como os discursos de Tucídides!), ainda que parcial:

Paris, maio de 1961: “Para falar da loucura seria preciso ter o talento de um poeta”, conclui Michel Foucault depois de deslumbrar o júri e a platéia com a brilhante apresentação de seu trabalho. “Mas o senhor o tem”, responde Georges Canguilhem. Campinas, abril de 1994: “Para falar da invenção do Nordeste brasileiro seria preciso ter o talento de um poeta”, assim Durval Muniz de Albuquerque Júnior poderia ter concluído a exposição inicial de sua tese, e Alcir Lenharo, seu orientador, poderia ter respondido: “Mas o senhor o tem”. E quem poderia afirmar o contrário?[11]

Notas

1. BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 2007. p.17.         [ Links ]

2. BARTHES, Roland. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984. p.244-245.         [ Links ]

3. ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: J. Oympio Ed., 1981. p.11.         [ Links ]

4. ALBUQUERQUE Jr., 2007, p.29; ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”, em ROSA, 1981, p.27-32.         [ Links ]

5. HARTOG, François. Évidence de l’histoire. Ce que voient les historiens. Paris: Éd. de l’EHESS, 2005.         [ Links ]

6. FAYE, Jean Pierre. Théorie du récit, 1972, p.130,         [ Links ]citado em HARTOG, François. Le miroir d’Hérodote. Essai sur la représentation de l’autre. Paris: Gallimard, 1991. p.321.         [ Links ]

7 É o caso do trabalho de R. Koselleck, assim definido por Hayden White: a “história da historiografia, na visão de Koselleck, é a história da evolução da linguagem dos historiadores”. WHITE, H. Foreword. In: KOSELLECK, R. The practice of conceptual history. Stanford: Stanford University Press, 2002. p.XIII.         [ Links ]

8. CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.63-120.         [ Links ]

9. “Chega de ensaios racionalistas que, como diria Nietzsche, mal escondem o seu rancor e sua demagogia”. CERTEAU, 1975, p.178.

10. “Íntimas histórias: a amizade como método de trabalho historiográfico”, ibidem, p.211-217.

11. ERIBON, Didier. Michel Foucault. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.117;         [ Links ]ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999. p.9.         [ Links ]

Temístocles Cezar – Pesquisador do CNPq – Depto. de História — Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Av. Bento Gonçalves, 9500 – CP 91501-970. 91509-900 Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: t.cezar@ufrgs.br


ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007. 256p. Resenha de: CEZAR, Temístocles. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55  jan./jun. 2008. Acessar publicação original [IF].

Um historiador fala de teoria e metodologia, ensaios | Ciro Flamarion Cardoso

São poucos os historiadores brasileiros que podem apresentar uma produção tão rica e diversificada quanto o professor Ciro Flamarion Cardoso. Parte de sua vida foi vivida fora do Brasil, à época da ditadura militar e, contudo a sua presença foi marcante na formação de uma geração que leu e refletiu o Métodos da História, seus escritos sobre o trabalho escravo na antiguidade e Uma Teoria da História. Em suas obras nota-se uma constante critica à pequena importância que o estudo da filosofia tem recebido na formação dos historiadores no Brasil. Essa preocupação teórica o levou a refletir, com outros autores, em Caminhos da História.

Após os eventos do final dos anos oitenta, ocorreu a debandada dos historiadores para fora dos caminhos da interpretação marxista da história. Ciro Flamarion é um dos raros que mantém a sua adesão àquele método de estudo, àquela filosofia explicativa da história. Assim, não surpreende a edição desses ensaios, produzido ao longo de doze anos, resultado de suas reflexões e perplexidades, advindas de sua prática docente.

Pouco avesso aos salameques e ao culto das novidades por serem novidades, o autor de Um Historiador fala de teoria e metodologia, continua fiel ao viés fundamental de sua obra. Ciro nos mostra como ele continua capaz de dialogar com o mundo e apresenta o marxismo como ainda capaz de dar conta da complexidade que estudos setoriais não conseguem, segundo ele, enfrentar plenamente.

Dividido em quatro partes, o livro organiza didaticamente os grandes temas que estudos históricos enfrentam atualmente. Na primeira parte, composta por dois capítulos, o Autor dedica-se a debater as novas perspectivas e compreensão do Tempo e do Espaço para a História, dedicando um capítulo para o debate sobre a construção do espaço, nesses novos tempos em que as realidades parecem estar cada vez compressas e em que os limites geográficos, definidos matemática e geometricamente no final do século XIX, mostram-se ineficazes para a compreensão das políticas atuais dos países e estados.

A segunda parte é dedicada ao acompanhamento do debate epistemológico atual, com destaque especial ao anti-realismo do pensamento histórico contemporâneo e sobre a influência negativa que o Autor entende que as teorias do conhecimento exercem na atual produção histórica no Brasil. Talvez seja a sua adesão incondicional ao marxismo que o impeça de olhar com maior simpatia a atual produção vinda dos programas de pós-graduação das universidades, talvez muito ávidas por aceitar as novidades conseqüentes das contradições européias, aceitas sem o respaldo de um estudo filosófico que seja capaz de assumir as novas tendências sem superar simples macaqueação própria do novidadeirismo.

A terceira parte é dedicada à reflexão do pensamento histórico e ao debate historiográfico contemporâneo. Embora instigante, essa parte pode ser apontada como frustrante por limitar esse debate apenas até os anos trinta. Esperava-se mais, na reflexão sobre a atual produção, essa que vem desde a segunda metade do século. Mas, talvez, com esse enorme hiato, o autor queira nos dizer que não ocorreu ainda uma real e nova interpretação da história brasileira, nem universal, além daquelas que foram apresentadas nas primeiras décadas do século XX, pouco importando que seja uma história produzida nos limites do Brasil ou além deles. Seria isso produzido pela quebra dos paradigmas, pela queda física, antes da metáfora, do muro que separavam as duas maiores experiências políticas ideológicas do século findo há quase uma década, ou a duas décadas, como quer um outro historiador marxista, Eric Hobsbawm. Interessante capítulo, desta parte, é quando nosso Autor quase se transforma em perscrutador do futuro ao discorrer sobre “que história convirá ao século 21” e reflete sobre como a crise dos paradigmas, o cultivo quase niilista da dúvida permanente e da certeza de que só a dúvida existe pode levar os historiadores a perder a perspectiva, atolando-se nos mais diversos solipsismos.

A parte quarta desse livro é dedicada a debater questões mais setorizadas tanto quanto à teoria quanto ao método histórico. No nono capítulo estão abordadas questões atuais no debate sociológico, político e histórico, referindo-se mais diretamente às questões étnicas, tão pungentes e atraentes numa globalização na qual para não se tornarem massas liquidas, voltam-se a paradigmas pré-modernos vestidos em vistosas roupagens pós-modernosas, escondendo nas colorações cintilantes, ranços de racismos que podem fazer retornar com mais tragicidade situações aparentemente vencidas em meados do século XIX. Capítulo muito interessante é o dedicado à chamada História das Religiões, uma quase ciência e uma quase teologia, ou uma teologia que não quer dizer-se como tal. Para ele muitos dos que se dizem historiadores das religiões, deixaram-se seduzir pelos mistérios que atraem os crentes, esquecendo-se dos problemas que são os verdadeiros interesses do historiador, do cientista. Ao crente basta a admiração e contemplação da verdade religiosa, ao historiador a admiração serve apenas de pretexto para iniciar a busca do entendimento de porque homens e mulheres, em determinados tempos e lugares, criaram sistemas e necessitaram afirmar que esses sistemas foram doados gratuitamente por alguma entidade não humana, mas superior aos homens e mulheres Tais adesões à pseudociência História das religiões só é possível pela negativa em abordar os problemas humanos a partir de sua materialidade.

A leitura dos Ensaios contidos em Um historiador fala de teoria e metodologia é interessante àquele que já se encontra na militância da história, seja como professor apenas, seja como professor, pesquisador e historiador. Para os que estão iniciando-se nos afazeres do historiador, essa é uma leitura obrigatória. Nela ocorrerá o encontro com um permanente estudioso da história, e um constante enamorado pelas criações dos homens que vivem as contradições das sociedades que criam e na qual vivem.

Severino Vicente da Silva – Professor adjunto, atuante no programa de pós-graduação do Departamento de História da UFPE.


CARDOSO, Ciro Flamario. Um historiador fala de teoria e metodologia, Ensaios. Bauru, SP: Edusp, 2005. Resenha de: SILVA, Severino Vicente da. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 262-265, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

 

Método Histórico – FREITAS (BC)

BIBLIOGRAFIA Comentada explora problemas de método da pesquisa histórica e divergentes concepções de crítica historiográfica, sobretudo, entre os historiadores por formação. Foram 20 os livros de Teoria da História e de Metodologia da História publicados nos últimos 10 anos. Livros autorais, como os de Jörn RÜSEN e Keith JENKINS, avaliação de teses autorais, por exemplo, de Walter BENJAMIN e Alun MUNSLOV e coletâneas individuais ou coletivas, produzidas por Jurandir MALERBA e Julio BENTIVOGLIO. O inventário reúne resenhas publicadas em periódicos de História ou veiculadas pelos domínios da Antropologia, Política, Relações Internacionais e os domínios interdisciplinares da Arquitetura e dos Estudos Feministas.

Paisagens da história. Como os historiadores mapeiam o passado | John Lewis Gaddis

Resenhista

Diogo da Silva Roiz


Referências desta Resenha

GADDIS, John Lewis. Paisagens da história. Como os historiadores mapeiam o passado. Trad. Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus, 2003. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Como os historiadores escrevem a história das sociedades passadas? História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 7, n. 1, p. 217-223, jan./jun. 2007. Acesso apenas pelo link original [DR]

A história escrita: teoria e história da historiografia – MALERBA (VH)

MALERBA, Jurandir (org.) A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto. 2006. Resenha de: MACHADO, Paulo Pinheiro. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 572-573, jul./dez., 2006.

Do texto viemos, ao texto iremos. Sem querer simplificar o atual debate acerca das diferentes abordagens teóricas sobre a história — seja a história do acontecido ou a escrita sobre o acontecido — é difícil encontrar, em língua portuguesa, livro com um balanço equilibrado e atualizado sobre este debate. A publicação de “A história escrita”, obra de um diversificado grupo de historiadores coordenada por Jurandir Malerba chega para preencher este espaço importante para o debate e a reflexão historiográfica, sendo útil a profissionais, pesquisadores e estudantes. Além da atualidade dos temas e abordagens, os autores não deixam de fazer um abrangente balanço dos impasses, crises e contribuições de importantes historiadores do século XX. As trajetórias intelectuais de Benedetto Croce, Marc Bloch, Lucien Febvre, Le Goff, Arnaldo Momgliano e outros importantes historiadores, são analisadas em diferentes textos, o que dá uma interessante unidade ao conjunto do livro.1

Um dos pontos centrais da discussão é o balanço da contribuição do vendaval pós-estruturalista (ou pós-moderno) sobre a forma de se trabalhar a história. As intervenções dos herdeiros intelectuais de Nietzche, sem dúvida, advertiram a nova geração para as precariedades da ciência e deram sério golpe em noções de finalidade e de progresso da história. A contribuição de Hayden White adverte para a importância das formas narrativas, dos tropos e da grande dose de subjetividade presente na historiografia. No entanto, estas contribuições foram muito pouco férteis no sentido de enfrentar os problemas quotidianos dos historiadores. O debate final da obra, entre White e Ginzburg, sobre uma questão-limite, a “veracidade” do holocausto dos judeus na segunda guerra mundial, acaba por levantar importantes considerações políticas e morais das concepções mais analíticas dos textos e menos inquiridoras de “indícios” e “provas” do que pode ser considerado como “realidade”.

O ponto mais inovador da coletânea é a necessidade de avaliação, comparação e crítica historiográfica. Estamos acostumados a fazer balanços historiográficos sem critérios muito precisos do que deva ser considerado. Além de considerações aleatórias do “gostar” e do “não gostar” de determinados textos, os autores nos chamam a atenção para a avaliação da excelência de nosso ofício. Deverá o historiador, como Heródoto, ser um hábil escritor para cativar seus leitores com a beleza de sua narrativa? Ou devemos, como Tucídides, despreocuparmos com a beleza e atentarmos para a precisão e utilidade de nosso labor? A eleição de critérios para a avaliação e debate historiográfico depende de escolhas teóricas dos autores. Jurandir Malerba, recuperando Benedetto Croce, lembra que, como a crítica poética critica a “poeticidade”, na crítica historiográfica se avalia a “historicidade”, o que abre caminho para considerar a crítica historiográfica como parte integrante da pesquisa histórica. Uma boa discussão sobre termos comparativos na relação entre historiografia ocidental e oriental encontramos no texto do professor Masayuki Sato, da Universidade de Yamanashi, no Japão. Com ele aprendemos que além de considerações teórico-metodológicas este debate precisa incorporar diferenças culturais, já que a história tem especificidades como ofício em diferentes culturas, além de distintos estatutos públicos. Importante discussão neste sentido é levantada por Jörn Rüsen, da Universidade de Bielefeld, Alemanha, no entanto, seu quadro de periodização do pensamento histórico parece algo excessivamente esquemático e contraditório com a proposta original. Angelika Epple, da Universidade de Hamburgo, em texto muito inteligente, propõe um alargamento das fontes para considerar uma história e historiografia das mulheres, além dos limites acadêmicos, ou seja, abrir para admissão de narrativa histórica textos literários, onde sempre houve forte presença feminina.

Enfim, temos a disposição do público uma coletânea com diferentes aspectos das teorias, das metodologias e das fontes historiográficas que procuram criar pontes de discussão e interlocução entre diferentes tradições historiográficas nacionais.

Nota

1 Além de Jurandir Malerba, publicam nesta obra Angelika Epple, Arno Wehling, Carlo Ginzburg, Frank Ankersmit, Hayden White, Horst Walter Blanke, Jörn Rüsen, Masayuki Sato e Massimo Mastrogregori.

Paulo Pinheiro Machado – Doutor em História pela UNICAMP e professor do Departamento de História UFSC. E-mail: pmachado@mbox1.ufsc.br

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História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade – REIS (VH)

REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. 3ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. Resenha de: DILMANN, Mauro. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 567-571, jul./dez., 2006.

Nesta obra, José Carlos Reis transparece, com erudição, a importância da filosofia e de suas construções teóricas. Nas páginas finais do último artigo, ele ressalta: “Filosofia e história são atitudes complementares – toda pesquisa filosófica é inseparável da história da filosofia e da história dos homens e toda pesquisa histórica implica uma filosofia, porque o homem interroga o passado para nele encontrar respostas para as questões atuais” (p. 240). O livro é uma junção de ensaios do próprio autor, cada um com uma especificidade singular e, ao mesmo tempo, contínua, linear: todos tratam de “teoria da história”. Valendo-se de uma abordagem dos principais parâmetros contemporâneos do contexto historiográfico, Reis interroga, instiga, mostra caminhos, posicionamentos. Seu poder de síntese é invejável: diz muito em tão pouco. Para quem já estava cansado ou mesmo entediado com as discussões sobre verdade, modelos epistemológicos, historicismo, além das que envolvem concepções de tempo histórico e das oposições entre modernidade e pós-modernidade, o autor demonstra que ainda é possível um pensamento crítico e um esforço reflexivo.

No primeiro capítulo, o autor traz a “história da história”, analisando desde a metafísica até a pós-modernidade. A preocupação dos historiadores com a “humanidade universal” e o “sentido histórico” pautam sua análise. Ele quer discutir a passagem modernidade/pós-modernidade e suas possíveis repercussões na historiografia. Começa com os gregos, que não teriam construído a idéia de “humanidade universal”, tendo sido formulada com os romanos. Com o Cristianismo, a história esteve dominada pela Providência Divina e o futuro dependia da fé. A partir do século XIII ele perde sua força e surge uma outra representação da história: a “modernidade” e sua busca da racionalização.

A modernidade trouxe uma nova consciência do sentido histórico, uma nova representação da temporalidade histórica e, com ela, o mundo se fragmentou em valores distintos. O espírito capitalista (entenda-se burguês) é moderno, desencantado, secularizado, racional, tenso.

No século XVIII retorna a idéia de história universal. Pensa-se em direitos universais. Nesse momento, a modernidade através das filosofias da história recolocaria à história a questão do sentido histórico: é o desenvolvimento do processo de progresso, revolução, utopia; a idéia de história está dominada pelos conceitos de razão, consciência, sujeito, verdade e universal.

No século XIX , a história-conhecimento torna-se científica, o conhecimento histórico aspira a objetividade científica, a verdade. A eficácia da história está em servir ao Estado e às instituições da sociedade burguesa. Nietzsche seria o primeiro a romper com o conhecimento histórico científico e, a partir do século XX, aprofundariam-se as críticas, passando-se a recusar o determinismo, o reducionismo e o destino inescapável. A pós-modernidade concretizou-se no pós-1945, não acreditando na razão, pois os sentidos são multiplicados – o universal se pulveriza, fragmenta-se – e a história global é descartada. Os interesses voltam-se ao pequenos dados, aos indivíduos, o olhar em migalhas opera por fatos, biografias, múltiplas narrações: é a desaceleração da história. O estruturalismo aprofundou a revolução cultural pós-moderna, desconfiando do sujeito, da consciência, da revolução, da razão. Para Reis, estamos vivendo a pós-modernidade. O novo ambiente cultural é complexo e ambíguo: os historiadores pensam em rupturas, fragmentação, individualismos em plena globalização. O conhecimento histórico prioriza a esfera cultural, as idéias, os valores, as representações, linguagens, e a história torna-se ramo da estética, aproximando-se da arte, da literatura, do cinema, da fotografia, da música.

No segundo capítulo, Reis procura fazer um balanço das possíveis perdas e/ou dos possíveis ganhos do percurso da história do “global” às “migalhas”. Para tal, segue os pressupostos de François Dosse, o crítico francês dos Annales que destacou a descontinuidade presente nos “seguidores” dos “pais fundadores”. Para conseguir um balanço entre perdas e ganhos, Reis conceitua história global e história em migalhas. História global teria dois sentidos: “história de tudo” e “história do todo”. O primeiro sentido seria entendido por “tudo é história”, o segundo seria a intenção de apreender o “todo” de uma época. Este último sentido não teve espaço na terceira geração dos Annales. Já as migalhas, podem significar a multiplicação dos interesses e das curiosidades históricas; a fragmentação, a especialização extrema, a desarticulação dos tempos históricos. Ou, no sentido otimista, as migalhas significaram o amadurecimento do projeto inicial; a história escrita no plural, múltipla, que analisa partes da realidade global. Por fim, nosso autor faz uma enumeração riquíssima em termos de prós e contras dessa passagem do global às migalhas, colocando-se no lugar de quem avalia uma perda ou um ganho.

O terceiro capítulo, intitulado A especificidade lógica da história, levanta questões que colocariam em dúvida a possibilidade do conhecimento histórico, entre elas: “A história é um conhecimento possível?”. Salienta a importância da reflexão teórica problematizante, alertando sobre a impossibilidade de ser historiador sem tomar o conhecimento histórico como problema. A questão a ser pensada seria a existência de um conhecimento histórico reconhecível. Esse conhecimento talvez estivesse na recusa da ficção. Nessa luta contra a ficção, a história aproxima-se da ciência. Quanto a possibilidade de história científica, José Reis apresenta quatro modelos: nomológico, compreensivo, conceitual e narrativo. O modelo nomológico, centrado em Hempel, defende a unidade da ciência, as explicações causais; é um modelo neopositivista, que busca encontrar leis gerais, da mesma forma que as ciências naturais. O modelo compreensivo tem dois expoentes: Dilthey e seu método da compreensão e interpretação das ciências do espírito, e Weber com uma visão racionalista da compreensão. A sociologia compreensiva busca interpretação da conduta humana; para compreender, pode-se construir o “tipo ideal” de uma ação racional. Para Reis, Weber ainda sustenta uma visão racional da história. O modelo conceitual está baseado na história científica weberiana: ela é racionalmente conduzida, fundamentada na compreensão e em conceitos. A compreensão e subjetividade incluídas na história não abdicariam a abordagem científica da mesma, presentes através de tipos e conceitos. Paul Veyne, com influência weberiana também defendeu a história conceitual, que para ele estaria entre a ciência e a filosofia.  Para o Veyne de O Inventário das diferenças, a história conceitual seria científica porque oferece uma inteligibilidade comparativa. Já o Veyne de “Como se escreve a história”, tem a história como “narrativa verdadeira”, mas não científica. François Furet, também influenciado por Weber – e Reis salienta que os Annales “parecem dever mais a Weber do que querem admitir” – percebe a história como oscilação entre arte da narração, inteligência do conceito e rigor das provas, mas não como ciência. Por fim, no modelo narrativo e atual (alguns autores sustentam que o discurso histórico sempre foi narrativa), espera-se uma relação mais estreita com o vivido, o tempo, os homens. A história-problema entrou em crise por afastar-se dos homens e negar a temporalidade. Para Veyne, a história é uma narrativa que explica enquanto narra, é compreensão, é atividade intelectual. Paul Ricoeur esclarece a estrutura de uma nova narrativa histórica, lógica e temporal, ou seja, temporalidade e a narratividade se reforçam. Ricoeur defende o primado da compreensão narrativa em relação à explicação, sendo a narrativa histórica uma representação construída pelo sujeito, que se aproxima da ficção e retorna ao vivido. A história, em última análise é a narrativa do tempo vivido.

No quarto capítulo, Reis discute as posições da verdade sobre o conhecimento histórico. Os céticos em relação à história fazem várias objeções à possibilidade da objetividade e verdade em história, entre elas estaria o fato desse conhecimento estar ligado ao presente (que sempre reinterpreta o passado), à subjetividade, à compreensão e à intuição; ainda ao fato de não produzir explicações causais, de ser conhecimento indireto do passado, de utilizar a mesma linguagem da ficção, de utilizar fontes lacunares, de ser interpretação e construção de um sujeito e ter o conhecimento pós-evento. O conhecimento objetivo seria aquele válido para todos, universal, analítico, problematizante, necessário. Para Reis não há razão para o ceticismo. Ele cita Koselleck, para quem a história precisa sustentar duas exigências: produzir enunciados verdadeiros e admitir a relatividade. Na tentativa de indicar posições para o alcance da verdade histórica, Reis busca as teses de alguns autores. Divide-os em realistas metafísicos e nominalistas. Começando pelos primeiros, tem-se que para Ranke a história produziria verdade através do método crítico. Nesse sentido o sujeito não se anula, apenas se esconde, se autocontrola. Weber não vê a possibilidade de abordar o real em si, apenas aspectos, partes. O sujeito divide-se em esferas lógicas autônomas. Duas subjetividades buscam a verdade, que é conhecimento empírico. Em Marx, o sujeito deve assumir sua subjetividade. A verdade não é universal, mas de um grupo social. O conhecimento histórico produzido é objetivo, mas parcial, relativo, pois o historiador precisa tomar partido. Para Ricoeur, a verdade é traduzida pelo sujeito de forma comunicável a partir de uma objetividade que exige a presença da subjetividade. Na mesma direção, Marrou declara ser a objetividade histórica, específica, subjetiva, através de valores éticos universais. Todos procuram critérios universais para a verdade, todos são construções totalizantes da verdade histórica. Nos nominalistas, a subjetividade é plena, o universal é impensável. Em Foucault a verdade é construção de um sujeito particular e expressa relações de poder: essas relações criam linguagens e saberes para se legitimarem. Michel de Certeau tem a história como fabricação do historiador, um discurso que emerge de uma prática e de um lugar institucional e social. Duby assume a história subjetiva, que estaria próxima da literatura e do cinema, onde a imaginação e o sonho não são proibidos. Por fim, Koselleck sustenta a verdade histórica caleidoscópica, se relaciona com a história da história, examina a historiografia anterior. O passado é selecionado, reconstruído em cada presente. Reis conclui esse capítulo ressaltando que a verdade histórica é obtida com exame exaustivo do objeto, com todas as leituras possíveis.

O quinto capítulo traz a discussão sobre o tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e nos Annales. O historiador tem interesse no temporal, na alteridade humana, não deseja conhecer o que está fora do tempo, o que não muda, deseja sim, conhecer a mudança, logo o tempo da história seria um terceiro tempo. Para Ricoeur, o tempo histórico refere-se à vida humana e o calendário é indispensável, pois é ele que numera e em cada marca dessa numeração existiu um homem individual (social). Outro conceito é o de geração, trata-se de vida compartilhada. O tempo histórico representa permanência de gerações e seqüência de gerações. A terceira conexão são os vestígios, os arquivos, pois as gerações deixam sinais, marcas, que são buscadas pelo historiador. Koselleck critica o conceito de tempo calendário, mas não o descarta, advertindo para o conhecimento interior do mundo humano, a idade interna de uma sociedade, ou seja, a relação estabelecida entre seu passado e seu futuro. Na perspectiva dos Annales, o tempo histórico é estrutural – influência das Ciências Sociais que compreendiam o tempo como “estrutura social” – existindo a recusa da mudança, em favor do modelo, da quantidade, da permanência. A influência foi o aparecimento na história do mundo mais durável, mais estrutural (estruturas econômicas, sociais, mentais), de movimentos lentos, com desaceleração das mudanças, e é justamente o conceito de “longa duração” que permitiu maior consistência ao terceiro tempo do historiador.

O sexto e último capítulo é dedicado à contribuição de Dilthey para a história, que, aliás, é considerado como o pensador que “redescobriu a história”. Dilthey é associado ao historicismo, embora seja difícil enquadrá-lo em algum rótulo. Ele estaria entre um historicismo romântico e um epistemológico por buscar compreender o homem enquanto ser histórico, compreender a alteridade e todos os aspectos da vida de um povo; a história em Dilthey é mudança e o que permanece é compreensão, comunicação entre homens diferentes, sendo o homem “experiência vivida” e a verdade, o processo histórico.

No contexto do século XIX, Dilthey apontou o caminho da história, da vida, tendo por missão da história “apreender o mundo dos homens através do estudo das suas experiências no passado” (p. 241). Reis diz que em Dilthey filosofia e história estão unidas. Talvez esse fato tenha cativado nosso autor a ponto de despertar tanto seu interesse por Dilthey.

De fato, Reis cativa o leitor com sua narrativa, sua exposição, sua paixão pela teoria. Este livro é mais uma referência obrigatória a todos que se preocupam em pensar o papel da teoria na contemporaneidade; ele incita os historiadores ao conhecimento dos paradigmas atuais das ciências sociais. Se José Reis pretendia com este livro, “fazer circular, renovar, estimular e transmitir cultura” (p. 13), parece-nos que ele conseguiu!

Nota

1 Resenha publicada originalmente na revista eletrônica CANTAREIRAS, da Universidade Federal Fluminense.

Mauro Dilmann 1 – Mestrando em História UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS. E-mail:  maurodillmann@terra.com.br

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[DR]

 

História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade | José Carlos Reis

Nesta obra, José Carlos Reis transparece, com erudição, a importância da filosofia e de suas construções teóricas. Nas páginas finais do último artigo, ele ressalta: “Filosofia e história são atitudes complementares – toda pesquisa filosófica é inseparável da história da filosofia e da história dos homens e toda pesquisa histórica implica uma filosofia, porque o homem interroga o passado para nele encontrar respostas para as questões atuais” (p. 240). O livro é uma junção de ensaios do próprio autor, cada um com uma especificidade singular e, ao mesmo tempo, contínua, linear: todos tratam de “teoria da história”. Valendo-se de uma abordagem dos principais parâmetros contemporâneos do contexto historiográfico, Reis interroga, instiga, mostra caminhos, posicionamentos. Seu poder de síntese é invejável: diz muito em tão pouco. Para quem já estava cansado ou mesmo entediado com as discussões sobre verdade, modelos epistemológicos, historicismo, além das que envolvem concepções de tempo histórico e das oposições entre modernidade e pós-modernidade, o autor demonstra que ainda é possível um pensamento crítico e um esforço reflexivo.

No primeiro capítulo, o autor traz a “história da história”, analisando desde a metafísica até a pós-modernidade. A preocupação dos historiadores com a “humanidade universal” e o “sentido histórico” pautam sua análise. Ele quer discutir a passagem modernidade/pós-modernidade e suas possíveis repercussões na historiografia. Começa com os gregos, que não teriam construído a idéia de “humanidade universal”, tendo sido formulada com os romanos. Com o Cristianismo, a história esteve dominada pela Providência Divina e o futuro dependia da fé. A partir do século XIII ele perde sua força e surge uma outra representação da história: a “modernidade” e sua busca da racionalização.

A modernidade trouxe uma nova consciência do sentido histórico, uma nova representação da temporalidade histórica e, com ela, o mundo se fragmentou em valores distintos. O espírito capitalista (entenda-se burguês) é moderno, desencantado, secularizado, racional, tenso.

No século XVIII retorna a idéia de história universal. Pensa-se em direitos universais. Nesse momento, a modernidade através das filosofias da história recolocaria à história a questão do sentido histórico: é o desenvolvimento do processo de progresso, revolução, utopia; a idéia de história está dominada pelos conceitos de razão, consciência, sujeito, verdade e universal.

No século XIX , a história-conhecimento torna-se científica, o conhecimento histórico aspira a objetividade científica, a verdade. A eficácia da história está em servir ao Estado e às instituições da sociedade burguesa. Nietzsche seria o primeiro a romper com o conhecimento histórico científico e, a partir do século XX, aprofundariam-se as críticas, passando-se a recusar o determinismo, o reducionismo e o destino inescapável. A pós-modernidade concretizou-se no pós-1945, não acreditando na razão, pois os sentidos são multiplicados – o universal se pulveriza, fragmenta-se – e a história global é descartada. Os interesses voltam-se ao pequenos dados, aos indivíduos, o olhar em migalhas opera por fatos, biografias, múltiplas narrações: é a desaceleração da história. O estruturalismo aprofundou a revolução cultural pós-moderna, desconfiando do sujeito, da consciência, da revolução, da razão. Para Reis, estamos vivendo a pós-modernidade. O novo ambiente cultural é complexo e ambíguo: os historiadores pensam em rupturas, fragmentação, individualismos em plena globalização. O conhecimento histórico prioriza a esfera cultural, as idéias, os valores, as representações, linguagens, e a história torna-se ramo da estética, aproximando-se da arte, da literatura, do cinema, da fotografia, da música.

No segundo capítulo, Reis procura fazer um balanço das possíveis perdas e/ou dos possíveis ganhos do percurso da história do “global” às “migalhas”. Para tal, segue os pressupostos de François Dosse, o crítico francês dos Annales que destacou a descontinuidade presente nos “seguidores” dos “pais fundadores”. Para conseguir um balanço entre perdas e ganhos, Reis conceitua história global e história em migalhas. História global teria dois sentidos: “história de tudo” e “história do todo”. O primeiro sentido seria entendido por “tudo é história”, o segundo seria a intenção de apreender o “todo” de uma época. Este último sentido não teve espaço na terceira geração dos Annales. Já as migalhas, podem significar a multiplicação dos interesses e das curiosidades históricas; a fragmentação, a especialização extrema, a desarticulação dos tempos históricos. Ou, no sentido otimista, as migalhas significaram o amadurecimento do projeto inicial; a história escrita no plural, múltipla, que analisa partes da realidade global. Por fim, nosso autor faz uma enumeração riquíssima em termos de prós e contras dessa passagem do global às migalhas, colocando-se no lugar de quem avalia uma perda ou um ganho.

O terceiro capítulo, intitulado “A especificidade lógica da história”, levanta questões que colocariam em dúvida a possibilidade do conhecimento histórico, entre elas: “A história é um conhecimento possível?”. Salienta a importância da reflexão teórica problematizante, alertando sobre a impossibilidade de ser historiador sem tomar o conhecimento histórico como problema. A questão a ser pensada seria a existência de um conhecimento histórico reconhecível. Esse conhecimento talvez estivesse na recusa da ficção. Nessa luta contra a ficção, a história aproxima-se da ciência. Quanto a possibilidade de história científica, José Reis apresenta quatro modelos: nomológico, compreensivo, conceitual e narrativo. O modelo nomológico, centrado em Hempel, defende a unidade da ciência, as explicações causais; é um modelo neopositivista, que busca encontrar leis gerais, da mesma forma que as ciências naturais. O modelo compreensivo tem dois expoentes: Dilthey e seu método da compreensão e interpretação das ciências do espírito, e Weber com uma visão racionalista da compreensão. A sociologia compreensiva busca interpretação da conduta humana; para compreender, pode-se construir o “tipo ideal” de uma ação racional. Para Reis, Weber ainda sustenta uma visão racional da história. O modelo conceitual está baseado na história científica weberiana: ela é racionalmente conduzida, fundamentada na compreensão e em conceitos. A compreensão e subjetividade incluídas na história não abdicariam a abordagem científica da mesma, presentes através de tipos e conceitos. Paul Veyne, com influência weberiana também defendeu a história conceitual, que para ele estaria entre a ciência e a filosofia. Para o Veyne de “O Inventário das diferenças”, a história conceitual seria científica porque oferece uma inteligibilidade comparativa. Já o Veyne de “Como se escreve a história”, tem a história como “narrativa verdadeira”, mas não científica. François Furet, também influenciado por Weber – e Reis salienta que os Annales “parecem dever mais a Weber do que querem admitir” – percebe a história como oscilação entre arte da narração, inteligência do conceito e rigor das provas, mas não como ciência. Por fim, no modelo narrativo e atual (alguns autores sustentam que o discurso histórico sempre foi narrativa), espera-se uma relação mais estreita com o vivido, o tempo, os homens. A história-problema entrou em crise por afastar-se dos homens e negar a temporalidade. Para Veyne, a história é uma narrativa que explica enquanto narra, é compreensão, é atividade intelectual. Paul Ricoeur esclarece a estrutura de uma nova narrativa histórica, lógica e temporal, ou seja, temporalidade e a narratividade se reforçam. Ricoeur defende o primado da compreensão narrativa em relação à explicação, sendo a narrativa histórica uma representação construída pelo sujeito, que se aproxima da ficção e retorna ao vivido. A história, em última análise é a narrativa do tempo vivido.

No quarto capítulo, Reis discute as posições da verdade sobre o conhecimento histórico. Os céticos em relação à história fazem várias objeções à possibilidade da objetividade e verdade em história, entre elas estaria o fato desse conhecimento estar ligado ao presente (que sempre reinterpreta o passado), à subjetividade, à compreensão e à intuição; ainda ao fato de não produzir explicações causais, de ser conhecimento indireto do passado, de utilizar a mesma linguagem da ficção, de utilizar fontes lacunares, de ser interpretação e construção de um sujeito e ter o conhecimento pós-evento. O conhecimento objetivo seria aquele válido para todos, universal, analítico, problematizante, necessário. Para Reis não há razão para o ceticismo. Ele cita Koselleck, para quem a história precisa sustentar duas exigências: produzir enunciados verdadeiros e admitir a relatividade. Na tentativa de indicar posições para o alcance da verdade histórica, Reis busca as teses de alguns autores. Divide-os em realistas metafísicos e nominalistas. Começando pelos primeiros, tem-se que para Ranke a história produziria verdade através do método crítico. Nesse sentido o sujeito não se anula, apenas se esconde, se autocontrola. Weber não vê a possibilidade de abordar o real em si, apenas aspectos, partes. O sujeito divide-se em esferas lógicas autônomas. Duas subjetividades buscam a verdade, que é conhecimento empírico. Em Marx, o sujeito deve assumir sua subjetividade. A verdade não é universal, mas de um grupo social. O conhecimento histórico produzido é objetivo, mas parcial, relativo, pois o historiador precisa tomar partido. Para Ricoeur, a verdade é traduzida pelo sujeito de forma comunicável a partir de uma objetividade que exige a presença da subjetividade. Na mesma direção, Marrou declara ser a objetividade histórica, específica, subjetiva, através de valores éticos universais. Todos procuram critérios universais para a verdade, todos são construções totalizantes da verdade histórica. Nos nominalistas, a subjetividade é plena, o universal é impensável. Em Foucault a verdade é construção de um sujeito particular e expressa relações de poder: essas relações criam linguagens e saberes para se legitimarem. Michel de Certeau tem a história como fabricação do historiador, um discurso que emerge de uma prática e de um lugar institucional e social. Duby assume a história subjetiva, que estaria próxima da literatura e do cinema, onde a imaginação e o sonho não são proibidos. Por fim, Koselleck sustenta a verdade histórica caleidoscópica, se relaciona com a história da história, examina a historiografia anterior. O passado é selecionado, reconstruído em cada presente. Reis conclui esse capítulo ressaltando que a verdade histórica é obtida com exame exaustivo do objeto, com todas as leituras possíveis.

O quinto capítulo traz a discussão sobre o tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e nos Annales. O historiador tem interesse no temporal, na alteridade humana, não deseja conhecer o que está fora do tempo, o que não muda, deseja sim, conhecer a mudança, logo o tempo da história seria um terceiro tempo. Para Ricoeur, o tempo histórico refere-se à vida humana e o calendário é indispensável, pois é ele que numera e em cada marca dessa numeração existiu um homem individual (social). Outro conceito é o de geração, trata-se de vida compartilhada. O tempo histórico representa permanência de gerações e seqüência de gerações. A terceira conexão são os vestígios, os arquivos, pois as gerações deixam sinais, marcas, que são buscadas pelo historiador. Koselleck critica o conceito de tempo calendário, mas não o descarta, advertindo para o conhecimento interior do mundo humano, a idade interna de uma sociedade, ou seja, a relação estabelecida entre seu passado e seu futuro. Na perspectiva dos Annales, o tempo histórico é estrutural – influência das Ciências Sociais que compreendiam o tempo como “estrutura social” – existindo a recusa da mudança, em favor do modelo, da quantidade, da permanência. A influência foi o aparecimento na história do mundo mais durável, mais estrutural (estruturas econômicas, sociais, mentais), de movimentos lentos, com desaceleração das mudanças, e é justamente o conceito de “longa duração” que permitiu maior consistência ao terceiro tempo do historiador.

O sexto e último capítulo é dedicado à contribuição de Dilthey para a história, que, aliás, é considerado como o pensador que “redescobriu a história”. Dilthey é associado ao historicismo, embora seja difícil enquadrá-lo em algum rótulo. Ele estaria entre um historicismo romântico e um epistemológico por buscar compreender o homem enquanto ser histórico, compreender a alteridade e todos os aspectos da vida de um povo; a história em Dilthey é mudança e o que permanece é compreensão, comunicação entre homens diferentes, sendo o homem “experiência vivida” e a verdade, o processo histórico.

No contexto do século XIX, Dilthey apontou o caminho da história, da vida, tendo por missão da história “apreender o mundo dos homens através do estudo das suas experiências no passado” (p. 241). Reis diz que em Dilthey filosofia e história estão unidas. Talvez esse fato tenha cativado nosso autor a ponto de despertar tanto seu interesse por Dilthey.

De fato, Reis cativa o leitor com sua narrativa, sua exposição, sua paixão pela teoria. Este livro é mais uma referência obrigatória a todos que se preocupam em pensar o papel da teoria na contemporaneidade; ele incita os historiadores ao conhecimento dos paradigmas atuais das ciências sociais. Se José Reis pretendia com este livro, “fazer circular, renovar, estimular e transmitir cultura” (p. 13), parece-nos que ele conseguiu!

Mauro Dilmann – Mestrando em História pela Unisinos/RS.


REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. Resenha de: DILMANN, Mauro. Cantareira. Niterói, n.9, 2005. Acessar publicação original [DR]

Paisagens da História – Como os historiadores mapeiam o passado | John Lewis Gaddis

A historiografia é abordada como tema nessa obra de John Lewis Gaddis, que consiste em um conjunto de conferências proferidas por ele na Examination Schools em High Street. Influenciado por Marc Bloch e E. H. Carr, o autor discute o papel do historiador e seus métodos, visando a uma complementação e reflexão embasada no pensamento desses autores. Isso é feito de modo interessante e original, com o levantamento de questões – como o objeto de estudo desses profissionais, seu modo de pensar e analisar a realidade – cuja discussão é permeada por exemplos advindos desde a história, até as artes – como a pintura, a literatura e o cinema –, e pelo uso de metáforas; recursos, esses, que facilitam o entendimento e entretêm a leitura.

A discussão se inicia com a análise da pintura O viajante sobre o Mar de Névoa, de Casper David Friedrich, que desencadeia uma reflexão sobre a posição do historiador em relação ao seu objeto. Ele, assim como o personagem do quadro, observa os acontecimentos com o distanciamento que o tempo exige, uma vez que o passado chega até nós inacessível, sendo somente possível sua representação pelos artefatos sobreviventes. Esta pode ser feita sob um prisma mais amplo, quando comparado ao daqueles que viveram a experiência, já que o historiador pode variar entre o geral e o particular, fazendo uso também das diferentes escalas de tempo e espaço, conforme for necessário. Dessa forma, para o autor, o que deve ser buscado é uma abstração, não uma descrição literal dos eventos ocorridos. A história deve ser como um mapa: que simplifica a realidade, destacando aspectos de acordo com o que se pretende compreender e explicar. Leia Mais

A História repensada | Keith Jenkins

Até meados do século XX, a História ainda era muito parecida com as estradas do oeste norte-americano imortalizadas por Hollywood: reta, plana e sem vicinais. Essa estrada chamada positivismo era percorrida com segurança pelos historiadores até seu destino, a verdade. No entanto, novos caminhos surgiram para novos pontos de chegada trazidos pelo que conhecemos como pós-modernismo. As estradas também começaram a ser percorridas por novos transeuntes. É nesse emaranhado viário, ou melhor, paradigmático, de tráfego intenso, que muitos historiadores estão perdidos, tanto os mais jovens, que se sentem obrigados a escolher um dentre vários caminhos, como os mais velhos, que têm dificuldades para percorrer as novas estradas. Nessa situação, ainda que apresente algumas imprecisões e lacunas, A História repensada (Rethinking History) do historiador inglês Keith Jenkins permite aos historiadores se localizarem com mais precisão perante as mudanças provocadas pelo pós-modernismo. Apesar de ter sido publicado em 1991 e traduzido em 2001 – primeiro livro de Jenkins no Brasil -, sua discussão continua pertinente e assim promete continuar por muito tempo. Leia Mais

Os protagonistas anônimos da História: micro-história – VAINFAS (RBH)

VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002. 115pp. Resenha de: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.45, july 2003.

No Brasil, o ensino universitário de história ainda carece de boa bibliografia teórica produzida por autores nacionais, em que pese o número crescente de traduções de especialistas estrangeiros. A boa repercussão alcançada pelo livro Domínios da História (org. Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, Campus, 1997), certamente deve ter estimulado o professor Ronaldo Vainfas a fazer uma nova incursão na área de teoria e metodologia da história. Melhor dizendo, a aprofundar algumas reflexões que deixara encaminhadas ao concluir aquela obra, que nos últimos anos tornou-se referência no ensino da disciplina. Refiro-me ao recém-lançado Os protagonistas anônimos da História: micro-história, onde Vainfas examina esse gênero historiográfico surgido na Itália, a propósito da coleção dirigida por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, denominada Microstorie, publicada pela editora Einaudi, entre 1981 e 1988. Vale lembrar que a micro-história opera com escala de observação reduzida, exploração exaustiva de fontes, descrição etnográfica e preocupação com a narrativa literária. Neste sentido, contempla, sobretudo, temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas — referidas geográfica ou sociologicamente —, às situações-limite e às biografias ligadas à reconstituição de microcontextos ou dedicadas a personagens extremos, geralmente vultos anônimos, figuras que por certo passariam despercebidas na multidão. O certo é que essa corrente historiográfica foi muito mal compreendida, ora tomada como história cultural, ora confundida com a história das mentalidades e com a história do cotidiano. Ou, então, percebida como expressão típica de uma história descritiva, de viés marcadamente antropológico, que renunciou ao estatuto científico da disciplina, invadiu o território da literatura, rompendo de vez as fronteiras da narrativa histórica com o ficcional. Não seria exagero afirmar que ainda hoje a micro-história carrega o estigma de história menor, atacada principalmente pelos defensores dos modelos macrossociais de análise. Mas, como afirma Hans Medick, rebatendo tais críticas, se small is beautiful isto não significa banalizar a história, nem desconectá-la de contextos mais amplos.

Ronaldo Vainfas dispõe-se a desfazer essa intrincada teia de equívocos. E, de fato, alcança seu intento. Assim, no primeiro capítulo, apresenta um panorama da trajetória dos estudos históricos no século XX, detendo-se especialmente na historiografia francesa tributária do movimento de Annales. Dialoga com este quadro conceitual para demonstrar o que a micro-história não é, evidenciando as razões pelas quais a prática microanalítica não pode ser definida apenas em função dos temas de pesquisa, mas sim em relação a seus objetos e às metodologias por ela utilizadas. Desfeito didaticamente o imbroglio, o autor parte para identificar O berço da micro-história (capítulo 2), mostrando as linhagens dessa vertente historiográfica praticada por historiadores italianos, franceses, ingleses e norte-americanos, com ênfase no papel desempenhado pelos italianos e na importância da revista Quaderni Storici e da mencionada coleção Microstorie. Resgatadas as origens teóricas, o autor parte para exemplos concretos. No capítulo terceiro — A micro-história em cena, resume alguns enredos de livros emblemáticos do gênero, a começar pelo clássico O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, seguindo-se de O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zenon Davis; Atos impuros, de Judith Brown, e A herança imaterial, de Geovannni Levi. Essas breves sínteses servem de mote para o exame do modo como se opera a narrativa microanalítica e a discussão das fronteiras que a separam da narrativa ficcional. Em seguida, no capítulo quarto, sugestivamente denominado A micro-história nos bastidores, privilegia o estudo do aparato conceitual empregado pela micro-história, a escolha de temas, a problemática da redução de escala na descrição densa, bem como a delimitação dos objetos de estudo em termos de espaço e de temporalidade. Finalmente, à guisa de conclusão, o professor Vainfas aponta os contrastes entre as abordagens macrossociais e as microanalíticas, discute as possibilidades e os limites de compatibilização entre ambas, oferecendo ainda uma extensa bibliografia comentada, com tudo já que se publicou no País a respeito da microanálise, inclusive trabalhos de historiadores brasileiros que fizeram incursões no gênero.

Longe de fazer proselitismo em defesa do gênero, Vainfas aproxima-se dos encaminhamentos propostos pela historiadora norte-americana Natalie Zenon Davis, um dos ícones da micro-história. Segundo Davis, é inquestionável a natureza complementar dos dois tipos de análise. A tarefa que se impõe aos estudiosos consiste, pois, em investigar métodos de interpretação e de narrativa que possam dar conta no texto escrito do entrecruzamento e das tensões entre o pequeno e o grande, entre o social e o cultural. Ou, que venham a explorar as conexões possíveis entre esses dois níveis de experiência historiográfica, conforme sugere Georg Iggers na sua mais recente contribuição, Historiography in the twentieth century: from scientific objectivity to the postmodern challenge. Seja como for, estudantes e pesquisadores, sem dúvida, irão se beneficiar da leitura dessa obra assentada em sólida argumentação teórica, mas de exposição agradável, repleta de exemplos e de comentários bem-humorados.

Lucia Maria Paschoal Guimarães – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Metahistory. The Histórica, Imagination in Nineteenth-Century Europe / Hayden White

O papel da historiografia na construção social da cultura e, por conseguinte, na conformação da identidade dos integrantes dos respectivos grupos é um tema relevante na reflexão histórica contemporânea.

O ponto fulcral para a contribuição historiográfica ao processo de construção das identidades está no pensamento histórico e nas formas culturais de fixação deste pensamento. Esse tema tem ocupado debates e colóquios pelo mundo afora, além de conduzir a um grande número de publicações, desde a década de 1980.

Destacar e explicar o caráter multifacetado e mutante dos modos de expressão histórica do pensamento identificador da individualidade e da sociedade foi um dos objetivos principais do modelo narrativista inaugurado pelo livro de Hayden White, Metahistory. The Histórica/ Imagination in Nineteenth- Century Europe} Rapidamente essa obra veio a ser considerada como o sinal de uma mudança de paradigma na historiografia contemporânea, com a pretensão de ter superado ingenuidades passadas quanto à isenção metódica da história. A idéia é a de que o pensamento histórico de cada geração (mesmo dentro de uma “mesma” cultura) elabora seu modo próprio de ler e reler seu tempo e seus textos, a exemplo das teorias literárias estruturalistas, semióticas, desconstrutivistas, formalistas, intertextualistas, analíticas do discurso, enfim pós- e até mesmo pós-pós-modernas. O “choque” provocado pela teoria narrativista, ao pôr em evidência os limites da ciência histórica — questão que o paradigma “libertário” do modelo positivista e do seu culto às fontes, em sua influência sobre os modos de fazer história desde meados do século 19, havia amplamente ignorado. Um exagero parece ter acarretado o outro. As reações à teoria de Hayden White foram muitas. Aqui não se busca examinar este debate, mas registrar um de seus efeitos benéficos. A conside ração da diversidade historiográfica como um ganho para a produção do pensamento histórico e de sua inserção cultural em um mundo cada vez mais interativo e interdependente decorre, ao menos em sua valorização recente, deste debate, prevalente nos últimos vinte anos. Não há nisso apenas a (re)descoberta do outro como identidade própria (e não sempre reduzido à do observador ou a ela submetido), mas igualmente uma revalorização do recurso à teoria da história como sistema de equacionamento dos inúmeros fatores que constituem o “objeto” da análise social, inclusive no caso da história.

A coletânea editada por Jôrn Rüsen e Sebastian Manhart, Geschichtsdenken der Kulturen — Eine kommentierte Dokumentation (O pensamento histórico nas culturas — uma documentação comentada, Frankfurt/Main, Alemanha: Humanities On Line, 2002) tem por objetivo imediato abrir acesso, a todos os interessados, aos espaços culturais em que a memória e a narrativa, como constituintes do pensamento histórico, contribuem para a construção das identidades. Os dois primeiros volumes dessa colerânea trazem textos e comentários do espaço sul-asiático: Südasien — Von den A.nfàngen bis %ur Gegenwart (Ásia do Sul — dos primórdios ao presente). Stephan Conermann edita, introduz e comenta a visão muçulmana do século 13 ao século 18 (Die muslimische Sicht, 2002, ISBN 3- 934157-22-X, 350 p.), e Michael Gottíob faz o mesmo com o pensamento moderno da Ásia do Sul, de 1786 até os dias de hoje {Historisches Denken im modernen Südasien, 2002, ISBN 3-934157-23-8, 474 p.). Um terceiro volume encontra-se em preparação, versando sobre poética histórica indiana, a cargo de Georg Berkemer (Vom Rigveda %ur historischen Versdichtung — Hinduismus, Jinismus, Buddhismus und orale Traditionen, 2003, ISBN 3-934157-30-0, 344 p.).

A inspiração culturalista e historiográfica dessa coletânea deve seu impulso principal à teoria crítica da história elaborada por Rüsen,2 desde seu tempo como professor na Universidade de Bochum, mas fundamentalmente nos projetos que dirigiu no Centro de Pesquisa Interdisciplinar da Universidade de Bielefeld (ZiF, Bielefeld, Alemanha) e nos que dirige há quase dez anos no Instituto de Ciências da Cultura (Kulturwissenschaftliches Instituí), em Essen. Rüsen é certamente um dos principais autores contemporâneos de teoria e metodologia da história. Seu diálogo internacional é amplo e sua preocupação com a tarefa esclarecedora do pensamento histórico como fator de resgate da autonomia crítica dos indivíduos e como fator de entendimento multicultural são mundialmente reconhecidos Um dos desafios enfrentados por Rüsen está na forte pressão que o paradigma ocidental da ciência história vem sofrendo, nos últimos anos. Exige- se desse paradigma e de seus praticantes a revisão de seus fundamentos, não apenas por causa dos avanços significativos e da inovações de sua especialidade, mas igualmente pela consciência crescente de que o sistema ocidental de interpretações, predominante até o presente, está sendo cada vez mais posto em cheque pelas tradições historiográficas não-ocidentais, amplamente ignoradas, subestimadas ou menosprezadas. Apesar de o conhecimento das culturas não-européias ter progredido gradualmente — o que se deve também ao fato de que o circuito de influências da globalização produz efeitos reversos sobre os centros de irradiação da pressão econômica, comercial ou culrural — o conhecimento das múltiplas formas não-ocidentais de lidar com o passado ainda continua sendo absorvido de modo apenas superficial, tanto na ciência histórica como no senso comum. A perspectiva da historiografia ocidental continua claramente hegemônica, e até a história da historiografia permanece concentrada na historiografia ocidental desde os gregos (uma espécie de eurocentrismo expandido). Uma provável causa desse déficit cognitivo não se reduzia à mera falta de interesse pelas formas de pensar e de exprimir-se não-ocidentais, mas pode estar nas grandes dificuldades em se ter acesso aos textos básicos dessas culturas. As dificuldades mais freqüentes são duas: a barreira da língua e a inexistência de corpora sistematizados.

A falta de conhecimento acerca da relevância de determinados textos e das relações entre os diferentes gêneros textuais dificulta igualmente a compreensão de seus discursos quando não se está por dentro das respectivas ciências especializadas (por exemplo: sinologia, arabologia, indologia e assim por diante). A diversidade das tradições historiográficas, cujo significado somente se alcança no contexto da respectiva história social, religiosa e discursiva, tampouco vem a ser apreendida e avaliada adequadamente sem a intermediação de especialistas.

A edição comentada de textos “O pensamento histórico das culturas” contribui para diminuir os obstáculos referidos ao estudo dos discursos historiográficos não-ocidentais e para criar um acesso às formas mais representativas do modo de lidar com o tempo, com a lembrança e com a história, fora do âmbito eurocêntrico. A coletânea procura fornecer ao leitor um primeiro panorama de diversos textos de diferentes feituras, de modo a permitir construir uma representação adequada das respectivas tradições historiográficas. O período coberto vai dos primeiros inícios das tradições orais e escritas na forma de lendas religiosas, anais tribais, crônicas da corte ou do Estado, até os textos cada vez mais marcados pelo modelo da historiografia ocidental (ou a ela opostos, a partir de um passado recente).

Os critérios adotados pelo procedimento de seleção têm, obviamente, uma conseqüência inevitável: de um corpus sempre cada vez maior só se pode apresentar uma parte relativamente pequena. Ademais, quase sempre é preciso fazer a primeira tradução na história desses textos em uma outra língua, além de os ordenar e comentar cientificamente. A escolha e o comentário dos textos vão, pois, bem além do âmbito de uma única ciência especializada.

A edição destina-se tanto ao especialista em história ou outras ciências sociais da cultura como aos demais interessados, abrindo-lhes o acesso à história e à cultura das regiões em questão. Até os dias de hoje, não há, em inglês, francês ou alemão, nenhuma coletânea de fontes históricas dessas culturas. Para o público de língua neo-latina, como o leitor do português, a barreira da língua continua, mesmo se forma relativa, na medida em que o alemão não é um idioma correntemente praticado. Mas a barreira diminui, certamente, pois é ainda mais difícil encontrar quem possa ler e comentar textos em mandarim, hindu ou japonês.

O conceito diretor da coletânea, “pensamento histórico”, tem por intenção dar conta do amplo espectro das mais diversas maneiras e práticas de refletir sobre a experiência do tempo, o relacionamento com o tempo e as atribuições de sentido ao passado. A antologia reúne, por conseguinte, além de excertos da historiografia dinástica chinesa e dos discursos mais recentes sobre a especificidade científica da concepção indiana de história desde a independência, inscrições chinesas em ossos de oráculo ou em tablitas indianas, lendas de templos budistas, epopéias persas ou ainda trechos de romances populares árabes. A grande quantidade de gêneros literários, assim como sua classificação e seu comentário permitem apreender a amplitude dos modos de lidar com o passado, fora das tradições que nos são familiares. Pode-se desvelar, assim, a evolução constante de determinados gêneros literários, por vezes ao longo de séculos, e sua diferenciação, influência recíproca e mescla.

Ter colocado lado a lado conteúdos e linhas de tradição diversas permite também elaborar uma primeira representação da complexidade das respectivas culturas e relações sociais, determinantes dos processos de intercâmbio intercultural contemporâneo, no plano regional como global.

O plano geral da obra inclui ainda duas outras coletâneas já em andamento: sobre a China e sobre os países centrais do islamismo. Nas três coletâneas fica claro que a periodização estabelecida pelos autores foge do eurocentrismo, que colocaria o domínio colonial e a independência com marcos delimitadores. As obras procuram inserir-se em referências cronológicas internas aos textos e às culturas em que foram concebidos — embora, obviamente, as datas obedeçam ao calendário gregoriano hoje universalmente praticado na vida civil. Uma vantagem está em que as obras estão disponíveis também em formato eletrônico (www.humanities-online.de). E de se recomendar a todo interessado em abrir seus horizontes e conscientizar-se da diversidade social e cultural do mundo — mais importante talvez do que sua pasteurização “globalizada” — que faça uso dessa(s) coletânea(s), enriquecendo sua própria cultura com o aprendizado dos idiomas que lhes dão acesso — que seja começando pelo alemão.

Notas

1 O edição original, em inglês, foi publicada em 1973 pelajohns Hopkins University Press (Baltimore e Londres). Como em diversos outros países, o livro de H. White só veio a ser traduzido no Brasil em 1992 (EDUSP), omitindo-se no título em português de que se trata da imaginação histórica na Europa do século 19. A polêmica suscitada pela obra talvez explique a opção os editores. Com efeito, Metabistory tornou-se um clássico do assim chamado pensamento pós-moderno acerca da historiografia, a ponto de duas das mais importantes revistas dedicarem números especiais ao tema: History and Tbeory (vol, 19,1980) e Storia delia Storiografta (vols. 24 e 25,1993 e 1994).

2 A Editora da Universidade de Brasília já publicou o primeiro volume da teoria da história de J. Rüsen: Razão Histórica, 2000). Os dois volumes que completam o tríptico deverão ser publicados em 2003.

Estevão C. de Rezende MARTINS – Universidade de Brasília.


WHITE, Hayden. Metahistory. The Histórica/ Imagination in Nineteenth-Century Europe. Johns Hopkins University, 1973; RÜSEN, Jörn; MANHART, Sebastian (Ed.). Geschichtsdenken der Kulturen — Eine kommentierte Dokumentation (O pensamento histórico nas culturas — uma documentação comentada). Frankfurt/Main: Humanities On Line, 2002. Resenha de: MARTINS, Estevão C. de Rezende. Pensamento histórico, cultura e identidade. Textos de História, Brasília, v.10, n.1/2, p.214-219, 2002. Acessar publicação original. [IF]

Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar – CARDOSO; MALERBA (RBH)

CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 288p. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

A organização de uma coletânea voltada para o debate acerca das representações configura um projeto ambicioso, dada a complexidade que o próprio tema encerra. A obra, além de contemplar o necessário equacionamento do conceito, indica diferenciadas tendências teóricas e contribui para o aprofundamento da reflexão no âmbito da pesquisa histórica, sua natureza epistemológica e hermenêutica. Se uma ressalva pudesse ser feita, apontar-se-ia a ausência de uma detida análise sobre as relações entre a história das artes e as representações ¾ um terreno fértil, mas pouco explorado pela historiografia, especialmente no campo das produções pictóricas e da plasticidade.

No seu conjunto, o volume reúne ensaios que, mediante distintas interpretações, apresenta abordagens que enfocam desde as implicações da representação como objeto histórico até a constatação de sua dimensão lingüística na produção historiográfica. Embora aponte os riscos da utilização indiscriminada da noção supracitada e de determinados paradigmas teóricos sem as devidas precauções metodológicas, o trabalho parte do reconhecimento de que a representação tornou-se uma das pedras angulares do discurso histórico contemporâneo e, como tal, procura caracterizar sua índole e função cognitiva.

Entre as contribuições do volume, chama especial atenção a análise do conceito de representação política na esfera da produção historiográfica brasileira, efetuada por Maria Helena Rolim Capelato e Eliana Regina de Freitas Dutra. As autoras reconhecem a multiplicidade das abordagens, objetos e referenciais metodológicos que têm sido alvo das investigações no âmbito do político, todavia advertem que tal fato não deve ser atribuído aos modismos historiográficos passageiros que tendem a privilegiar os estudos voltados para as representações do poder e do exercício político e sua articulação com a vida social brasileira. Muito pelo contrário, esse deslocamento, do ponto de vista das historiadoras, resulta das aberturas epistemológicas e da operacionalidade proposta pelo estruturalismo e pós-estruturalismo. Nesse contexto, a análise proposta volta-se inicialmente para a identificação dos caminhos percorridos pelo conceito de representações, sua dimensão epistemológica e prática no campo das investigações históricas. E, num segundo momento, procura verificar o impacto do mesmo em cerca de uma centena de dissertações de mestrado e teses de doutorado concluídas nos anos 90, no Brasil.

Com o intento de promover um balanço historiográfico dessa produção, a reflexão abarca desde a análise do elenco dos temas abordados1 até o cômputo das fontes utilizadas nos referidos trabalhos2. A incidência de um confronto entre as posturas adotadas nesses trabalhos e os pressupostos teóricos que informaram as produções dos períodos anteriores às analisadas revelou a tentativa desses pesquisadores estabelecerem um exercício de interlocução com as tendências historiográficas internacionais. Se, por um lado, como salientam as autoras, percebe-se que o resultado de tais iniciativas parecem ter-se reduzido a um tratamento descritivo e pouco analítico, que em última instância revelou significativa dificuldade de compreensão do espaço da política. Por outro, a referida pesquisa possibilitou constatar a importância desse novo campo para a historiografia nacional, além da incorporação de novas fontes e objetos.

Não obstante a constatação do esforço dos profissionais brasileiros, torna-se imperioso admitir, segundo Capelato e Dutra, que mesmo os estudos portadores de maior eficácia empírica e metodológica, não conseguem superar as armadilhas inerentes às simplificações e demonstram uma efetiva dificuldade de aprofundamento teórico pertinente aos conceitos formadores da explanação do conhecimento histórico. Tal assertiva fundamenta-se no rastreamento da noção de representação e na instrumentalização do termo associada às teorias semiolingüísticas consolidadas nos anos 60 e vinculadas à lógica das articulações entre linguagem, símbolo, imaginário e representação. Na trilha dos suportes que embasaram teórica e metodologicamente as pesquisas no campo das humanidades, as autoras pontificam os encaminhamentos propostos por destacados pensadores como Marin, Castoriadis, Lefort, entre outros expoentes.

Nessa direção, a proposta de Capelato e Dutra termina intercruzando-se com as inferências implícitas no texto de Francisco J. C. Falcon, que se ocupa prioritariamente da discussão das matrizes teóricas que informam a construção do conceito de representações. Este, por sua vez, apropriadamente, antes de investigar as acepções das representações, propõe-se a pontuar a concepção do discurso histórico mediante a análise de distintas correntes historiográficas, mais precisamente, na perspectiva dos modernos e na dos pós-modernos. De um extremo ao outro, tende a sublinhar o trânsito do conceito: para esses últimos a representação figuraria como negação do conhecimento histórico, enquanto para os primeiros seria reconhecida como parte integrante do próprio discurso da disciplina. Enveredando pelo circunstanciamento dessa problemática no campo da história cultural, Falcon recupera usos e interpretações do conceito na historiografia atual. Assim, termina resgatando etimológica e cognitivamente acepções do termo e do conceito, ocupando-se das articulações entre representações, ideologia e imaginário, e também do mapeamento de algumas das principais obras dedicadas ao tema em questão.

Assim como Falcon, Helenice Rodrigues da Silva empenha-se na recuperação genealógica das representações e seus sentidos na disciplina histórica, debatendo a operacionalidade da noção de representação na esfera da historiografia francesa. Ao procurar acompanhar a trajetória na qual os estudiosos da história cultural e da história política foram atribuindo primazia ao conceito, ao longo da década de 1970, a autora alerta para a necessidade de se relativizar a importância da noção de representação na prática histórica. Nesse horizonte, ressalta que no universo das renovações teóricas e metodológicas processadas nessa área, a história das representações tendeu a firmar-se como complemento e nova orientação da história cultural, uma vez que significou, para os herdeiros da tradição dos Annales, a possibilidade de integração dos atores individuais ao social e histórico. Desse modo, como propõe Roger Chartier, o conceito permitiria a associação entre antigas categorias que a história social, a história das mentalidades e a história política mantinham separadas3. Em síntese, Silva procura evidenciar como a noção de representação, largamente utilizada em disciplinas como a sociologia e a psicologia (entre outras), tendeu a substituir o conceito de mentalidades na pesquisa histórica e de que forma viria a contribuir para a integração dos distintos domínios da disciplina.

Reportando-se às múltiplas facetas que o conceito implica, Ciro Flamarion Cardoso principia sua análise por intermédio de uma tentativa de perceber as motivações que informaram a denominada “virada cultural” na produção histórica da atualidade. Nesse sentido, detecta as implicações de três dos seus desdobramentos na esfera da nova história cultural4. Do seu ponto de vista, essas tendências tenderiam a inverter as premissas estruturais e explicativas do marxismo e dos Annales, terminando por promover a confecção de uma história cultural do social, em detrimento de uma história social da cultura.

Apesar de entender que as representações contribuem para a edificação de uma dada inteligibilidade do passado, Cardoso mostra-se temeroso em relação à crescente negação do realismo epistemológico, identificado em um número significativo de estudos na área das ciências humanas. Nessa direção, desnuda uma série de vícios que tem informado as pesquisas nessa área do conhecimento, analisa os pressupostos teóricos que fundamentam a obra de Roger Chartier e, posteriormente, debruça-se sobre um minucioso acompanhamento dos usos das representações nos horizontes da psicologia social.

Numa trilha similar, mas apresentando o tema do ponto de vista do sociólogo Norbert Elias, Jurandir Malerba analisa a apropriação que a história vem realizando da noção de representação. Considerando que essa questão deva ser deslocada para o campo da narratividade, o autor busca problematizar os procedimentos mais comuns nessa área. Assim, debate os ditames que orientam a indiscriminada utilização do conceito na historiografia contemporânea, reconduzindo a temática para uma síntese distinta das proposições mais recorrentes. Esse encaminhamento privilegia as articulações entre a teoria simbólica de Elias e a definição de habitus proposta por Pierre Bourdier.

Para Malerba, a teoria simbólica de Elias sugere uma leitura de representações que supera os limites circunstanciais da oposição maniqueísta entre o mundo real e o mundo representado. Nessa linha de argumentação, tal enfoque possibilita a incorporação do homem à natureza escapando de falsos dilemas, processados na edificação da teoria processual do conhecimento e da linguagem, de modo a permitir uma compreensão diferenciada do hábito social. Este, por sua vez, contempla a recuperação de visões da experiência de vida dos indivíduos em sociedade5.

Não menos relevantes são as assertivas de Lúcia Helena C. Z Pulino, Graciela Chamorro e Gustavo Blázquez. Enquanto Pulino equaciona o problema das representações em filosofia a partir da obra de Richard Rorty, Chamorro estabelece as possíveis articulações entre o referido conceito e a teologia, rastreando as representações de Deus na história, apontando as relações da teologia feminista com múltiplas formas do simbolismo (paterno e materno). Por seu turno, Blázquez aborda a maneira como a antropologia social tem-se relacionado com a noção de representação.

À guisa de conclusão, Jurandir Malerba reporta-se, por um lado, à proposta de alinhar possíveis conexões entre os textos que compõem a coletânea, respeitando as particularidades das análises propostas em cada um deles, e por outro, ao desconforto cunhado nas abordagens que tendem a limitar os efeitos das representações em toda e qualquer problemática. Oportunamente, acaba apontando os paradoxos de uma história que se propõe nova, mas enfrenta uma crise de “consciência” da própria disciplina. Para tanto, enfoca tantos os impasses teóricos enfrentados pela história como os problemas inerentes ao estatuto epistemológico da história cultural.

Curiosamente, as evidências ilustram o fato de que a abertura do diálogo da história com outras áreas do conhecimento, a conseqüente ampliação de seus objetos, o corpus documental e as estratégias metodológicas deflagraram aquela que poderíamos nomear como crise de identidade da disciplina e um intenso processo de fragmentação da mesma em múltiplas histórias, tomadas como eixo norteador da explicação sobre as contínuas transformações da sociedade moderna.

Por certo, as razões que motivaram o surgimento desse impasse teórico diante das constantes mutações do objeto histórico passam pela questão do narrativismo histórico. Mas, no contexto de tais transformações, a reflexão acerca das representações tornou-se providencial e seus aportes ganharam, cada vez mais, relevância e interesse por parte dos profissionais da área. Contudo, os excessos unilaterais detectados nas formas de interpretação histórica têm se circunscrito a modismos transitórios e efêmeros.

Sem dúvida, tais contingências explicitam a necessidade de se buscar soluções intermediárias para a abordagem das demandas mais urgentes da sociedade humana, suscitando paradigmas explicativos alternativos. Numa visão de conjunto, torna-se forçoso admitir que as restrições ao conceito de mentalidade propiciaram aos historiadores da cultura a busca de premissas alternativas àquelas assentadas na ambigüidade e na imprecisão, observadas nas articulações entre o mental e o social.

A nova história cultural, longe de tomar como objeto preponderante as interpretações dos expoentes filosóficos e as manifestações formais de cultura (como a arte e a literatura), demonstrou sua “estima” pelas práticas populares ou pelas manifestações das massas inominadas expressas nos rituais religiosos, crenças, festas e resistências cotidianas ao poder instituído.

No terreno da história social e política, o descontentamento com os modelos tradicionais impulsionou também a revisão de axiomas pautados por obnubilantes explicações globais. Desse modo, talvez a conjugação entre o poder e as representações venham a assinalar novos dispositivos de apreensão do saber histórico, sejam eles centrados no estudo do imaginário ou da simbologia política.

Por fim, não se deve furtar de proclamar que os resultados dessa coletânea foram plenamente satisfatórios. Ao superar os propósitos iniciais do projeto, com certeza esse volume se tornará uma obra de referência na esfera da produção historiográfica contemporânea.

Notas

1 Identidade nacional, imagens do poder, representações da política, espetáculos políticos, imagens e símbolos do progresso/modernidade/modernização/desenvolvimento capitalista, produção artística, veículos de propaganda política; instrumentos pedagógicos e meios de comunicação e imagens da cidades, são os temas diagnosticados pelo levantamento efetuado. CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 247.

2 Entre as fontes mais citadas destacaram-se: jornais/revistas/pasquins/relatos jornalísticos; obras literárias/narrativas/crônicas/dramaturgia; memórias/diários/biografias/autobiografias/relatos de viagens; discursos/mensagens/manifestos/escritos políticos; depoimentos; iconografia; fotografia; correspondência; música; estátuas/monumentos/obras arquitetônicas/planos urbanísticos; filmes; álbuns; almanaques; objetos simbólicos/moedas, bandeiras, escudos, emblemas, cartazes; rádio/TV; publicidade; mapas e plantas. Idem, p.249.

3 Idem, pp. 82-83.

4 O autor as nomeia como “virada lingüística”, “virada para o interior” e “virada para exterior”, indicando os respectivos representantes de cada uma delas. Idem, p.11.

5 Idem, p. 218.

Sandra C. A. Pelegrini – Universidade Estadual de Maringá.

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A escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da historiografia – BURKE (VH)

BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. REIS, José Carlos. Annales: a renovação da história. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1996. Resenha de: LOPES, Marcos Antonio. Varia História, Belo Horizonte, v.14, n.19, p. 209-212, nov., 1998.

Dois livros tematicamente aparentados, e que quase se confundem pelo conteúdo de seus títulos. E as semelhanças não se esgotam nisso. A concepção geral das duas obras converge numa distribuição quase idêntica das matérias em análise. O período abordado e praticamente o mesmo. Os autores tencionam traçar um quadro amplo do desenvolvimento da chamada Escola dos Annales, desde os tempos de seus heréticos pais fundadores – pela explosão inovadora de suas idéias em meio a um ambiente intelectual conservador — Lucien Febvre e Marc Bloch, até o final da década de 80.

Na verdade, esta é a intenção maior de Burke e de Reis, que acabam por estender o que seria o projeto de uma história circunscrita dos Annales. Escrever uma história dos Annales partindo somente de seus fundadores seria fazer uma “história de pernas curtas”, como diria o próprio Lucien Febvre. Ao tentarem compreender o conteúdo “revolucionário” da história proposta por Febvre e Bloch, alargam o foco da pesquisa, descendo ao leito complexo do pensamento filosófico, da sociologia e da história, da forma corno eram concebidas estas disciplinas no século 19, o que Peter Burke chama – para esta última área – de “o Antigo Regime da historiografia”. Nesse percurso, Burke e Reis estabelecem as “genealogias”, febvriana e blochiana, identificando as raízes mais profundas das filiações teóricas e metodológicas dos fundadores, para explicar de que forma foram absorvidas e de que modo atuaram as influências recebidas em meio aos primeiros “debates e combates” travados na luta pela elaboração de uma história renovada.

Outra convergência dos textos: analisam as obras mais importantes, os maiores “monumentos” erguidos pelos Annales, como Os Reis Taumaturgos de Bloch, o problema da descrença (…) de Febvre, 0 Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo (…) de Braudel, Camponeses do Languedoc de Le Roy Ladurie, entre outros. Ambos percorrem as “três gerações” dos Annales, sendo que Reis pretende avançar este quadro, levando a pensar numa “Quarta geração” surgida do tournant critique de 1988.

Entretanto, apesar de algumas semelhanças de superfície, trata-se de textos acentuadamente distantes um do outro. Com efeito, as obras de Burke e Reis são ótimos exemplos de como pesquisadores que se debruçam sobre um mesmo objeto podem obter resultados desiguais, podem chegar a respostas convergentes ou divergentes, sem que necessariamente uma delas esteja incorreta ou deva ser refutada. Abandonadas as exageradas pretensões cientificistas na história, o que conta para um bom resultado da pesquisa é o seu “questionário”, ou seja, o programa do pesquisador, o grau de complexidade de suas perguntas, o amadurecirnento intelectual de seu projeto, como, a propósito, enfatiza Reis. Não que os dois trabalhos destoem quanto a qualidade e rigor, antes pelo contrário.

A diferença está em outra parte, isto é, no calibre da discussão, no fôlego e na disposição em discutir amplamente as matérias. Se os autores seguem um roteiro semelhante, corno foi ressaltado, existem sensíveis disparidades na estratégia de seu desenvolvimento. Não há dúvida de que o livro de Burke é mais leve, de leitura mais fácil, muito mais dinâmico e povoado de personagens que fizeram e ainda fazem a história da historiografia de nosso tempo. Por outro lado, o livro do professor Reis e mais te6rico, mais “sisudo”, e bem mais compacto. Acerca desse aspecto, vale ressaltar que aquilo que Burke discute em dois ou três parágrafos, de maneira quase alusiva, Reis desenvolve em diversas páginas. Para ficar em alguns poucos exemplos, basta comparar o tratamento que recebem as influências fecundas de Max Weber, Ernile Durkheirn, Frangois Simiand e Henri Berr. Em média, sete ou oito páginas de análise profunda de cada um!

Desse modo, seria o caso de indagar: em dois livros que têm propósito comum de informar sobre urna mesma questão, de onde vem o descompasso? A resposta para isso talvez possa ser encontrada no “espirito” de cada obra, na intenção de cada autor, naquilo que se refere ao público-alvo que eles tinham em mente corno destinatário de seus textos.

Ora, o livro de Peter Burke é quase urna obra de circunstancia, no sentido de se voltar claramente para o grande mercado editorial – no que, aliás, teve bastante êxito numa área em que, apesar da presença de alguns títulos consagrados, ainda há um considerável vazio de textos dessa natureza. Poder-se-ia objetar que o livro em questão foi publicado por urna editora universitária, preocupada em destinar obras de grande valor acadêmico para um público restrito. Contudo, a Editora da Unesp há anos já está inserida no circuito comercial das grandes editoras nacionais, desempenhando, diga-se de passagem, um papel brilhante.

Já o livro de Reis e extrato de tese, escrita para atender a uma rigorosa banca examinadora europeia, visto que seu trabalho foi defendido na Universidade Católica de Louvain, sem querer dizer com isto que as bancas nacionais sejam pouco rigorosas. E sobre este aspecto, o autor não se preocupou nem um pouco em “aliviar” o seu texto das necessárias mas sempre pouco agradáveis arestas acadêmicas, em destitui-lo de suas feições de tese, em esvazia-lo de pelo menos uma parte de sua densidade doutoral, premeditando atingir um público mais amplo, muito provavelmente desamparado de suficientes dados para digerir informações transmitidas num nível tão elevado. Limitou-se em nos conceder urna versão em português, incorporando as indigestas citações e refer8ncias bibliográficas no corpo do texto. Mas, pensando melhor, esta pode ser uma opção legitima do autor, que não faz concessões a certas “profanações”, igualmente legitimas, do grande mercado editorial. Se não conhecesse a história da obra, seus percalços e peripécias, teria sérias dúvidas de que editoras comerciais aceitassem publica-la, no formato corno se encontra pela Editora Universitária da UFOP.

Nesse ponto, a obra de Burke é mais feliz. Seu texto, sem a menor pretensão de desmerecer o livro, é material paradidático – com direito até a Glossário para aqueles que passaram por Francois Dosse, H. Coutau-Bergarie, Guy Bordé e Hervé Martin, sem esquecer o livro-dicionário organizado por Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacque Revel. Apesar de seu desenvolvimento quase telegráfico, ou melhor, o seu tratamento bastante ligeiro dos temas enfocados, o autor atinge seu principal objetivo: dar a conhecer o “regime” historiográfico que havia antes dos Annales, o impacto e a influência da obra de Febvre e de Bloch, a recepção internacional dos Annales, até fins dos anos 80, passando pelas “gerações” intermediarias em trajetórias breves mas muito bem tecidas, com destaque para a atuação e o lugar de Fernand Braudel.

E o que nos oferece o livro de Reis? o mesmo que a obra de Burke. Mas com analises mais extensas, o que não deixa de ser um importante diferencial. Um bom exemplo disso e o quadro que o autor traça sobre a “contaminação” da história pelas ciências sociais, e com vantagens sobre Burke, pois não se limita a estabelecer influencias e filiações te6ricas: explicita metódica e pormenorizadamente cada sistema teórico, para, ato continuo, identificar os seus pontos de enraizamento junto a história. Aí está com certeza, o seu maior mérito. Além  de uma erudita exposição do desenvolvimento da historiografia francesa, o livro de Reis constitui-se ainda numa competente e bem informada aula de metodologia da história, posto que orienta sobre as especificidades da pesquisa histórica, suas dificuldades e riscos.

Apesar da identidade temática, de uma certa coincidência no desenvolvimento do texto, ‘bem como pela presença dos mesmos personagens e algumas referências bibliográficas cruzadas, as duas obras têm poucos traços em comum. Trata-se de pesquisas que chegam a resultados bem diferentes, porque desde seu ponto de partida perseguiram fins muito diversos. Acentua-se a disparidade principalmente porque são textos de níveis teóricos claramente distintos, o que para o leitor interessado nessa matéria e muito favorável: terá acesso a duas visões, a duas formas personalizadas de tratamento de um só problema. Mas, fora de qualquer dúvida, ao transformarem uma área importante da historiografia contemporânea em objeto de análise, tarefa sumamente espinhosa, cada trabalho desempenha com valor a sua meta: colaborar para a ampliação do conhecimento de um terna mais que relevante. Em síntese, dois livros inteligentes sobre uma questão a um só tempo complexa e fascinante.

Marcos Antonio Lopes – Departamento de História/ UNIOESTE-Pr.

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[DR]

 

Geschichte sehen / Jörn Rüsen

Ver a história é o título de uma obra coletiva, organizada por Jõrn Rüsen, Wolfgang Ernst e Heinrich Theodor Grütter (Geschichte sehen. Beitràge zur Àsthetik historischer Museen. Pfaffenweiler: Centaurus, 1988, 171+XXV pp.), que debate as questões referentes à apresentação de conteúdos históricos em museus e sua função social-pedagógica. A representação mental da memória e da consciência históricas é analisada desde a perspectiva do ideário presente nas mentalidades e nas organizações sociais que se pensam e expõem, mediante critérios de escolha de temas, objetos, textos e espaços.

Encenar a história como um espetáculo, como um espelho, torna-se um problema teórico e metodológico que ultrapassa o âmbito do gosto, da afetividade, da emoção. A conjuntura da construção da identidade e da especificidade dos grupos sociais mediante a elaboração da consciência histórica toma, na decisão de fazer museus e de preservar indícios [como no conservacionismo arqueológico], uma dimensão que mescla critérios político-administrativos e posições teórico- metodológicas. O mesmo vale para as exposições temporárias, da qual é exemplo a organizada em Munique, de 22 de outubro de 1993 a 27 de março de 1994, sobre München – Hauptstadt der Bewegung (Munique —A capital do movimento), cujo catálogo (485 pp.) não é uma mera descrição de peças expostas e logradouros da cidade, mas um livro de reflexão sobre a realidade social e econômica da Alemanha e sobre a consciência alemã na primeira metade do século XX, que levou (ou tornou possível que se levasse) ao surgimento do nazismo e à consagração da capital da Baviera como a capital do “movimento”. Numa e noutra obra reflete-se de modo esclarecedor sobre as três dimensões da cultura histórica: a política, a científica e a estética, ou seja: o poder, a verdade e a beleza, indispensáveis à qualificação social de histórias que tencionam ter efeito sobre a realidade concreta dos homens.

Ver a história exprimiria, assim, a sintonia suposta (e esperada) entre o mostrado (ou escrito) e o observador (ou leitor), na medida em que as três dimensões encontrariam, na exposição e na compreensão, inteligência comum.

A preocupação com a enunciação e a exposição do pensamento histórico enquanto formador e formulador de identidade social é uma constante na segunda metade do século XX. Os historiadores de língua inglesa e alemã sempre manifestaram interesse especial pelas questões teóricas e metodológicas.

Desde os anos 1960 vem sendo intensa a dedicação a essas questões, em particular ao desenvolvimento da história social e das idéias. A renovação também da história política a que os Anna/es e seus descendentes decerto não são estranhos — reforçou essa tendência. A constituição da história como ciência social e a garantia de sua cientificidade foram objeto de textos que marcaram de forma indelével a prática da ciência histórica no espaço de língua alemã (e mesmo inglesa), como Geschichte ais Sozialwissenschaft, editada pelo historiador social alemão Hans-Ulrich Wehler, em 1973. O crescimento da reflexão teórica sobre os fundamentos da história acelerou-se nos anos 1970 com a formação de amplo grupo de trabalho reunindo filósofos, historiadores, sociólogos, literatos, antropólogos, politólogos e outros (não apenas alemães, mas também ingleses e americanos). Do trabalho desses especialistas resultou uma série de seis volumes de excepcional qualidade, sob o título geral de Theorie der Geschichte, publicado pela dtv wissenschaft, de Munique, entre 1974 e 1990, com os seguintes temas: “Objetividade e partidarismo na ciência histórica”, “Processos históricos”, “Teoria e narrativa na história”, “Formas da historiografia”, “Método histórico” e “Todo e parte”. A tônica desses trabalhos está na pluralidade de abordagens e na interdisciplinaridade, em torno do eixo sistematizador da história social. Jõrn Rüsen, um dos principais formuladores da teoria contemporânea da história, publicou — entre 1983 e 1989 — a mais completa síntese em teoria e metodologia da ciência histórica, sob o título geral de Elementos de uma teoria da história e em três partes: Fundamentos da ciência histórica, Reconstrução do passado: os princípios da pesquisa histórica e Fíistória viva: formas e funções do saber histórico (Gõttingen: Vandenhoek & Ruprecht).

Rüsen concentra-se no caráter racional e seletivo, valorativo e orientador que a elaboração do conhecimento histórico, sob o rigor do método e da pesquisa empírica controlada, possui.

O principal foro de repercussão e valorização das opções teóricas e metodológicas da ciência histórica vem sendo, desde 1962, a revista History and Theory (Wesleyan University, Middletown, Conn., EUA), que tem hoje, entre seus editores, I. Berlin, R. Koselleck, J. Rüsen, A. Danto, J. Passmore, P. Veyne, W. Dray, H. White e J. Topolski. A contribuição da revista para a libertação da ciência histórica de sua fase empirista, descritiva, foi decisiva. Inúmeros equívocos clássicos, como o da confusão entre estilo narrativo e desqualificação da história como ficção pararomanesca, puderam ser desmascarados e superados nas páginas de Hayden White, por exemplo.

Conexo com a questão teórica e com a perspectiva social- pedagógica da exposição do juízo histórico descritivo e explicativo, há um importante aspecto adicional que se destacou, nos últimos quinze anos. Também ele tem a ver com o produto historiográfico constituído e com seu efeito social na comunidade. Trata-se do caráter didático-pedagógico do saber histórico. Com o Manual da didática da história (Handbuch der Geschichtsdidaktik. Düsseldorf: Schwann, 1a edição: 1979; 3a edição: 1985), organizado por K. Bergmann, A. Kuhn, J. Rüsen e G. Schneider, busca-se ultrapassar a freqüente torre de marfim em que a história se encastela, para dar à historiografia uma dimensão a que não pode ficar alheia: a de co-autora da identidade e do processo de constituição dos grupos sociais. Assim, o Manual abre com a apresentação da história como meio ambiente mental dos homens em sociedade, passa por sua consolidação como ciência de rigor, debate longamente o papel e a função da história no ensino escolar e na preparação de seus docentes e conclui pela análise da presença da história no espaço público fora das trincheiras formais das escolas e das universidades. Esse tipo de reflexão potencializa o papel social do conhecimento histórico na perspectiva de sua relevância para a definição mesma do agente racional humano no contexto de seu mundo (de seu espaço de vida, de pensamento, de ação): pensar-se a si próprio e a seu mundo, historicamente, é constituir-se e a ele. A realidade (re)construída pelo saber histórico revela, assim, o caráter antropológico do mundo pensado, descrito e explicado. Sentir a história dessa forma, tomar-lhe o pulso, é — para um número crescente de historiadores — uma tarefa que vai além da pesquisa e da elaboração de uma monografia.

A queda do muro de Berlim e a súbita necessidade de (re)encontrar-se o sentido e a direção dos alemães em sua vertiginosa história contemporânea ofereceram ocasião para um sem-número de estudos e publicações. Muitos relevam análise política e das relações internacionais. Um, contudo, da registra o quanto essa circunstância da vida da Alemanha fez recrudescer o interesse pela história, já que o passado e o presente da sociedade alemã e de seu contexto social, político e econômico são tão carregados de episódios complexos e de repercussão mundial. Interesse an der Geschichte (Interesse pela história. Org. por Frank Niess. Frankfurt—Nova York: Campus, 1989, 144 pp.) acolhe posições de historiadores alemães de renome, que se dedicam a esmiuçar a complicada relação, para os alemães, entre consciência, explicação histórica e responsabilidade social coletiva. A “catástrofe alemã” do nazismo e da ruptura social subseqüente à “organização” da guerra fria, cuja fronteira cortava a Alemanha em duas, constituíra-se em um ponto nevrálgico da consciência histórica que, após inúmeras polêmicas, desembocou na maior delas, em 1986. Esta ficou conhecida como o Historikerstreit (a polêmica dos historiadores), cujo teor foi a superação de um tipo de ser alemão e de fazer-lhe a história que rompesse com o período 1933-1945. A “catástrofe alemã” (W.Schulze), o “aprendizado da história” (K.-E. Jeismann), a história como “objeto de exposição” (G. Korff), a mulher na história e a história das mulheres (G. Bock), o esclarecimento [no sentido do fluminismo] e a instituição do sentido (H.-U. Wehler), a continuidade e a ruptura da identidade (J. Rüsen) e outros temas candentes fizeram da história, para o dia-a-dia dos alemães, algo de interesse prático e imediato, conquanto ainda não ao ponto de tornar os livros de história tão lidos “popularmente” (não confundir com vulgarização ou pseudohistória) como na França. O componente histórico, como elo de coesão e estruturação da consciência de si, aparece, assim, como o interesse mesmo de sua constituição racional, individual e social: “Uma ciência histórica orientada por idéias da Aufklárung, formuladas em sintoma com a atualidade, pode contribuir para enunciar um saber orientador racional, fundado historicamente” (H.-U. Wehler).

Ficam referidas aqui, pois, algumas leituras que trazem contribuição renovadora e inovadora para o campo da ciência histórica e de seus desdobramentos, para bem além do espaço lingüístico alemão. Há certa dificuldade, para nosso público, em ponderá-las, justamente por se tratar de livros publicados em alemão, língua de uso pouco freqüente entre os historiadores no Brasil. Alguma coisa das contribuições desses autores tem versão inglesa (traduções integrais e, no mais das vezes, artigos publicados na History and Theory), o que pode ajudar no acesso aos textos.

Nota

1. A produção historiográfica contemporânea é tributária da revolução metodológica original e originária da escola dos Annales; como aqui não se dá notícia específica dela, remete- se, para um balanço sucinto e sob as categorias derivadas da investigação da superação do Antigo Regime, a Peter Burke: A Escola dos Annales 1929-1989. A Revolução Francesa da historiografia. São Paulo, Editora UNESP, 1991 (orig. francês: 1990).

Estevão C. de Rezende Martins – Universidade de Brasília.


RÜSEN, Jörn; WOLFGANG, Ernst; GRÜTTER, Heinrich Theodor (Org.). Geschichte sehen. Beitràge zur Àsthetik historischer Museen. Pfaffenweiler: Centaurus, 1988, 171p. Resenha de: MARTINS, Estevão C. de Rezende. Ver, sentir, fazer a história. Textos de História, Brasília, v.2, n.4, p.175-180, 1994. Acessar publicação original. [IF]