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La maladie de Chagas. Histoire d’un fléau continental – DELAPORTE (RBH)
DELAPORTE, François. La maladie de Chagas. Histoire d’un fléau continental. [Paris : Ed. Payot & Rivages – 1999]. Resenha de: SALOMON, Marlon Jeison. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.41, 2001.
Dez anos após haver publicado Histoire de la fièvre jaune1, François Delaporte retoma seu interesse pela constituição de saberes ligados à medicina na América Latina. Durante os dez anos que separam a publicação deste trabalho com La maladie de Chagas, no entanto, Delaporte publicou outros dois livros ligados à história da medicina2, além de organizar a edição de textos inéditos que Georges Canguilhem lhe havia confiado, da época em que escrevia sua tese de doutorado em medicina, O normal e o patológico3. Todos estes trabalhos, inéditos no Brasil, juntam-se ainda a dois outros livros de Delaporte, o primeiro, publicado no final dos anos 70, no qual ele se debruçava sobre a construção de uma fisiologia vegetal no século XVIII, e o segundo, sobre a epidemia de cólera de 1832 em Paris4.
La maladie de Chagas anuncia jocosamente a história do encontro do pensamento médico brasileiro com um inseto, e de um problema que lhe é decorrente. Mas este título, adverte-nos François Delaporte, comporta também uma espécie de ambigüidade fundamental, a qual seu trabalho procura dissipar. Primeiramente, trata-se de descrever as condições de possibilidade deste encontro, ocorrido por volta do final da primeira década do século XX, quando a localização de flagelados no intestino de um hematófago permitiu casualmente a descoberta de um tripanossomo patogênico e da doença que ele provocava5. Em seguida, trata-se de dissipar a história deste encontro afastando todo e qualquer olhar retrospectivo, dando a Chagas o que é de Chagas, a Cruz o que é de Cruz, e assim por diante.
Neste sentido, François Delaporte não faz neste livro a narrativa da história da descoberta da doença de Chagas. Trata-se de um livro que constrói a história de um problema: se Carlos Chagas foi mesmo o responsável pela descoberta da doença que levou seu nome, por que foi necessário esperar quase três décadas para que a mesma se tornasse um “flagelo continental”? La maladie de Chagas constrói a história deste problema. Para resolvê-lo, Delaporte descreve a história das relações que tornam possível o aparecimento de um objeto, de uma teoria e de um conceito.
Inicialmente, trata-se de descrever as condições de possibilidade do aparecimento de um novo objeto para o saber médico, um tripanossomo patogênico. As condições materiais, de um lado, através do Instituto Oswaldo Cruz e seu trabalho profilático, que permitiu a Carlos Chagas realizar uma missão em Minas Gerais, no local onde poderia se encontrar, observar e descrever tripanossomos; as condições do saber médico, do outro, através de sua formação em protozoologia, especificamente em sua vertente alemã, através da escola de Schaudinn; por fim, a conexão entre objetos biológicos sem nenhuma ligação que lhe permitiram casualmente descobrir o tripanossoma cruzi.
Em seguida, trata-se de descrever o quadro de saber e seus limites que permitem a Chagas construir uma teoria desta doença, ou o “sistema médico de Chagas”, e que se constitui a partir de três elementos: a descrição do ciclo evolutivo do parasita, através da protozoologia; a clínica da doença, através da endocrinologia; e sua epidemiologia, através da microbiologia.
Enfim, trata-se de descrever a história da formação de dois conceitos: o de tireoidite parasitária e o de tripanossomíase americana. Aqui François Delaporte mostra como Carlos Chagas, após haver descoberto um tripanossomo patogênico, procurou logo em seguida descrever a doença que lhe correspondia. Para Chagas, a doença que levava seu nome correspondia a uma tireoidite parasitária. Ou seja, Delaporte retoma a doença em sua conceituação, e mostra como ela correspondia para Chagas ao conceito de tireoidite parasitária, que se formava a partir de um conhecimento em protozoologia (ligado à escola alemã), em uma anátomo-clínica das doenças endocrinológicas e em uma etiologia infecciosa do bócio. Aqui se encontra o primeiro destaque deste trabalho. Delaporte retoma o “sistema médico de Chagas” em sua positividade, e o que aos nossos olhos aparece como “monstruosidade nosológica” deve ser reconstituída em sua própria atualidade6. Não se trata portanto de mostrar como Chagas equivocou-se ao não perceber que a doença que levava o seu nome não se tratava de uma afecção endocrinológica, mas de justamente descrever os limites de seu olhar.
Esta história do conceito permite a Delaporte mostrar em seguida como por volta de 1935 houve toda uma reorganização epistemológica que tornou possível tomar esta doença como uma doença parasitária. A percepção médica desta doença então se reelabora dentro do quadro de uma medicina que muda de terreno. É o que se pode ver, materialmente, com o médico argentino Romanã, o qual não toma mais esta doença no laboratório, mas sim no hospital, o que lhe permite tomá-la em um novo esquema etiopatogênico. Delaporte mostra como, com Romanã, a doença de Chagas deixa de ser uma tireoidite parasitária e pode se tornar a tripanossomíase americana. Por procurar apreendê-la conceitualmente, Delaporte pode perceber que, apesar de Chagas denominá-la de tripanossomíase americana, ela não remete a uma doença parasitária; ou seja, há uma mudança na conceituação da doença com Romanã. A doença que se encontrava invisível para Chagas escancara-se diante dos olhos de Romanã; num instante, a doença que nos anos 20 era acusada de ser a primeira doença sem doentes7, torna-se um “flagelo continental”. Não se trata portanto de dizer que houve enfim o descobrimento de algo que já estava dado e que a evolução de um saber médico permitiu visualizar, mas de mostrar como através da reorganização de um solo epistemológico, os próprios objetos, as teorias e os conceitos passam a se constituir de outra maneira. Portanto, entre Chagas e Romanã alguma coisa mudou para que esta doença pudesse deixar de estar ligada ao conceito de tireoidite parasitária e passasse a estar ligada ao conceito de tripanossomíase americana.
A temporalidade deste trabalho, portanto, é definida pela própria historicidade do seu objeto: 1909, quando se descobre um tripanossomo patogênico; 1935, quando a doença que lhe correspondia é classificada como uma doença parasitária. Delaporte chama o suporte histórico de seu estudo de miúdo (mince). Na verdade, não se trata de um recorte histórico semelhante ao que os historiadores estão acostumados a fazer, que toma uma temporalidade de forma aleatória, balizando-se em inícios de décadas ou de séculos, ou ainda em fatos políticos ou econômicos. A temporalidade do seu objeto se define por sua historicidade. A espacialização deste trabalho persegue os caminhos, os traços da historicidade do seu problema. No início desta resenha anunciava-se o retorno do interesse deste filósofo à constituição de saberes ligados à medicina da América Latina. Nada mais injusto do que isto. François Delaporte não faz parte do grupo de intelectuais que se dirige à América Latina para revelar a sua mais profunda verdade. A América Latina é apenas o espaço que serve de referência à história de um problema que não está restrito a fronteiras nacionais.
Através deste trabalho podemos ver ainda como a medicina no Brasil, desde o final do século XIX, no que concerne a epidemias, foi rapidamente abandonando algumas concepções que ligavam a origem das doenças a miasmas provenientes da putrefação da matéria-prima em decomposição, e tornando-se cada vez mais ligada à medicina pasteuriana, para a qual os seres vivos são os focos de contágio das doenças transmissíveis. A doença de Chagas talvez tenha sido, neste processo de mudança ocorrido no saber médico brasileiro, o signo mais evidente, o qual talvez remonte aos interesses de D. Pedro II em trazer Pasteur para trabalhar no Brasil. No entanto, este processo que tornou visíveis ao olhar médico novas doenças, também foi acompanhado de uma institucionalização da medicina como prática política, através da legitimação de campanhas de higienização e de políticas de saúde pública.
La maladie de Chagas nos mostra como o trabalho de François Delaporte, bastante desconhecido no Brasil, encontra-se localizado no cruzamento dos trabalhos de dois importantes filósofos contemporâneos: Georges Canguilhem e Michel Foucault. Delaporte retoma a epistemologia e uma forma de se fazer história das ciências, a partir dos limites e das reorientações realizadas por Michel Foucault em seus trabalhos sobre a história da constituição de saberes. Não se trata, portanto, de se repetir e dizer o que já se sabe, mas de procurar se deslocar em relação a esses próprios limites. Canguilhem definiu muito bem, na apresentação de um dos trabalhos deste historiador, como via a sua relação com a epistemologia: “François Delaporte pertence a essa categoria de historiadores das ciências que não costumam denegrir a epistemologia.”8
Notas
1 DELAPORTE, François. Histoire de la fièvre jaune. Naissance de la médecine tropicale. Paris: Payot, 1989.
2 O primeiro, Les Épidémies. Paris: Presses Pocket, 1995; e o segundo, Histoire des myopathies, em colaboração com Patrice Pinell. Paris: Payot, 1998.
3 A Vital Rationalist: Selected Writings From Georges Canguilhem. New York: Zone Books, 1994.
4 Le second règne de la nature. Essai sur les questions de la végétalité au XVIIIe siècle. Paris: Flammarion, 1979. Disease and Civilization. The Cholera in Paris, 1832. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1986. (Trad. Francesa: Le savoir de la maladie. Essai sur le choléra de 1832 à Paris. Paris: PUF, 1990).
5 DELAPORTE, François La maladie de Chagas.Histoire d’un fléau continental. Paris: Payot, 1999, pp. 17-18.
6 Idem, pp. 70 e ss.
7 Idem, pp. 130-131.
8 Na apresentação de Histoire de la fièvre jaune. Op. cit.
Marlon Jeison Salomon – Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CAPES
[IF]
Sobre o risco: para compreender a epidemiologia
A epidemiologia, definida como o estudo da distribuição e dos determinantes dos problemas de saúde e de doença na população, tende a ser identificada por um conjunto de técnicas e métodos de análise quantitativa em saúde. A tradição de se compreender a excelência da produção epidemiológica a partir do refinamento das técnicas tendeu a desconsiderar o pensamento daqueles que, desde o início do processo de institucionalização da disciplina, detectaram a pobreza da discussão filosófica e conceitual entre os epidemiologistas. Afinal, o conhecimento epidemiológico é nuclear nas concepções e organização das práticas sanitárias na sociedade ocidental, e a importância e legitimidade social destas estão impregnadas de juízos de valor, extrapolando em muito as dimensões técnica e científica. Não são poucas as conseqüências negativas de não tratar com rigor a natureza filosófica de conceitos que orientam práticas, por sua vez, institucionalizadas como capazes de promover a saúde das populações. Ao não se ter clareza dos alcances e limites dos conceitos e, conseqüentemente, das práticas, tende-se a considerá-los neutros e absolutos, perdendo-se a possibilidade de transformações com base em valores que possam ser explicitados e escolhidos. Leia Mais