Números naturais e operações – PIRES (REi)

PIRES, C. M. C. Números naturais e operações. São Paulo: Melhoramentos, 2013. Resenha: O ensino de matemática nos anos iniciais: notas de leitura de uma proposta didático-pedagógica. Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 2, 158-161 jul./dez. 2015.

Os baixos índices que o Brasil tem apresentado em avaliações em larga escala que medem as habilidades de leitura, escrita e matemática têm gerado uma série de debates e intervenções na educação brasileira. Se por um lado, é possível problematizar tais avaliações, mostrando como muitas vezes elas ignoram aspectos locais e servem para padronizar a educação, por outro, é inegável que esse desempenho merece uma reflexão teórica e exige que medidas sejam tomadas. Nesse sentido, programas variados (tanto públicos como privados), entre os quais podemos destacar aqueles vinculados à formação docente, têm sido pensados para auxiliar os/as professores/as em suas práticas em sala de aula. A coleção Como eu ensino, da Editora Melhoramentos, pode ser considerada como um desses instrumentos, já que objetiva “sintetizar o conhecimento mais avançado existente sobre determinado tema, oferecendo ao leitor-docente algumas ferramentas didáticas com as quais o tema abordado possa ser aprendido pelos alunos” (p. 5).

O livro Números naturais e operações, de autoria da professora da PUC/SP Célia Pires, insere-se nessa coleção a fim de apresentar ao seu público-alvo (docentes dos anos iniciais do ensino fundamental) propostas de trabalho e reflexões teóricas sobre como ensinar os números naturais e as operações básicas. Para isso, o livro está organizado em cinco capítulos, que abordam temáticas diferentes, relacionando-as ao cotidiano da sala de aula. Nesse sentido, o livro é didático tanto quando aponta o que pode ser feito com os/as alunos/ as, como quando pretende ensinar o/a docente a organizar sua prática. Isso é feito, porém, com o devido embasamento teórico, pois a obra não pretende ser um guia de atividades, mas sim uma proposta de formação docente.

Dessa maneira, o primeiro capítulo do livro faz uma breve síntese da história dos números e mostra alguns dos sistemas de numeração construídos pela humanidade ao longo do tempo, articulando tais sistemas com a construção de estratégias que permitissem o cálculo das operações aritméticas. Dos egípcios ao sistema indo-arábico, são mostrados os modos de funcionamento, as vantagens e limitações de alguns dos sistemas criados.

O modo como as operações eram realizadas também é apresentado em alguns desses sistemas, com o objetivo de explicar que aquilo que fez com que o sistema indo-arábico tivesse sucesso foi o fato de possibilitar a criação de algoritmos para a resolução das quatro operações básicas, algo que não era possível nos demais sistemas. Embora faça um bom percurso pela história da humanidade tendo como eixo as mudanças nos sistemas de numeração, nem sempre a explicação sobre os diferentes sistemas é clara.

Se esse for o primeiro contato do/a docente com a história dos sistemas, a compreensão sobre como funcionam alguns deles pode ficar incompleta, sendo necessário que os/as professores/as busquem outras fontes para complementar as informações.

Dando prosseguimento à retomada histórica que marca os dois primeiros capítulos, o livro apresenta, em seguida, “Algumas histórias sobre abordagens didáticas dos números naturais e das operações”, dessa vez, focando na história da área de conhecimento “educação matemática ou didática da matemática” no Brasil.

Para isso, a autora resgata alguns momentos marcantes dessa história em nosso país, a partir da década de 1940. É interessante notar como são usadas fontes diversas para contar essa história: da década de 1940 e 1950, são escolhidos três artigos de professores/a que atuavam em sala de aula; nas décadas de 1960 e 1970 são escolhidos livros que mostram a influência da psicologia (particularmente de Piaget) na educação matemática; para mostrar a luta por uma educação democrática na década de 1980, é analisada a “Proposta curricular para o ensino de matemática”, elaborada pela Secretaria de Estado de São Paulo; por fim, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) são apresentados para mostrar as tendências da matemática nos anos 1990. A ideia de usar fontes variadas é bastante interessante, particularmente ao se trazer para o debate, artigos escritos por docentes em outros momentos históricos. Contudo, essa seleção acaba produzindo pouco diálogo com outras abordagens também existentes no país.

Os três capítulos subsequentes são divididos levando em conta a ideia de que é necessário que o/a professor/a compreenda três aspectos das disciplinas que leciona: 1) o conteúdo dessa disciplina; 2) a didática do conteúdo da disciplina; 3) o currículo da disciplina.

Assim, os “Conceitos e procedimentos matemáticos que envolvem números e operações” são o tema do terceiro capítulo do livro.

Para explicar o conteúdo “Números”, a autora recorre aos axiomas de Peano, a fim de definir as características aritméticas dos números naturais. As propriedades das quatro operações básicas são explicitadas em seguida. Retomando esses conceitos essenciais, o livro atua no sentido de auxiliar os/as docentes a compreenderem melhor o objeto a ser ensinado na sala de aula, dispondo de mais ferramentas para apresentá-lo aos/às seus/suas alunos/as e sanar eventuais dúvidas.

Ainda com esse objetivo, são apresentados, no capítulo seguinte, estudos que ajudam a compreender como o/a aluno/a aprende matemática. Partindo da pesquisa base de Piaget, que mostrou que as crianças constroem esquemas próprios de pensamento, são apresentados/as teóricos/as que contribuem para a compreensão de como se dá a aprendizagem matemática. Além de Piaget, as pesquisas desenvolvidas por Contance Kamii, Michel Fayol, Gray e Tall, Lerner e Sadovsky e Vergnaud são sintetizadas pela autora, sempre com o objetivo de auxiliar na compreensão do modo como os/as estudantes pensam as relações com a matemática.

Destaque-se a forma como as noções de campo aditivo e campo multiplicativo (abordadas por Vergnaud) são apresentadas, articulando- as à resolução de situações-problema. Dessa forma, não apenas os conceitos são entendidos, mas vê-se o modo como eles podem auxiliar na construção de práticas mais problematizadoras na sala de aula. Cabe registrar, também, o destaque dado às pesquisas brasileiras ao final do capítulo. Obviamente, é impossível que uma obra resgate a variedade de pesquisas produzidas em nosso país, no âmbito da educação matemática, mas a seleção feita mostra como temos caminhado nas pesquisas sobre números e operações.

O último aspecto abordado refere-se à organização do currículo. Aqui, a autora recorre aos princípios básicos de organização de um currículo ao propor três momentos para a construção do mesmo: 1) a definição das expectativas de aprendizagem que se pretende construir; 2) as hipóteses relativas às possibilidades e desafios inerentes à idade dos/as alunos/as; 3) as atividades hipoteticamente interessantes para possibilitar a construção das expectativas anteriormente mencionadas. Aparentemente, recorre-se àquilo que sido nomeado no campo do currículo, como teorias tradicionais para discutir como construir um currículo. Essa visão tem sido criticada por desconsiderar as relações de poder que envolvem a construção desse artefato cultural e por tomar os dados da psicologia de forma pouca problematizadora. A autora justifica isso, porém, afirmando que há mais concordâncias do que discordâncias no que tange à definição das expectativas de aprendizagem.

Assim, ela lista o que se espera nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, tanto quanto aos números como quanto às operações.

Com relação aos números, são sugeridas, em seguida, atividades para ajudar na consolidação dessas habilidades. Situações como análise da função social do número, situações-problema em que seja preciso usar números para resolvê-las, contagens, escritas numéricas e observação das regularidades nelas presentes, são algumas das atividades apresentadas. Tal como foi feito com os números, também são sugeridas atividades para a construção das operações do campo aditivo e multiplicativo. Destacam-se nessa parte as atividades de resolução e análise de problemas e estratégias lúdicas e participativas de construção dos fatos básicos.

Coadunando com perspectivas presentes em textos oficiais (como, por exemplos, os PCN), as propostas são facilmente aplicáveis no cotidiano da sala de aula e podem auxiliar na construção das habilidades supracitadas. Porém, há pouco avanço em relação ao que está presente na maior parte dos livros didáticos analisados pelo Programa Nacional do Livro Didático, por exemplo.

Em síntese, o livro Números e Operações cumpre uma importante função na divulgação de pesquisas e atividades que subsidiem as práticas docentes no ensino fundamental. Embora em certos momentos haja pouco aprofundamento teórico e repetição de atividades comumente encontradas nos guias de ensino, de modo geral, o livro pode auxiliar nas reflexões sobre as práticas exercidas em sala de aula, bem como na formação inicial e continuada de professores/as. Aliado a outros materiais de estudo e a políticas públicas de investimento na educação básica, a obra pode contribuir com o objetivo maior de alcançar a qualidade na educação brasileira, no que se refere à matemática.

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O uso da calculadora nos anos iniciais do ensino fundamental – SELVA; BORBA (Bo)

SELVA, A.C.V. BORBA, R.E.S.R. O uso da calculadora nos anos iniciais do ensino fundamental. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. Resenha de: KISTEMANN JR., Marco Aurélio. BOLEMA, Rio Claro, v.28, n.50, p.1579-1582, dez., 2014.

Este livro das educadoras matemáticas Ana Selva e Rute Borba, já na sua introdução, revela que a discussão sobre o uso da calculadora nas salas de aula do Ensino Fundamental é atual e controverso, dividindo opiniões nos diversos segmentos educacionais, uma vez que a polêmica se dirige para a questão de como a calculadora pode auxiliar no desenvolvimento de atividades em sala de aula, influenciando positivamente o aprendizado matemático de alunos de séries iniciais.

De acordo com as autoras, algumas defesas do uso da calculadora embasam-se no amplo uso dessa ferramenta em situações matemáticas extra-escolares. Por outro lado, sujeitos que se opõem ao uso da mesma, argumentam que crianças que ainda não dominam as operações aritméticas não devem ser expostas ao uso da calculadora para a solução de problemas matemáticos. Corroboramos a opinião das autoras de que a mera introdução da calculadora, sem reflexões sobre suas reais possibilidades e seus limites, não é suficiente para que essa mídia seja propulsora de desenvolvimento de conceitos matemáticos, na correção de erros e como instrumento de autoavaliação.

Apesar das divergências, as autoras defendem que, se bem utilizada em situações didáticas planejadas com critério, a calculadora constitui-se como ferramenta que pode auxiliar o aluno, por exemplo, na constituição do sistema de numeração decimal, na operação com números naturais e racionais, entre outros conceitos matemáticos. Para guiar suas ações investigativas, Selva e Borba traçam questionamentos centrais buscando investigar se: (i) o uso de calculadora por alunos em séries iniciais inibe o raciocínio dos mesmos; (ii) o uso de calculadora impede avanços matemáticos; e (iii) a calculadora pode auxiliar o desenvolvimento do raciocínio matemático de alunos dos anos iniciais.

No capítulo II, intitulado O que pensam professores sobre o uso da calculadora, fica claro, nas falas das autoras, que o principal responsável pelo uso da calculadora em sala de aula é o(a) professor(a), cabendo a este profissional a decisão final de elaboração de atividades para que os alunos, desde cedo, possam interagir usando a calculadora. Nesse sentido, percebemos que discussões sobre o uso de computadores e calculadoras em sala de aula propiciarão aos professores conhecimentos sobre como e porque utilizarem essas ferramentas enquanto instrumentos de ensino e de aprendizagem. As autoras, neste capítulo, apresentam ainda um levantamento realizado junto a professores que atuam nos 4º e 5 º anos, buscando descobrir se estes propõem atividades e como são as propostas elaboradas para o uso de calculadora no Ensino Fundamental. Esse levantamento tem como escopo analisar, de uma forma abrangente, a concepção de professores com relação ao uso da calculadora, a importância da mesma, as (des)vantagens percebidas quando de sua utilização e quais conteúdos são mais apropriados para serem desenvolvidos com esse recurso didático. Um resultado importante desse levantamento, dentre outros, é o que revela que, embora os professores afirmem reconhecer a necessidade do uso da calculadora em sala de aula, apontando as (des)vantagens de sua utilização, os mesmos reconhecem que não têm feito uso sistemático deste recurso no seu cotidiano escolar.

O que as pesquisas mostram sobre o uso da calculadora dá nome ao terceiro capítulo desse livro, no qual Selva e Borba discutem como e o que dizem os pesquisadores em Educação Matemática sobre o uso de calculadora em sala de aula. Embora defendam que o uso de computadores e calculadoras pode promover uma reorganização da atividade matemática, ressalta-se, ao longo do capítulo, que a calculadora é um mero instrumento coadjuvante e acessório nas atividades matemáticas propostas, uma vez que as tarefas devem ser interpretadas e consumadas pelos alunos.

As autoras relatam que estudos nacionais e internacionais vêm apresentando resultados que demonstram que a calculadora pode exercer um papel importante na compreensão de conceitos matemáticos, explicitando que a calculadora pode e deve ser proposta em sala de aula a partir de situações que estimulem os alunos a refletirem, subsiando também o professor na proposição de atividades matemáticas.

O Capítulo IV, Usando a calculadora em sala de aula, apresenta uma série de seis observações realizadas pelas autoras, em 2006, em uma escola particular em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, em uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental e de quatro observações em uma turma de 4º ano do mesmo nível e na mesma escola. A escolha por essa escola e essas séries se deve ao histórico – de pelo menos quatro anos – de desenvolvimento de atividades envolvendo a calculadora em sala de aula. Nesta escola buscam-se diversas formas de se superar dificuldades no trabalho com o uso da calculadora, tais como a resistência dos pais, a dependência dos alunos com relação ao uso de calculadora e o despreparo docente para o uso de tecnologias. Em suma, este capítulo mostra exemplos de atividades que podem ser utilizadas em sala de aula com o apoio da calculadora e os momentos prazerosos de aprendizagem resultantes das discussões de conteúdos matemáticos por parte de professor e alunos do Ensino Fundamental de uma escola particular pernambucana.

O capítulo intitulado Como os livros didáticos têm tratado o uso da calculadora, concentra-se no papel desempenhado pelos responsáveis por planejar e elaborar os livros didáticos, bem como no papel daqueles que analisam livros didáticos de Matemática dos anos iniciais e suas propostas concernentes ao uso de calculadora. Para tanto, realizou-se a análise detalhada de coleções de livros didáticos em particular no que se referia às atividades nas quais se observava a necessidade do uso da calculadora, buscando também uma verificação acerca das reflexões que os compêndios didáticos, no que diz respeito ao uso de tecnologias, proporcionam aos professores em suas práticas pedagógicas.

Percebemos também neste capítulo que, embora a importância da calculadora como ferramenta de cálculo seja reconhecida, o seu uso em sala de aula com sua representação simbólica alternativa, perfazendo-se como instrumento de explorações conceituais em cenários variados de resolução de problemas, ainda apresenta-se como alvo de muitos preconceitos, pois muitos profissionais consideram que a inserção da calculadora pode inibir o raciocínio dos alunos, além de gerar a denominada preguiça mental.

O penúltimo capítulo, Outras atividades com calculadora, apresenta propostas de atividades com a calculadora organizadas de forma criteriosa, levando-se em consideração o tipo de atividade, o eixo matemático a que se refere e os conceitos trabalhados. As atividades buscam entre outras propostas: (i) explorar o valor posicional do sistema de numeração decimal; (ii) propor a resolução de problemas com grandezas e medidas; (iii) explorar a divisão como geradora de números decimais e a multiplicação de decimais; (iv) explorar diferentes representações dos conceitos matemáticos e as relações entre operações inversas; e (v) estimular atividades de estimativas e realização de cálculos confirmadores de resultados.

No capítulo que encerra o livro, as autoras enfatizam que o fato da calculadora enriquecer o processo de ensino aprendizagem não significa que se deva extinguir o ensino de algoritmos com o uso de papel e lápis na resolução de problemas matemáticos. Em oposição a essa ideia absurda, as autoras asseveram que o tradicional uso do papel e do lápis permitem também aos alunos evoluir na resolução de um problema, ampliando as possibilidades de estratégias favorecedoras da construção dos conceitos matemáticos que permeiam o algoritmo. Contudo, ressaltam a importância do uso de novas tecnologias no processo de ensino e aprendizagem matemática já nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Para Selva e Borba é fundamental que ocorra a elaboração de propostas pedagógicas que tragam em seu bojo o uso de tecnologias que perpassem todos os níveis e modalidades de ensino, carecendo também de uma contundente conscientização da comunidade escolar como um todo, pais, alunos, professores, e gestores, para a relevância do trabalho envolvendo tecnologias diversas na escola.

Entendemos que a riqueza do tema exposto por Selva e Borba se revela inicialmente quando se ressalta, em diversos pontos do livro, que o uso da calculadora para a exploração de conceitos matemáticos vem desmistificando o papel da calculadora na sala de aula dos anos iniciais. Entendemos que essa desmistificação é gradativa, mas pode levar os agentes educacionais a adquirir uma visão mais abrangente sobre a utilização de calculadora na escola por meio de atividades que promovam a construção de conceitos matemáticos.

Por fim, a riqueza do tema se revela também quando são apresentadas investigações realizadas pelas autoras que demonstram que a presença da calculadora pode ser motivadora para os alunos, gerando um ambiente de reflexões acerca de situações matemáticas que se tornam repetitivas, enfadonhas e dominadas por práticas mecânicas nas quais se utilizam somente lápis e papel. Ao optar por essa tecnologia, ou seja, pela calculadora, aos alunos é dada uma opção distinta da mera aprendizagem de um algoritmo, o que se torna uma ferramenta valiosa para a reflexão sobre conceitos matemáticos, constituindo-se em um recurso pedagógico complementar para as propostas do professor de Matemática.

Marco Aurélio Kistemann Júnior – Doutor em Educação Matemática pela Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), Rio Claro, São Paulo. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro-RJ. Professor e pesquisador do Departamento de Matemática e do Mestrado Profissional em Educação Matemática, onde lidera o GRIFE/UFJF (Grupo de Investigações Financeiro-Econômicas em Educação Matemática), na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: marco.kistemann@ufjf.edu.br.

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A matemática nos anos iniciais do ensino fundamental: tecendo fios do ensinar e do aprender – NACARATO et al (Bo)

NACARATO, A. M.; MENGALI, B. L. S.; PASSOS, C. L. B. A matemática nos anos iniciais do ensino fundamental: tecendo fios do ensinar e do aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Resenha de: BATISTA, Paulo Soares. BOLEMA, Rio Claro, v. 28, n. 48, p. 482-484, abr. 2014.

A discussão acerca da relevância das aprendizagens iniciais de matemática não pode ser colocada em pauta inferior no debate sobre o impacto do trabalho com uma ciência que é milenar. Ao pensar nos primeiros contatos dos educandos com a matemática, despontam alguns questionamentos: quais os saberes, trajetórias e práticas dos profissionais que trabalham com esse componente curricular nos primeiros anos da escola básica? Pensando nisso Adair M. Nacarato, Brenda L. S. Mengali e Cármen L. B. Passos formam uma equipe dinâmica de investigação que assume na obra o ofício notável de entrelaçar fios do ensinar e aprender na extensa rede da alfabetização matemática.

O capítulo I inicia-se com uma viagem pela História da Educação, especificamente pelo contexto das reformas curriculares da década de 80, as quais não exprimiram ganhos reais na prática da sala de aula do Ensino Fundamental I (foco do livro). Ressaltou-se ainda a apresentação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997) que, segundo as autoras, embora contemplassem novos aspectos para a abordagem matemática, teve sua aplicabilidade comprometida pelo esclarecimento insatisfatório de sua intenção construtivista e pela carga específica das orientações didáticas nele contida, dificultando o entendimento de professoras1 generalistas.

A seção A formação matemática da professora polivalente evidencia as deficiências formativas a nível médio (modalidade Normal) e em nível de graduação (Normal Superior e Pedagogia), no tocante ao trabalho com a matemática das primeiras séries do ensino fundamental. Já em Crenças e sentimentos em relação à matemática e seu ensino, os relatos autobiográficos de alunas da Pedagogia mostram que as experiências das licenciandas com a matemática da escola básica podem moldar a prática profissional da futura professora.

Findando a primeira parte da obra, as escritoras discorrem sobre um novo cenário para aprendizagem de matemática: inclusivo e estimulador da autonomia. Salientam também que a instauração desse novo espaço rompe com paradigmas e acentua os desafios à formação inicial e continuada das polivalentes.

No capítulo II, as autoras seguem com as reflexões sobre autonomia e educação matemática, momento em que caracterizam um ambiente de aprendizagem. A definição é alicerçada nas concepções de Alro e Skovsmose (2006) e Freire (1987), que sugerem o diálogo verdadeiro, em que as vozes dos professores não se sobrepõem às dos alunos.

Entendemos, portanto, que o retorno a esse cenário pode ser entendido como um incessante convite à zona de risco2. Os momentos de leitura e escrita nas aulas de matemática também são enfatizados no capítulo, sendo que a argumentação decorre do seguinte pressuposto: os registros dos alunos têm íntima relação com o movimento de comunicação e negociação de significados matemáticos, o qual é impulsionado pela prática de resolução de problemas.

O capítulo III põe em relevo o papel do registro escrito no processo de alfabetização matemática. Segundo as autoras, a professora alfabetizadora deve atentar para a validade da escrita expressiva das crianças, que mescla afetividade e conhecimento. Outro aspecto abordado é a possibilidade da escrita expressiva transformar-se em transacional, fornecendo subsídios ao educador para conhecimento do progresso de aprendizagem dos estudantes, bem como para o planejamento de intervenções adequadas.

Flashes das aulas da professora Brenda Mengali, uma das autoras do livro, permeiam as diversas seções do capítulo. Mengali investe no trabalho com problemas que se aproximam da realidade infantil, desenvolve a reescrita e análise de textos nas aulas de matemática, estimula argumentações e interações, enfim, inaugura um clima de aprendizagem em que conceitos e operações fazem sentido.

O capítulo IV reitera uma peculiaridade do ambiente de aprendizagem: a produção de significados matemáticos. Para as autoras, muitos significados emergem dos desafios e do estímulo à tomada de posição. Assim, a sala de Mengali é novamente adentrada, podendo-se vislumbrar a rica conexão entre criação de situações-problema e a literatura infantil.

Quanto ao cálculo mental, Nacarato e suas companheiras sustentam ser necessário o distanciamento da concepção adotada no documento PCN (BRASIL, 1997) e defendem a importância do registro escrito. Ratificamos o posicionamento ora apresentado, visto que é imprescindível reconhecer as estratégias pessoais das crianças, bem como respeitar os ritmos individuais de comunicar ideias e aprender a aprender.

No penúltimo capítulo a interdisciplinaridade assume um espaço privilegiado. Nesse sentido, as autoras aproximam modelagem matemática e pedagogia de projetos, com destaque para propostas que explorem as capacidades imaginativa e criativa das crianças, propiciando o desenvolvimento simultâneo de habilidades linguísticas e matemáticas.

Considerando a riqueza de experiências e saberes das professoras dos anos iniciais, o marco inicial do último capítulo é a ampliação do conceito de formação, aproximando o(a) leitor(a) da perspectiva de desenvolvimento profissional, na qual o professor é o principal estimulador de seu aprimoramento. Os tópicos seguintes tratam expressivamente do potencial das narrativas autobiográficas tanto como práticas de formação quanto de pesquisa.

Nesses tópicos, os estudos de Melo (2008), Prado e Damasceno (2007), Freitas e Fiorentini (2007, 2008), entre outros pesquisadores, são destacados no anseio de direcionar rotas possíveis no campo da pesquisa em educação matemática e ressaltar a essência do trabalho do educador: a investigação.

O livro atende plenamente ao propósito de entrecruzar fios diversos na composição da rede de ensino e aprendizagem de matemática nos anos iniciais. Acreditamos, tal como as autoras desta obra apreciável, que a rede mencionada é mágica, cabendo aos profissionais comprometidos com a alfabetização matemática tecê-la dia a dia.

Notas

1 A categoria de profissionais professores das séries iniciais é sempre destacada no feminino devido à ampla atuação de mulheres na docência desse nível de ensino.

2 Alro e Skovsmose (2006) defendem o ingresso de educadores nessa região. Nela, professores e alunos são aprendizes e transitam juntos no campo fértil do imprevisível.

Referências

ALRO, H.; SKOVSMOSE, O. Diálogo e aprendizagem em educação matemática. Belo Horizonte : Autêntica, 2006.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Matemática. v.3. Brasília: SEF, 1997.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREITAS, M. T. M.; FIORENTINI, D. As possibilidades formativas e investigativas da narrativa em educação matemática. Horizontes, Bragança Paulista, SP, v. 25, n. 1, p. 63-71, jan./jun. 2007.

FREITAS, M. T. M.; FIORENTINI, D. Desafios e potencialidades da escrita na formação docente em matemática. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 37, p. 138-149, jan./abr. 2008.

MELO, M. J. M. D. Tornar-se professor de Matemática: olhares sobre a formação. 2008. 327 f.

Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2008.

PRADO, G. V. T.; DAMASCENO, E. A. Saberes docentes: narrativas em destaque. In: VARANI, A.; FERREIRA, C. R.; PRADO, G. V. T. (Org.). Narrativas docentes: trajetórias de trabalhos pedagógicos. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007. p. 15-27.

Paulo Soares Batista –  Especialista em Supervisão, Orientação e Inspeção Escolar pelo Instituto Superior Tupy/IST – (2012) e licenciado em Matemática pela Faculdade Pereira de Freitas/FPF – (2009). Professor de Matemática na Escola Estadual “Professor Letro”, Antônio Dias, MG. E-mail: psoaresbatista@hotmail.com.

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Interdisciplinaridade e aprendizagem da Matemática em sala de aula – TOMAZ; DAVID (Bo)

TOMAZ, Vanessa Sena; DAVID, Maria Manuela Soares. Interdisciplinaridade e aprendizagem da Matemática em sala de aula. (Coleção Tendências em Educação Matemática) – Belo Horizonte: Autêntica, 2008. Resenha de: SOUTO, Daise Lago Pereira. BOLEMA, Rio Claro, v. 23, n. 36, p.801-808, ago., 2010.

O livro é um convite à reflexão sobre interdisciplinaridade e aprendizagem da matemática em sala de aula. Para isso, Tomaz e David apresentam alguns exemplos de situações em sala de aula nos quais são relatadas algumas práticas que possibilitam aprendizagens matemáticas, respaldadas em perspectivas histórico-culturais. Também expõem como algumas perspectivas teóricas podem auxiliar no desenvolvimento de uma percepção mais apurada sobre o que se aprende de Matemática e como se aprende.

No primeiro capítulo, intitulado “Os temas transversais e o fazer pedagógico” as autoras elucidam a concepção de interdisciplinaridade que adotarão. No entanto, já nas primeiras linhas, é possível verificar que se trata de uma ampliação da noção de interdisciplinaridade.

A pretensão é romper com o isolamento e a fragmentação dos conteúdos, alicerçando-se em dois princípios básicos para o ensino da Matemática: o da contextualização e o da interdisciplinaridade. Com relação à contextualização, o ensino da matemática deve ser articulado com várias práticas e necessidades sociais, por meio de inter-relações com outras áreas do conhecimento. Já o segundo princípio pode ser proposto de diferentes formas, segundo diferentes concepções, que vão desde aquelas que defendem um ensino aberto para inter-relações entre a Matemática e as diversas áreas do saber científico ou tecnológico, bem como, com as outras disciplinas escolares.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam para uma abordagem dos conteúdos adotando uma organização que vai do global para o específico, com progressiva “disciplinaridade”, tendo em vista que o trabalho escolar está pautado na organização por níveis de ensino e em disciplinas que são, de certa forma, vistas como independentes, gerando assim uma situação de conflito aos professores que pretendem adotar uma prática interdisciplinar.

Uma proposta, apresentada por AlrØ & Skovsmose e compatível com a proposta dos PCNs, defende a potencialidade do trabalho por temas, respeitadas algumas condições: o tema deve ser algo conhecido dos alunos; ser de discussão possível; ter valor em si mesmo; ser capaz de criar conceitos matemáticos; desenvolver habilidades matemáticas; e privilegiar a concretude social.

Nessa perspectiva, a tematização pressupõe uma investigação, o que não significa necessariamente lidar com problemas sofisticados, mas procurar conhecer o que não se sabe, pesquisar, inquirir. Logo, o aluno é levado a explorar, formular questões, fazer conjecturas, testar e reformular questões.

Em relação à atitude investigativa, há três fases: introdução à situação problema; realização da investigação e discussão dos resultados. Nesse sentido, o trabalho de investigação em sala de aula pode ser expandido em direção ao trabalho de modelagem matemática: segundo Borba & Penteado, citados pelas autoras, “na modelagem matemática os alunos escolhem um tema e, a partir desse tema, com o auxílio do professor, fazem investigações”. No entanto, esse trabalho não pressupõe o estabelecimento de procedimentos matemáticos rígidos para resolução ou análise do problema.

A interdisciplinaridade configura-se pela participação dos alunos e professores nas práticas escolares no momento em que elas são desenvolvidas, quando se criam novos conhecimentos que se agregam a cada uma das disciplinas, partindo das interações dos sujeitos no ambiente e de elementos de uma prática comunicativa que eles desenvolvem, mas não necessariamente Bolema, Rio Claro (SP), v. 23, nº 36, p. 801 a 808, agosto 2010 803 conhecimentos inerentes às disciplinas.

Como o próprio título – “Prática e aprendizagem: diferentes perspectivas” – do segundo capítulo sugere, nele são abordadas questões referentes à aprendizagem, apresentando diferentes perspectivas com destaque nas que adotam a visão de aprendizagem situada, a qual é objeto de fundamentação teórica da obra.

Na perspectiva de aprendizagem situada, ensino e aprendizagem são coisas distintas e podem estar ou não inter-relacionadas a uma situação escolar. Lave, referenciada pelas autoras, defende que a aprendizagem é mudança de participação em práticas sociais e, por isso, pode ocorrer sem que uma atividade intencional de ensino a preceda.

Uma questão polêmica dentro da aprendizagem situada, segundo as autoras, diz respeito à noção de transferência de aprendizagem, quando definida como movimento de um conhecimento abstrato e descontextualizado que pode ser aplicado em um amplo conjunto de situações, por não se encaixar bem na perspectiva desta aprendizagem.

No entanto, nas práticas escolares, partindo do pressuposto de que toda a aprendizagem é situada, nenhuma aprendizagem pode ser separada do seu contexto de origem, uma vez que ela é a própria participação em práticas sociais. Transferir a aprendizagem, ao contrário do que se possa pensar num primeiro momento, no entendimento das autoras, não significa transportar um conhecimento, abstrato e descontextualizado, mas algo que pode ser viabilizado a partir do estabelecimento de relações – entre os conhecimentos adquiridos e aqueles necessários em novos contextos – para a ressignificação da noção de transferência de aprendizagem.

A discussão, aqui, gira em torno do modo como a interdisciplinaridade em sala de aula se efetiva na perspectiva da tematização. A atividade, portanto, configura-se pelas ações dos professores e alunos direcionadas para a mobilização de conteúdos matemáticos para a discussão do tema “água” (um dos exemplos), bem como pelas possibilidades de fazer inter-relações entre as aprendizagens de várias disciplinas, percebidas no ambiente em que essas ações são realizadas.

Para discutir as aprendizagens tendo a totalidade como pano-de-fundo, e não apenas os alunos e professores, adotou-se uma noção da abordagem ecológica da percepção. Tal noção considera um aspecto da interação das pessoas ou dos animais com o ambiente, sendo a percepção entendida como um sistema que capta a informações para coordenar as ações das pessoas nos ambientes.

A Psicologia Ecológica considera que a aprendizagem é resultado de percepções recíprocas de possibilidades do ambiente e ações no ambiente. Nessa perspectiva, a aprendizagem é vista como prática intencional, consciente, ativa, construtiva e socialmente mediada em atividades que se realizam integrando a tríade intenção-ação-percepção.

Para analisar os processos cognitivos teve-se como referencial a linguagem como adotada por Greeno. São fundamentais, nesse aspecto, os termos “possibilidades” e “habilidades”, os quais fazem uma ligação entre os aspectos de cognição e do comportamento humano, do seguinte modo: as habilidades necessárias para uma pessoa participar de uma atividade dependem de sintonias para restrições e possibilidades a serem percebidas pela pessoa como condições do ambiente. O termo “possibilidades” refere-se a tudo aquilo que, no ambiente, contribui para o tipo de interação: são as pré-condições para a atividade que, por sua vez, estão diretamente relacionadas às restrições. Dessa forma, os termos possibilidades e habilidades são conceitos internamente inter-relacionados.

Por outro lado, se uma pessoa não consegue realizar transferência de aprendizagem, ou seja, tem dificuldade de aplicar o conhecimento em outras situações, então ela não adquiriu esse conhecimento de forma eficaz. Em suma, esta é a relação entre transferência e aprendizagem. O processo de transferência é influenciado não só pelas habilidades cognitivas da pessoa, mas também pelos aspectos culturais, pela interação das pessoas tomadas historicamente no ambiente.

As autoras concluem que numa atividade interdisciplinar o aluno realiza transferência de aprendizagem de uma situação para outra, já que essa transferência é a própria propulsora da aprendizagem situada, pois não se espera que algum conhecimento se preserve intacto de uma situação para outra nem que se crie sempre um conhecimento totalmente novo em cada situação. Complementam, ainda, afirmando que, toda vez que ocorre uma ampliação de sintonias para restrições e possibilidades percebidas no ambiente, ou uma ampliação de significados, pode-se dizer que foi construído um conhecimento novo, mesmo que ele não seja totalmente novo.

Nos capítulo terceiro e quarto (“O tema água gera uma atividade escolar interdisciplinar” e “Aulas de artes gerando oportunidades de interdisciplinaridade”) são narradas situações de sala de aula em que ocorrem diferentes abordagens interdisciplinares dos conteúdos escolares.

Duas das situações desenvolvidas estão pautadas num tema amplo: água. Na primeira, o tema foi desenvolvido pelas professoras das disciplinas de Português, Geografia e Matemática. A expectativa era de que, dessa forma, iria ocorrer uma ampliação de significados por parte dos alunos, levando-os a uma descontextualização dos conceitos matemáticos desses contextos específicos, porém, verificou-se que a ampliação dos significados ocorreu, mas a descontextualização desses significados não, e a participação dos alunos nas práticas em torno do tema focado foi marcada por contradições e rupturas que ficaram visíveis na transformação dos objetivos dos alunos e das professoras para este estudo ao longo do decorrer da atividade.

Além da tensão resultante de objetivos divergentes, a abordagem do tema em tempos diferentes, deixou mais complexo o conjunto de práticas escolares, e as autoras tiveram que recorrer à teoria da Atividade, a qual permite uma abordagem geral e interdisciplinar que oferece ferramentas conceituais e princípios metodológicos que se concretizam de acordo com a natureza específica da atividade desenvolvida em sala de aula. Além disso, esse enfoque possibilita a identificação de elementos dentro de um sistema, pois a cada elemento dessa atividade podemos associar outros conceitos importantes.

As características da interdisciplinaridade na atividade com tema “água”, segundo as autoras, são evidenciadas pela integração de idéias, ferramentas, linguagens, regras e conceitos das diferentes disciplinas envolvidas.

As práticas escolares, avaliam, incorporaram as especificidades da escola, dos seus sujeitos, do currículo, os traços culturais presentes no grupo e as práticas sociais mais recorrentes dentro e fora da sala de aula, apresentando as mesmas características das que eram desenvolvidas nas disciplinas, ainda que adquirissem significados diferentes.

Na disciplina Matemática, os episódios analisados evidenciam que os alunos participam de uma atividade (estudar sua conta de água) enquanto a professora está em outra atividade (ensinando regra de três). Como os motivos são diferentes, cria-se um sistema em que a transformação de motivos é também a transformação do objeto. Após encontrarem resultados e fazerem comparações, os alunos não conseguiam relacionar o procedimento adotado com a regra de três estudada anteriormente em sala. Esta dificuldade de associação gera barreiras para a transferência do que já sabiam de regra de três para aplicar na nova atividade. No entanto, as pesquisadoras constatam que os alunos ampliaram os significados associados à regra de três e citam, como exemplo, um aluno que desenvolve seu próprio método para realizar os cálculos.

Uma outra constatação das pesquisadoras é a de que os alunos utilizaram todas as informações adquiridas na matemática, por exemplo, nas atividades das outras disciplinas, atribuindo significados diferentes, adaptando a linguagem à nova situação em que estavam sendo usadas, reforçando o caráter situado das noções matemáticas.

A segunda atividade consistiu na resolução de problemas: foram definidas normas, regras, relações e ferramentas, ou seja, ficaram mais explicitas as possibilidades e as restrições que se apresentaram nesse ambiente. Os alunos utilizaram as informações das atividades das outras disciplinas, atribuindo-lhes significados diversos, também reforçando o caráter situado das noções matemáticas, relacionando saber escolar e não escolar.

Já a abordagem interdisciplinar desenvolvida nas aulas de Artes não apresenta ligação direta com um tema específico. As autoras relatam que as aulas ofereciam oportunidades ricas para exploração matemática, tais como das noções de ângulo, projeção, perspectiva e simetria. Estas noções, ao serem abordadas no campo das artes, adquiriram outros significados relacionados ao contexto, gerando uma aprendizagem situada da Matemática.

Uma turma optou por fazer uma peça teatral para conscientização sobre o problema da escassez da água. Para isso, utilizou técnicas de desenho artístico e geométrico, organizando dados numéricos em diagramas, gráficos e tabelas, além de se valerem do gênero narrativo para a elaboração do texto da peça.

As noções de perspectiva e leitura de planos numa obra de arte foram utilizadas por duas alunas em um desenho produzido para um trabalho de geografia. O grupo dessas alunas deveria apresentar propostas para a criação de estações de tratamento de água. Destaca-se, aqui, as potencialidades da explicação que usa como ferramentas as noções de perspectiva e planos, ressaltado o papel, para a construção dessas noções, das análises de pinturas de Van Gogh, o que torna explícita a transferência de aprendizagem. O empenho das alunas quanto à integração de conhecimentos de diferentes áreas configura-se como uma forma de interdisciplinaridade, que passa despercebida pelas professoras das disciplinas envolvidas. Resta uma dúvida: embora, para os alunos, as aprendizagens sejam resultantes de interações entre as disciplinas, não fica claro em que medida os professores envolvidos nas atividades tomam conhecimento delas (no próprio momento que as atividades eram desenvolvidas ou só após a discussão entre os professores e pesquisadores sobre a situação).

No último capítulo, “Implicações para a prática docente”, são apresentadas, como sugere o título, algumas implicações para as práticas de um professor que pretenda promover a interdisciplinaridade.

Fazendo uma reflexão sobre a forma como a atividade interdisciplinar com a temática “água” foi desenvolvida, evidenciou-se que a participação dos alunos não se resumia à simples recepção e reprodução de métodos ou informações transmitidas pelos professores. Tal atividade possibilitou um relacionamento positivo com a matemática, tendo em vista que proporcionou a ampliação da participação dos alunos nas atividades, integrando-os às suas realidades pessoais.

O poder de ação do aluno quando participa de uma atividade interdisciplinar ganha força, uma vez que a matemática é utilizada para propor soluções alternativas, criar argumentos, desenvolver métodos, enfim, ampliar significados. A ampliação deste poder de ação resulta no desenvolvimento da capacidade dos alunos de transferir métodos, formas de participação, linguagens e aprendizagem de uma disciplina para outra. Esta mudança quanto ao poder de ação caracteriza a trabalho como uma atividade interdisciplinar, ou seja, os alunos são capazes de criar ou questionar métodos de solução de problemas, adotando ou adaptando aos métodos escolares usuais seus próprios métodos.

O texto não deixa dúvidas de que a forma de organização dos conteúdos conduziu a práticas que geraram um ambiente favorável à participação mais ativa dos alunos. Destacam-se, neste cenário, duas iniciativas que podem gerar condições para que ocorra a aprendizagem por meio de transferência e para que seja possível concretizar atividades interdisciplinares. São elas: organizar propostas de ensino de matemática articuladas com outras disciplinas, optando pela tematização, e utilizar situações problemas que possibilitem a tradução matemática escolar de situações do cotidiano. Porém, ao destacar o sucesso do trabalho não se pode deixar de considerar o objeto de estudo, que pode ser um limitador para o desenvolvimento da proposta.

Por fim, Tomaz e David trazem uma constatação pertinente e fundamental para um trabalho interdisciplinar – a necessidade e vitalidade da interlocução entre os professores das diversas disciplinas – que pode ser um caminho para o desenvolvimento de ações mais sistemáticas.

Daise Lago Pereira Souto – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista – UNESP/Rio Claro. Mestre em Ensino de Ciências no Domínio da Modelagem Matemática, UNIJUÍ (Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul). Professora da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso), Faculdade de Ciências Exatas, Departamento de Matemática. E-mail: daiselago@gmail.com   

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