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Ensino de história e historiografia / Territórios & Fronteiras / 2013
Viajamos não só para eludir problemas constringentes da vida pessoal, nacional ou universal, mas para tentar uma identificação com o mundo, uma nova leitura de ambientes diversos. [1]
É com grande satisfação que apresentamos aos leitores de Territórios & Fronteiras o dossiê intitulado Ensino de História e Historiografia, que congrega o esforço de tematizar a relevância da história como disciplina escolar, focalizando suas potencialidades (e dificuldades) para a formação da consciência histórica das crianças e jovens, no diálogo com a historiografia e com os diversos agentes situados no cenário político, econômico, sociocultural, educacional.
Em sociedades complexas, plurais, diversas e divergentes, como estas em que vivemos na contemporaneidade, é sempre pertinente perguntarmo-nos sobre o sentido de ensinar e aprender história. Dito de outra forma, necessário é identificar em que aspectos fundamentais residem as potencialidades formativas da história ensinada em contextos escolares. Para cumprir esse propósito, partimos do pressuposto de que os conteúdos escolares se constituem nos processos de decodificação da cultura disponível na sociedade. Essa cultura selecionada (e privilegiada) está distribuída em torno de uma dúzia de disciplinas escolares que, grosso modo, resultam do consenso possível (sempre tenso e conflituoso) sobre o que as sociedades de cada época consideram conhecimento para todos [2].
Ainda, no processo de constituição dos conteúdos escolares ocorre a descontextualização do conhecimento em relação ao locus original da produção sociocultural e da área / ciência de referência, e a recontextualização em cenários escolares. Nesse percurso de descontextualização / recontextualização atuam inúmeros agentes [3], que vão desde aqueles mais externos à escola, como as políticas educacionais públicas, a sociedade civil, a cultura dominante, o mercado editorial, como aqueles elementos / atores que incidem diretamente dentro da escola, a exemplo de assessores pedagógicos, famílias, professores, alunos, materiais didáticos, dentre outros.
Com base em tais pressupostos, precisamos saber justificar por quais razões o conhecimento histórico foi privilegiado no seleto rol de conhecimento para todos e por que a história se encontra no elenco dessas cerca de doze disciplinas escolares da educação básica. Para cumprir esse propósito, trazemos aqui alguns argumentos sumários em torno das potencialidades formativas da história escolar na atualidade [4].
Ao debruçar-se sobre as experiências das diferentes sociedades em outros tempos e espaços, a história escolar dá a conhecer as chaves de funcionamento social do passado, constituindo-se assim uma espécie de laboratório para realizar exercícios de análise dos problemas enfrentados pelos sujeitos e grupos que nos antecederam. Nessa apropriação das chaves de funcionamento do passado, os jovens se capacitam, em maior ou menor medida, para compreender a complexidade dos fenômenos atuais, para dar inteligibilidade ao tempo presente e para melhor se situar na complexidade da vida contemporânea.
Existem noções e conceitos, verdadeiras categorias de análise do mundo social, que não são tratados com centralidade por nenhuma outra disciplina escolar além da História, como, por exemplo: pensamento histórico, consciência histórica, evidência, empatia, causalidade, multicausalidade, tempo, acontecimento, contexto, processo, dentre outros. Tais noções e conceitos são essenciais para a formação dos jovens, como chaves de leitura da experiência histórica que permitem aprender que todos os fenômenos pertencem à temporalidade, que há linhas de continuidade e semelhanças, mas também há rupturas, diferenças, mudanças.
A formação para a cidadania constitui uma das finalidades primordiais dos sistemas educativos contemporâneos. A história escolar traz contribuição fundamental neste intento, na medida em que coloca os jovens em contato com outras culturas, fazendo-os dialogar com as diversas maneiras com que os homens de outras épocas e lugares responderam aos desafios do seu próprio tempo, desenvolvendo sensibilidade social e estética, além de critérios para o pensamento crítico.
Nos limites dessa apresentação, não nos é permitido seguir tematizando as finalidades e potencialidades da história nos contextos escolares, ainda que esse breve anúncio não tenha conseguido dar conta do ambicioso propósito. De tal modo, para finalizar, concedemos a palavra aos autores que trazem suas contribuições a este dossiê.
O artigo Historiografia didática e prescrições estatais sobre conteúdos históricos em nível nacional (1938-2012), de Margarida Maria Dias de Oliveira e Itamar Freitas, inaugura o dossiê. Com a indagação “o que tem a ver o Estado com a elaboração dos conteúdos dos livros didáticos de História?”, os autores perscrutam os dispositivos normatizadores da produção, avaliação, circulação e usos do livro didático ao longo de grande parte do período republicano. Adotando acurada análise documental, Margarida e Itamar disponibilizam aos leitores elementos para compreender a eficácia do “sujeito Estado no trabalho da escrita didática da História”, no recorte temporal estabelecido, mas não deixam de apontar os espaços de manobra que podem ser aproveitados pelos autores, quando produzem textos didáticos para uso na história escolar.
Na sequência, Alexsandro Donato de Carvalho e Luís Alberto Marques Alves oferecem aos leitores o artigo intitulado A cidadania e a política educacional do governo Fernando Henrique Cardoso, no qual procuram demonstrar como o conceito de cidadania se instituiu na história brasileira, em suas articulações com as políticas educacionais recentes e com a história acadêmica e escolar. Concluem os autores que os documentos orientadores da educação brasileira no período estudado contemplaram a cidadania como meta a ser alcançada em diversas propostas curriculares e disciplinas, o que não significa que a mesma tenha realmente sido efetivada nas práticas escolares cotidianas.
Mairon Escorsi Valério e Renilson Rosa Ribeiro, com o artigo Para que serve a história ensinada? A guerra de narrativas, a celebração das identidades e a morte da política, convidam os leitores a refletirem sobre as implicações subjacentes aos atuais processos de deslocamento de um viés de ensino de história atrelado ao culto do Estado-nação, para uma perspectiva que exalta as memórias biográficas das pequenas comunidades. Num tom provocativo, os autores questionam se tal deslocamento não significaria a reprodução “da mesma lógica de fazer da história um discurso produtor de identidades essencialistas”, que negam a alteridade e terminam por fomentar a “desconstrução contínua e ininterrupta da esfera pública, o que representa por fim a morte da política”.
A narrativa histórica nos livros didáticos, entre a unidade e a dispersão, de autoria de Helenice Rocha, focaliza a discursividade que consubstancia os textos dos livros didáticos de história como um dos principais fatores de complexidade deste suporte cultural. Tomando como campo de análise o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e uma coleção aprovada em seu âmbito, a autora investiga os meios e recursos mobilizados pelos produtores de livros didáticos para fazer dialogar o texto principal e os textos complementares, concluindo que suas estratégias estão predominantemente relacionadas à manutenção da unidade da narrativa histórica.
Seguindo, Flávia Eloisa Caimi e Fabiano Barcellos Teixeira apresentam o artigo O passado é imprevisível! Controvérsias historiográficas acerca da Guerra do Paraguai no livro didático de História (1910-2010), que resulta de uma pesquisa diacrônica e longitudinal, onde se cotejaram as principais interpretações historiográficas sobre a Guerra do Paraguai, com as abordagens presentes nos livros didáticos ao longo de onze décadas. Partindo do propósito de identificar mudanças, permanências, tensões e diálogos que se estabelecem nas relações entre a produção historiográfica e a produção didática, os autores apontam uma aproximação bastante sensível entre esses dois universos, colocando sob suspeita a ideia comum de que existe um abismo temporal entre eles.
No artigo de Mauro Cezar Coelho e Wilma de Nazaré Baía Coelho sob o instigante título “Jogando verde e colhendo maduro”. Historiografia e saber histórico escolar no ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira, os leitores encontram uma discussão sobre o lugar da historiografia na conformação do saber histórico em projetos escolares orientados pela instituição da Lei 10.639 / 2003. Os autores indicam como principais desafios aos professores de História, o tratamento historiográfico do tema para promover uma consciência que resulte da crítica à memória, bem como a reflexão sobre um tipo de saber histórico escolar que ultrapasse visões eurocêntricas, sem promover outros mitos, cujos desdobramentos possam ser igualmente danosos.
Por fim, Ernesta Zamboni e Sandra Regina Ferreira de Oliveira trazem o artigo Resposta para uma aluna: são muitas as possibilidades para a escola pública. As autoras adentram as especificidades do espaço da escola por meio de um projeto de pesquisa em que buscam conhecer / problematizar o que os atores que lá estão entendem por histórias de sucesso escolar. Tomando para análise um rico material empírico, Ernesta e Sandra “discorrem sobre minúcias do cotidiano escolar que interessam a professores e pesquisadores de todas as áreas de conhecimento” defendendo que, a despeito da complexidade dos problemas que emergem dos espaços escolares, existem “muitas possibilidades para se fazer da escola um lugar melhor”.
O conjunto dos artigos do presente dossiê congrega pesquisadores da área de diferentes instituições de ensino das cinco regiões do Brasil e de Portugal. A diversidade das abordagens e temáticas apresentadas aqui traduz o universo amplo e rico de estudos em desenvolvimento nos territórios do Ensino de História no país, sempre expandindo e ressignificando suas fronteiras, construindo novas formas de pensar, ensinar e pesquisar o nosso fazer na interface entre a História e a Educação.
No lugar da fronteira, onde nos encontramos, podemos vivenciar, trocar e compartilhar saberes e práticas, mas também historiar os caminhos percorridos pela historiografia do Ensino de História, evidenciando escolhas de temas, teorias, metodologias e fontes de um campo de pesquisa em permanente diálogo com ensino e vice-versa.
Para a construção do presente dossiê se constituiu uma rede de interlocutores de diferente moradas com afinidades intelectuais e afetivas – que desfrutam, conforme propõe Jacques Derrida [5], de uma hospitalidade sem propriedade.
Notas
1. MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 1071.
2. Categoria apresentada por Javier Marrero Acosta, no artigo “O currículo interpretado: o que as escolas, os professores e as professoras ensinam?” In: SACRISTÁN, José Gimeno (Org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013, p. 188-208.
3. Ibidem. p. 190.
4. Essa breve sistematização está amparada especialmente nos estudos de Joaquín Prats, a partir das seguintes referências: PRATS, Joaquin. Ensinar história no contexto das ciências sociais: princípios básicos. Educar. Curitiba, n. esp., 2006, p. 191-218; PRATS, Joaquín (coord.). Geografía e Historia: investigación, innovación y buenas prácticas. Barcelona: Editorial Graò, 2011; PRATS, Joaquín e SANTACANA, Juan. Por qué y para qué enseñar Historia? In: GUTIÉRREZ, Leopoldo F. R.; GARCÍA, Noemí G. Enseñanza y aprendizaje de la Historia en la Educación Básica. Cuauhtémoc, México, D.F: Secretaría de Educación Pública, 2011.
5. DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
Flávia Eloisa Caimi – Universidade de Passo Fundo – UPF. E-mail: caimi@upf.br
Renilson Rosa Ribeiro – Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. E-mail: rrrenilson@yahoo.com
CAIMI, Flávia Eloisa; RIBEIRO, Renilson Rosa. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, número especial, v.6, n.3, dez, 2013. Acessar publicação original [DR]