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La Fura dels baus en quarentena. 40 anys de trajectória grupal: 1979-2019. Próleg per La Fura dels Baus – SAUMELL (Urdimento)
SAUMELL, Mercè. La Fura dels baus en quarentena. 40 anys de trajectória grupal: 1979-2019. Próleg per La Fura dels Baus. Barcelona: Angle Editorial, 2019. Resenha de GIMMLER NETTO, Maria Amélia. Urdimento, Florianópolis, v.1, n.37, p. 463-470, mar/abr 2020.
La Fura Dels Baus en Quarantena – 40 anys de trajectória grupal: 1979-2019 (ISBN: 978-84-17214-74-6), teve sua primeira edição lançada em outubro de 2019 em Barcelona pela Angle Editorial e La Fura Dels Baus. Com autoria de Mercè Saumell a publicação está no idioma catalão e é uma brochura de aproximadamente duzentas páginas com projeto gráfico/diagramação de Francisca Torres.
O livro dispõe de conteúdo interativo em formato de vídeo. Para ter acesso a este conteúdo é necessário baixar um aplicativo gratuito na App Store ou no Google Play e se necessita dispor de acesso à internet. Algumas das imagens do livro possuem um símbolo, que é uma seta preta ao lado ou abaixo, para identificar a presença do conteúdo interativo.
O índice, ou sumário do livro, apresenta sete capítulos acrescidos de Epílogo, Bibliografia, Discografia, Videografia e webs, além de um Histórico do La Fura Dels Baus. Há também uma breve apresentação da autora, além de uma sessão intitulada de Prólogo composta por trechos assinados por Àlex Ollé, Carlus Padrissa, Jurgen Muller, Miki Espuma, Pep Gall e Pera Tatiñá, artistas integrantes da companhia catalã.
Os sete capítulos do livro são: 1) Primeira Etapa: duas trilogias Fureiras; 2) Mudanças e permanências. Metodologias de criação; 3) O espaço público: propostas de rua e macroespetáculos; 4) La Fura Dels Baus e a Ópera; 5) Propostas de sala (indoor); 6) Transmissão de conhecimento. Formação e criação; 7) La Fura Dels Baus como objeto de estudo.
Esta resenha enfocará especificamente aspectos referentes à remontagem do espetáculo Manes (primeiro capítulo), às metodologias de criação (segundo capítulo) e às noções de formação e investigação em artes cênicas (sexto capítulo).
Repertório e Criação – A recriação de Manes Manes (1996) foi o último espetáculo da segunda trilogia Furera, ele fechou um ciclo criativo e, sendo assim, possuía referencias temáticas já desenvolvidas pela companhia, como a comida, o sexo, a vida e a morte. Manes é uma proposta cênica que não se baseia em um texto dramático, mas sim na ação em cena. A noção de tempo correspondia ao ritmo da peça e não a sua narrativa, e com essa peça o grupo colocava, mais uma vez, a expectativa do público frente a um aparente caos cênico.
O espaço onde se desenvolviam as ações era concebido de maneira assimétrica, de difícil controle pela percepção e olhar do público e a luz se diversificava em diferentes atmosferas, evocando em alguns momentos um ambiente Disco Club. Manes também vem a ser o primeiro espetáculo fureiro de autoria, assinado por Pera Tantiñá.
Esta encenação, de dimensões mais reduzidas que as anteriores da companhia, chamava a atenção por seu caráter mais artesanal e, para isso as dimensões da produção foram planejadas para que fosse possível se fazer uma turnê usando apenas uma caminhonete.
Na atualidade Manes é um caso singular de recriação no teatro catalão. A peça foi remontada em 2019, na ocasião da comemoração dos 40 anos do grupo. Para Tantiñá, voltar a levantar o espetáculo significa recuperar a essência do ritual fureiro para as novas gerações. Em Manes se destacam as emoções puras, primárias, a partir de uma proposta simples, muito energética e baseada na interpretação. Ela é arte sanal e analógica, sem a presença da tecnologia digital. A autora do livro considera que seria bem interessante fazer uma comparação entre a recepção da montagem de 1996 e a que foi feita depois de 2018.
Metodologias de criação – colaboradores, satélites e tecnologia O grupo, em seus projetos criativos, sempre pôs em tensão os limites entre as disciplinas ao buscar, por exemplo, a participação de filósofos na composição da dramaturgia, diretores de cinema, engenheiros robóticos e informáticos, ou chefs de cozinha. Para o artista Àlex Ollé, o trabalho do colaborador envolve uma especialização criativa e, também, a permeabilidade da equipe e exemplifica com a presença de um desenhador de luz que pode trazer uma ideia de matéria dramatúrgica, num processo de convivência criativa.
La Fura Dels Baus podem ser considerados criadores de teatro no sentido ontológico do termo, pois o entendem como uma vivência coletiva entre intérpretes e espectadores. Eles mesmos se afastam de uma possível polemica que os coloca fora do teatro pelo protagonismo da tecnologia em suas propostas. Em relação ao uso de tecnologias em cena o grupo é um dos pioneiros a introduzir recursos como aplicativos para uso do espectador, considerado multitasking, por sua atitude multitarefa identificada com as novas gerações. O grupo investe assim em um salto geracional considerando a percepção da nova geração que está habituada a manipular muita informação de maneira simultânea.
O convívio criativo entre colaboradores com suas diferentes especialidades, para a realização de um determinado trabalho cênico, abre espaço também para a criação de outros produtos. Os artistas do grupo denominavam Satélites a aqueles produtos que surgiam a partir de seu eixo criativo que são os espetáculos fureiros. Os satélites eram os concertos, as exposições, os discos, os vídeos. Esta ideia de criar satélites é a de traduzir o material cênico para outro suporte, uma prática habitual para o La Fura Dels Baus. Também, a incorporação da tecnologia digital mais sofisticada aos espetáculos, que ocorreu com o passar das décadas, significa um aumento do círculo de colaboradores e ao mesmo tempo novos desafios e possibilidades criativas inesperadas até então pelos diretores fureros. Ainda assim na atualidade, alguns membros do grupo continuam usando o desenho como ferramenta criativa. Porém a maioria das propostas já costuma ser preparada na frente do computador, para então se confeccionar um dossiê que apresenta a perspectiva criativa, a visualização dos elementos de cenário e de figurino e os detalhes técnicos da montagem.
No início dos trabalhos da companhia a autoria costumava ser compartilhada. O que importava era a livre circulação de ideias e de como elas se resolviam na prática criativa coletiva. O método de criação se assemelhava à criação coreográfica e se distanciava, portanto, dos procedimentos teatrais tradicionais de criação de cenas a partir de um texto escrito. O processo de criação do grupo era de caráter lúdico e compartido, sem assinaturas. Também não havia a necessidade de um discurso teórico elaborado: o discurso era a própria ação cênica. As ações que haviam sido escolhidas se sobrepunham com a finalidade de gerar narrativas mais complexas, criando estruturas e, ao mesmo tempo, uma metodologia própria baseada na experiencia. Os seus espectadores, desde os primórdios recordam haver experimentado uma forma de caos, uma sensação de risco. A autora do livro salienta que o que existia realmente era um risco estético, não físico e que a prova disso é o fato de que eles, os artistas fureros nunca sofreram um acidente grave em cena.
Depois de quarenta anos de trajetória, os diretores fureros são expertos em modelar o espaço de maneira muito orgânica e também de orquestrar as diferentes linguagens como a gestual, a sonora, a videográfica, entre outras, como se tudo fosse um processo sinestésico, friccionando os potenciais visuais, sonoros e espaciais de cada elemento que é incorporado ao processo. Os diretores fureros são quem marca o ritmo e os demais criadores vão se adicionando às dinâmicas já postas em marcha.
Sendo assim é o espaço cênico o primeiro suporte da ferramenta metodológica criativa, mais do que a geração de emoções por parte dos atores. Não é de se surpreender que o núcleo de colaboradores habituais da companhia tenha mais relação com o espaço do que com a interpretação, sendo eles escultores, engenheiros, cenógrafos, videoartistas, arquitetos, entre outros. Ainda assim, existem atores colaboradores que já trabalharam diversas vezes com a companhia, embora o mais habitual seja que eles contratem profissionais através de seleções de elenco. Dos artistas fundadores, Jurgen Muller foi o último a abandonar a cena como ator. Saumell considera que ele e Álex Ollé são, talvez, os artistas do grupo mais interessados no universo interpretativo, tanto no teatro como na ópera.
Investigação e Formação em artes cênicas Movidos pelo desejo de saber como funcionam os procedimentos de criação em arte, criadores, docentes, investigadores e estudantes rastreiam arquivos, indagam sobre o processo criativo, sobre os modos de fazer e pesquisam as genealogias artísticas. Talvez porque ferramentas criativas antes entendidas como segredos individuais, agora deixaram seu lugar para experiências de criação colaborativas e interdisciplinares.
Dentro desta realidade se está reformulando a educação e no centro deste debate estão as metodologias criativas, noção esta que ganha interesse até mesmo para o produto cênico final.
É inegável que algo está mudando na aprendizagem das artes cênicas e o mais interessante desta transformação é que a própria transmissão de conhecimentos passa a conter elementos performativos, de encenação e, no caso do teatro, a arte em si é forma final e método ao mesmo tempo. Desta maneira se podem estabelecer protocolos de transmissão de conhecimento que formam parte de projetos criativos, como se fossem catalizadores poéticos e, também, ativadores de diálogo entre gerações.
Sendo assim, estas novas formas de entender as artes cênicas repercutem, igualmente na forma de ensiná-las. As metodologias teatrais se aplicam reincidentemente a outros campos de estudo.
Atualmente se estabelecem áreas de colaboração entre teatro e educação, teatro e medicina, teatro e tecnologia ou teatro e urbanismo, entre outras. Conceitos como emoção, ficção, jogo e empatia, vinculados secularmente ao teatro, são maleáveis para a transmissão fora de seu contexto original por abrirem-se a outras disciplinas. Estes projetos colaborativos estimulam a criatividade e a inovação e o enriquecimento mútuo entre áreas de conhecimento. E não somente são uteis para o desenvolvimento profissional no ambiente das artes cênicas, mas sim para todos os participantes, provenientes de outros setores, através da aprendizagem experiencial, a experiência vivida.
A partir da prática da fricção furera – ou seja, do aprendizado que se dá pelo atrito da troca de experiencias entre colaboradores – desde a época inicial do coletivo, os seus membros expandiram aquele genuíno método de criação para outros artistas, colaboradores habituais ou ocasionais, a partir de um frutífero princípio de contaminação mútua. Princípios estes que contam também com um genuíno respeito aos processos de aprendizagem que se dão em ambiente criativo, abrindo-os aos participantes de worshops ou oficinas, seminários e outras iniciativas de formação.
A companhia percorreu uma larga trajetória neste sentido, desde os primeiros workshops iniciais, ministrados por seus diretores em festivais e seminários, até recente inauguração da Fundació Epica, em 18 de dezembro de 2018. Uma entidade sem fins lucrativos que se constitui em um espaço de aprendizagem multidisciplinar voltado para as artes cênicas, situada na antiga fábrica de móveis Rojas de Baladona. O trabalho a ser desenvolvido por esta recente fundação busca entender o processo criativo como um catalizador entre arte, ciência e tecnologia.
Muito vinculado à aprendizagem experimental, o conceito de laboratório vinculado às artes cênicas se forma ao longo do século XX. Segundo Saumell, a associação entre teatro e laboratório não é nova. Ela invoca aquele lugar onde se pode falhar e ao mesmo tempo se aprender com os erros. Esta atitude de experimentação e de transmissão de metodologias criativas próprias também vai acompanhar o trabalho de algumas companhias teatrais importantes surgidas na Europa nas décadas de sessenta e setenta. O Thèatré du Soleil, dirigido por Ariane Mnouchkine na França, Jerzy Grotowski com seu Teatro Laboratório na Polônia e depois na Itália, ou ainda o Odin Theatre, liderado por Eugenio Barba, na Dinamarca. A autora considera natural que o catalão La Fura Dels Baus, depois de quarenta anos, crie um laboratório que vise transmitir sua prática teatral abrindo-a para outras disciplinas.
A companhia catalã, de maneira intuitiva, sempre baseou suas propostas docentes e de investigação na experiencia como veículo de conhecimento. A colaboração e o trabalho em equipe, fatores que favorecem a criatividade e que foram postos em prática pela companhia desde sua origem, são conceitos fundamentais para esta metodologia.
Estas características alinham-se, também, com as correntes metodológicas mais inovadoras de ensinamentos artísticos. A ferramenta básica nesta perspectiva é a ação corporalizada, ao que os anglo-saxões denominam por embodiment.
Esta maneira de compreender a transmissão de conhecimento a partir da experiencia se enlaça com a prática artística como metodologia de investigação, também aplicada à docência e conectada internacionalmente com a noção de Practice as Research que, conforme Saumell nasceu na Escandinávia nos princípios dos anos vinte e começou a ser praticada, quase em paralelo, na Grã-Bretanha, nos EUA e no mundo acadêmico anglo-saxão. Nesta metodologia, ainda pouco desenvolvida na Espanha, se busca uma continuidade entre fazer-refletir-articular-fazer, em um ciclo que se inicia e acaba na ação. Assim sendo, a experiencia e o feito de experimentar se incluem dentro do saber, já que se incorporam conceitos como imaginação, jogo ou prazer em termos de igual para igual com a pesquisa de documentação, o desenvolvimento de visão crítica e a reflexão.
A autora do livro e seus futuros leitores Mèrce Saumell é doutora em História da Arte com uma tese sobre as companhias teatrais catalãs. Já deu aulas nas Universidades de Salamanca e Girona e agora é professora do Instituto de Teatro de Barcelona. Ela participa de diversos projetos de pesquisa de âmbito internacional e regional, é autora de livros e artigos especializados na área das artes cênicas e já participou de cursos e conferências na Finlândia, Lituânia, Brasil, Chile, Alemanha e Irlanda. O grupo catalão La Fura Dels Baus é um de seus temas de estudos principais.
O livro La Fura Dels Baus em quarentena (1979-2019) além de estudar as metodologias coletivas de criação, enfoca a consolidação de novos discursos cênicos. Ele também não deixa de ser uma biografia do grupo, lidando com acontecimentos cênicos como o impacto de suas primeiras propostas artísticas, a sua passagem pelas cerimonias olímpicas e as suas encenações de óperas e produções online. Seis de seus primeiros membros continuam desenvolvendo suas próprias linhas de trabalho e suas capacidades de risco e de contágio criativo proporcionaram a eles um amplo reconhecimento internacional entre público, critica e, também, para a pesquisa acadêmica.
Para tanto, a leitura deste livro é altamente recomendada para todos profissionais das artes cênicas, professores, estudantes e espectadores, enfim para todas pessoas que reconhecem na experiencia das artes cênicas a sua potência de prazer e empatia, de emoção, conhecimento e aprendizagem.
Referências
SAUMELL, Mercè. LA FURA DELS BAUS EN QUARENTENA. 40 anys de trajectória grupal:1979-2019. Próleg per La Fura dels Baus. Barcelona: Angle Editorial, 2019.
Recursos Eletrônicos
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Traductor Softcatalà. Marcos Grau developer. App compatible with Iphone. Versión: 3.2. Copyright Softcatalà 2011.
Maria Amélia Gimmler Netto – Profa. Ms. Curso de Teatro Licenciatura – Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Investigadora visitante no Centro de Ciências Humanas e Sociais de Madrid/ Espanha e Bolsista capes Print/UFBA 2019/20. mamelianetto@gmail.com.
Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] – GONÇALVES (B-RED)
GONÇALVES, Jean Carlos. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, 172p. Resenha de: FOMIN, Carolina Fernandes Rodrigues. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.14 n.3 São Paulo July/Sept. 2019.01
O livro Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] compõe a coleção Teatro, Série Pedagogia do Teatro, da Hucitec Editora, e traz um olhar investigativo que interliga diferentes campos do conhecimento: educação, teatro e estudos da linguagem. A obra valoriza o encontro e o diálogo dessas esferas, à medida que articula os conceitos advindos das formulações teórico-filosóficas do Círculo de Bakhtin sobre a linguagem com as vozes do teatro que ecoam na educação e as vozes da educação que ecoam no teatro.
O autor, Jean Carlos Gonçalves, é teatrólogo, diretor de teatro e professor de Práticas Teatrais na Universidade Federal do Paraná (UFPR), e vem traçando uma importante trajetória de reflexões acerca da linguagem, com base em pressupostos bakhtinianos. O livro, conforme o autor nos conta, foi concebido a partir de pesquisas anteriores: a tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR e revisões realizadas nos dois estágios de pós-doutoramento no Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (LAEL/PUC-SP). Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] corrobora a trajetória de reflexão de Gonçalves, que tem como pressuposto o dialogismo e não pretende categorizar ou engessar nenhum dos conceitos apresentados; ao contrário, o pesquisador busca aproximações e novas frentes de discussão.
A apresentação escrita por Beth Brait, supervisora dos Pós-Doutoramentos de Jean Carlos Gonçalves no PEPG em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da LAEL/PUC-SP, destaca o livro como uma forte contribuição à Análise Dialógica do Discurso (ADD) e como “uma encenação possível do texto referência, constituindo-se como única e irrepetível” (BRAIT, 2019, p.12). A expressão texto referência refere-se a “um universo vivo, movente, que não cessa de se expandir, exigindo dos que dele se aproximam (ou dos que são por ele atraídos…) muito estudo, muita dedicação, técnica, método, disciplina e, acima de tudo, uma excepcional capacidade de interpretação criativa” (BRAIT, 2019, p.11). Ao apresentar sua pesquisa, Gonçalves é protagonista dessa interpretação criativa, que se abre à vertente interdisciplinar do conhecimento ao mobilizar dialogicamente as vozes da cena e da pedagogia.
Sobre o referencial teórico da obra, Gonçalves convoca ao diálogo autores dos três campos disciplinares que se propõe a investigar em interconexão: linguagem, educação e teatro. As vozes são múltiplas e, especialmente no que se refere aos estudos da linguagem, o autor extrapola o âmbito dos textos de Bakhtin e do Círculo, evocando outros comentadores e pesquisadores dessa perspectiva teórica. O diálogo acontece também com outros autores da coleção Teatro, Série Pedagogia do Teatro, como Beatriz Cabral (2002), Flavio Desgranges (2006) e Gilberto Icle (2009).
Os enunciados objeto das análises – denominados memoriais – situam-se na esfera educacional e são produzidos por alunos-atores a partir dos processos de montagem de espetáculo, vivenciados durante sua formação como Bacharéis em Teatro-Interpretação da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Tendo como fundamento a ADD, que Brait (2019) indica no livro ser “uma perspectiva teórica que se apresenta, principalmente no Brasil, como uma possibilidade de interpretação dos estudos filosóficos-artísticos-discursivos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin e o Círculo” (p.12), Gonçalves analisa como os alunos-atores se enunciam, a quem enunciam e quais vozes ecoam nesses enunciados. Ele lê as entrelinhas dos enunciados, as vozes discursivas, os embates valorativos, as posições dos sujeitos que apontam para um horizonte social mais próximo (o da sala de aula e o das relações aluno/professor) ou mais distante (educação e teatro), e suas análises remetem a imaginários sociais que circulam nesses espaços. Contudo, não é objetivo do livro classificar o aluno, o professor ou o diretor de teatro em modelos teatrais ou acadêmicos. O autor busca compreender as vozes que constituem os enunciados dos memoriais que analisa.
O livro está inserido em uma cadeia discursiva que dialoga com elos precedentes e posteriores das esferas que investiga, a cujos enunciados responde ativamente. Alguns desses enunciados estão explícitos e referenciados; outros, implícitos nas diferentes vozes e imaginários sociais presentes na sociedade em geral e nos memoriais analisados no livro. Lembrando Volóchinov (2017, p.219; itálicos no original) “um livro, ou seja, um discurso verbal impresso também é um elemento da comunicação discursiva” e está imerso em uma “discussão ideológica em grande escala: responde, refuta, ou confirma algo, antecipa as críticas possíveis, busca apoio e assim por diante”. E, para o pensador russo, a partir de uma determinada situação de um problema científico, “esse discurso verbal é inevitavelmente orientado para discursos anteriores tanto do próprio autor quanto de outros”.
Como um enunciado, elemento de uma comunicação discursiva, chama-nos a atenção a forma como Gonçalves apresenta e intitula cada uma das partes dessa obra. Primeiramente, destacamos o fato de que a introdução e a conclusão são nomeadas Ensaiando uma introdução e Ensaio aberto, respectivamente. Ao fazer analogia com os ensaios no teatro, Gonçalves aponta para o não acabamento e a não necessidade de se encerrar discussões. Tal qual um ensaio, a obra se coloca como diálogo aberto e aberta a diálogos.
Em Ensaiando uma introdução, Gonçalves nos aproxima do primeiro ensaio de uma apresentação cênica, em que vivências, objetivos e aproximações teóricas são postos em jogo, inaugurando caminhos. Nesse preâmbulo, o autor objetiva compreender o processo de criação teatral na universidade, assume que as relações entre teatro e universidade serão pensadas a partir da ADD e manifesta o diálogo com seu objeto, com o leitor, com os autores que leu e consigo mesmo.
A primeira parte do livro, em que Gonçalves situa as análises e faz acordos teóricos com o leitor, contém dois capítulos, intitulados Pesquisar o teatro feito na universidade e Pesquisar em perspectiva bakhtiniana, respectivamente. No primeiro, antes de trazer as vozes de outros autores, Gonçalves declara o seu lugar teórico e prático e se coloca como “um sujeito intérprete, que analisa seus dados a partir de sua visão única, de seu lugar no mundo, unindo os resultados da sua análise ao seu próprio gesto interpretativo” (p.29). Lembrando Bakhtin (2017, p.36), “não se pode separar interpretação e avaliação: elas são simultâneas e constituem um ato único integral. O intérprete enfoca a obra com sua visão de mundo já formada, de seu ponto de vista”. Consciente disso, além de apresentar um contexto maior, o da criação teatral na esfera acadêmica, Gonçalves conta seu percurso na universidade e assume que suas análises serão permeadas por posições valorativas, um pressuposto de análises em perspectiva bakhtiniana. O autor salienta a impossibilidade de categorizações ou caracterizações estritas para análises que têm como objeto o teatro ou o fazer teatral, pois, nas palavras de Gonçalves, “narrar, descrever o processo de criação teatral, é debruçar-se sobre ele de forma que se possa refletir sobre vivências” (p.31). Com isso, o próprio processo de análise se transforma em um enunciado.
Para o capítulo seguinte, Pesquisar em perspectiva bakhtiniana, Gonçalves faz um levantamento de autores que se dedicaram a essa aproximação entre as artes da cena e as formulações de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev e afirma que a pesquisa dessa relação “parece ainda não ter tido seu momento de acontecimento. No Brasil, pouquíssimos pesquisadores têm-se dedicado com afinco a estudar as aproximações possíveis entre o pensamento bakhtiniano e as artes da cena” (p.45), motivo pelo qual essa obra se mostra tão importante. Dentre os principais conceitos apresentados nesse capítulo, estão: alteridade, interação, campo/esfera, vozes discursivas, multivocalidade, posições axiológicas e autoria. Esses conceitos são premissas e dão sustentação às análises que atravessam todo o livro.
A segunda parte da obra também se divide em dois capítulos: Vozes da educação no teatro e Vozes do teatro na educação. Neles, Gonçalves instiga o leitor a refletir sobre o jogo de vozes e a multivocalidade presentes nas esferas que se propõe a analisar a partir da perspectiva dialógica: educação e teatro.
Em Vozes da educação no teatro, o primeiro tópico está relacionado aos imaginários sociais referentes ao professor enquanto condutor de práticas teatrais na universidade. “Seria ele um professor-diretor?” é a pergunta que instiga a discussão. O próximo tópico vai ao encontro de questões relacionadas à autoridade docente. Por meio da pergunta “quem decide?”, o autor discute a heteroglossia, o encontro sociocultural de vozes sociais e os jogos dialógicos de dizeres que se cruzam. A questão da avaliação em teatro é provocada pela pergunta “Vai ter nota?” e o capítulo se encerra com a problematização do espaço físico da sala de aula como espaço de ensaios. Novamente, chama a atenção a forma de apresentação dos enunciados, pois cada um desses subitens, ao invés de nomear conceitos ou categorias de análises, são, na verdade, perguntas pelas quais o autor busca provocar o leitor e mobilizar discussões. Ou seja, perguntas que convocam o leitor ao diálogo.
Em Vozes do teatro na educação, segundo capítulo da Parte II, os subitens seguem apresentados em forma de perguntas. Primeiro, Gonçalves questiona se os processos de criação cênica a partir do modelo de processos colaborativos seriam uma utopia, distinguindo conceitos como coletividade e processos colaborativos. Na sequência, aborda a autoria nos memoriais analisados e a “multivocalidade constituinte dos sujeitos e seus enunciados” (p.127). Já no segundo tópico, debate o modelo de encenação teatral (ou se haveria um modelo) e as acepções da figura do diretor teatral. Nesse ponto, o autor ressalta as principais diferenças entre ensaiador, encenador e diretor teatral, bem como a figura do professor. Os memoriais analisados apontam para os imaginários sociais, uma vez que “as vozes estão imbricadas, sobrepostas, gerando outros sentidos, outras possibilidades de significação na própria situação comunicativo-discursiva” (p.143). No último subitem, a partir da noção de teatro de grupo correlata à formação em teatro na universidade, Gonçalves destaca o conceito de forças enunciativas centrípetas (que tendem a centralizar o poder) e centrífugas (que resistem a um poder imposto). Antes de finalizar o capítulo, entretanto, ainda discorre sobre o conceito de alteridade.
Percebemos que a distinção entre vozes do teatro na educação e vozes da educação no teatro tem caráter didático e necessário, mas uma voz não poderia ser analisada sem a outra, pois, como indica o autor, há uma “amálgama de vozes” (p.125) e os enunciados (os memoriais analisados) apontam para vozes “conversando entre si, se reconhecendo num mesmo espaço dialógico” (p.125).
A conclusão do livro é intitulada Ensaio aberto, referindo-se a prática de grupos de teatro de convidar pessoas para assistir a um ensaio, antes da estreia, e, nesse ensaio, o público é convidado à interlocução. Ao escolher esse título para as considerações finais do livro, o autor explicita que seu olhar é um dentre outros possíveis e convida o leitor a novas proposições para a criação teatral a partir da perspectiva dialógica de Bakhtin e do Círculo. Em perspectiva dialógica, “um texto, assim como uma voz, é algo que sempre chama outros, que sempre faz com que outras vozes cheguem, seja por intenção, seja por efeito. […] as vozes são múltiplas e múltiplos são os momentos e os modos em que elas se fazem ouvir” (AMORIM, 2004, p.155). O autor, à vista disso, dialogicamente convida o leitor a ouvir e se fazer ouvir do primeiro ao último ensaio do livro, da introdução às considerações finais.
Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] é uma importante contribuição aos pesquisadores interessados tanto nas Artes Cênicas (e Artes do Corpo), como em Educação e Linguagem. Essa obra, enquanto enunciado, modifica as pesquisas nessas esferas e incita novas reflexões a respeito dos campos disciplinares que propõe investigar por meio do objeto de análise: os memoriais dos alunos em formação em teatro. Ao apresentar um estudo que articula e inter-relaciona esses campos de estudo, Gonçalves nos instiga a perceber que as fronteiras entre teatro, educação e linguagem não são absolutas, mas, ao contrário, estão em diálogo – e as vozes de um campo atravessam as do outro, refletindo e refratando outras vozes discursivas.
Referências
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004. [ Links ]
BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017, p.21-56. [ Links ]
BRAIT, B. Entre a cena e a pedagogia, o dialogismo. In: GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, p.11-15. [ Links ]
CABRAL, B. Avaliação em teatro: implicações, problemas e possibilidades. Revista Sala Preta, n.2, p.213-220, 2002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57093/60081. Acesso em: 28/02/2019. [ Links ]
DESGRANGES, F. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006. [ Links ]
ICLE, G. Pedagogia teatral como cuidado de si. São Paulo: Hucitec, 2009. [ Links ]
VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório deSheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [ Links ]
Carolina Fernandes Rodrigues Fomin – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP), Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, SP, Brasil; CAPES PROSUC, Proc. 88887.314270/2019-00; https://orcid.org/0000-0001-5120-049X; carolfomin@gmail.com.