Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros – ENDERS (VH)

ENDERS, Armelle. Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. 392 p. CEZAR, Temístocles.  Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 55, Jan./Abr. 2015.

Imaginemos Plutarco no Brasil. Parece ser mais fácil imaginar um Plutarco Brasileiro. Foi o que fez João Manuel Pereira da Silva em 1847 ao publicar O Plutarco brasileiro, pela editora Laemmert. Armelle Enders imaginou as duas situações: em 2000, a historiadora francesa publica, na revista Estudos Históricos, o artigo ‘O Plutarco Brasileiro’. A produção dos Vultos Nacionais no Segundo Reinado (http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2114); em 2012, a versão de sua tese de habilitação, defendida na Sorbonne em 2004, intitulada Plutarque au Brésil: passé, héros et politique, 1822-1922 – pela editora Les Indes Savantes, de Paris – que aparece agora em português sob o título Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Plutarco é uma espécie de fantasma que atravessa constantemente as paredes deste panteão de papel que os letrados brasileiros esforçaram-se por erigir. Nesse sentido, tanto para Pereira da Silva quanto para Enders, Plutarco é, simultaneamente, um instrumento heurístico e uma hipótese de trabalho.

Quem foram, quem são, nossos grandes homens, nossos homens ilustres, nossos heróis? Tiradentes, José Bonifácio ou Getúlio Vargas encarnam no plano nacional este papel de varão de Plutarco. A colocação da questão nestes termos não dissimula um problema de ordem historiográfica. Afinal, são personagens cuja importância simbólica depende da conjuntura política e do regime de historicidade no qual adquirem fisionomia. É nas disputas pela memória entre a independência de 1822 e sua comemoração um século depois que Enders analisa tais tensões. Nessa duração média seria instalada uma espécie de fábrica historiográfica e pedagógica, na qual heróis ganhariam vida – passada e/ou presente.

Em sete equilibrados capítulos, uma introdução densa e uma conclusão que abre novas possibilidades de pesquisa, Enders apresenta um século que não cabe em si. Ele é pleno de projetos, alguns abortados em sua gênese, outros abandonados pelo caminho, outros ainda que permanecem e se convertem em políticas e em instituições públicas, cujos efeitos lançam-se como luz ou sombra para a ulterior história do Brasil.

No primeiro capítulo, “Os Tácitos no senado”, nota-se também a presença dos antigos como instrumento de inteligibilidade tanto para a fonte que dele se serve quanto para a análise de Enders. Assim, Joaquim Manuel de Macedo explica que estes Tácitos não escreveram a história da independência posto que estavam ocupados fazendo a independência. Pedro I e José Bonifácio são figuras incontornáveis desta conjuntura.

De Pedro II à Republica ou “o império da história”, ou de “Como se deve escrever a história do Brasil”, ao “Plutarco Brasileiro” e à “Fábrica de benfeitores” no qual é ressaltado a atuação dos positivistas, respectivamente, segundo, terceiro, quarto e quinto capítulos, Enders examina com detalhes os fundamentos institucionais e os enunciadores desta prática discursiva responsável pela fabricação dos heróis nacionais.

“Porque me ufano do meu país”, título do polêmico livro de Afonso Celso de 1900, é apropriado por Enders no sexto capítulo com o objetivo de investigar a releitura do passado (por exemplo, a figura de Tiradentes, o centenário de 1808 ou a reavaliação dos bandeirantes) e do presente (por exemplo, Santos Dumond, o Barão do Rio Branco) empreendida pelos homens da Primeira República.

O sétimo capitulo é dedicado à resposta a seguinte questão: “1822-1922: um século para nada?”. 1922 teria sido um ano difícil para a sociedade brasileira. Para o povo como sempre, mas também para os intelectuais, artistas e políticos. Enders fala mesmo de um clima indutor de certa “introspecção nacional”. Uma efeméride “eloquente”, muitas obras, certa tristeza no ar e a abertura para um futuro que logo escapará de seus contemporâneos.

Notável exercício de história da historiografia, o erudito trabalho de Armelle Enders torna-se imediatamente uma referência incontornável para os estudiosos do período e do tema. Ressalta-se a competente tradução de Luiz Alberto Monjardim de Calazans Barradas e a edição cuidadosa da Editora FGV. A historiadora é uma arguta observadora da realidade nacional (eu pensei em escrever da “nossa” realidade, como se Enders fosse uma pesquisadora de “olhar distante”, mas seria injusto pois Armelle não é uma brasilianista, ela não escreve desde um ponto de vista francês ou europeu, mas desde uma compreensão inequívoca da história brasileira em a que a cultura historiográfica não se divide em nós e eles). Não é sem razão que na conclusão não lhe escapam as figurações modernas dos heróis nacionais, entre os quais Zumbi, elevado a tal condição por pressões dos movimentos sociais acatadas pelo então presidente da República, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que inclusive decreta o 20 de novembro como “Dia da consciência negra”.

Porém, gostaria de concluir esta pequena resenha, retomando o “modelo” Plutarco. Um herói de verdade deveria subjugar as injunções entre o político e o histórico, deveria estar acima das querelas, deveria aliar mito e história. Ele não poderia mais ser um homem do século XIX, nem do período colonial, mas do final do século XX. Alguém que conseguisse despertar paixões coletivas. Logo, o “herói completo” não poderia mais ser um mártir social ou um homem político, mas uma celebridade, um star, que, se possível, ultrapassasse as fronteiras da nação. Ayrton Senna seria, para Enders, um bom exemplo deste tipo-ideal de herói requerido pelo mundo contemporâneo. Portador de traços aristocráticos, característica dos heróis anteriores ao Estado-Nação, mestre na arte de pilotar carros de corrida sofisticados, esporte ligado ao que há de mais moderno na atualidade, o habilidoso piloto, em cujo capacete exibia para quem quisesse ver as “cores do Brasil”, tinha por seu país um “patriotismo quase místico” (p. 12) que arrebatava multidões. Para completar morreu cedo, fazendo o que mais sabia e o que mais gostava. Como Aquiles.

A fábrica de homens ilustres, de grandes homens, de celebridades e de heróis do momento, ora comemorados, ora esquecidos, é, como demonstra Enders, uma instância intelectual da sociedade capaz de gerar e de apagar memória(s) e de constituir e de desestabilizar identidade(s).

Temístocles Cezar – Departamento de História Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Bento Gonçalves, 9.500. Prédio 43.311, s. 116 Porto Alegre, RS, 91.509-900, Brasil t.cezar@ufrgs.br.