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Empoderamento | Joice Berth
Para meu amigo Beto,
o Robert Santos Dias,
negro, de periferia,
consciente de si e do mundo,
empoderando-se a si e à sua comunidade.
Sob a coordenação de Djamila Ribeiro, a coleção “Feminismos Plurais” lançou em 2019, seu terceiro livro: “Empoderamento” de Joice Berth, arquiteta e urbanista, pós-graduada em Direito Urbanístico, Feminista Interseccional Negra e integrante do Coletivo Imprensa Feminista. Assessora parlamentar, dedica-se a pesquisas sobre gênero, raça e cidades. É colunista do site “Justificando”, especializado em Direitos Humanos e Política em geral, e da revista “Carta Capital”.
Ao longo dos cinco capítulos de “Empoderamento”, Berth traça um panorama histórico da palavra em tela, relaciona-a às opressões estruturais, aos mecanismos de participação social, discute sua ressignificação pelo Feminismo Negro e a insere no debate sobre estética e afetividade.
Sua análise sofisticada, contraria o capitalismo e as hierarquias do patriarcado, estimula o pensamento agudo e sério sobre o conceito “empoderamento”, no intuito de demover o status quo, a lógica racial segregacionista brasileira e a necropolítica em curso, haja vista que compreende “empoderamento” como instrumento de emancipação e erradicação das estruturas que oprimem.
Em seu livro a urbanista problematiza a utilização do neologismo “empoderamento” pelo senso comum, qual seja aquele que o entende como o ato de acumular dinheiro e angariar prestígio individual. Critica o processo de colonização das estruturas sociais de poder, dos corpos e da subjetividade, passando em revista a sanha branco-europeia sempre disposta a encobrir suas intencionalidades econômicas e políticas, as quais geram desigualdades para uns e patrocinam privilégios para outros.
É possível depreender do escrito por Berth que para além do empoderamento-show de “anittas” e a exposição de corpos supostamente senhores de suas regras, ser “malandra” não é sinônimo de ser empoderamento. Pois, ora, supostos ícones midiáticos podem não se empenhar contra as violências sofridas pela população negra, muito menos exercerem em sua arte e realidade concreta, uma práxis para a libertação sua e de grupos oprimidos. Logo, empoderamento será materializado na escrita de Berth como a condução articulada de indivíduos e grupos marcados por gênero, raça, sexualidade e outras categorias, ou seja, sujeitos reais, de carne e osso, que sofrem, que vivem e gozam, historicamente subalternizados para a autoafirmação, que pode ser financeira, estética, afetiva.
Não à toa, denuncia a autora que a inferiorizarão da aparência e da estética negra em detrimento da branca é um dos dispositivos que sustentam e justificam o sistema de opressão e exploração vigentes em nossa sociedade, e que a agressão aos corpos e subjetividades negras dificulta o desenvolvimento do amor, de parceiras e vínculos inclusive, entre si.
O estudo teórico de Barth nos faz refletir sobre representações sociais baseadas na articulação raça/gênero no cotidiano das pessoas, especialmente de mulheres negras, as quais estariam desde logo “fora do ‘mercado afetivo’ e naturalizadas no ‘mercado do sexo’, da erotização, do trabalho doméstico”, o que contrasta com a figura das mulheres brancas, “pertencentes ‘à cultura do afeto’, do casamento, da união estável” (BERTH, 2019, p. 146).
Como empoderamento não pode ser pensado ao largo das relações de poder que estruturam a sociedade, a autora feminista discutirá termos-chave como autovalorização, autorreconhecimento, autoconhecimento de si mesmo, afetividade e, especialmente, a necessidade de as sujeitas e os sujeitos desenvolverem uma conscientização quanto a sua posição social e política.
Apoiada em Paulo Freire, como se sabe, leitor de Guerreiro Ramos, bell hooks, Nelly Stromquist, Angela Davis, a autora é taxativa: mesmo que determinados sujeitos ascendam economicamente e contrariem as estáticas e o lócus reservado para sua coletividade, enquanto a comunidade marginalizada da qual faz parte não se empoderar, eles continuarão em constante fragilidade social, expostos às violências que atingem sua coletividade.
Aprende-se com a leitura de Berth que, a ideia clichê acerca do que seja empoderamento não colabora para a reversão de um histórico de legislações e artimanhas racistas cínicas que sustentam, desde o período colonial, o privilégio da classe dominante, leia-se branca. O rebaixamento discursivo em torno do empoderamento nubla o fato de que a emancipação representa um movimento dos subalternizados – todes2 – à erradicação de seus mais profundos problemas. Essa reflexão é uma das teses desenvolvidas por Berth e nos dá dimensão da importância do livro.
A “malandragem” do empoderamento na obra de Berth se aparta do stablishment, a saber, comprometida que está com a retificação de processos escravocratas impostos por meio da violência física, genocídio, memoricídio, epistemicído e alienação mental, capaz de estancar a opressão e as desigualdades, porque amplia a ideia de democracia e participação cidadã.
E como isso se produz na prática? Segundo o texto ora resenhado, por meio do auto empoderamento em quatro perspectivas distintas, mas não antitéticas ou hierárquicas: dimensão cognitiva, ou seja, desenvolver visão crítica da realidade; psicológica, fortalecendo o sentimento de autoestima; política, com vistas à problematizar a desigualdade de poder, aprender a se organizar e se mobilizar; e a econômica, capacidade de gerar renda independente.
A compreensão proposta sobre o que seja “empoderamento” é, portanto, ampla. Trata-se de uma Teoria do Empoderamento com vistas à decolonização política. Teoria que interpela à ação (e não o constante lamentar e arrastar de dores) de sujeitos não alinhados com os fetiches do liberalismo individualista, egocentrado, patriarcal e meritocrático.
Distantes desses pressupostos liberais, iluministas, assentados no patriarcado e no sexismo – formas de docilização dos sujeitos e subjugação –, coadunados com um autodirecionamento e ajuda mútua, responsabilizando-se por enfrentar as estruturas opressoras, sujeitas e sujeito empoderados devem promover métodos de cura e fortalecimento entre a população negra. Isso implica fortalecer a subjetividade de pessoas negras, descontruir imagens estereotipadas como a do homem negro perigoso, da mãe preta, da mulata fogosa, do malandro, as quais implicam um sentimento constante de distorção e não pertencimento, porque enfraquecem “sistematicamente suas possibilidades de desenvolver o amor por si mesmos e o reconhecimento de seus pontos positivos e até de sua humanidade” (BERTH, 2019, p.143). Em suas palavras,
Seria estimular, em algum nível, a autoaceitação de características culturais e estéticas herdadas pela ancestralidade que lhe é inerente para que possa, devidamente munido de informações e novas percepções críticas sobre si mesmo e sobre o mundo em volta, e, ainda, de suas habilidades e características próprias, criar ou descobrir em si mesmo ferramentas ou poderes de atuação no meio em que vive e em prol da coletividade (BERTH, 2019. p.21).
Nas considerações finais, Berth retoma as/os teóricas/os por ela estudadas/os, lista que vai de Paulo Freire à Frantz Fanon, de Djamila Ribeiro à Grada Kilomba, de Sueli Carneiro à Jota Mombaça, defendendo a posição de que “os oprimidos devem empoderar-se entre si e o que muitos e muitas podem fazer para contribuir para isso é semear o terreno para tornar o empoderamento fértil” (BERTH, 2019, p.143).
O/a leitor/a atento deverá terminar a obra compreendendo que se empoderar é trabalho essencialmente político e que envolve a coletividade. Se ninguém ensina nada a ninguém, se aprendemos mediatizados pelo mundo, do mesmo modo, quando o modelo de poder vigente é questionado, devemos apreender que não é possível empoderar alguém, senão uma ação que se faz em conjunto, bem distante do “empoderamento pasteurizado, de fachada, paternalista, mais interessado em manter o estado atual das coisas” (BERTH, 2019, p. 154).
“Empoderamento” de Joice Berth estimula a ebulição de sujeites empoderados, cujas demandas ampliam o conceito de humanidade. Favorece o potencial transformador negro (e por que não branco-antirracista como eu), acolhedor da diferença; promove contatos com redes de empoderamento para a afirmação, a valorização e o reconhecimento do poder intrínseco a todes.
Deve ser lido por todes, simples assim, de qual área de conhecimento for, crianças e adultos, idosas e donas de casa (idosas ou não), moradores do Capão Redondo e do Morumbi, do Alto do Mundaí ou da Vila Valdete, até porque, na sociedade capitalista, panóptica e agressiva em que vivemos, quem estará sempre potencializado e completamente ileso, protegido, resguardado?
Empoderar-se implica na poética construção de outra sociedade e não no opaco mundinho de egos, prestígio, views, likes e biscoitos do Instagram. Há pandemia, pandemônios, poços profundos abertos em tempos de crises globais e capitalistas. Apenas sujeitas e sujeitos empoderadas/os poderão nos tirar do abismo no qual nos metemos e do distanciamento afetivo, ecológico, social.
Alexandre Osaniiyi (Alexandre de Oliveira Fernandes) – Doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Professor do Instituto Federal de Educação da Bahia – IFBA / Porto Seguro. Professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – PPGREC/UESB/Jequié. Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Educação das Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB. Líder do Grupo de Pesquisas em Linguagens, Poder e Contemporaneidade – GELPOC. http://orcid.org/0000-0002-1556-4373. Email: alexandre.pro@gmail.com. Endereço: Instituto Federal de Educação da Bahia. Br: 367, Km: 57, 5. Bairro: Fontana I. Porto Seguro – BA, CEP: 45810-000. Instituto Federal de Educação da Bahia, IFBA / Porto Seguro.
BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo. Polém Livros. 2019, p.184. Resenha de: OSANIIYI, Alexandre. Empoderamento e relações de poder: tornar-se um/a sujeito/a. Abatirá. Eunápolis, v.1, n.1, p.456-460, jan./jun, 2020. Acessar publicação original [IF]