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La história como campo de batalla: interpretar las violencias del siglo XX / Enzo Traverso
Enzo Traverso / Foto: Estaeslalibreria /
A violência é um fio condutor viável para se compreender a historização do século XX? E ainda: o “campo de ruínas” em que consiste o século em questão oferece condições para a produção de conhecimento, enquanto fonte para reflexões no âmbito da Teoria da História?
As perguntas com que esta resenha se inicia podem ser respondidas por meio do livro La História como campo de batalla: interpretar las violencias del siglo XX, de Enzo Traverso, publicado originalmente L’histoire comme champ de bataille: interpréter les violences du XXe siècle, em Paris, em 2011, sem ainda tradução para o português. Objeto de investigação de um variado número de historiadores, o século XX se recusa a uma definição final: “A era dos extremos” (HOBSBAWM, 1995), “o tempo das crises” (REIS FILHO; FERREIRA ZENHA, 2000), “o século esquecido” (JUDT, 2010), “o século sombrio” (TEIXEIRA DA SILVA, 2004) são algumas das definições cunhadas pela historiografia recente. Traverso não destoa dessas acepções, definindo-o, sobretudo, como a era da violência, das guerras totais, das revoluções que naufragaram e das utopias que desmoronaram (TRAVERSO, 2012, p. 325).
Enzo Traverso é um historiador italiano – professor de Ciência Política na Universidade Cornell em Nova Iorque – conhecido, principalmente, por trabalhos acerca da primeira metade do século XX e de seus regimes totalitários. O livro objeto desta resenha é uma compilação de artigos de origens distintas que se relacionam por abordarem um mesmo objeto: os debates historiográficos em torno das violências do mundo contemporâneo, tendo como pano de fundo as interpretações globais do século XX como a idade das guerras, dos totalitarismos e dos genocídios. Desse modo, o autor problematiza os fenômenos político-ideológicos que influenciaram o desenrolar do conjunto de experiências que definem o status calamitoso desse século, como as Revoluções de 1789 e 1917, o Holocausto judaico e os movimentos anticolianiais.
O ponto de partida do historiador é o ano 1989, que, em seu critério analítico, não se inscreve na continuidade de uma temporalidade linear; ao contrário, indica um limiar, finaliza uma época para dar início à outra. A queda do muro de Berlim constitui um momentum de uma época de transição que mudou radicalmente a paisagem intelectual e política do mundo, modificando vocabulários e substituindo antigos parâmetros. Assim, conclui que 1989 alterou não apenas a geopolítica europeia, mas a maneira de interpretar e escrever a história do século XX (TRAVERSO, 2012, p. 15).
Entre as alterações mais significativas na operação historiográfica, o autor destaca três: o auge da História Global, o retorno do acontecimento e o surgimento da memória. São esses três momentos que estruturam os oito capítulos do livro. A História Global, ele explica, não é uma história das relações internacionais que analisa a coexistência e os conflitos entre Estados soberanos, mas um campo historiográfico que observa o passado como um conjunto de interações, de intercâmbios materiais e transferências culturais que estruturam as diferentes partes do mundo em um conjunto de redes. O retorno do acontecimento como foco de atenção dos historiadores, por sua vez, é apontado como um epifenômeno do fim da Guerra Fria em contraponto à sua redução a uma “agitación da superficie” levada a efeito pela perspectiva de longa duração. Finalmente, no período pós-Guerra Fria, vê-se a eclosão de uma infinidade de memórias, fruto das experiências pessoais das vítimas dos diferentes conflitos ocorridos ao longo do século, que assumirão um espaço privilegiado nas novas abordagens, tanto como fonte quanto como objeto de investigação histórica.
Estruturalmente, o “campo de batalha”, a que Traverso se refere no título da obra, forma-se no âmbito teórico de, pelo menos, dois modos: por um lado, Traverso evidencia que a verdade histórica está em constante tensão com a realidade; por outro, atesta a emersão de perspectivas conflitantes com as teorias tradicionais de interpretação dos fenômenos do século XX. Por exemplo, o entendimento que define as potências europeias como “centro do mundo” é relativizado, sugerindo reconsiderar o papel dos outros continentes no desenrolar dos eventos que marcaram o século XX.
No entanto, para o autor, escrever, tendo como ponto de partida metodológico a História Global, não significa simplesmente conceder maior importância ao mundo extra europeu em relação com a historiografia tradicional, mas sim mudar de perspectiva, multiplicar e cruzar pontos de observação (TRAVERSO, 2012, p. 17). Embora essa seja a defesa do autor, ele mesmo encontra certa dificuldade de pô-la em prática, visto que a centralidade de sua investigação está circunscrita à Europa, com exceção de algumas poucas passagens em que aborda algum aspecto relativo aos Estados Unidos. Mesmo o cruzamento de pontos de observação, como sugeriu, continua seguindo uma lógica essencialmente europeia, o que se revela, de algum modo problemático, no tratamento de um tema tão global quanto a violência.
No que diz respeito ao que considera outra mudança significativa, defende que o fim da Guerra Fria permite um paralelo entre a mudança geopolítica e o que se esboça ao mesmo tempo na historiografia. Traverso refere-se, nesse momento, à reavaliação do acontecimento na escrita da história. No livro, questiona a perspectiva de continuidade, alertando para a importância de se recuperar as inflexões da história. Para ele, o século XX se revelou como a idade das rupturas repentinas, fulminantes e imprevisíveis. As tendências estruturais criam as premissas de bifurcações, crises, cataclismos históricos (guerras, revoluções, violência em massa), mas não predeterminam seu desenvolvimento ou fim. A turbulência da Europa em 1914, a Revolução Russa, a chegada de Hitler ao poder, o colapso da França em 1940, o colapso do “socialismo real” no outono de 1989 representam rupturas que mudaram o curso do mundo, mas cuja emergência não era inevitável (TRAVERSO, 2012, p. 17).
Esses questionamentos colocados pelo historiador são nítidos nos capítulos dedicados ao nazismo e à comparação dos genocídios, acontecimentos que, de acordo com suas proposições, condensam várias ordens de temporalidade. Se o caráter repentino da Shoah põe em questão os paradigmas da história estrutural; o extermínio nazista, como um ponto culminantemente paroxístico de um conjunto de tendências que remontam ao século XIX, exige uma abordagem fundamentada na análise de longa duração. Isso fez, consoante argumenta o autor, com que os investigadores fossem obrigados a renovar sua reflexão sobre a articulação das temporalidades históricas (TRAVERSO, 2012, p. 18).
Além do que já fora mencionado em relação às suas contribuições à Teoria da História, ou seja, a História Global e o retorno do acontecimento, a violência que atua como fio condutor das experiências históricas do século XX pode levar a historiografia a uma série de outros questionamentos. Entre eles, a implicação subjetiva do historiador, a localidade do discurso, o distanciamento entre o historiador e o objeto, e a intersecção entre história e memória.
No capítulo “Exilio e Violencia”, Traverso defende que uma história do pensamento crítico não pode ignorar a contribuição dos intelectuais exilados, pois eles são “sismógrafos sensibles” dos conflitos que atravessam o planeta (TRAVERSO, 2012, p. 237). Em 2004, já havia proposto algo semelhante sobre a contribuição dos exilados para a História do século XX. Na ocasião, salientou que um dia a história do século XX teria de ser relida por meio do prisma do exílio; do exílio social e político, mas também e, sobretudo, do intelectual (TRAVERSO, 2004, p. 05), tarefa à qual tem também se dedicado.
A posição de estrangeiros, de apátridas ou desarraigados resulta em um observatório privilegiado dos cataclismos que afetam o mundo. A distância, nesse entendimento, modifica as perspectivas, acentua ou neutraliza a empatia e o olhar crítico dos observadores. Em razão disso, o efeito do “estranhamento” pode revelar-se frutífero (TRAVERSO, 2012, p. 238), perspectiva explorada também por Carlo Ginzburg na obra “Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância”, em que propõe uma espécie de “hermenêutica da distância”.
A transformação de perspectiva gerada pela distância afeta a escrita da história, uma vez que modifica a própria concepção de história do autor. Ademais, faz com que ele reconheça a impossibilidade de desassociar a interpretação do passado de uma luta inscrita no presente, a partir da constatação de que “no hay historiador sin principio y sin visión del mundo” (TRAVERSO, 2012, p. 240).
Uma observação semelhante seria feita por Estevão Martins em um ensaio publicado em 2006 em que se dedicou a analisar o século XX. Martins aponta que tem-se no século XX três grandes veios de afirmação da elaboração teórica da história como ciência: 1) a primeira, até o início da década de 1930, que se dedica à legitimação da história diante do paradigma das ciências naturais experimentais; 2) a segunda, que vai da fundação dos Annales em 1929 aos anos 1960, que se imerge na pesquisa empírica, sem se embaraçar de considerações epistemológicas e 3) uma terceira, que nos interessa aqui, desde há cerca de meio século, que articula a fundamentação teórica com a realização prática, independente da filiação doutrinária eventual (MARTINS, 2006, p. 3). O itinerário da legitimação do conhecimento histórico em seu formato científico, defende Martins, é o desafio e a aventura da historiografia do século XX (MARTINS, 2006, p. 2).
Para Traverso, a concepção de história como um exercício puramente científico é questionável, já que a interpretação do passado acontece em relação com a condição social do historiador. Sobre esse tema, analisando a historiografia alemã, italiana e espanhola, o autor conclui que no exílio, por exemplo, “las fronteras entre el erudito y el militante se vuelven porosas” (TRAVERSO, 2012, p. 243). A consequência disso é que a condução da escrita da história como um “dever político” pode obstaculizar uma reconstrução mais profunda, bem como crítica do passado, embora seja capaz de revelar a maneira como as escolhas políticas e as experiências individuais dos historiadores interferem nas suas interpretações.
Por fim, Traverso propõe-se à recorrente e, ainda necessária, reflexão acerca dos pontos de convergência e divergência entre história e memória. A intersecção entre os dois conceitos se dá em razão de que tanto a memória como a escrita da história são modalidades de elaboração do passado. No entanto, não se tratam de conceitos iguais: a memória é um conjunto de recordações individuais e de representações coletivas do passado; enquanto que a história consiste em um discurso crítico do passado, uma reconstrução de acontecimentos passados tendente à exame contextual e à interpretação. As relações entre história e memória se tonaram mais complexas, às vezes difíceis, mas sua distinção nunca foi questionada, e seguem sendo uma conquista metodológica essencial nas ciências sociais (TRAVERSO, 2012, p. 282).
A dificuldade em separar história e memória caracteriza nossa época enquanto encruzilhada de diferentes temporalidades, lugar de olhos cruzados em direção a um “acontecido” vivo e arquivado ao mesmo tempo (TRAVERSO, 2012, p. 284). Além disso, caracteriza o historiador do tempo presente, que ora é testemunha, ora é investigador de um mesmo tempo. A escrita da história do século XX, reflete Traverso, é um exercício de “equilíbrio sobre uma corda suspendida entre estas duas temporalidades”. Por um lado, seus atores adquiriram, por sua qualidade de testemunhas, um status inquestionável de fonte para os investigadores; por outro, estes últimos trabalham sobre uma matéria que interroga constantemente suas vivências pessoais, questionando sua própria posição (TRAVERSO, 2012, p. 284).
Conclui o autor que, no cenário devastado que é o século XX em decorrência de guerras, totalitarismos e genocídios, a vítima passa a assumir a centralidade, dominando a nossa visão da história. Nessa reatualização de fontes, sujeitos e escritores, o passado e o futuro se cruzam, criando-se e reinventando-se se mutuamente. (TRAVERSO, 2012, p. 284).
Cabe-nos lembrar que é nesse mesmo século como defendeu Martins (2006, p. 2) “que se realiza a dupla afirmação do campo da história: 1) como capaz de produzir conhecimento confiável 2) porque dotou-se de um a sustentação teórica sólida”, em que pese o caráter mediado da experiência histórica. E ainda, é nele que vê-se crescer a “abordagem sistemática da historiográfica como objeto de pesquisa”. O século XX, na sua condição de campo de ruinas, provou-nos Traverso, é, sem dúvidas, produtor de conhecimento no âmbito da Teoria da História, e a violência um dos fios condutores possíveis (e recomendável) para compreensão dessa era devastada.
Referências
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão; ZENHA, Celeste (orgs) O século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MARTINS, Estevão de Rezende. História e Teoria na Era dos Extremos. Revista de História e Estudos Culturais, vol III, ano III, n. 2, abril/maio/junho 2006.
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos (org). O século sombrio. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
TONY, Judt. Reflexões sobre um século esquecido 1901-2000. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
TRAVERSO, Enzo. Cosmópolis figuras del exilio judeo-alemán. México: UNAM, 2004.
Thais Rosalina de Jesus Turial –Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS-UnB). Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/5421508661749527>. E-mail: turial.thais@gmail.com.
TRAVERSO, Enzo. La história como campo de batalla: interpretar las violencias del siglo XX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2012. Resenha de: TURIAL, Thais Rosalina de Jesus. A História é um campo de batalha. Em Perspectiva, Fortaleza, v.6, n.2, p.237-242, 2020. Acessar publicação original [IF].
Sobre o autoritarismo brasileiro / Lilia M. Schwarcz
Escravidão, Racismo, Mandonismo, Patrimonialismo, Corrupção, Desigualdade social, Violência, Raça, Gênero, Intolerância, Tempo Presente, Brasil, Século 19, Século 20, América
Nós, os brasileiros, somos como Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da ilha a que um naufrágio nos atirou (Lima Barreto, “Transatlantismo”, Careta).
Em tempos de retrocesso, em que a esperança parece ter fugido do coração dos homens, é preciso voltar ao passado. Em momentos históricos conflitantes, nos quais a histeria e intolerância tornam-se a tônica do cotidiano, é preciso entender onde erramos, reencontrarmo-nos com o mais profundo de nós. Em momentos de frivolidades, mesquinharias, total apatia ao saber e à cultura, é preciso um pouco mais de poesia, de literatura, arte, diálogo. Como diria o poeta: “Precisamos adorar o Brasil! Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, porque motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos” (ANDRADE, s.d., s.p).
É preciso tentar entender, em suma, os caminhos percorridos por nós, brasileiros, na construção deste país que ainda se faz muito desigual e injusto, é preciso que nós, historiadores, inventores do passado (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007), na lida com o seu inventariado, coloquemos a nu o Brasil, naquilo que ainda o faz um país do atraso e autoritário. Penso eu que foi essa responsabilidade, diante do caos, que provocou na antropóloga e historiadora brasileira, Lilia Moritz Schwracz, a necessidade de escrever uma obra como a que foi recém-lançada pela Companhia das Letras em 2019, intitulada Sobre o autoritarismo brasileiro.
No atual momento da história brasileira, discutir temas como escravidão, racismo, mandonismo, corrupção, desigualdade social, violência, etc, constitui-se como uma tarefa fundamental, como que um lembrete aos incautos sobre os verdadeiros dilemas do país. Como diria o velho historiador: “o papel do historiador é lembrar aquilo que a sociedade insiste em esquecer”.
O livro é curto, cerca de 255 páginas que se entregam à uma viagem ao Brasil profundo, revelando aspectos não tão somente de seu passado, mas demonstrando claramente como este passado ainda ecoa no presente, produz mártires, heróis e muitos esquecimentos ao longo de sua história. É válido ressaltar que alguns temas que aparecem no livro já foram discutidos pela antropóloga em alguns de seus outros livros e artigos, como o capítulo Escravidão e Racismo, que aparece na coletânea História da Vida Privada no Brasil (volume 4, 1998), ou como também de seu outro recente livro, escrito em parceria com Heloísa Starling, intitulado Brasil uma biografia.
O livro é dividido em duas partes: uma primeira contém oito capítulos com os temas: Escravidão e racismo; Mandonismo; Patrimonialismo; Corrupção; Desigualdade social; Violência; Raça e Gênero e; Intolerância. Na segunda parte um breve panorama sobre o nosso presente, intitulado Quando o fim é também o começo: Nossos fantasmas do presente.
Em uma proposta honesta, já na introdução podemos sentir a que vêm as páginas seguintes. A autora se posiciona diante dos fatos, toma partido, sua obra não se torna panfletária deste ou daquele lado, num país divido, mas propõe-se a ser mais que uma obra enunciativa, ela denuncia os mandos e desmandos pelos quais passamos ao longo de nossa história. E por falar em História, um aviso aos leitores: “história não é bula de remédio”. Isso para falar das várias vertentes que explicaram e explicam ainda hoje o Brasil, seja em suas teses validáveis, ou naquelas ainda hoje criticadas pela Academia, mas que fazem parte do imaginário popular acerca do país, algumas delas como a de democracia racial, difundida por Gilberto Freyre.
Naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característico de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder. Mas é também fórmula aplicada, com relativo sucesso, entre nós, brasileiros. Além da metáfora falaciosa das três raças, estamos acostumados a desfazer da imensa desigualdade existente no país e a transformar, sem muita dificuldade, um cotidiano condicionado por grandes poderes centralizados nas figuras dos senhores de terra em provas derradeiras de um passado aristocrático (SCHWARCZ, 2019, p. 19).
É em torno do binômio passado/presente que toda a narrativa do livro se dá. Parte-se do presente, do nosso presente, marcado por discursos autoritários, para mostrar-nos que sempre fomos autoritários, que as desigualdades entre nós, de tão oficializadas pelo Estado, já foram por nós naturalizadas, não nos causando estranhamento e apatia, pelo contrário, é dessa naturalização de tais características nossas que novos sujeitos autoritários surgem e ganham total apoio do povo, culminando numa perpetuação de nossas desigualdades, só que agora mais cristalizada, edulcorada, aceitável e demandada.
A historiadora nos faz lembrar que, diante de toda a história brasileira o tema da escravidão se coloca como um problema ainda não superado pela sociedade. O racismo advindo dela, como a posse de uma pessoa por outra, só geraria um regime nefasto e sanguinolento. Por isso, no livro abundam dados de pessoas que sofreram na pele os desígnios da escravidão na época de sua vigência, como também daqueles que, pós abolição, encontraram-se sem qualquer tipo de assistência por parte do Estado, culminando nos atuais atrasos vivenciados por nós até hoje, como a constituição segregadora de nossas cidades, regiões específicas delas nas quais eclodem violências fruto da desigualdade.
Ao longo de sua análise é possível notar a perpetuação de antigos sujeitos no cerne do estabilishment brasileiro. Figuras frutos das antigas oligarquias do baronato brasileiro que, incrustando-se na vida política de determinadas regiões brasileiras, formam verdadeiros clãs no Estado. Como é o caso da família Sarney, dos Gomes e até mesmo, atualmente, da família Bolsonaro, na realidade carioca. Esse mandonismo brasileiro é um dos motivos de seu atraso, uma vez que esses clãs têm o Estado como um campo seu, particular, em atendimento aos seus interesses privados.
Surge daí a evidente noção de Patrimonialismo que desemboca em diversos tipos de corrupção na República. No livro, fica demonstrado que a corrupção é a palavra-chave de nosso dicionário político ao longo da história, desde a primeira carta de Pero Vaz de Caminha até os recentes escândalos de corrupção que malogram os dias brasileiros. Tais atos políticos, naturalizados pelos brasileiros de parte a parte, fazem do Brasil o que ele é hoje; um país democrático, é certo, mas que a qualquer tempestade vê a sua democracia se esvaindo e não sente no povo a sua inspiração de esperança e futuro melhor, pelo contrário, o povo, aqui, parece ter cumprido sempre o papel de apoiador alienado dos interesses das elites do momento.
Hoje, saltam aos nossos olhos milhares de homicídios pelas grandes cidades brasileiras. Suas vítimas? Na maioria das vezes jovens negros, habitantes das favelas. Onde erramos nós? O que fez com que estes homens brasileiros, tão guerreiros e trabalhadores, brutalizarem seus olhares para a vida e morte do próximo? Gays, lésbicas, trans e tantos outros morrem brutalmente, silenciosamente, todos os dias, a cada minuto no Brasil, simplesmente por pertencerem a este ou àquele grupo a que chamamos “minorias”. Por serem minorias o Estado não os tem assistido de seus direitos, demandas, sonhos.
Raça e Gênero, outro problema tão grave, tão brutal, que parece ter se extrapolado no dia a dia brasileiro. Homens que têm em mente que suas parceiras são sua posse as matam, as encarceram e as agridem, física e existencialmente. Tudo se perdeu, as colorações político-partidárias parecem estar estampadas na face de cada um, sem diálogo, sem conversa, esquerda ou direita. Precisamos de mais poesia, de mais humanidade, de democracia e de história. “Precisamos descobrir o Brasil, escondido atrás as florestas, com a água dos rios no meio, o Brasil está dormindo, coitado, Precisamos colonizar o Brasil”.
Às vezes, na descoberta deste Brasil nos defrontamos com tão tristes histórias, a sua história, que a lida parece ser impossível. E nós historiadores, que nos posicionamos diante do caos, inventando e inventariando esse cipoal de tragédias por pouco perdemos as esperanças, de tão atacados, difamados, violentados que somos. Seja em nossos escritos, em nossos posicionamentos, em nossos recortes e escolhas, desvendemos o Brasil, esse jovem país, acossado por tantas precariedades. Este é o nosso papel, “farejar a carne humana”, numa história cada vez mais humana e voltada para os homens, problematizemos o Brasil, mesmo que seja sem esperança, vai que por aí, por sorte ou compaixão ela renasça novamente no coração dos homens. Não sei, na democracia tem dessas coisas!
Referências
ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru, SP. Edusc, 2007.
ANDRADE, Carlos Drummond. Hino Nacional. Disponível em: https://www.escritas.org/pt/t/5668/hino-nacional . Acessado em: 30/08/2019.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Marco Túlio da Silva – Graduado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Membro do Núcleo de Estudos Históricos da Arte e Cultura (NEHAC-UFU). Bolsista CNPQ. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2763247048100798. E-mail para contato: marcotuliodasilva@hotmail.com.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SILVA, Marco Túlio da. Autoritarismos e o Brasil: uma fissura no silêncio. Em Perspectiva. Fortaleza, v.6, n.1, p.339-342, 2020. Acessar publicação original [IF].
Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão | Adrianna Stemy
No panorama de estudos relativos a ditadura militar brasileira – e em especial no que tange as políticas de governo e aos aspectos culturais conservadores da época – foi lançado recentemente uma interessante contribuição da historiadora Adrianna Setemy, ela que é mestre e doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e com pós-doutorado na mesma instituição. Nessa obra a autora mostra com acuidade, como após o golpe de Estado de 1964 no Brasil, inúmeros fatores afetaram o comportamento das pessoas, desde o modo de se vestir, até as questões relacionadas a sexualidade, além disso, nesse mesmo interim ressalta que o mundo tomava conhecimento de uma gama de fenômenos que o abalaria, tais como: o término da Segunda Guerra Mundial, a luta dos direitos civis, a Guerra do Vietnã, da mesma maneira que, introdução da pílula anticoncepcional, a influência do rock, do movimento hippie e do uso de drogas faziam parte das manifestações políticas e culturais daquele momento. Leia Mais
História da saúde no Brasil / Luiz Teixeira, Tânia Pimenta e Gilberto Hochman
Quais questões, abordagens e conceitos mobilizam o campo da história da saúde no Brasil? Quais temas já foram abordados e quais as possibilidades de expansão nesse campo de pesquisas? O que pode ser considerada uma historiografia da saúde? Como diferenciar história da medicina, história da saúde, história das doenças e história das ciências? Esses questionamentos estão na essência da coletânea “História da Saúde no Brasil”, organizada pelos pesquisadores Luiz Teixeira, Tânia Pimenta e Gilberto Hochman, todos da Fundação Oswaldo Cruz. O livro, que reúne uma visão geral sobre os diferentes trabalhos desenvolvidos na instituição em termos de pesquisa histórica, a um só tempo materializa uma visão sobre o passado da saúde no país e uma rede de pesquisadores que têm se dedicado a temas nesse espectro nos últimos trinta anos. Compreender e discutir não somente o conteúdo do livro, mas também o projeto institucional que representa, é fundamental.
Um ponto de partida importante consiste exatamente na definição de campo. Na literatura anglo-saxônica e francesa, a distinção entre história da saúde, da medicina, das doenças e das ciências gera amplos debates que vão além da nomenclatura, envolvendo aspectos metodológico do fazer história (HUISMAN; WARNER, 2006). Os organizadores, na introdução da coletânea, comentam que a história da saúde está consolidada como um campo que reúne diferentes abordagens e perspectivas no Brasil, e que “a elasticidade conceitual e política desse campo permite compreendê-lo, na sua gênese e consolidação, a partir de inúmeras facetas” (HOCHMAN; TEIXEIRA; PIMENTA, 2018, p. 11). Embora a noção de um campo consolidado eclipse as claras diferenças metodológicas e teóricas existentes no cerne da história da saúde no Brasil, é necessário reconhecer que a abrangência da definição permite uma reunião de trabalhos com vieses variados em um mesmo volume, o que torna viável o objetivo do livro em “oferecer a um amplo público, acadêmico e profissional, o estado da arte e as perspectivas de pesquisa sobre os diversos temas de estudos acerca da história da saúde com foco nos aspectos nacionais” (Ibid., p. 19).
Posto isso, um aspecto geral do livro consiste em seu caráter de apresentação de um estado da arte da historiografia da saúde no Brasil, sem oferecer novos argumentos ou interpretações em relação à trajetória de publicações dos autores convidados. Essa característica é fator a ser levado em conta pelo leitor, pois aquele que buscar uma discussão mais aprofundada sobre algum tópico ou um debate renovado sobre temas já clássicos na historiografia não encontrará o que procura. Porém, se o interesse da leitura for o mapeamento mais geral de trabalhos desenvolvidos nas últimas décadas e mesmo uma introdução ao campo, a coletânea trará contribuições interessantes.
Embora sigam uma razoável sequência cronológica, os capítulos entrelaçam bem as tais diferentes perspectivas que o termo história da saúde eclipsa. Os textos com maiores recortes temporais, como o capítulo sobre saúde e doença no Brasil Colonial ou outro sobre a educação médica, adotam o tom de grande narrativa, apontando principais pontos de inflexão nos objetos selecionados e buscando destacar uma dimensão processual dos temas tratados. Por sua vez, capítulos que adotaram uma perspectiva mais historiográfica, como os dedicados à eugenia e à psiquiatria, fugiram um pouco do caráter de grande narrativa e se concentraram mais nos diversos autores e abordagens. Há, ainda, capítulos que lidam com objetos mais circunscritos, especificamente os de autoria de Jaime Benchimol, sobre a revolução pasteuriana, e de Cristina Fonseca, fazendo um balanço das políticas de saúde na Primeira República e na Era Vargas.
Os dois primeiros capítulos da coletânea abordam a saúde e as doenças no Brasil Colonial e no século XX. Articulando vasta literatura recente produzida sobre esses períodos, os textos mostram a multiplicidade de práticas e saberes relacionados às doenças no território brasileiro, explorando tanto as tradições jesuíticas e da medicina oficial europeia quanto as de origem africana e indígena. No capítulo dedicado às doenças do Brasil escravista, Pimenta, Gomes e Kodama detalham as tensões envolvidas entre as diferentes práticas (e praticantes) de cura, mostrando que “terapeutas populares não constituíam um grupo homogêneo que poderia ser tão somente classificado como charlatão, categoria construída historicamente no contexto de luta dos médicos pelo monopólio das artes de curar” (PIMENTA; GOMES; KODAMA, 2018, p. 85).
O terceiro capítulo, assinado por Flávio Edler e Fernando Pires-Alves traça um amplo panorama da educação médica, desde o período colonial até os debates contemporâneos. Entrelaçando aspectos mais específicos de uma história da medicina (bases conceituais e ideológicas da formação profissional, história institucional do ensino médico, especialização) a outros de uma história da saúde pública (relação entre currículo e os sistemas de saúde; cooperações internacionais para a formação de recursos humanos em saúde etc.), os autores apresentam um mosaico de questões que envolvem a compreensão da medicina como profissão e como área do saber no país.
Os capítulos quatro, com autoria de Gisele Sanglard e Luiz Otávio Ferreira, e cinco, escrito por Ana Paula Vosne Martins e Martha de Luna Freire, abordam a história do cuidado à saúde, especificamente quanto à atuação da filantropia e da caridade na organização de redes de assistência e no desenvolvimento de ações para o cuidado com a saúde da mulher e da criança. Um aspecto comum aos dois capítulos repousa na importância da mobilização das elites em torno da saúde, elegendo determinados problemas como objetos de ação das classes dominantes. Como demonstram os autores, a filantropia teve um papel decisivo na estruturação de hospitais e outras instituições e serviços de cuidado à saúde no Brasil, sendo relevante discutir a ação filantrópica e a articulação entre as elites, a saúde e a ciência.
Os capítulos seis, escrito por Jaime Benchimol, e sete, assinado por Anny Jackeline Silveira e Dilene do Nascimento, discutem a partir de diferentes perspectivas a história de três epidemias importantes da história brasileira: febre amarela, na virada do século XIX para o XX, gripe espanhola, no início do século XX, e aids, no final do século XX. A partir da febre amarela, Benchimol explora a trajetória das pesquisas em bacteriologia e de sua articulação à agenda da saúde pública no período, o que envolve a história do Instituto Oswaldo Cruz. Silveira e Nascimento, por sua vez, analisam em diferentes contextos do século XX os impactos sociais de epidemias com grave repercussão no cotidiano. As autoras demonstram como as epidemias evidenciam as negociações da sociedade em torno da medicina e das doenças em um determinado período; no caso específico da influenza e da aids, “elas se tornam um bom termômetro para pensarmos as mudanças de paradigmas da medicina e do controle médico sobre essas ameaças” (SILVEIRA; NASCIMENTO, 2018, p. 323).
Nos capítulos oito e nove, Vanderlei Sebastião de Souza, Robert Wegner, Cristiana Facchinetti e Ana Venancio realizam balanços historiográficos sobre dois subcampos específicos abertos na história da saúde: os estudos acerca da eugenia e a história dos saberes e instituições psi. Em ambos os textos, os autores optaram por mostrar as tendências historiográficas que se estabeleceram na literatura nacional e realizar uma breve história da historiografia sobre os objetos selecionados. É interessante observar que, no complexo mosaico que forma o guarda-chuva da “história da saúde”, eugenia e saberes psi galgaram um espaço próprio, transformando objetos em subcampo, com discussões próprias às redes que se dedicam aos temas.
Finalmente, os dois últimos capítulos, assinados por Cristina Fonseca, Luiz Antonio Teixeira e Carlos Henrique Paiva, abordam uma história da saúde pública no Brasil, especificamente os dois processos mais estudados pela historiografia: a estruturação do aparato público entre a Primeira República e a Era Vargas e o movimento pela reforma sanitária que resultou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS). É necessário observar que esses capítulos abordam um conjunto de questões e conceitos mais próximos da ciência política e da saúde pública, pensando como a construção do setor saúde é intrínseca à história política do país e às ideologias que mobilizam atores e instituições. No caso discutido por Fonseca, a estruturação da saúde passava diretamente pela noção de construção do Estado Nacional, fosse na contradição republicana, fosse no autoritarismo varguista. Na análise de Teixeira e Paiva, por sua vez, a formulação do novo sistema de saúde era parte de um processo mais amplo de redemocratização do Brasil e de tentativa de reorientação do campo da saúde.
De modo geral, História da Saúde no Brasil apresenta uma visão historiográfica sobre o passado e o presente da saúde no país, demarcando temas, perspectivas e métodos recorrentes na historiografia nacional. É importante, entretanto, ressaltar que, apesar da abrangência temporal e temática, a coletânea se concentra em temas e objetos circunscritos às redes das quais os autores fazem parte, havendo muitas pautas e abordagens a serem aprofundadas no campo da história da saúde. Retomando a observação de Michel de Certeau (2011, p. 54) de que “a representação disfarça a práxis que a organiza”, é válido reconhecer a publicação como parte de um projeto institucional traduzido em campo historiográfico. Relevante obra de síntese, a coletânea serve de introdução à história da saúde e levanta questões e inquietações para novos pesquisadores e pesquisadoras.
Referências
CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011.
HUISSMAN, Frank; WARNER, John. Locating medical history: the stories and their meanings. Baltimore: John Hopkins University Press, 2006.
HOCHMAN, Gilberto; TEIXEIRA, Luiz Antonio; PIMENTA, Tania Salgado. História da saúde no Brasil: uma breve história”. In: Teixeira, Luiz; Pimenta, Tânia; Hochman, Gilberto (org.). História da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018, p. 9-26.
PIMENTA, Tania; GOMES, Flávio; KODAMA, Kaori. Das enfermidades cativas: para uma história da saúde e das doenças do Brasil escravista”. In: Teixeira, Luiz; Pimenta, Tânia; Hochman, Gilberto (org.). História da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018, p. 67-100.
SILVEIRA, Anny J. T.; NASCIMENTO, Dilene R. do. Epidemias do século XX: gripe espanhola e aids. In: Teixeira, Luiz; Pimenta, Tânia; Hochman, Gilberto (org.). História da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018, p. 284-327.
Luiz Alves Araújo Neto – Observatório História e Saúde (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz). Doutor em História das Ciências e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz). Email: luizalvesan@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1620593926536388
TEIXEIRA, Luiz; PIMENTA, Tânia; HOCHMAN, Gilberto (org.). História da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018. Resenha de: ARAÚJO NETO, Luiz Alves. Os desafios de demarcar um campo: história e historiografia da saúde no Brasil. Em Perspectiva. Fortaleza, v.5, n.1, p.400-404, 2019. Acessar publicação original [IF].
Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos / Ludmila C. Abílio
O Brasil é, hoje, o terceiro maior mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumes e cosméticos. Segundo dados do setor, no ano de 2013, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão e à frente de gigantes como a China. A previsão é que o Brasil ocuparia, até o primeiro semestre de 2016, o segundo lugar no ranking. No Brasil, a campeã de vendas nesse setor é a Natura. A enorme quantidade de pessoas vendendo produtos cosméticos revela o crescimento exponencial desse setor. No mundo são cerca de 95 milhões de vendedoras. O Brasil tem, atualmente, 4,5 milhões. Somente a Natura tinha, em 2007, 400 mil pessoas revendendo seus produtos. Em 2014, já tinha chegado à marca de 1,3 milhões. O sucesso da Natura adveio, principalmente, da adoção, desde 1974, do “Sistema de Vendas Diretas” (SVD). As vendas nesse formato não exigem postos físicos de trabalho; elas ocorrem através de relações interpessoais, com “consultoras” que vão de porta em porta apresentar os catálogos aos clientes. Esse sistema é antigo no Brasil, mas, no último decênio cresceu de modo avassalador. O Brasil ocupa hoje a quarta posição nessa área, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e China. O volume de negócios do setor movimentou mundialmente o montante de US$ 169 bilhões em 2013; no Brasil chegou à marca de R$ 41,6 bilhões.
Vendo esses expressivos números, uma pergunta logo vem à baila: será que o crescimento do setor de perfumes e cosméticos no Brasil está sendo acompanhado no mesmo ritmo de melhorias salariais e de trabalho para os indivíduos que dele fazem parte?
Será que o negócio do SVD, que vem crescendo em ritmo galopante, tem realmente gerado lucros e benefícios para os revendedores, conforme divulgam amplamente as empresas que operam nesse sistema? O recente livro de Ludmila Costhek Abílio aponta que não.Escolhendo como objeto de estudo uma das mais importantes empresas de cosméticos do país, a Natura, a autora revela que a empresa tem conquistado lucros exorbitantes adotando uma “estratégia de negócios” que acarreta inúmeras condições adversas para quem está na ponta –baixa remuneração, informalidade, indistinção entre tempo de trabalho e de não trabalho, instabilidade, precariedade, exploração do trabalho, flexibilidade, adoecimento, sofrimento, falta de reconhecimento etc. Ludmila tira a maquiagem da Natura e revela que o SVD dessa empresa é uma atividade que, sob o amparo legal, tem a aparência de um “não trabalho”, mas que, na prática, tem a concretude de um trabalho pesado, precário, extremamente extenuante, ausente de normas e de vínculos empregatícios reconhecidos, e o mais grave: “não pago”.
A pesquisa de Ludmila desnuda friamente a “contradição” que permeia a relação entre a Natura e as revendedoras: de um lado, a “visibilidade” da marca; de outro, a condição “invisível” das consultoras, que estão em toda parte, mas que não têm o trabalho reconhecido, nem visto como tal. Em outras palavras, o que fica visível na relação entre a Natura e o seu exército de um milhão de revendedoras (menos de 5% dos consultores são homens) é que muito embora essas mulheres não sejam reconhecidas como trabalhadoras pela empresa, a verdade é que sem elas os atuais lucros da Natura não existiriam. A Natura conseguiria manter o mesmo valor de mercado e a sua alta margem de lucro se assalariassem um milhão de revendedoras com direitos e garantias trabalhistas? A resposta de Ludmila Abílio é, obviamente, um “não”,pois a acumulação,o sucesso comercial e os lucros galopantes da Natura advêm justamente da exploração do trabalho, da flexibilização, da extração de valor do excedente, da informalidade, ou seja, do duro trabalho “não pago” às revendedoras.
Na primeira parte da obra, Ludmila realizou um fecundo panorama sobre os perfis socioeconômicos das “profissionais” e a relação que elas mantinham com as vendas. Para atingir o seu objetivo, a autora realizou entrevistas com consultoras das mais variadas regiões e posições sociais. Ao longo da pesquisa, Ludmila percebeu que o perfil socioeconômico das revendedoras é bastante heterogêneo, englobando estratos da classe baixa, média e alta. Ludmila apontou que as pessoas de baixa renda formam a maioria das empregadas no ramo do SVD. E o motivo não é difícil de entender. Deve-se, grosso modo, à voracidade do capitalismo que aumenta cotidianamente a fileira dos desempregados e tende a puxar para baixo o poder de compra dos mais pobres. A Natura se apresenta para muitos indivíduos como uma verdadeira “tábua de salvação”. Para as mulheres que estão empregadas no trabalho formal (domésticas, faxineiras e babás, por exemplo), a Natura é tida como um complemento de renda; já para as centenas de desempregadas, ela é vista como a única fonte de renda. O que se revela surpreendente no estudo de Ludmila é que as revendedoras de baixa renda são as que amargam, no geral, tanto os “menores lucros” como os “maiores prejuízos” decorrentes dos altos índices de inadimplência. Aqui, cabe advertir que a Natura repassa para as revendedoras todos os riscos (de estocagem e de inadimplência) envolvidos na atividade.
Assim como a população pobre, a classe média também não é homogênea. Em relação à venda dos produtos, Ludmila dividiu a classe média em dois grupos. O primeiro é constituído por mulheres que fazem das vendas sua ocupação e principal fonte de renda. São mulheres que empregam vários dias da semana e horas do dia para a venda de Natura. São mulheres que trabalham duramente para subir no ranqueamento da empresa e, assim, serem premiadas com viagens, troféus, bijuterias, cosméticos etc. As entrevistas de Ludmila revelaram que, de uma maneira geral, esse grupo é formado por mulheres que largaram sua profissão para se dedicar exclusivamente à Natura. O que torna trágico para essas mulheres é o fato de que se antes a atividade gerava um razoável lucro, hoje, devido ao aumento do número de revendedoras, muitas se arrependem de terem largado o trabalho formal.
O segundo grupo de vendedoras no interior da classe média é constituído por mulheres que não apresentam a venda dos produtos da Natura como a sua principal fonte de renda. De acordo Ludmila Abílio, 70% das revendedoras da Natura têm outra atividade principal. O que, na realidade, significa horas de trabalho para além de sua própria jornada, a banalização do “trabalho para além do trabalho”. Nesse grupo estão incluídas centenas de mulheres que vendem os produtos em seus locais formais de trabalho, mas sem maiores pretensões salariais e de carreira dentro da Natura. São mulheres, portanto, que optaram por uma dupla (ou tripla?) jornada –trabalho fora de casa, trabalho de dona de casa e venda dos produtos –, combinando a venda dos produtos com outras atividades. A existência de trabalho formal e estável possibilita queas vendas dessas consultoras sejam mais estáveis e rentáveis com pequeno índice de inadimplência. De modo geral, essas mulheres, que já detém uma profissão, não procuram se qualificar como “vendedoras” da Natura. Preferem preservar a identidade de sua ocupação principal, de seu trabalho formal. As vendas aparecem para esse estrato de mulheres como passatempo ou como uma oportunidade para consumir produtos por um preço menor, apagando-se, assim, todo o complexo e cruel processo de vendas envolto.
Além de expandir seu mercado consumidor e trabalhador para as classes baixas e médias, a Natura também alcançou estratos da elite. Há poucos anos, criou o “setor Crystal” para congregar consumidoras e vendedoras de altas rendas. Este setor funciona de forma diferente dos demais. Ao invés de 500 a 800 consultoras por cidades, a Natura destina, em média, 40 apenas por área. As consultoras são mulheres jovens, de nível superior, que vêm da elite ou circulam por ela. O ingresso ao seleto grupo se dá por meio de convites.Geralmente, a venda dos produtos não ocorre por meio do catálogo, mas através de reuniões e festas organizadas pelas vendedoras. Mas, por que mulheres de alta renda procuram essa atividade? As respostas, obviamente, são diversas: para terem maior “independência financeira”; preencherem o tempo; aumentarem o círculo de amizade com as pessoas da mesma posição social; ou até mesmo porque acreditam nos valores da empresa, sua filosofia vinculada ao capitalismo verde, que cultua a “sustentabilidade” e se apresenta como “politicamente correta”. Para muitas pessoas, a Natura representa a prova do “Brasil que dá certo!”. A análise de Ludmila Abílio em relação ao comportamento das vendedoras dessa classe social é mordaz: embora não se sintam “trabalhadoras”, todas as ações envolvidas no processo de venda dos produtos levam essas socialitesdesempenharem exatamente a mesma atividade pela qual as suas empregadas domésticas recorrem para complementar a renda familiar.
Na primeira parte do livro também foram trabalhadas outras questões que atingem as revendedoras da Natura, independentemente de sua posição social. A principal delas é que as consultoras raramente sabiam identificar quanto ganhavam por seu trabalho, quanto gastavam (“investiam”) com a compra dos produtos ouquanto tempo dedicavam à atividade. No geral, as contas feitas pelas revendedoras se mostravam complicadas e confusas, pois misturavam a venda dos produtos com o consumo próprio–que, surpreendentemente, se revelou, através da pesquisa, altamente excessivo, para não dizer desnecessário. E esse consumo supérfluo tem uma explicação simples: as vendedoras da Natura são constantemente envolvidas a se tornarem elas mesmas propaganda da marca. Cabe ressaltar que, além de incentivar as vendedoras a se constituírem em vitrines vivas dos artigos que vendem (na verdade, agentes não pagas pelo marketing que realizam), o estímulo da Natura ao consumo também se dá por meio de “pontuação”, com a qual a empresa encoraja as mulheres a “investirem” em maciços estoques de produtos que, na maioria, não são vendidos. Essas mulheres se constituem, assim, no dizer de Ludmila Abílio, em “trabalhadoras-consumidoras”, à medida que trabalham para consumir e consomem para trabalhar. Vale enfatizar que o trabalho de Ludmila –embora trate da relação e da situação de trabalho de um conjunto de mulheres numa empresa específica, a Natura –não deve ser entendido como mais um “estudo de caso”. O seu trabalho extrapola em muito essa definição. E este é justamente o brilhantismo da obra, quea fez ser a vencedora, em 2013, do prêmio Mundos do Trabalho, da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Na segunda parte da obra, Ludmila demonstrou claramente que a exploração econômica envolvida no SVD não ocorre de maneira acidental ou por acaso. A exploração faz parte da própria “gestão de negócios” das empresas desse ramo. Elas acumulam capital através da extração de valor do excedente, ou seja, acumulam capital através do duro trabalho (“não pago”) de seus próprios vendedores. Ludmila, ao tratar do caso específico da Natura, a insere nesse contexto mais amplo de exploração e precarização do trabalho que caracteriza hoje as políticas neoliberais. Ou seja, a autora parte do trabalho invisível, não reconhecido de mais de um milhão de mulheres para pensar na relação deste com a acumulação da Natura. A enorme disparidade entre o lucro da empresa e a “riqueza distribuída” para as consultoras fica visível, por exemplo, nos relatórios anuais da Natura. No Brasil, a receita líquida da Natura em 2014 foi de R$ 7,640 bilhões e o lucro líquido de R$ 732,8 milhões. No ranking das marcas mais valiosas em 2014, a Natura ficou em sexto lugar, superando, inclusive, a Petrobras. À frente da Natura estão apenas: Itaú, Bradesco, Skol, Banco do Brasil e Brahma. Por outro lado, essa bonança financeira não é sentida pelas trabalhadoras. No Relatório Anual de 2013,por exemplo, a companhia apresentou o rendimento anual médio de R$ 4.138 para as vendedoras, o que correspondia ao ganho de R$ 345 por mês. Vale salientar que, como toda média, esses números são problemáticos, pois as vendedoras não vendem necessariamente da mesma forma, nem a mesma quantia todos os meses, além de que existirem mulheres que pagam mais do que ganham por causa do assíduo consumo dos produtos.
No começo dos anos 1990, no auge das políticas neoliberais, diversas pessoas passaram a pregar basicamente duas teses. A primeira advogava a “inevitabilidade” das terceirizações, flexibilizações e desregulações trabalhistas para garantir a sobrevivência do “mercado”. A segunda dizia respeito à primazia do imaterial e à perda de centralidade do trabalho. Mas será que houve, de fato, um “adeus ao trabalho”? Ludmila responde que não. Para autora, é um equívoco pensar na tese do “fim do trabalho”. À bem da verdade, os trabalhadores estão todos aí em nosso redor –motoboys; atendentes de telemarketing; assalariados dos fast food; trabalhadores dos hipermercados; terceirizados de toda ordem, entre outros. É só olhar para os países do Terceiro Mundo –onde se encontram 2/3 da população mundial que trabalha –que se encontrará milhões desses trabalhadores. O momento atual representa uma “mutação do trabalho”, mas não a sua eliminação.
Os trabalhadores de hoje estão inseridos numa “nova morfologia” do trabalho que reduziu o operariado industrial de base taylorista/fordista e ampliou, a partir da lógica da flexibilidade toyotizada, contingentes de terceirizados, subcontratados, temporários e precarizados. Esse “novo proletariado” não está mais, em sua maioria, na indústria, mas sim no setor de serviços. O trabalho desse “novo proletariado”, just in time, toyotizado, está cada vez mais precário, intensificado, flexível, instável, rotativo, baixo remunerado, informal, desregulado e ausente de normas e vínculos empregatícios reconhecidos. São pessoas que trabalham por mais tempo, mais intensamente e também em formas que muitas vezes não são reconhecidas ou contabilizadas como trabalho. Ludmila Abílio, ao procurar entender como mais de um milhão de mulheres se envolveram em um negócio pouco rentável, que demanda investimento monetário e tempo e que permeia tanto o tempo de trabalho como o tempo do lazer, traz uma importante contribuição para entender a história recente do trabalho, mais precisamente a “nova morfologia” do trabalho e o seu desenho multifacetado, resultado das fortes mutações que vem abalando o mundo produtivo do capital nas últimas décadas.
Referências
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, FAPESP, 2014.
Rafael Leite Ferreira – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco(UFPE). Professor da Unibra -Centro Universitário Brasileiro. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0295848610110162. Email: rafaleferr@hotmail.com
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, FAPESP, 2014, 238p. Resenha de: FERREIRA, Rafael Leite. O sistema de vendas diretas da Natura: O hiato entre a acumulação da empresa e a precarização do trabalho. Em Perspectiva. Fortaleza, v.4, n.1, p.275-280, 2018.Acessar publicação original [IF].
A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos / James Scott
Com o recente lançamento de A dominação e a arte da resistência pela livraria Letra Livre de Portugal (especializada em escritos libertários) podemos enfim dispor em língua portuguesa de uma das principais obras de James C. Scott. Até então os interessados nas ideias deste autor no Brasil tivemos de nos contentar com as traduções de uns poucos artigos publicados em periódicos acadêmicos.[3]
Há cinco décadas James C. Scott, professor de Ciência Política e Antropologia da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, vem produzindo uma extensa obra que abrange diferentes campos de estudos, como economia política, relações agrárias, hegemonia e formas de resistência, política camponesa e, mais recentemente, anarquismo. Entre os seus livros mais importantes estão: The moral economy of the peasant (1979), Weapons of the weak (1985), Seeing like a state (1998) e The art of not being governed (2009).
A dominação e a arte da resistência não está entre suas publicações mais recentes; a primeira edição nos Estados Unidos remonta a 1990. Mesmo assim este livro tem uma importância particular na trajetória de James C. Scott. Enquanto a maior parte de seus trabalhos baseia-se em estudos de caso, através de pesquisas participantes junto a comunidades camponesas da Malásia, A dominação e a arte da resistência é uma tentativa de generalização de suas reflexões a respeito das relações de classe e das formas de resistência, estendendo o argumento para outras interações de poder, em que figuram experiências de escravos, castas subalternas, mulheres, povos indígenas e – evidentemente – trabalhadores rurais de outras regiões do mundo.
Uma das principais teses de James C. Scott é a de que se as camadas subalternas da sociedade – apesar de se verem cotidianamente sujeitas a diversas modalidades de exploração e usurpações – não demonstram, na maior parte do tempo, uma revolta aberta e declarada contra seus opressores isso não implica numa simples ausência de resistência entre os dominados.
Em contato com comunidades rurais sul-asiáticas Scott pôde observar que, sob o manto da passividade, se oculta uma robusta resistência que se apresenta sob formas pouco visíveis, como roubos noturnos de cereais, escapadas sutis a ações de recrutamento, o cumprimento de serviços mal executados a despeito de um comportamento aparentemente subserviente demonstrado pelo trabalhador, enfim daquilo tudo que uma vez esse autor nomeou como “formas brechtianas de resistência” porque – como nos apresentam as personagens criadas pelo escritor da Ópera dos três vinténs – a esperteza da dissimulação pode ser um modo consistente da cultura popular e rebelde enfrentar figurões poderosos. Não se contentando com a classificação sociológica de “resistência passiva” para esse tipo de atitude tão difundida entre os subalternos, James C. Scott concentrou sua atenção nessas formas prosaicas dos embates de classe e chegou a conclusões de grande interesse para historiadores sociais e pesquisadores de campos afins.
A dominação e a arte da resistência é uma obra dedicada a entender as variadas dimensões do discurso oculto que a gente simples assume nas relações cotidianas e conflituosas. Nessa resenha faço referência somente a algumas teses apresentadas por Scott a respeito do discurso oculto dos subalternos; mas que fique claro: a muitas outras conclusões instigantes poderão chegar os leitores atentos e interessados.
Os primeiros capítulos do livro são dedicados a explicitar as características da ordem dominante quando as relações de classes transcorrem sob as regras da obediência. Nos contatos travados entre sujeitos desiguais prevalece um diálogo de aparente consenso, quando o indivíduo usa da deferência para “transmitir uma imagem exterior de conformidade com as normas de conduta defendidas pelos superiores” (p. 55).
São os casos, por exemplo, em que um subalterno faz uso de uma reverência para saudar um superior ou emprega uma forma de tratamento honorífica. Tais atitudes podem representar um desejo sincero e conformista de honrar um superior respeitado, mas também é possível que os rituais públicos de homenagem não passem de gestos altamente mecanizados e vazios por parte de quem visa acima de tudo salvaguardar sua segurança. Scott oferece o exemplo das mães dos escravos que, para protegerem seus filhos, os educam no sentido de procurarem sempre agradar, “ou pelo menos não hostilizar seus senhores” (p. 56), nisso que é uma atitude mais realista que sincera.
Dada a existência de um constante exercício de poder permeando as relações de classes, raciais, de gêneros ou de quaisquer outras formas de hierarquia social, o contato entre sujeitos desiguais origina uma ordem de linguagem cindida, onde, por um lado, apresenta-se um discurso público, em geral caracterizado por manifestações de conformidade e aceitação, e, por outro lado, um discurso oculto, onde o dissenso e a revolta se revelam apenas naqueles pequenos círculos de confiança como a família ou grupos de amigos.
A principal característica do discurso oculto é o encontrar-se “fora do raio de audição dos detentores de poder” (p. 57). Por se anunciar apenas em circunstâncias específicas, em geral quando os subalternos sentem suficiente confiança em seus interlocutores para desabafar seus ressentimentos em relação aos superiores, o discurso oculto permite mesmo aos que não enxerguem meios exequíveis de reagir contra as injustiças criar fantasias de vingança e, dessa forma, constituir às costas dos poderosos certo consenso relativamente à reprovação dos atos opressivos.
Uma humilhação pública de um soldado raso ou de um camponês pobre poderá não ser seguida por qualquer reação declarada de indignação ou revolta, mas muito provavelmente o desabafo revelará um pensamento muito pouco domesticado tão logo o oficial ou o rico proprietário rural deem as costas. Nestas circunstâncias, é usual que surjam apelidos depreciativos, xingamentos, promessas de revide, referências a fábulas cujo efeito alegórico seja a expressão da revolta dos de baixo contra seus opressores.
Se usarmos os termos de Freud em Interpretação dos sonhos pode-se dizer que a atenção dedicada apenas ao conteúdo manifesto do discurso público pode transmitir uma ideia bastante enganosa a respeito da disposição de resistência dos subalternos, pois não enxerga aquele conteúdo latente, identificável apenas em sua dimensão oculta. Para o patronato e as instituições de poder, o discurso oculto apresenta-se opaco, preservado seu conteúdo em cuidadoso segredo.
Tudo isso pode não significar muito para o desencadeamento de revoltas camponesas de dimensões nacionais ou dramáticas revoluções sociais, mas são aspectos decisivos para a conformação de formas cotidianas de resistência, que não figuram nas notícias da imprensa, mas são um dado com o qual todo e qualquer chefe, policial ou cobrador de impostos terá de lidar.
O reconhecimento da existência e da abrangência do discurso oculto no cotidiano de sujeitos socialmente destituídos de poder leva James C. Scott a rever as explicações de teóricos de diferentes campos das ciências sociais quanto à natureza da hegemonia de classe. No mais das vezes, os teóricos da hegemonia supõem que a incorporação ideológica dos grupos subalternos a uma ordem dominante resulta num embotamento da consciência de classe, desarmando as pessoas comuns de seu senso crítico através de alguma espécie de “falsa consciência”.
Em algumas teses marxistas – que Scott situa entre as teorias fortes sobre a hegemonia – as suposições a respeito do poder ideológico das classes dominantes em mascarar e, mesmo, ocultar as formas mais explícitas de opressão social desafiam a própria tese de que “a mudança alguma vez poderia ter origem a partir de baixo”. “Se as elites controlam a base material da produção, obtendo por essa via uma obediência prática, e se controlam também os meios de produção simbólica, que lhes asseguram a legitimação de seu poder e de seu controlo, então ter-se-ia atingido um poder capaz de se autoperpetuar e que só um choque a partir do exterior poderia perturbar” (p. 122).
Scott, no entanto, contesta se a incorporação ideológica dos grupos subordinados reduz necessariamente o conflito social. Toda a ideologia que se pretenda ser hegemônica tem, efetivamente, de fazer promessas aos grupos subordinados, procurando convencer-lhes de que uma dada ordem social também é de seu interesse.
Ocorre, no entanto, que essas promessas são em geral cobradas, abrindo caminho para o conflito social. Scott remete-se às infindáveis listas de queixas vindas de toda a França, registradas nos cahiers de doléances antes da Revolução. Nelas não se declarava desejo de abolir a servidão ou a monarquia. Havia antes uma intenção bastante difundida de reformar o feudalismo através da retificação dos “abusos” da aristocracia e seus funcionários. “Mas a relativa modéstia das demandas”, diz Scott, “não impediu – dir-se-ia até que terá ajudado a estimular – as ações violentas dos camponeses e dos sans-coulottes que constituíram a base social da revolução” (p. 121).
As reações dos socialmente destituídos de poder às experiências de opressão estão, para James C. Scott, longe de qualquer ideia de uma negação simplória ou instintiva às atitudes de usurpação de que a vida da gente comum é preenchida. Quando o autor aponta para a existência de um discurso oculto dos grupos subordinados isso implica na pressuposição de que existe um “público” entre o qual esse discurso circula; existe então comunicação, na exata definição do termo.
A noção de um discurso oculto está, dessa forma, atrelada às práticas dos subordinados em desbravar espaços sociais próprios, resguardados da vigilância e controle dos superiores. São exemplos desses espaços resguardados os matagais, os bosques escondidos, os descampados e os barrancos que os escravos norte-americanos recorriam para se encontrarem e falarem em segurança. São também as capelas, tabernas e lares que se constituíram em centros de desenvolvimento da cultura popular europeia, como mostrou Peter Burke [4]; “espaço para uma vida intelectual livre e para experiências democráticas com ‘número ilimitado de membros’”, como entendeu E. P. Thompson [5]. “Espaços sociais” que poderiam não ter a acepção exclusiva de um local físico isolado, mas que também eram cortinas fechadas, sussurros, dialetos nativos incompreensíveis aos ouvidos imperialistas.
Por entender a imprescindível necessidade desses espaços dissidentes para o surgimento do discurso oculto que James C. Scott conclui que a revolta, humilhação ou fantasia em bruto sequer existem: “A revolta, a humilhação e as fantasias são experiências que têm sempre um enquadramento cultural que é parcialmente criado pela comunicação exclusiva entre os subordinados” (p. 172-173).
Todas essas considerações sobre o discurso oculto nas artes da resistência dizem muito mais sobre as formas cotidianas de reação dos subordinados, à sua “resistência normal” (no interior ainda de uma dada ordem social) que aos processos de ruptura aberta contra essa ordem. Ainda assim as teses de James C. Scott não se restringem a considerações sobre os tipos mais sutis de embates sociais.
Por um lado, as formas cotidianas de resistência dos camponeses (e do conjunto dos grupos subordinados das sociedades) não são algo com o que as autoridades mantenedoras do status quo possam se descuidar. Apesar de não provocarem grandes impactos ou mobilizarem imediatamente a opinião pública da nação essas pequenas ações cotidianas da resistência dos de baixo formam, na sua totalidade, uma força social nada desprezível e o pragmatismo político das elites só muito arriscadamente poderia delas se negligenciar. Um trecho retirado de outro texto de Scott, no qual a autora nomeia de infrapolítica a essa “dimensão discreta da luta política” (p. 253), é particularmente esclarecedor:
As formas cotidianas de resistência camponesa não produzem matérias de jornais. Assim como milhões de pólipos de antozoários criam um arrecife de corais, milhões e milhões de atos individuais de insubordinação e de evasão criam barreiras econômicas e políticas por si próprios. Há raramente alguma confrontação dramática, eventualmente digna de ser noticiada. E, sempre que o barco do estado esbarra numa dessas barreiras, a atenção é centrada no acidente e não na vasta agregação de micro-atos que resultaram na barreira.[6]
Por outro lado, no entanto – observando a partir do ponto de vista dos próprios subalternos – o domínio do discurso oculto é, por excelência, o espaço preparatório das manifestações públicas, dos protestos e mesmo das rebeliões e levantes multitudinários. Os últimos capítulos de A dominação e a arte da resistência dedicam-se a discorrer sobre como o discurso oculto forma disfarces, testa limites… até que um dia a resistência revela-se em alto e bom som nos espaços públicos da sociedade. O discurso oculto dos subalternos então sai de cena para dar lugar à entrada do discurso público.
Por tudo o que foi mostrado – e pelo tanto mais que não fui capaz de mostrar – o livro de James C. Scott apresenta-se como um importante instrumento de análise para os estudos sobre as formas de resistência plebeias (sejam elas camponesa, operária, nativa, feminina, de castas subjugadas, indígena, negra, homo, bi ou transexual). Para os historiadores sociais, em particular, A dominação e a arte da resistência revela-se também como uma criativa fonte de inspiração. E não somente porque o autor lança mão a todo o momento a inúmeros exemplos históricos para ilustrar e articular seus argumentos. Também porque a obra dialoga constantemente com a produção de historiadores de referência, como Natalie Davis, Eugene Genovese, E. P. Thompson, Eric Hobsbawm, Marc Bloch, Richard Cobb, Dipesh Chakrabarty, Christopher Hill, Moses Finley, George Rudé, Ranajit Guha, Emanuel Le Roy Ladurie, Georges Lefebvre dentre outros.
Conhecer a obra de James C. Scott nos instiga a percorrer novos caminhos no vasto território das experiências dos sujeitos subalternos da história. Afinal de contas, a agenda por uma história radical é um projeto aberto a novas trajetórias.
Notas
3. SCOTT, James C. Formas cotidianas de resistência camponesa. Raízes, vol. 21, n. 1, janeiro a junho de 2002, p. 10-31. ______. Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 5, janeiro a julho de 2011, p. 217-243.
4. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
5. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
6. SCOTT, James C. Formas cotidianas de resistência camponesa. Raízes, vol. 21, n. 1, janeiro a junho de 2002, p. 13.
Referências
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
SCOTT, James C. Formas cotidianas de resistência camponesa. Raízes, vol. 21, n. 1, janeiro a junho de 2002, p. 10-31.
______. Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 5, janeiro a julho de 2011, p. 217-243.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Vol. 1: A árvore da liberdade. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
Tyrone Apollo Pontes Cândido – Curso de História e Mestrado Interdisciplinar de História e Letras – MIHL da Universidade Estadual do Ceará, campus de Quixadá.
SCOTT, James C. A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos. Tradução de Pedro Serras Pereira. Lisboa/Fortaleza: Livraria Letra Livre/Plebeu Gabinete de Leitura, 2013, 340p. Resenha de: CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. O discurso oculto das artes da resistência. Em Perspectiva. Fortaleza, v.3, n.1, p.274-280, 2017. Acessar publicação original [IF].
Do bispo morto ao padre matador: Dom Expedito e Padre Hosana nas construções da memória (1957-2004) / Igor A. Moreira
No dia primeiro de julho de 1957, por volta das 18 horas e 30 minutos, três sons de disparos de revólver ecoaram no Palácio Episcopal, em Garanhuns, no agreste pernambucano. João, empregado da casa, ao ouvir o barulho, correu à porta e deparou-se com o bispo, Dom Francisco Expedito Lopes, caído ao chão, ensanguentado, moribundo. Imediatamente pediu-lhe que chamassem o Monsenhor José de Anchieta Callou. Soube-se naquele momento, pelo próprio Dom Expedito, o nome daquele que o alvejou: Padre Hosana de Siqueira e Silva, seu subordinado. O motivo seria a denúncia que chegara ao bispo de que Padre Hosana estaria tendo um caso amoroso com Maria José Martins, sua prima e empregada doméstica. Dom Expedito Lopes faleceu depois de oito horas de intensa agonia. Padre Hosana, a princípio, refugiou-se no Mosteiro de São Bento. Como menciona o autor, “o crime, com suas interpretações, deixou marcas”[3]. É a partir dessas (re)interpretações, das marcas do dizer, lembrar e narrar o crime, que ele constrói sua obra.
Igor Alves Moreira é licenciado em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Neste livro, fruto de sua dissertação de mestrado defendida em 2008 [4], ele procura explorar e faz isso com maestria, como o crime que sentenciou Dom Expedito à morte e Padre Hosana ao julgamento dos homens, foi lembrado e (re)contado através das construções do lembrar. Apesar de admitir que a história é uma reconstrução da memória, Igor viola as memórias e gesta uma história intrigante [5], possibilitando assim a construção de seu objeto, um acontecimento singular [6].
O interesse do autor é perceber como os fatos relativos ao crime foram contatos e recontados. Para isso, ele sustenta que há múltiplas variantes sobre o crime do Padre Hosana, agenciadas e permeadas de intencionalidades. No decorrer do livro, Igor mostra que existe uma tentativa de produção de um projeto intelectual, centrado na feitura da biografia de Dom Expedito, por parte da Diocese de Garanhuns, para empreender um plano de canonização do bispo. Da mesma forma ocorreu com a figura de Padre Hosana, que também teve sua biografia contada, em forma de livros ou narrativas orais, mas que ambas possuíam uma intenção clara: idealizar e inocentar os respectivos biografados das acusações que lhes foram direcionadas.
Para isso, foi caro ao autor expor os conflitos das várias formas de como o crime foi contado, notadamente nos livros e nos depoimentos orais que coletou durante a pesquisa. Assim, ele admite que seu objeto de estudo encontra-se intimamente ligado a uma problemática da história social da memória, onde “o presente é sempre tocado e afetado pelo passado. E vice-versa. Uma relação pautada por contradições, tensões e reconstruções. Uma relação que abarca a lembrança e o esquecimento”[7]. Assim, seu objeto de pesquisa é um “ausente que age”[8].
O livro encontra-se dividido em três capítulos. O primeiro deles, Um bispo assassinado!, tem por objetivo analisar os discursos que mostraram Dom Expedito Lopes como “santo” e “mártir” da Igreja e, do outro lado, Padre Hosana como vilão e assassino. O autor problematiza aqui como os discursos, textos e falas produziram uma suposta santidade do bispo, onde “são textos dados ao público para convencer, para homogeneizar opiniões e diluí-las sobre o réu e a vítima”[9]. Ainda no primeiro capítulo, ele esclarece como o conceito de perdão foi usado nos discursos, notadamente o perdão oferecido ao Padre Hosana pelo bispo nas horas de dor, com a finalidade de compreender e pontuar o possível martírio de Dom Expedito. Aqui ele mostra como o discurso do martírio foi apresentado à população de Garanhuns pelos “homens e mulheres das letras”, ou seja, por aqueles que institucionalizaram essas práticas discursivas.
O assassinato de Dom Expedito Lopes transformou-se em cartas, matérias de jornais e rádios, em livros, em literatura de cordel, em temas de canções, em conversas dos moradores mais antigos. Para conforto e desconforto de suas personagens, e da Diocese de Garanhuns, nesses registros do passado no presente, verifica-se a existência de discursos e silêncio em disputa. Nesses registros, vários conceitos e situações são abordados. No caso do assassinato de Dom Expedito, verifica-se ainda que ele foi um “exemplo” a ser seguido pela posteridade. O seu “exemplo”, no entanto, também aponta tramas e incoerências. Para outro punhado de pessoas, Padre Hosana foi um “bom exemplo”. Ambos, contudo, foram protagonistas de um crime.[10]
No segundo capítulo, A Diocese de Garanhuns e o tribunal para a causa da beatificação e canonização, o propósito é compreender e verificar os insumos e procedimentos institucionais da Igreja Católica no tocante ao processo de beatificação e canonização de uma pessoa. Há aqui uma preocupação do autor em analisar como a Diocese de Garanhuns produziu e divulgou ao público uma biografia linear e harmoniosa do bispo, bem como a atuação dos jornais em socializar uma narrativa em prol da beatificação e canonização. É discutido também os meios utilizados para sagrar e desenvolver uma memória específica e homogênea de Dom Expedito.
Como fruto de uma seleção, a biografia de Dom Expedito é composta pelo dito e não-dito, o autorizado e não-autorizado, com intenções específicas e claras: dar um santo aos demais diocesanos. Uma vontade e/ou capricho singular do grupo que é estendido aos demais de forma imperativa. Dar a ele a “verdade”: que o Brasil tem um santo, ainda não reconhecido oficialmente pelo Vaticano. É uma biografia apresentada na compreensão de que toda sua vida foi exemplar. É linear e desprovida de provocações e conflitos.[11]
No terceiro e último capítulo, Um padre assassino?, é debatido pelo autor as várias interpretações e narrativas que idealizaram Padre Hosana de Siqueira e Silva. Existe aqui, e é trabalhado através de um dos tópicos do capítulo, literalmente, uma “guerra de livros”, uma disputa de escrita, pela letra e a palavra. O autor traz para a discussão as várias obras específicas, algumas com notadamente uma pretensão biográfica, que tratam sobre o crime, onde se percebe claramente quem está do lado do bispo e do lado do padre. Igor reitera que no trato com as narrativas sobre o crime, orais e escritas, foi possível perceber subversões e contradições, onde a movimentação do dito e não dito regem os sentidos do passado e, consequentemente, o texto do autor.
Assim, a biografia é, tanto para os que defendem o bispo, quanto para os que preservam o padre, um instrumento de acusação e defesa. O passado de ambos explica o presente, justifica o crime. São os usos do passado. O passado de um explica sua santidade, confirma o sentido de sua morte, o passado do outro explica o crime. É uma biografia linear, com causa e consequência. Se não fosse o crime, nenhum precisaria de biografia, aqui posta como prova. O passado vale como argumento para provar a inocência de cada um.[12]
O que conseguimos perceber é que o “mártir” Dom Expedito não permanece sem o seu oposto, o “vilão”, Padre Hosana. Um precisa do outro para existir. Nas palavras do autor, “nesses fragmentos do passado, os dois estão sempre juntos. Um alimenta o outro. Em meio aos dizeres e às contestações sobre ambos, eles se complementam, se necessitam”[13].
A obra em questão foi produzida através de uma grande variedade de fontes e um trabalho primoroso de pesquisa. O autor utilizou-se de um extenso referencial teórico e metodológico para dar conta da natureza de suas fontes: jornais, revistas, livros, biografias, atas de abertura e instalação do tribunal para a beatificação e canonização de Dom Expedito Lopes; livros de cânticos, orações, textos e discursos proferidos nas missas, fotografias, registros de programas de rádio e TV, além dos registros das narrativas orais, totalizando um total de 42 entrevistas.
A obra de Igor Alves Moreira consiste em um trabalho de um historiador notadamente preocupado com os usos e abusos do passado pelos sujeitos no presente, contribuindo para um olhar problematizador na relação entre o aqui (presente) e o ali (passado), dentro de uma perspectiva da história social da memória.
Os que escrevem sobre esse crime se veem como guardiões dessa história, como guarda-costas do passado. Cada um puxa a “verdade” para si, constituída com base em iscas guardadas nas empoeiradas prateleiras de arquivos pessoais e institucionais de Pernambuco e, ainda, nas narrativas orais dos moradores de Garanhuns e Correntes.[14]
Este trabalho deambula na oposição de uma ideia homogênea, uniforme e harmoniosa da relação entre presente e passado, e notadamente da concepção de história enquanto uma procissão de sujeitos comportados e não transgressores frente aos acontecimentos, de uma história enquanto exemplo a ser seguido, como ciência mestra da vida. Pelo contrário, no confronto das fontes, o autor verificou e analisou incoerências e incompletudes, leituras e posicionamentos diversos sobre as formas de dizer o crime, feitios narrativos extremamente divergentes. Porém, ele é enfático em dizer que o foco de seu trabalho não é o crime, e sim a forma como ele foi narrado nas mais diversas fontes em que analisou durante a produção da obra. Em suas palavras, “longe estou de querer saber sobre o desenrolar do crime. Preocupado estou em analisar como ele foi contado e recontado na letra e na fala”[15]. E conseguiu.
Notas
3. MOREIRA, Igor Alves. Do bispo morto ao padre matador: Dom Expedito e Padre Hosana nas construções da memória (1957-2004). Sobral: Edições Ecoa. Sobral. 2015. p. 14.
4. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFC e possui o mesmo título do livro aqui analisado. O trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos.
5. Sobre a relação entre o historiador e o trato com as memórias, ver ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Violar memórias e gestar a História: Abordagem a uma problemática fecunda que torna a tarefa do historiador um “parto difícil”. Clio-Série História do Nordeste, n. 15. 1994.
6. Paul Veyne entende o acontecimento como próprio do saber histórico, onde a partir dele a história poderia ser constituída. Para Veyne, o acontecimento é singular, uma conjunção de fatos que não se repetirão. Para mais informações ver VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. 4ª Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
7. MOREIRA, Igor Alves. Op. cit., p.15.
8. DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Tradução de Fernanda Abreu. Bauru:EDUSC. 2004. p. 184.
9. MOREIRA, Igor Alves. Op. cit., p. 21.
10. Ibidem. p. 75.
Referências
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Violar memórias e gestar a História: Abordagem a uma problemática fecunda que torna a tarefa do historiador um “parto difícil”. Clio-Série História do Nordeste, n. 15. 1994.
DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Tradução de Fernanda Abreu. Bauru: EDUSC, 2004.
MOREIRA, Igor Alves. Do bispo morto ao padre matador: Dom Expedito e Padre Hosana nas construções da memória (1957-2004). Sobral: Edições Ecoa, 2015.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
11 Ibidem. p. 119.
12 Ibidem. p.164.
13 Ibidem. p. 172.
14 Ibidem. p. 173.
15 Ibidem. p. 174.
Cid Morais Silveira – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGH-UFRN). Bolsista CAPES. Editor da Revista Espacialidades e membro do grupo de estudos Cartografias Contemporâneas: história, espaços, produção de subjetividades e práticas institucionais (UFRN). Email: cidmoraissilveira@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5434753825771874.
MOREIRA, Igor Alves. Do bispo morto ao padre matador: Dom Expedito e Padre Hosana nas construções da memória (1957-2004). Sobral: Edições Ecoa, 2015. Resenha de: SILVEIRA, Cid Morais. Os tiros que não saíram pela culatra. Em Perspectiva. Fortaleza, v.2, n.1, p.214-219, 2016. Acessar publicação original [IF].
A tolice da inteligência brasileira / Jessé Souza
Jésse de Souza é um dos principais cientistas sociais brasileiros da atualidade. Graduado em direito, mestre em sociologia pela UNB e doutor pela Universidade de Heidelberg. Possui pós-doutorado em psicanálise e filosofia na New School for Social Reasearch em Nova Iorque e uma trajetória acadêmica de pesquisas sobre classes e desigualdades sociais no Brasil. É professor titular de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e foi presidente do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA).
Em 2015 publicou A tolice da inteligência brasileira – ou como os países se deixam manipular pela elite, pela editora LeYa de São Paulo. Este livro polêmico pode ser considerado uma espécie de análise de conjuntura do que iria se concretizar em 2016. A obra de Jessé de Souza, quando lançada, não apresentava o impeachment como foco central de análise, mas uma tentativa de interpretação das chamadas “Jornadas de Junho” de 2013. Com intuito de articular o fenômeno das jornadas com a suposta (re) organização do pensamento conservador brasileiro, Souza dividiu sua obra em quatro partes constituintes, perfazendo a discussão clássica da teoria política e sociológica, para entender a estrutura do embasamento ideológico das elites.
A primeira parte do livro de Jessé de Souza foi dividida em seis capítulos. Abre com um debate clássico no primeiro capítulo: A falsa ciência – no qual o autor argumenta de como a teoria de Max Weber foi apropriada no Brasil no início do século XX para compor a lógica de um “racismo científico” na criação do sujeito moderno.
No segundo capítulo: Um teatro de espelhos do patrimonialismo brasileiro – o autor revela a existência de um racismo inserido no culturalismo científico nacional. Este racismo pode ser percebido no pensamento de Gilberto Freyre a partir das relações patrimonialistas de favor e proteção, que demarcam uma hierarquização social e racial da sociedade. Por conseguinte, a celebração do encontro e miscigenação de raças, advogada por Freyre, criou a valoração positiva da brasilidade. Para Souza essa singularidade miscigenatória foi trabalhada por Freyre e Sérgio Buarque de Holanda ao balizarem o ideal de uma sociedade pré-moderna dominada pela emotividade e impessoalidade.
A afetividade e o cordialismo foram patenteados, dessa forma, como uma peculiaridade nacional que regem as relações políticas e sociais. Tudo para os amigos e nada para os inimigos. Assim, se forjou a naturalização do clientelismo como estratégia de poder dentro de um estado patrimonialista formado por uma elite corrupta. Esse legado “maldito” foi eternizado no pensamento social brasileiro, de um lado, um estado parasitário, clientelista, e de outro, um mercado virtuoso vítima das consequências da corrupção estatal.
No terceiro capítulo: Cordial e colonizado até o osso – Souza reitera que se Freyre criou a versão mais convincente do mito nacional, ou seja, da democracia racial, coube a Sergio Buarque de Holanda sistematizar o estoque de ideias e de representações sociais que deram o poder de convencimento ao culturalismo liberal e conservador do Brasil. Buarque confrontou as duas abstrações: a de homem cordial e do protestante ascético. E fundou a tradição de uma ideologia colonizada até o osso, patenteada no legado português das raízes nacionais, herdamos os vícios dos nossos colonizadores.
Souza insere Bourdieu nesse debate para discutir a violência simbólica e ideológica que se legitimou a partir de Freyre e Buarque, a construção de uma identidade desigual fática. Se o pensamento conservador partiu da meritocracia do protestante ascético, racional e democrático para a negação do homem cordial e irracional, o racismo culturalista legitimou as explicações hierárquicas a partir dos estoques culturais como causas da desigualdade entre indivíduos e nações. Uma visão teleológica foi incorporada ao pensamento conservador, como conduta de ação: você deve merecer o que ganha, e nesse caso, os pobres, obviamente, não se esforçam para fazer jus ao sucesso econômico e social que a classe média geralmente conquista com esforço.
O racismo culturalista seria a base do pensamento liberal conservador, com seus cinco pressupostos difundidos no pensamento social brasileiro: 1) idealização dos Estados Unidos como “paraíso na terra”, justiça social e igualdade de oportunidades; 2) o homem cordial brasileiro, emotivo, prisioneiro das paixões do corpo e moralmente inferior, um ser genérico; 3) a criação de um amálgama institucional do “homem cordial” na noção de “patrimonialismo”; 4) a criação de um caminho alternativo e universalizável para a nação: um antiestatismo sob a condução dos interesses de mercado; 5) a construção de uma ideologia antipopular, concebida como crítica ao populismo, equivalente a um “racismo de classe” que perpassa por todas as camadas sociais.
No quarto capítulo: Donos do poder – Souza problematiza Raimundo Faoro e suas análises desenvolvimentistas do mercado como base para o capitalismo e a democracia. O debate sobre o estamento burocrático e as situações de instabilidade problematiza a dialética do constante desaparecimento/aparecimento da realidade estamental na estrutura de classes da sociedade brasileira. O que fazer quando o estado é o maior dilapidador dos cofres públicos? E quando o estado é o tributário de uma elite parasitária incrustada historicamente nas suas entranhas?
Para trabalhar respostas possíveis a essas questões, no quinto capítulo: O jeitinho brasileiro – Souza problematiza as banalidades teóricas desse culturalismo conservador, a partir de Roberto DaMatta. O autor considera cultura como uma apreensão ingênua de um processo inconsciente de intencionalidade individual a partir de um culturalismo personalista, de práticas e ritos cotidianos por meio de autoimagens projetadas de como o brasileiro supostamente se vê.
Souza classifica o método damattiano como estrutural com duas categorias de análise: 1) indivíduo; b) pessoa. Uma formação dualista e constitutiva do indivíduo pelo seu contrário, a pessoa, que para Damatta se definiria pela questão relacional de parentesco, compadrio, amizades que marcariam trocas de interesses e favores dentro da sociedade. Já o indivíduo está inserido numa contiguidade de leis em macroprocessos econômicos e políticos. No cotidiano, segundo esta teoria, se forjam os usos e costumes da tradição familiarística da domesticidade. Damatta trabalha numa gramática para superar esse dualismo entre os espaços da casa e da rua, do espaço privado e público.
No capítulo sexto: O patrimonialismo mostra a que veio – Souza denuncia como o liberalismo e o racismo, se apresentam no trabalho de Bolívar Lamounier e Amaury de Souza. Patrocinada pela Confederação das Indústrias, esta pesquisa, resultou na publicação “A classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade”. Souza questiona esta obra, quando insere o tema da sustentabilidade para construir argumentos sobre o surgimento da nova classe média. Os autores discutem a corrupção do estado sem refletir sobre o protagonismo do mercado como corruptor. A tese do patrimonialismo é novamente revisitada. Segundo os autores, a corrupção e os mecanismos de controle são debatidos pela classe média emergente, porque o eleitor de Lula seria um indivíduo menos interessado e desatento aos problemas do país.
O livro inicia sua segunda parte com o primeiro capítulo: Nada além do bolso – no qual Souza apresenta um casamento conflituoso entre liberalismo e o marxismo economicista. A partir de George Simmel traça um debate sobre o pressuposto de cientificidade e o economicismo, com suas bases quantificáveis. Refaz a provocação inicial desenvolvida na primeira parte do livro sobre o culturalismo e o liberalismo conservador, como a perspectiva de trabalhar a cultura enquanto estoque cultural, com reservatórios de confiança e accountability.
No segundo capítulo: O economicismo como “cegueira” da dimensão simbólica do capitalismo – Souza mencionou a “Formação do Brasil” (1942), de Caio Prado Junior e comparou as influências da Comissão para América Latina e Caribe (Cepal) na década de 1950 e a obra de Celso Furtado para a formação do pensamento social brasileiro. O debate de Souza com esses autores perpassa por uma análise das relações de subordinação e dependência do capital internacional no Brasil. Estabelece, enfim, um debate crítico com Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira. Observa que Florestan produziu um trabalho clássico sobre capitalismo, luta de classes e desenvolvimento. Por conseguinte, Oliveira promoveu críticas à razão dualística, como um acerto de contas com a Cepal, na lógica do capitalismo transitório e subdesenvolvido. Essas duas visões, para um contexto internacional seriam pressupostos ingênuos para Souza. Porque a industrialização não se limita a um modelo de excedente. O economicismo cego não percebe a dimensão simbólica dos pressupostos jurídicos, políticos, morais e emocionais nas teorias desenvolvimentistas. E o marxismo possui limitações de abordagem, por isso, está muito próximo do liberalismo conservador.
No terceiro capítulo: Da Ralé a Revolução Burguesa – Souza discorre sobre as análises de Florestan Fernandes, o sociólogo que de fato saiu da sociologia espontânea para uma análise científica. De acordo com Souza, sua obra clássica “A Revolução Burguesa no Brasil” rompeu, definidamente, com a sociologia do senso comum.
Dessa forma, para Florestan, a constituição de um estado nacional quebrou o pacto colonial com a estruturação e implantação do capitalismo no Brasil. O rompimento do estatuto do pacto colonial, como o envio das riquezas para a metrópole e o não desenvolvimento de um mercado interno, fez com que o liberalismo passasse a funcionar como uma espécie de visão de mundo galvanizadora. Para ele, a garantia de uma gramática mínima para o estado moderno funcionar, fez com que os fazendeiros paulistas se tornassem os herdeiros do bandeirismo. Os pioneiros, desbravadores, os verdadeiros agentes modernizadores do País. No entanto, Souza adverte que Florestan, adentrou na lógica do patrimonialismo, não na versão culturalista de sociedade, mas na economicista. Em “A integração do negro na sociedade de classes” o sociólogo demonstra a transição da ordem escravocrata para a ordem competitiva do mercado “livre” e os antagonismos desse processo.
Na terceira parte do livro, no primeiro capítulo: Contribuição à inteligência brasileira, Souza debate a teoria crítica na atualidade. Para isso, denunciou os mecanismos de legitimação científica de dominação, desse “planeta verde amarelo”. O culturalismo conservador necessita de mitos nacionais para sobreviver, por meio das hierarquias valorativas e mecanismos classificatórios disseminados na sociedade. Uma violência simbólica estrutura uma hierarquia meritocrática e coloca os pobres de um lado e os ricos de outro. Periferia e centro são novamente aqui evocados. Souza refaz a análise do culturalismo conservador e problematiza que a interpretação damattiana do Brasil é a mesma de Niklas Luhmann na Alemanha, ou seja, racismo disfarçado de culturalismo. Assim, a existência de redes de relacionamento individuais põe a corrupção como um caso de endemia e os deslizes individuais como inevitáveis. A superioridade racial é maior em sociedades avançadas, porque, sociedades corruptas formam povos corruptos. A corrupção é enfim, abordada como um legado cultural.
No segundo capítulo: A miséria deles e a nossa – Souza propõe repensar a questão simbólica do capitalismo com Bourdieu, a partir da teoria dos capitais. A noção de capital humano, cultural e simbólico é utilizada pela classe média para naturalizar a desigualdade social, justificada pela meritocracia. Nesta lógica, o capital social interfere diretamente nas relações pessoais para o desenvolvimento ou não do sucesso individual. O processo social de apropriação dos capitais impessoais cria à opacidade teórica de invisibilizar a desigualdade. No Brasil é aceitável uma cruzada judicial contra a corrupção, a exemplo, da Operação Lava Jato. Porém, uma política pública de combate à pobreza e desigualdade social encontra animosidades. Além de Bourdieu, Souza debate com Norbert Elias a instrumentalização do superego como aprendizado moral, pois, a dimensão moral torna-se pedagógica para encobrir ou disseminar determinados assuntos e a competição social torna-se instrumento de competição pacífica.
No terceiro capítulo: Tão longe, tão perto – Souza aproxima o que há de comum entre as sociedades periféricas e avançadas. Se o mundo social legitimou a dimensão simbólica da racionalidade, esta estará em disputa com os valores subjetivos e emocionais periféricos. Existe uma ilusão objetiva da consciência moderna, que segundo o sociólogo Georg Simmel, perpassa pela “economia do dinheiro”. Desta forma, as quantidades e quantificações sobrepõem-se as qualidades sociais.
No quarto capítulo: Existe algo de comum na reprodução simbólica das sociedades modernas? – Souza coloca uma interrogação para o leitor, que ele próprio pretende responder no desenvolvimento de sua teoria sobre a formação do pensamento conservador brasileiro. O autor recorre a Charles Taylor e Axel Honnet para trabalhar a ideia de uma teoria de reconhecimento social. Segundo Souza, há no Brasil uma relação hierárquica valorativa de definição dos iguais e dos diferentes como uma espécie de signos sociais opacos.
Um subjetivismo ético de valoração moral, podem ser definidas em três passos inter-relacionados: 1) reconstrução histórica e institucional por meio de fontes morais; 2) Realidade concreta e empírica sofismável; 3) Existência de uma fronteira entre a dignidade humana e a tese da distinção quantitativa. A noção de self pontual nas relações humanas. Todos passam a definir atividades superiores e importantes, há um potencial equalizador e igualitário, um princípio de dignidade cidadã. Suportes sociais e desvios, singularidades e direitos subjetivos, em vez de honra pré-moderna, distinção e privilégio. A moralidade coloca-se como voz interna para a distinção social.
Souza reitera a partir de Foucault, que há uma disposição de reproduzir e sustentar uma visão de mundo constituída de corpos dóceis e produtivos. E que a opacidade é produzida pela microfísica do poder difuso. Uma rede tensa de relações e jogos de disposições que transforma a fragilidade em um mecanismo de submissão. Uma coerção externa, heteronômica e uma teatralização do poder atuante nesse mecanismo. Saber e poder agem na produção de uma sujeição voluntária. Destarte, o poder disciplinar e a reprodução do Estado e do mercado, operam numa espécie de dominação sutil como processos disciplinadores que promovem a impessoalidade, universalidade, apropriação violenta e custosa dos corpos.
A disciplina organiza o espaço analítico da política e da força de trabalho. A entronização do poder disciplinar interfere na noção de cidadania. A articulação da economia emocional de Pierre Bourdieu, com à hierarquia valorativa de Taylor, e a microfísica de poder de Foucault inferem sobre o problema da dignidade humana. Contudo, a questão central para Souza é de como as estruturas sociais se introjetaram nos sujeitos, dentro e fora do habitus. Com Bourdieu, Souza reflete o habitus como esquema de conduta e comportamento que gera práticas individuais e coletivas. O habitus naturalizado produz e reproduz a desigualdade social. Assim, a corporação ou incorporação dos sentidos, significados e esquemas avaliativos são reservatórios de valores. O corpo para Bourdieu é um campo de forças de uma hierarquia não expressa, na linha invisível da dignidade. O discurso do excluído serve para aquele que não incorporou a disciplina e o autocontrole como economia moral de dignidade. Naturalizamos a sociedade disciplinar, assim como, tornou-se natural, a ralé, os desclassificados que formam a base da pirâmide social.
E para ilustrar essa questão, Jessé cita o caso emblemático da criança que fita o quadro negro e não consegue aprender. Por uma série de fatores, fome, problemas familiares, inúmeras questões atingem a pobre criança cotidianamente. Isso são as marcas do abandono social. Da ralé aos batalhadores surgiu uma nova classe média. Um conceito relacional e meritocrático da ascensão social, como um neopentecostalismo brasileiro, percebido nessa emergência de classe. Aqueles que batalharam para chegar aonde chegaram, reforça a ideia do conservadorismo das elites. Os trabalhos sujos e pesados são para fracassados. Uma hierarquia simbólica que divide e separa quem é digno de quem não é. Um complexo vira-lata que nos torna colonizados até os ossos.
Na quarta parte do livro Conclusões para entender a crise atual abre com o primeiro capítulo: A cegueira do debate brasileiro sobre as classes sociais e a pobreza no debate político – Souza cita trabalhos de Márcio Pochmann e Marcelo Neri, no qual os economistas demostram que na última década houve uma expansão do trabalho formal. Uma perspectiva concreta de 2 milhões de postos de trabalho abertos e uma diminuição da desigualdade social no Brasil com a implantação de programas sociais como o Bolsa Família. Isso, definitivamente, não se traduz na lógica da meritocracia do conservadorismo liberal. Além dos resultados que a pesquisa de Néri e Pochmann traz, Souza adverte, é preciso ir além do economicismo de investigação quantitativa. É preciso um estudo mais amplo de quem é essa ralé e os batalhadores do Brasil, e ir além do “especialista sem espírito” e do “hedonista sem coração” de Weber, para entender o estigma da indignidade. Não existe classe condenada para sempre.
No segundo capítulo: As manifestações de junho e a cegueira política das classes, Souza analisa as “Jornadas de junho” de 2013, manifestações anunciadas pela imprensa brasileira e internacional como a “primavera brasileira”. A classe média redescobre as ruas e a lógica do estado corrupto que atravanca o mercado virtuoso volta a fazer parte da agenda e das manifestações. Segundo Souza, a eleição de 2014 colocou novamente dois programas opostos em disputa e polarização. E em 2013 houve uma guinada ao conservadorismo político e uma cegueira coletiva, que condenou milhares de pessoas a viverem a sua indignidade “merecida” por uma elite amesquinhada que quer voltar ao poder.
No terceiro capítulo: O golpismo de ontem e de hoje: considerações sobre o momento atual – Souza evidenciou que a arquitetura do golpe iniciou antes de 2015, com as acusações do mensalão contra o Partido dos Trabalhadores. Novamente o discurso do estado corrupto contra um mercado virtuoso tornou-se pauta na imprensa. Souza, alerta que a classe média foi usada em todas as tentativas de golpe de estado, desde Vargas, Jango e Dilma. O jogo da pseudodemocracia estava arquitetado e o golpismo branco se avinhava desde 2015 com os órgãos de controle, judiciário e as elites apoiando a ideia do justicialismo, um “direito” moderno e neutro. Para Souza, 99% da população foram manipulados, em favor de um golpe que só beneficia 1% dos mais ricos.
Jessé de Souza nesse livro ligou uma metralhadora giratória e atirou contra diversas análises teóricas do pensamento sociológico brasileiro. Com algumas razões e outras inapropriações, sua obra reflete a formação conservadora da elite. Porém, destaca-se como análise de conjuntura, quando apresenta uma leitura das disputas do poder entre as elites conservadoras do País que se reflete no parlamento com suas bancadas dos três bs: do boi, da bala e da bíblia. Souza observou de dentro do governo, a conjuntura que se forjava e como a oposição organizou desde a eleição presidencial, um coro dissonante com ameaças reiteradas contra a Presidenta da República. Dilma não iria cumprir seu mandato até o final.
A “inspiração” que levou Jessé de Souza a publicar sua obra com um título provocativo e uma constatação sociológica trágica é a mesma que o faz rever e desler os clássicos citados e problematizados no seu texto. O que move teoricamente o pensamento da elite brasileira? Para Souza, ainda é a lógica do mercado virtuoso versus estado demonizado. O alimento do pensamento conservador promoveu o golpe antes e depois da eleição de 2014. A história, efetivamente não possui coincidências. Como weberiano, o autor possui legitimidade para apontar criticamente as apropriações do pensamento social político brasileiro sob a ótica das elites. O dia 17 de abril de 2016 ficará nas memórias da história da democracia como um golpe arquitetado pelas elites conservadoras no Brasil, como ontem e hoje.
Giane Maria de Souza – Historiadora, mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especialista em República, Movimentos Sociais e Democracia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutoranda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integra a Linha de Pesquisa Sociedade, Política e Cultura no Mundo Contemporâneo do PPGH/UFSC. E-mail: gianehist@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4500562741589471.
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira – ou como os países se deixam manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015. Resenha de: SOUZA, Giane Maria de. AS aproxiamações ideológicas entre as origens do pensamento conservador elitista e o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Em Perspectiva. Fortaleza, v.2, n.1, p.220-228, 2016. Acessar publicação original [IF].
O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político / Ibrahim Abu-Rabi
Lançado em 2011 [2] este livro vem completar duas lacunas: A primeira – existente em todo mundo euro-americano – de obras sobre o Islã e mundo árabe escritas por seus próprios interlocutores. É bem conhecida a frase de Karl Marx usada como epígrafe no clássico livro de Edward Said “Eles não podem representar a si mesmos; devem ser representados”; a segunda – a da mesma linhagem de obras publicadas em português – embora o número de obras publicadas no Brasil sobre essa temática tenha crescido desde o fatídico 11 de setembro de 2001 e trabalhos acadêmicos especializados estejam numa crescente, estudos sobre Islã e mundo árabe feitos por árabes e muçulmanos ainda são raros. Basta lembrar que entre os autores mais publicados – no Brasil sobre esta temática temos Albert Hourani e Edward Said com ascendência árabe, mas com carreiras consolidadas no Reino Unido e EUA, respectivamente, e Karen Armstrong e Bernard Lewis, sem ascendência árabe e oriundos dos mesmos países.
Editado originalmente em 2010 no Reino Unido em língua inglesa, o livro conta com a perspicácia de Ibrahim Abu-Rabi na seleção dos textos e também na tradução de vários deles (do árabe para o inglês). Detentor da cadeira de Estudos Islâmicos da Universidade de Alberta, Abu- Rabi agregou um corpo de pensadores muito diverso nesta obra, desde militantes como Xeque Umar Abdel Rahman (1938), egípcio radicado nos EUA; Abdullah Azzam (1941-1989), palestino e um dos fundadores do Hamas; Xeque Ali Sadr al-Din al Bayanuni líder da Irmandade Muçulmana na Síria e exilado nas últimas duas décadas na Inglaterra; Fathi Yakan (1933-2009) , líder da Frente de Ação Islâmica no Líbano, à acadêmicos como Mustafá Abu Sway, professor da Universidade de al-Quds (Jerusalém); Ishaq al-Farhan da Universidade Al-Zarqaa (Jordânia); Muhammad Sa’id Ramadan al-Buti da Universidade de Damasco (Síria) e Jamil Hamami também da Universidade Al-Quds. O livro ainda conta com a contribuição do jurista Abdul Qadir Awdar, do jornalista Yassir Zaatira e de outros intelectuais da Europa ( Yahia Zoubir, Professor da Euromed em Marselha), EUA ( o já falecido Ismail Raji al-Faruqi (1921-1986) ex-professor da Universidade de Temple (Filadélfia) e outros mais do mundo islâmico.
As contribuições dos trinta e cinco autores dividem-se em seis partes: I – Rumo a uma avaliação teórica do islamismo no mundo árabe contemporâneo; II – Islamismo, jihad e martírio; III- Islamismo e a questão de Israel/Palestina; IV- Islamismo contemporâneo: tendências e autocrítica; V – O islamismo, o Ocidente, os Estados Unidos e o 11 de Setembro e VI – O islamismo no mundo árabe contemporâneo.
Lançando-se em temas caros à geopolítica e diplomacia atual, o livro tem o mérito de abrir os olhos do leitor para a multiplicidade e divergência de pensamento dentro do mundo islâmico. Tradicionalmente pintado como atrasado, despótico, monolítico e outras características depreciativas nas mídias ocidentais, surgem destas páginas esclarecimentos religiosos como o Capítulo 17 de Yusuf Al-Qaradawi: Extremismo: a acusação e a realidade no qual o autor defende que o Islã é a religião da moderação. Em suas palavras:
O Islã recomenda a moderação e o equilíbrio em todas as coisas: na crença, no culto, na conduta e na legislação […] Os textos islâmicos convocam os muçulmanos a exercerem a moderação e a rejeitarem e se oporem a todos os tipos de extremismo: ghuluw (excesso), tanattu’ (religiosidade detalhista) e tashdid (severidade, austeridade)[3].
Dentre a multiplicidade de vozes e ideias presente na obra, também merece destaque os relatos – Capítulo 5 – de Abdullah Anas sobre seu ingresso na jihad afegã contra os soviéticos no início da década de 1980 e a sistematização da doutrina jihadista feita por Abdullah Azzam no capítulo seguinte, apresentando quinze ensinamentos deixados pela sua participação na jihad afegã. Azzam esboça o roteiro prático de seu engajamento e do apelo proselitista à militância armada.
Outros temas polêmicos como o uso do véu são abordados. No Capítulo 4 Muhammad al-Ghazali argumenta que o profeta Maomé nunca ordenou que os rostos das mulheres fossem cobertos e esse hábito nada tem a ver com o culto, mas – em tom de mea culpa – adverte “nós muçulmanos apresentamos uma imagem feia e repulsiva do Islã”[4]. Nesse sentido, defende “É bastante aceitável, a partir de uma perspectiva islâmica, que as mulheres trabalhem fora de casa”[5] e ainda ironiza apontando que a ex primeira-ministra israelense Golda Meir “humilhou um grupo de homens árabes de barbas e bigodes na Guerra dos Seis Dias”[6].
Saindo do lugar comum da belicosidade, animosidade e confrontação, Ahmad Bin Yousuf escreve o capítulo 20 Os islamitas e o Ocidente: do confronto à cooperação, começa por diagnosticar que:
A psique ocidental foi traumatizada pela natureza tumultuosa da política na região islâmica: a questão turbulenta e multidimensional da Palestina; a retórica intransigente adotada pela Revolução Islâmica no Irã; a mística por trás da jihad afegã; e o enorme apelo dos movimentos islâmicos no interior de seus respectivos ambientes sociopolíticos – no Líbano, Egito, Sudão, Magrebe árabe, Cisjordânia e Faixa de Gaza, Malásia, Paquistão, Filipinas e assim por diante. Incapaz de decifrar esses fenômenos contemporâneos a partir de seus critérios de autorreferência, o Ocidente respondeu de modo errático e falacioso, frequentemente invocando imagens de clichês enunciados banais. O mundo islâmico foi visto com desprezo como uma região unidimensional incapaz de exportar ideais produtivos ou de ser receptivo a ideias estrangeiras[7].
Condenando o uso de expressões capciosas como “fundamentalismo” e seletividade jornalística, aponta “Os estudos seletivos imprimem nos leitores o pesadelo alucinatório de reacionários irracionais, em vez de explicar o comportamento muçulmano como uma resposta a injustiças específicas”[8], assim “incidentes individuais realizados por uma minoria frustrada são relatados como o trabalho de uma força fundamentalista destrutiva. Qualquer um que quebra a lei, e ocorre de ser um muçulmano por identidade, é um fundamentalista”[9].
No esteio desse debate vale a menção ao primeiro capítulo. Muhammad al-Buti desfaz a ligação automática entre “salafiyyah” e “wahhabi”. Segundo ele, a primeira é uma “fase histórica abençoada” em que a umma (comunidade muçulmana) era guiada pelos califas rashidum (“bem guiados”). Nunca houve uma escola legal salafista, a confusão começa a partir do século XIX, quando no Egito passou-se a utilizar o termo salafiyyah descolado de seu cunho teológico e erudito limitado como, por exemplo, em nomes de revistas e editoras. Paralelamente, ganhava corpo na Arábia Saudita a doutrina fundada pelo Xeque Muhammed Ibn Abdul Wahab (1703-1792), ambos movimentos visavam combater superstições e inovações, sobretudo dos místicos e desse modo preferiram o termo salafiyyah que remete a primeira comunidade islâmica ao contrário de homenagear a persona de Wahab. Tal operação constitui-se um esforço de legitimação, buscando tornar paradigmática a interpretação wahhabi – concentrada na Arábia Saudita – acerca da doutrina e tradição islâmica.
O esforço organizativo empreendido por Abu-Abi é enunciado logo nas primeiras páginas “Dentro do universalismo islâmico há unidade, mas não uniformidade”[10]. De fato, a obra consegue abarcar a “unidade” e “multiplicidade” do mundo islâmico. Como também mencionado pelo organizador da coletânea, é preciso “conscientizar as audiências ocidentais de que o Islamismo como um discurso político abarca muito mais do que o fundamentalismo dogmático e a violência terrorista que são abundantes na mídia ocidental”[11].
Retomando uma ideia de Edward Said, “precisamos compreender as muitas ‘atualidades políticas’ que o ‘retorno ao Islã’ corporifica” (SAID, 1981 apud ABU-RABI, 2011, p. 12). Vale ainda esclarecermos que normalmente tem se usado as palavras “Islã” e “Islamismo” indistintamente no Brasil e em outros países ocidentais. Para Abu-Rabi, assim como para outros intelectuais importantes como Hamit Bozarslan, “Islã” remete a religião, mas também há o significado sobreposto de “civilização islâmica” – os franceses convencionaram “islã” com minúscula para religião e “Islã” com maiúscula para civilização, distinção que não existe na língua inglesa. Já o “Islamismo” de acordo com Abu-Rabi emerge como movimento político em resposta a alguns fatores: de um lado a falha do movimento pan-islâmico do século XIX e parte do XX em alcançar o “Tanzimat” (uma espécie de “renascimento”) ocorrido no Império Otomano;“O surgimento de uma nova ordem colonial nos antigos territórios do Império Otomano, que coincidiu com a divisão do mundo árabe moderno entre novos senhores imperialistas (principalmente franceses e ingleses)”[12]; O surgimento dos nacionalismos nos diferentes países árabes (incluindo os do Norte da África) no entreguerras e a ascensão dos EUA após a Segunda Guerra Mundial.
“O Islamismo moderno foi principalmente um produto do sistema capitalista moderno, criado por diversas potências ocidentais ao longo dos últimos séculos”[13]. Immanuel Wallerstein aponta no mesmo sentido: o Islamismo
é simplesmente uma variante daquilo tem acontecido em todos os lugares nas zonas periféricas do sistema mundial. A interpretação básica destes eventos tem de girar em torno da ascensão histórica dos movimentos antissistêmicos, seu aparente sucesso e fracasso político, a consequente desilusão, e a busca por estratégias alternativas. (WALLERSTEIN, 1994, apud ABU-RABI (org) p. 13)
O islamismo é também uma resposta a hegemonia europeia. De acordo com Abu-Rabi o sistema mundial capitalista não pode sobreviver sem inimigos externos e assim “o Ocidente” o considera seu principal inimigo. É uma consequência quase natural que as massas muçulmanas afetadas pelas intervenções colonialistas se agrupem sob a bandeira islamita contra um “inimigo comum”. “O Islamismo nasceu nos mundos árabes e muçulmano a partir do ventre do colonialismo” e representa uma ameaça à seus genitores por desejar a quebra do status quo e reivindicar que o Islã seja um “significador mestre”, fator que ampliaria a lacuna conceitual entre a concepção ocidental do mundo e a concepção islâmica.
Notas
2. A tradução do inglês para o português foi realizada por André Oídes. Versão original: ABU-RABI, Ibrahim (org.). The Contemporany Arab Reader on Political Islam. London: Pluto Press, 2010.
3. AL-QARADAWI, Yusuf. Extremismo: a acusação e a realidade. In: ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. São Paulo: Madras, 2011.p.205.
4. ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. Op. cit., p.69.
5. Ibidem, p.70.
6. Ibidem, p.71.
7. YOUSUF, Bin. Os islamitas e o Ocidente: do confronto à cooperação. In: ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. Op. cit., p.237.
8. Ibidem, p.247.
9. Ibidem, p. 240.
10. ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. Op. cit., p. 9.
11. Ibidem, p.9-10.
12. Ibidem, p.12.
13. Ibidem, p.13.
Felipe Yera Barchi – Doutorando em História pela Universidade Estadual de São Paulo (UNESP). E-mail: felipeyerabarchi@gmail.com. Currículo Lates: http://lattes.cnpq.br/9147137881055201.
Resenha de: Em Perspectiva. Fortaleza, .Acessar publicação original [IF].
ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. São Paulo: Madras, 2011. [1] Resenha de: BARCHI, Felipe Yera. Para entender o Islã Político. Em Perspectiva. Fortaleza, v.1, n.1, p.208-212, 2015. Acessar publicação original [IF].
A cultura no mundo líquido moderno / Zygmunt Bauman
Com seu livro intitulado A Cultura no Mundo Líquido Moderno, no original Culture in a Liquid Modern World, Zygmunt Bauman prossegue em 2013 suas análises sobre a modernidade, fazendo uma síntese das características que tomou a cultura desde a era “sólida” até a era “líquida”, bem como sua relação com o “multiculturalismo” e “globalização”.
No primeiro capítulo Bauman procura demonstrar que na atualidade não se firmam mais as antigas distinções entre a elite cultural e o chamado “grande público”, essa hierarquia cultural deu lugar a uma elite diversificada que aprecia tanto a “grande arte” quanto os programas populares de televisão e, “onivoramente”, consome diversas formas de arte, tanto populares quanto intelectualizadas, porém preocupada demais em celebrar o sucesso e outras formas festejadas ligadas a cultura. Descreve também “as peregrinações históricas do conceito de cultura”, desde o Renascimento, passando pela reviravolta causada por Pierre Bourdieu no século XX, chegando até os dias atuais, quando adentra a era “líquida”. Bauman mostra que o conceito de “cultura”, surgido no âmbito rural para incitar a ação agrícola, o arado e a semeadura, também esteve relacionado ao cultivo de almas (cultura animi), a interação entre protetores e protegidos, educadores e educados, e ainda esteve relacionado aos ideais iluministas e a construção de uma nação, de um Estado e de um Estado-nação, e ainda a aproximação entre as classes altas e o “povo”, ou seja, entre os que estão na base da sociedade e os que estão no topo. A perda de posição do conceito de “cultura” é resultado de uma série de processos de caracterizam a transformação da modernidade de seu estado “sólido” para seu estado “líquido”, o que Bauman denomina de “modernidade líquida”.
No segundo capítulo Bauman discorre sobre a “moda”, fenômeno social, segundo ele, em constante estado de “devir”. Para Bauman a “moda” funciona como uma válvula que se abre antes que se atinja a conformidade, ela multiplica e intensifica as distinções, diferenças, desigualdades, discriminações e diferenças. Um moto perpétuo que torna-se norma no momento em que se encontra no “mundo socializado”, um aniquilador de inércia. Segundo Bauman, “A moda coloca todo estilo de vida em estado de permanente e interminável revolução”, nesse sentido, “A moda é um dos principais motores do ‘progresso’”3. As pessoas, por sua vez, seriam caçadores em busca de uma contínua e ininterrupta variação do próprio self, por meio da mudança de costumes, e essa estrada vem a ser para os caçadores uma forma de utopia, uma vida na utopia.
Em seu terceiro capítulo o livro abarca desde a construção dos Estados-nação, em fase “sólida” na era moderna, até o mundo globalizado da atualidade. Primeiramente Bauman procura evidenciar que os Estados-nação tornaram-se menos inabaláveis a medida que começam a ser coagidos e encorajados a abandonar suas aspirações e esperanças. “A medida de ‘funcionalidade’ […] já não parecia tão inquestionável ou inegavelmente correta”4. O impulso da globalização teve papel preponderante no abandono das aspirações dos Estados-nação, que teve como efeito colateral a emergência da natureza inconsistente das fronteiras do sistema. O livro também chama a atenção para a importância da migração em massa durante o período da modernidade e da modernização, uma migração de pessoas em detrimento da migração de povos como o ocorrido em inícios da Idade Média. Bauman divide estas migrações em três fases: A primeira foi a migração de 60 milhões de pessoas da Europa para as “terras vagas”, onde as populações indígenas podiam ser desprezadas ou vistas como inexistentes ou irrelevantes. A segunda vem no sentido inverso, onde algumas das populações nativas, com variados graus de educação e “sofisticação cultural”, seguiram os colonialistas que retornavam à terra natal. A terceira fase das migrações modernas, em pleno curso, introduz a era das diásporas;
Trata-se de um arquipélago infinito de colônias étnicas, religiosas e linguísticas, sem preocupações com os caminhos assinalados e pavimentados pelo episódio imperial/colonial, mas, em vez disso, conduzido pela lógica da redistribuição global dos recursos vivos e das chances de sobrevivência peculiar ao antigo estágio da globalização5.
Segundo Bauman, a escala dos movimentos populacionais globais, hoje, é ampla e continua a crescer, entretanto, o que tem ocorrido é que os imigrantes tem se tornado “minorias étnicas”, e essas aglomerações “etnicamente estrangeiras” disseminam hábitos das populações locais, causando estranhamento e uma “guetificação” dos “elementos estrangeiros” que, por sua vez, se fecham em círculos próprios. Pari passu Bauman aponta uma nova indiferença a diferença, que mostra-se como uma aprovação do “pluralismo cultural”, segundo ele, “A prática política constituída e apoiada por essa teoria é definida pelo termo ‘multiculturalismo’”6.
Já no quarto capítulo, o livro inicia com uma discussão em torno da missão das “classes instruídas” (intelectuais avant la lettre, sendo que o conceito de intelectuais só tomou forma no século XX), iniciada ainda no Iluminismo e que consistia em duas tarefas: A primeira delas, tinha como meta “esclarecer” ou “cultivar” o “povo”, transformar as entidades desorientadas, desalentadas e perdidas em membros de uma nação moderna e cidadãos de um Estado Moderno, ou seja, a criação de um “novo homem”. Nesse sentido a “educação” foi a viga mestra desta transformação, “a educação era capaz de tudo” e o papel dos educadores era o da “cultura”, no sentido original de “cultivo”, tomando o termo de empréstimo à agricultura. A segunda tarefa consistia em planejar e construir novas e sólidas estruturas que dariam um novo ritmo de vida a massa momentaneamente “amorfa”, ainda não adaptada ao novo regime, ou seja, introduzir uma “ordem social”, “colocar a sociedade em ordem”. “As duas tarefas dependiam da combinação de todos os poderes do novo Estado-nação, econômicos, políticos e também espirituais, no esforço de remodelar corporal e espiritualmente o homem – o principal objetivo e o principal objeto da transformação em curso”7. A construção do Estado foi um esforço que exigiu o engajamento tanto de administradores quanto de administrados, o que segundo Bauman não ocorre hoje, onde não há mais um engajamento e o modelo pan-óptico de dominação dá lugar à supervisão e ao autocontrole pelos próprios objetos da dominação. “As colunas em marcha dão lugar aos enxames”8. Bauman ainda argumenta que tendo Deus criado o Homem e o feito andar sobre os dois pés, mandou-o achar o seu próprio caminho e segui-lo, dessa forma, “Em nossa época, foi a vez de a sociedade […] concordar que o homem fora equipado com ferramentas pessoais suficientes para enfrentar os desafios da vida e administrá-la sozinho – e logo desistir de impor as escolhas e administrar as ações humanas”9. Bauman também pondera sobre a aceitação e permanência culturais deixando claro que devemos aceitar todas as proposições como válidas e dignas de escolha, evidenciando ainda que se determinada cultura é tida como valiosa deve ser preservada para a posteridade independentemente de uma comunidade cultural ou da maioria de seus membros.
No seu quinto capítulo, o livro procura demonstrar que a globalização tem agido de forma a desfragmentar as identidades nacionais no contexto da União Europeia, quando desintegra seu antigo abrigo, os alicerces da independência territorial. Para Bauman, a União Europeia não somente preserva as identidades dos países que nela se unem, como procura neutralizar as poderosas pressões que a atingem através do ciberespaço. “Dessa maneira a união também salvaguarda as nações dos efeitos potencialmente destrutivos do longo e permanente processo […] de separar a trindade formada por nação, Estado e território, tão inseparáveis nos dois últimos centenários”10. Entretanto, Bauman destaca que a cultura no contexto da união tem sobrevivido mesmo sem o suporte da trindade nação-Estado-território. Não obstante, a construção nacional tinha por meta a concretização de “Um país, uma nação”, o nivelamento das diversidades étnicas dos cidadãos, por sua vez, os processos civilizadores garantiriam que a diversidade de línguas e o mosaico étnico e cultural não perdurassem por muito tempo, nesse sentido, dentro do Estado-nação culturalmente unido e unificado, “Tudo que fosse ‘local’ e ‘tribal’ era considerado ‘atraso’”11. “A prática da construção nacional tinha duas faces: a nacionalista e a liberal”12, a primeira era séria e enérgica, a segunda era amigável e benevolente. “As comunidades não viam diferença entre as faces nacionalista e liberal apresentadas pelos novos Estados-nação. Nacionalismo e liberalismo preferiam estratégias diferentes, mas miravam fins semelhantes”13. Sem dúvida a globalização tem mais proximidade com a face liberal do Estado-nação, pois o vácuo criado pela globalização oferece maior liberdade às iniciativas e às ações individuais, notadamente características do liberalismo.
Em seu sexto e último capítulo, o livro destaca o financiamento das artes por parte do Estado, tendo como precursores os franceses que, por sua vez, tinham na figura de Luis XIV um grande incentivador das artes e da educação dos artistas, fundador, em especial, do teatro real, a Comédie-Française. Bauman ressalta ainda que as primeiras ações, que seriam hoje chamadas de “política cultural”, surgem uns duzentos anos antes da emergência do termo “cultura”. O conceito francês de culture [tradução – do francês = cultura], estava relacionado a elite instruída e poderosa e também a promoção do aprendizado, da suavização das maneiras e do refino do gosto artístico. Durante o século XIX, surgem noções como “desenvolvimento e disseminação da cultura”, e “Também neste período, a tradição já estabelecida de responsabilidade do Estado pela cultura foi posta a serviço da construção nacional”14, o intuito era endossar o patriotismo e a lealdade a República. Segundo Bauman, “A cultura conferiria prestígio e glória, em âmbito mundial, ao país que patrocinasse seu florescimento”15. Através do pensamento de Theodor Adorno, o livro ainda procura estabelecer um paradoxo entre a inata atitude suspeitosa da administração diante da insubordinação e da imprevisibilidade naturais da arte e o desejo dos criadores de cultura de serem ouvidos, vistos e, tanto quanto possível, serem notados, paradoxo esse que para Bauman não tem solução, mas que tem mudado nas últimas décadas, em termos da situação da arte e de seus criadores. Bauman ainda demonstra que este paradoxo esta também relacionado a uma lógica de mercado, que, por sua, vez é uma tentativa de atingir o público, prática comum desde os tempos em que a arte era administrada pelo Estado e que, seguindo os critérios do mercado de consumo, preocupam-se com a iminência do consumo, da satisfação e do lucro.
Notas
3 BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. p.20.
4 Ibidem, p.28.
5 Ibidem, p.29.
6 Ibidem, p.37.
7 Ibidem, p.43.
8 Idem.
9 Ibidem, p.46.
10 Ibidem, p.56.
11 Idem.
12 Idem.
13 Ibidem, p.57.
José Fernando Saroba Monteiro – Mestrando em História do Império Português [e-learning] pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Licenciado em História pela Universidade de Pernambuco (UPE); Especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Licenciando em Música pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: jfmonteiro2@hotmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5353852205190949.
BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Resenha de: MONTEIRO, José Fernando Saroba. Em Perspectiva. Fortaleza, v.1, n.1, p.214-218, 2015. Acessar publicação original [IF].
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Pretende-se publicar artigos que, em diálogo com outras áreas do conhecimento, discutam categorias temáticas atreladas as relações entre: memória e temporalidade, cultura e poder, migração e trabalho, bem como outras abordagens. A partir de 2020 a periodicidade da Em Perspectiva passou de ANUAL para SEMESTRAL.
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