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Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça / Reni Eddo-Lodge
Em uma conversa em um grupo de WhatsApp, diante de uma tirinha que ridicularizava a questão da representatividade, uma colega de profissão, negra e mãe de uma filha de três anos, também negra, comentou como a interpretação da tirinha a incomodava, porque era rasa. Recebeu como resposta de um colega de área, professor universitário, que “o incômodo faz parte da vida. É assim mesmo.”
Reni Eddo-Lodge, autora do livro Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça, escreve que desde os quatro anos ela entende viver em um mundo de privilégio branco (Eddo-Lodge, 2019, p. 81), ao reconhecer na televisão a divisão entre mocinhos e vilões representados por pessoas brancas x negras. Aparentemente, muitos de nós, brancos e brancas, ainda não nos entendemos privilegiados e esse é o motivo pelo qual a jornalista se viu motivada a escrever esse livro. Estava cansada de ouvir os mesmos argumentos contestando esse tal de privilégio branco vindos de pessoas próximas e decidiu publicar sua resposta em livro para se livrar desse fardo (o que, evidentemente, como a própria afirma, não aconteceu). Gabi de Pretas, que faz a apresentação do livro e que é criadora do canal de YouTube DePretas, recomenda o livro a pessoas brancas que se perguntam sobre seu papel na luta antirracista, àquelas que nunca se perguntaram sobre sua branquitude e a seus colegas negros e negras que já não aguentam mais esses debates.
Diante de uma conversa como a que mencionei no começo deste texto, é compreensível o cansaço que parte de nossos colegas negros, indígenas ou mulheres sentem ao se deparar repetidas vezes com a necessidade de confrontar parentes, amigos e colegas de profissão, em ambientes que deveriam ser seguros, sobre temas como esses, e ainda sair como as “encrenqueiras”, “intolerantes”, “imaturas” ou qualquer versão eufemística que nossos colegas encontram para não usar o já condenado “racismo reverso”. Eddo-Lodge faz o serviço de mostrar que a discussão do privilégio branco é ainda mais urgente. É muito mais simples contestar extremistas e supremacistas brancos, uma vez que seu posicionamento já é muito claro. Mas a insídia do racismo está em justamente passar despercebido pelas nossas relações mais íntimas e cotidianas. Como a própria Eddo-Loge afirma: “Parece haver uma crença entre alguns brancos de que ser acusado de racismo é muito pior do que o próprio racismo” (Eddo-Lodge, 2019, p. 116). E é em espaços como grupos de WhatsApp, festas familiares, ambientes de trabalho em que muitas vezes ele adquire maior perniciosidade psicológica, uma vez que são exigidas classe e elegância aos nossos colegas pretos e pretas ao retorquir seus colegas brancos.
Não encontramos, no livro, referências a teorias ou autorias que construam um arcabouço conceitual, teórico e/ou epistemológico para o racismo. Reni Eddo-Lodge, em linguagem jornalística, direta e sem muitas notas de rodapé, se utiliza principalmente de dados estatísticos, legislação e coberturas jornalísticas referentes à Inglaterra desde a 1ª Guerra Mundial e entrevistas e depoimentos de pessoas brancas e mestiças [1] para provar seu argumento: o da existência de um privilégio branco. Seu raciocínio é apresentado pela generalização de argumentos que ela destrincha capítulo após o outro, e que servem como um material didático para nos educar sobre temas recorrentes em nossas trajetórias como docentes, colegas, parceiros e parceiras: punitivismo e violência policial; cotas, representatividade e tokenismo [2]; racismo e preconceito; queda de estátuas e liberdade de expressão; interseccionalidade; acusações de fragmentação e diversionismo pela própria esquerda. Para ao fim compreendermos que racismo não é algo referente apenas a ações individuais, morais. Racismo é problema estrutural, que organiza todas as nossas relações sociais, cegando a branquitude e permitindo-lhe que chegue ao ponto de responder a uma mãe negra que o incômodo faz parte da vida (“Quando focam em ofensas, ao invés de sua própria cumplicidade em um sistema drasticamente injusto, eles transferem, com sucesso, a responsabilidade de consertar o sistema dos beneficiados por ele para aqueles mais inclinados a perder por causa dele” [Eddo-Lodge, 2019, p. 116-117]). Ironicamente, se há uma coisa para que “Porque não converso mais com pessoas brancas sobre raça” serve é para incomodar. É muito desconfortável, como bem alertou Gabi de Pretas, ler Reni e se perceber como alguém a quem já ocorreram alguns dos argumentos que ela contesta.
A reivindicação não é apenas por igualdade, já que isso presume ainda a manutenção de um sistema que permanece exclusivo, com apenas o revezamento dos indivíduos que ocupam os espaços de poder. A reivindicação de Reni, e de tantas outras, e que incomoda a tantos de nós ao ponto de rechaçá-las, acusando-as de reivindicação de superioridade moral, é de reformulação total do sistema: “O ônus não está em mim para mudar. Ao contrário, está no mundo ao meu redor” (Eddo-Lodge, 2019, p. 155).
Ao final do livro, Eddo-Lodge tem a generosidade de sugerir algumas possibilidades para essa mudança. Que reconstruamos, pois, esse mundo. Nossas crianças não merecem se conformar com a inevitabilidade de seus incômodos.
Notas
1. Esse é o termo utilizado no livro para indicar filhos de casamentos interraciais.
2. No livro, a tradutora Elisa Elwine define tokenismo da seguinte forma: “tokenismo é uma expressão inglesa que se refere à prática de fazer esforço simbólico com o objetivo de ser inclusivo para membros de minorias. Seria uma forma de aparentar igualdade racial ou sexual” (Eddo-Lodge, 2019, p. 72).
Aryana Costa – Professora do Departamento de História / UERN – campus Mossoró, trabalha com ensino de História e historiografia.
EDDO-LODGE, Reni. Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça. Belo Horizonte: Letramento, 2019. 214 p. Tradução de Elisa Elwine. Resenha de: COSTA, Ariana. “Mas nem todo branco…”. Humanas – Pesquisadoras em Rede. 20 jul. 2020. Acessar publicação original. [IF]