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Caminhos da Liberdade no Jovem Marx: da emancipação política à emancipação social – VIEIRA (EL)
VIEIRA, Júlia Lemos. Caminhos da Liberdade no Jovem Marx: da emancipação política à emancipação social. São Paulo: Anita Garibaldi & Fundação Maurício Grabois, 2017. Resenha de: ANTUNES, Jadir. Eleuthería, Campo Grande, v 4, n. 6, 193-196, jun./nov., 2019.
O livro Caminhos da Liberdade no Jovem Marx: da emancipação política à emancipação social de Júlia Lemos Vieira é um livro inédito que descreve a biografia intelectual libertária e democrática do chamado jovem Marx até seu ingresso, e mesmo durante, a chamada fase da maturidade. O livro é resultado da Tese de Doutoramento em Filosofia da autora na Usp em 2014 sob a orientação do professor Sérgio Cardoso.
O que imediatamente nos atrai na leitura do trabalho de Júlia Lemos Vieira é sua desenvoltura para tratar de um tema caro, porém pouco compreendido pela tradição marxista: o da relação de Marx com a filosofia clássica – seja ela grega, latina ou alemã.
Não temos dúvidas do caráter original e crítico da teoria desenvolvida por Marx sobre a natureza contraditória e histórica da estrutura econômica, política, jurídica e ideológica da sociedade capitalista. Não temos dúvidas, ainda, da importância decisiva que tiveram na vida de Marx, pessoas geniais como Hegel, Feuerbach, Smith, Ricardo e mesmo Engels. O livro de Júlia Lemos Vieira, porém, vai além dessas certezas ao nos apresentar, de maneira clara e radical, a importância decisiva para Marx, para ela, maior ainda que Hegel e Feuerbach, do filósofo e materialista grego Epicuro.
É comum entre filósofos o debate e o questionamento sobre os princípios orientadores do pensamento propriamente filosófico. Em filosofia quem não tem princípios não tem pensamento e, por isso, não tem também filosofia. É comum atribuir aos gregos, ao platonismo e ao aristotelismo especialmente, o mérito de terem sido a grande matriz de todo o pensamento verdadeiramente filosófico do Ocidente, o mérito de terem compreendido que não se pode fazer filosofia sem a adoção de um princípio racional essencial para a realidade, da adoção de um princípio único capaz de unificar racionalmente a irracionalidade da pluralidade, da multiplicidade e da diferença.
A ideia de que haveria algo em-si, por-si e para-si na realidade, de algo totalmente autônomo e independente da realidade humana e natural, de algo único e essencial, dotado do poder de organizar, racionalizar e dar sentido e finalidade ao caótico mundo da pluralidade, da multiplicidade e da diferença esteve na base de todas as grandes doutrinas clássicas gregas – posteriormente adotadas por quase toda a história da filosofia.
Seria este sistema metafísico, racionalista, objetivo, hierárquico e desigual de pensar que estaria, segundo os críticos de Marx, na base de todas as tendências autoritárias, antidemocráticas, hierárquicas, monolíticas, estatistas, necessitaristas, deterministas, objetivistas, burocráticas, elitistas e violentas do marxismo. Teria sido a adesão de Marx, segundo esses críticos, ainda que de maneira nunca clara e explícita na sua própria letra, a esta filosofia de matriz teológica e metafísica que teria condenado o marxismo a não suportar a pluralidade, a multiplicidade, a autonomia, a liberdade e a diferença – sejam elas teóricas ou práticas.
O livro de Júlia Lemos Vieira desmistifica essa falsa interpretação do pensamento de Marx ao nos mostrar que ele, desde sua tese doutoral até a maturidade, sempre teria sido, ainda que nem sempre explícito e claro em seus textos, um epicurista e ardoroso defensor da democracia, da pluralidade, da liberdade, da autonomia, da subjetividade, da diferença, da contingência e da multiplicidade.
O mecanicismo epicurista, ao negar o finalismo aristotélico e o determinismo democritiano, ao negar a existência de um princípio único, necessário e autonomizado ordenando e dando sentido à realidade, ao pensar o deslocamento contingente e não necessário dos átomos através do clinamen, ao atribuir aos deuses um caráter não antropomórfico, não consciente e não ocupado com os destinos da vida humana, ao negar a existência de qualquer coisa ou realidade em-si, fora, independente e diferente da natureza e do homem, de uma coisa que organiza e dirige a vida natural e humana de maneira objetiva, impessoal, necessária e universal, teria produzido em Marx uma visão filosófica não somente antimetafísica, antiteológica e antiabstrata, mas, sobretudo, horizontalizada, igualitária, democrática e libertária.
O livro de Júlia Lemos Vieira ocupa-se, minuciosamente, em nos mostrar, desde sua tese doutoral até seus primeiros escritos filosóficos de juventude, chegando à maturidade da Ideologia Alemã e ao Capital, como Marx sempre teve em mente o sistema materialista aberto, múltiplo, livre, plural e não finalista de Epicuro, um sistema racionalista onde a verdade não pré-existiria ao debate, onde não pré-existiria um saber e uma verdade absolutos e essenciais só apreensíveis pelos especialistas do saber, mas, onde a verdade é uma coisa que se produz no interior do debate público entre as muitas verdades efetivamente existentes na realidade.
O livro de Júlia Lemos Vieira nos mostra como Marx sempre se preocupou em desenvolver uma filosofia não dogmática, não teológica, não finalista, não necessitarista, não determinista e não racionalista, mas sim, uma filosofia que condenaria toda pretensão filosófica de elevar-se ao púlpito da verdade única e em-si, daquela verdade separada e absoluta que pretende elevar-se acima de todas as verdades como sendo a Verdade.
O livro de Júlia Lemos Vieira é de leitura filosófica profunda e agradável, está organizado em quatro capítulos e nele viaja-se pela história da filosofia enquanto história da metafísica e da teologia, enquanto história da falsa concepção de que há uma razão universal, absoluta, autonomizada e livre que organiza a realidade segundo seus próprios princípios ideais, necessários e abstratos. Em cada capítulo o livro procura esclarecer os problemas filosóficos enfrentados por Marx, quase sempre ligados à história da filosofia enquanto história da razão como coisa em-si, e como Marx os resolve tomando como pressupostos os princípios elementares do atomismo epicurista.
O livro parte do estudo da Tese Doutoral de Marx de 1841, Sobre a Diferença entre Demócrito e Epicuro, e prossegue estudando todos os principais textos, e mesmo textos por nós desconhecidos, da juventude de Marx, textos como as cartas ao pai Heinrich, onde Marx relata sua insatisfação com o formalismo filosófico e jurídico de Kant e seu ceticismo em relação à capacidade do Direito de ser um efetivo promotor da justiça e da ética entre os homens; os artigos e polêmicas contra Hermes e Moses Hess da Gazeta Renana de 1842; a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel de 1842; os Anais franco-alemães e sua polêmica com o idealismo de Arnold Ruge de 1844; os Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844; a Ideologia Alemã de 1845 e seu rompimento definitivo com as abstrações do idealismo e com a fraseologia filosófica; o Manifesto Comunista de 1848 e O Capital de 1867; mostrando-nos quão profundamente democrática, aberta, libertária e não monolítica era a concepção filosófica de Marx desde seus primeiros trabalhos filosóficos até seu ingresso na maturidade e na velhice.
O livro de Júlia Lemos Vieira nos mostra, ainda, o papel positivo de Proudhon na formação do pensamento de Marx com sua crítica à propriedade privada em O que é a propriedade?; o papel positivo dos sentidos e da diferença para a formação da consciência humana no Emílio de Rousseau; o papel positivo do Contrato Social e a defesa rousseauniana de uma democracia direta, plural e aberta, de um Estado que seja o resultado não da vontade geral abstrata e alienada, mas da vontade geral real que se forma a partir da polêmica e do debate consciente entre as muitas vontades concretas e particulares.
Em todos os momentos de seu livro, Júlia Lemos Vieira nos lembra sempre da importância de Epicuro e da presença da Tese Doutoral nas diferentes etapas da crítica filosófica de Marx à teologia e à metafísica e de como a contingência, a liberdade, a pluralidade, a diferença, a autonomia e a democracia sempre foram tidas por Marx como valores fundamentais e que a verdadeira filosofia seria a filosofia fundada na racionalidade democrática, no debate e na pluralidade das argumentações que se apresentam publicamente.
O livro de Júlia Lemos Vieira é uma belíssima e profunda introdução ao pensamento e ao sentido político da crítica filosófica de Marx aos modelos de filosofia fundados na hierarquia do saber e da crença de uma verdade oracular em-si, necessária, objetiva, impessoal, abstrata e universal habitando fora e além da consciência humana real.
O livro também é uma crítica à falsa separação entre um jovem Marx filosófico, romântico e democrata e um Marx maduro científico, racional e revolucionário. O livro, por isso, é uma crítica rica e profunda ao chamado materialismo histórico dialético, que valoriza somente as chamadas obras da maturidade de Marx produzidas a partir da Ideologia Alemã e desmerecendo as anteriores, ao materialismo que abstrai tudo o que seja livre, consciente e subjetivo para valorizar somente as estruturas materiais objetivas, impessoais e racionais da realidade.
O livro de Júlia Lemos Vieira contribuirá, certamente, no desenvolvimento de um novo marxismo, mais vivo, trágico, dramático, radical e filosófico e que deve ser lido e apreciado até mesmo pelos mais experientes leitores de Marx.
Jadir Antunes – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
[DR]Marx e o fetiche da mercadoria: contribuição à crítica da metafísica – ANTUNES (EL)
ANTUNES, Jadir. Marx e o fetiche da mercadoria: contribuição à crítica da metafísica. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. Resenha de: PRADO, Carlos. Eleuthería, Campo Grande, v. 3, n. 5, p. 115 – 118, dez. 2018/mai., 2019.
O Capital de Karl Marx é ainda hoje uma obra atual e necessária para interpretação e crítica da sociedade capitalista. Não obstante, trata-se de um texto longo e denso. A obra é composta por três livros divididos em cinco volumes. Vale lembrar ainda que apenas o Primeiro Livro foi publicado por Marx, em 1867, os demais foram editados por Engels e publicados em 1885 e 1894, respectivamente.
Esta é reconhecidamente a obra fundamental de Marx, a qual ele dedicou a maior parte de sua vida para elaboração e a que melhor representa o seu pensamento maduro. Porém, é preciso destacar que não se trata de uma leitura rápida e simples. Sua interpretação exige dedicação e esforço que podem se arrastar por meses, anos e décadas. Por conseguinte, não são muitos os pesquisadores que se arriscam nessa difícil empreitada.
Uma das grandes dificuldades, reconhecida por diversos interpretes e pelo próprio Marx, reside na exposição abstrata da Primeira Seção, intitulada “Mercadoria e dinheiro”, e que compreende os três primeiros capítulos. Esta é considerada a parte mais difícil. Prova disto é que Marx a reelaborou sucessivas vezes. A exposição sobre o problema da interpretação teórica do dinheiro aparece em Contribuição à crítica da Economia Política de 1859, nos Grundrisse, e em O Capital. Na 2ª edição desta última, de 1872, edição revisada, Marx apresentou um posfácio, no qual demonstrou seu descontentamento com o texto original de 1867 e o modificou, suprimiu passagens, sempre buscando aprimorar a exposição, tornando-a mais acessível e compreensível. Todavia, as dificuldades persistiram.
É justamente sobre essa difícil e espinhosa Primeira Seção que o livro de Jadir Antunes se debruça. O autor vem estudando O Capital de Marx desde a sua graduação em Economia, concluída em 1999, passando por mestrado (2002) e doutorado (2005) em Filosofia. O livro Marx e o fetiche da mercadoria: contribuição à crítica da Metafísica é resultado destes 20 anos de estudos e pesquisas dedicados ao pensamento econômico e filosófico.
A proposta do livro de Antunes é desvendar o problema em torno da mercadoria dinheiro e, nessa empreitada, apresenta uma interpretação filosófica d´O Capital, demonstrando que a crítica de Marx não é apenas à Economia Política, mas, fundamentalmente, uma crítica à Metafísica. Como salienta o autor: “A crítica de Marx à Economia Política deve ser interpretada de maneira mais crítica, mais radical, mais ampla e filosófica como crítica da Metafísica Moderna, da Metafísica agora encarnada no mercado, na mercadoria e no dinheiro”. (2018, p. 17).
Ao longo de cinco capítulos, a interpretação de Antunes evidencia que a crítica que Marx apresenta em O Capital é uma crítica à Metafísica, ou melhor, aos poderes metafísicos que as relações capitalistas adquirem e se revelam desde a análise da mercadoria. A concepção de que o mundo industrial, racional e científico teria fechado as portas para as especulações metafísicas é rejeitada por Marx. No mundo em que a riqueza aparece na forma de mercadorias e dinheiro, a Metafísica não foi liquidada. Pelo contrário, a Metafísica apenas abandonou o terreno da religião e do pensamento para, sob o domínio da sociedade capitalista, reaparecer pela ação humana sob novas formas. Dessa forma, Antunes nos apresenta uma interpretação original e audaciosa.
Já no início da exposição, ao se discutir o duplo caráter da mercadoria, revela-se a realidade metafisicamente duplicada, invertida e cindida da mercadoria. Para além dos seus aspectos econômicos, materiais, sensíveis e concretos, a investigação sobre a Teoria do valor, apresenta as “tramoias Metafísicas” da mercadoria que arranca o pensamento do mundo visível e concreto, levando-o ao mundo de categorias abstratas e misteriosas. O valor é a realidade destituída de qualquer visibilidade, sensibilidade e naturalidade.
O valor de uso revela um o mundo sensível, material, concreto, da natureza perceptível. O valor de troca e o valor revelam o mundo inteligível, suprassensível, não natural, abstrato e não sensível. A Metafísica duplica essa realidade e a inverte, transformando o além e todos os conceitos suprassensíveis em princípios da realidade que explicam a realidade concreta. A Metafísica ainda autonomiza o mundo inteligível. Cria a ideia de que há um ente abstrato que governa toda a realidade concreta e material.
E assim, desde o duplo caráter da mercadoria, avançando pelo duplo caráter do trabalho, revelando a forma do valor, Antunes, seguindo a letra de Marx e cotejando as duas primeiras edições d´O Capital, avança até a forma dinheiro. Este é entendido como a superação das formas equivalente menos desenvolvidas, como aquele que deu ao mundo das formas relativas da riqueza a sua forma mais acabada.
O dinheiro, enquanto mercadoria das mercadorias, adquiriu poderes misteriosos e fantásticos. De acordo com Antunes: “O ente dinheiro instaura um cosmos no mundo do ente mercadoria, aparentemente ausente na forma geral e desdobrada de valor. O ente dinheiro instaura a vitória completa da Metafísica sobre o vivido, a phisis, a arte e o sensível”. (2018, p. 208). Antunes busca revelar que para Marx, o dinheiro é a expressão mais desenvolvida da Metafísica do capital.
Ao discutir o problema do fetiche, Marx, de acordo com Antunes, busca evidenciar que os homens têm uma relação dupla com o mundo. Ao longo de toda a exposição, o autor elucida que a realidade capitalista está divida sob uma dupla dimensão: a dimensão sensível e natural e a suprassensível e social. A mercadoria e o trabalho apresentam esta dupla e contraditória determinação. Com efeito, é deste caráter duplo, relativo, metafísico e contraditório que surge o fetiche.
O grande objetivo de Antunes em seu livro é demonstrar que O Capital de Marx é um estudo lógico, conceitual, abstrato e filosófico e, em certo sentido, Metafísico. Desta maneira, Marx não estaria interessado em apresentar um estudo empírico sobre o desenvolvimento do capitalismo, mas sim, em investigar e expor sua gênese lógica, ontológico e conceitual. Antunes busca demonstrar que para Marx, o dinheiro surge como resultado necessário e racional da própria mercadoria, como uma forma desenvolvida do ente mercadoria, como forma sensível e desdobrada da antítese entre valor de uso e valor contida no interior da forma mercadoria. O dinheiro aparece então como figura autonomizada e reificada do valor.
Na perspectiva apresentada por Antunes, a análise de Marx não pode ser inteiramente compreendida se resumida aos seus aspectos econômicos. É preciso trazer à superfície o seu conteúdo filosófico. Trata-se de desvendar o enigma da mercadoria e do dinheiro a partir do seu sentido filosófico e metafísico. Assim, a crítica à Economia Política é também uma crítica à Filosofia Metafísica. O livro se destaca por trazer à luz o problema filosófico que, muitas vezes, parece ser menosprezado. Nessa perspectiva, a obra apresentada por Antunes merece a atenção dos estudiosos de Marx. Trata-se de um livro que merece ser lido, discutido e comentado.
Carlos Prado – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professor do curso de História da UFMS/FACH.
[DR]A Fábula das Abelhas ou Vícios Privados, Benefícios Públicos – MANDEVILLE (EL)
MANDEVILLE, Bernard de. A Fábula das Abelhas ou Vícios Privados, Benefícios Públicos. São Paulo: Editora Unesp, 2017. Resenha de: MELO, Ricardo Pereira de. Eleuthería, Campo Grande, v. 3, n. 4, p. 113 – 117, jun./nov., 2018.
APRESENTAÇÃO E CONTEXTO HISTÓRICO
Finalmente, os leitores brasileiros e de língua portuguesa terão acesso à versão integral do livro do pensador Bernard de Mandeville conhecida como A Fábula das abelhas ou vícios privados, benefícios públicos. A brilhante e competente tradução foi realizada pelo professor Bruno Costa Simões e publicada pela Editora da Unesp. Sem dúvida que o público foi presenteado com uma belíssima edição pela longa espera da tradução completa em português1.
Bernard Mandeville nasceu em Roterdã em novembro de 1670. Apesar de nascer na Holanda, estudou e viveu por quase toda sua vida na Inglaterra, trabalhando em Londres como médico. O final do século XVII foi marcado por um período de transição importante na economia e na sociedade mundial, onde ele presenciou a transição da hegemonia holandesa para a inglesa2. De certa forma, esse momento histórico, é vivenciado pela mudança de habitat de Mandeville e transcrito nos textos do autor.
Mandeville utiliza-se da sátira e da analogia para mostrar as profundas transformações que se passam na sociedade inglesa na virada do século XVII, principalmente evidenciando o caráter de desenvolvimento e prosperidade da economia. A obra de Mandeville, com certeza, não é um tratado sobre economia, mas podemos dizer que Mandeville, trouxe ao centro do debate, questões que seriam mais tarde abordadas por outros teóricos da economia, principalmente ligados à defesa do laissez faire laissez passer. Em geral, segundo Louis Dumont, Mandeville seria favorável à um “comércio mais livre”, mas não ao “livre comércio puro e simples”3 e, em suas ideias, ainda cultivava muitos pressupostos da economia mercantilista.
Dumont advertiu em sua análise sobre o trabalho de Mandeville que os poemas e escritos, em sua totalidade, reflete a sociedade concreta e, com ela, as mudanças de ontem (sociedade pequena, isolada e estagnada) para o hoje (a evolução da economia capitalista). Para o autor da Fábula, assim como para Hume e Smith, é um momento de transição “que se trata de um eixo maior na transição da ideologia tradicional para a ideologia moderna”4.
O destaque dado por Mandeville sobre o papel do egoísmo na ação humana não passou desapercebido por Adam Smith ao tratar dos problemas econômicos. A Riqueza das nações de Adam Smith, conforme Dumont afirma, é uma resposta às indagações levantadas por Mandeville e que Smith teria tomado contato com a obra nos cursos do professor Hutcheson em Glasgow ainda na graduação5.
Para alguns autores, tais como Rogério Arthmar e Friedrich von Hayek, Mandeville foi o primeiro a colocar o problema das crises de superprodução e de insuficiência de demanda no centro do debate político no capitalismo inglês, cuja a visão econômica estava voltada, exclusivamente, para o consumo, e não na produção. Para Arthmar:
Porém, recuando no tempo, verifica-se que a polêmica sobre a possibilidade de uma escassez geral de demanda possuía antecedentes longínquos nos escritos econômicos do Reino Unido. Em 1705, Bernard Mandeville publicava seu poema The grumbling hive: or knaves turn’d honest, onde enaltecia os vícios e a luxúria como fontes da prosperidade de uma colméia, alegoria pitoresca da sociedade em que vivia. O material, apesar de sua criatividade, passaria totalmente despercebido nos meios literários6.
Na ética da Fábula existe um divórcio radical entre moralidade e religião. O tema central que versa o poema das abelhas na colméia é que a prosperidade econômica e a obtenção de riqueza não possuem relação direta com a moralidade cristã. Existe em sua obra uma preocupação de fundo, presente também nos grandes pensadores da história ocidental: um constante receio do retrocesso, ou melhor, à regressão aos anos de escuridão da civilização, baseado numa economia meramente agrícola e pouco desenvolvida. Nesse sentido, toda A Fábula pode ser lida como uma defesa da circulação de riquezas, da moeda e da atividade do comércio. Segundo Ari Ricardo:
Não se tratava de alguns ricos comerciantes, que traficavam bens de luxo para uns poucos habitantes, mas sim de uma gigantesca máquina de fazer e distribuir mercadorias acessíveis a muitas pessoas. Para Mandeville, essas mudanças representavam uma melhoria de vida, apesar das reclamações, que surgiam em grande número, de que o aumento do luxo enfraqueceria a fibra moral da nação. Foi justamente como resposta a elas que Mandeville escreveu. A favor das mudanças, com certeza. Mostrando que as tais fibras morais, pretensamente responsáveis pela grandeza e continuidade da nação, eram mal compreendidas, que as fontes da prosperidade eram outras, que o que se via como ameaça, o luxo, era positivo para a sociedade, muito embora fosse de fato um vício, como queriam alguns7.
Mandeville tinha como característica provocar as paixões mais inesperadas entre seus leitores. Dessa forma, expressava-se de maneira pouco amistosa ou agradável. Aos acostumados pela polidez, ou pela urbanidade ou, mesmo, pela sensatez acharão no pensamento de Mandeville uma profunda marca de provocação que dificilmente deixariam qualquer um apaziguado ou entorpecido.
A escrita irreverente aguçava o intelecto das pessoas e, dificilmente, alguém não se manifesta com amor ou repulsa aos seus textos. Ao espírito adormecido e ignorante oferecia doses sob medida aos preconceituosos e arrogantes. Para o início do século XVIII, defender a prostituição e atacar a educação popular, pode-se dizer, que Mandeville irritou muitos na sociedade em seu tempo.
ESTRUTURA DE A FÁBULA
A tradução aqui apresentada deve-se ao trabalho extraordinário de compilação das obras completas organizadas F.B. Kaye que trabalhou na preservação do legado mandevilleano. Como bem avalia Jacob Viner que “a partir da publicação, em 1924, da magnífica edição da Fable of th bees de F.B. Kaye, ninguém pode tratar seriamente do pensamento de Mandeville, sem apoiar-se firmemente nele”8. No mesmo sentido, Dumont afirma:
Devemos muito a F.B. Kaye pela sua edição crítica monumental da Fábula, e especialmente por sua laboriosa coleção das fontes certas ou possíveis de Mandeville, pelas passagens paralelas dos escritos anteriores de uma parte, e, de outra, por seu catálogo de referências a Mandeville na literatura subsequente: ele contribuiu com profusão para que pudéssemos captar com um golpe de vista o lugar de Mandeville na história das idéias9.
Aos 35 anos, no ano de 1705, Bernard de Mandeville iniciou o seu itinerário intelectual ao publicar um poema na forma de sátira contendo seis vinténs em versos intitulado Acolmeia ranzinza ou De canalhas a honestos (The Grumbling Hive or Knaves turn’d honest), cuja a publicação passou em silêncio diante à crítica e “o impacto inicial do poema foi quase nulo”10. Em 1714, ele republica o poema, agora contendo um novo capítulo de comentário chamado Uma investigação sobre a origem da virtude moral (An Inquiry into the Origin of Moral Virtues)e também acrescenta outro texto de Observações com extensas glosas explicativas sobre o significado de seus versos. Agora, o poema em versos torna-se um livro sob o título de A Fábula das abelhas ou Vícios privados, benefícios públicos (The fable of the bees, or private vices, publick benefits) que, mais uma vez, não lograria a atenção do público.Para alguns comentadores, como Ricardo Ari Brito, Mandeville acrescentava esses textos ao poema inicial, como se fosse necessário, para o bomesclarecimento“que o leitor tivesseuma visão mais ampla do terreno que está pisando, uma espécie de introdução às explicações”11.
A segunda edição do livro publicada em 1723, Mandevile adiciona mais um texto intitulado Ensaio sobre a caridade e as escolas de caridade (An Essay on Charity and Charity-Schools) e diferente da edição anterior, tanto o poema como os comentários causaram um grande tormento na sociedade inglesa da época. O Ensaio despertou muita indignação entre os críticos que, ironicamente, provocaria com isso outras cinco edições da obra em menos de uma década, um recorde para a época12. Com o Ensaio, Mandeville tornar-se muito famoso e, em pouco tempo, seus escritos começaram a abalar a tradição religiosa. No mesmo ano de 1723, ele recebe a denúncia das entidades religiosa, acusando-o como um anticristão e contra os costumes sociais e, com isso, sendo obrigado a comparecer diante do tribunal de justiça.
Ao final do livro, a tradução brasileira ainda vem acrescentada do texto Defesa do livro a partir das difamações contidas numa acusação do grande júri de Middlesex e numa carta insultante endereçada a lord C. que foi apresentada ao Tribunal do Rei (King’s Bench) no condado de Middlesex como defesa à acusação imposta como um anticristão. Infelizmente, apesar da importante tradução feita por Bruno Costa Simões, ainda faltam os diálogos de resposta de Mandeville às críticas do filósofo George Berkeley intituladas Letter to Dion. Em todo caso, já temos uma tradução completa e acadêmica para futuros estudos da obra do pensador holandês.
Notas
1 Já circulava no Brasil a tradução de Laura Teixeira Motta, mas composta apenas do poema inaugural A Colmeia murmurante ou os velhacos que se tornaram honesto. A tradução faz parte do Apêndice do livro A Pré-história da economia: de Maquiavel a Adam Smith da professora e pesquisadora da USP Ana Maria Bianchi de 1988. Houve uma tradução espanhola muito utilizada no Brasil publicada em 1982 pela editora Fondo de Cultura Economica do México contendo a tradução na íntegra do livro de Mandeville.
2 Cf. ARRIGHI, Giovanni. O Longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Unesp, 1996, pp. 1-58 e, especialmente, pp. 130-148.
3 DUMONT, Louis. Homo Aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Trad. José Leonardo Nascimento. Bauru, SP: EDUSC, 2000, p. 103.
4 DUMONT, Homo Aequalis, p. 112.
5 DUMONT, Homo Aequalis, p. 97.
6 ARTHMAN, Rogério. Mandeville e a lei dos mercados. Economia e Sociedade. Campinas, SP: UNICAMP, v. 12, n.1, 2003, p. 88.
7 BRITO, Ari Ricardo Tank. As Abelhas egoístas: vício e virtude na obra de Bernard Mandeville. São Paulo: USP, 2006, p. 27. (Tese de Doutorado em Filosofia).
8 VINER, Jacob. Ensaios selecionados de Jacob Viner. Trad. José Maria Gouvêa Vieira. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1972, p. 318.
9 DUMONT, Homo Aequalis, p. 107.
10 FONSECA, Eduardo Giannetti da. Vícios privados, benefícios públicos? a ética na Riqueza das Nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 134.
11 BRITO, As Abelhas egoístas, p. 21.
12 “No século XVIII, as edições seguintes de The fable of the bees apareceriam em 1724, 1725, 1728 e 1729. Nesse último ano, Mandeville lançava também a segunda parte do livro, contendo um prefácio e seis diálogos, a qual receberia duas edições isoladas em 1730 e 1733. Os dois volumes seriam publicados em conjunto nos anos de 1733, 1755, 1772 e 1795, além das traduções para o francês em 1740 e para o alemão em 1761” (KAYE citado por ARTHMAR, Mandeville e a lei dos mercados, p. 88).
Ricardo Pereira de Melo – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
[DR]
Ensaios no feminino – NUNES DA COSTA (EL)
NUNES DA COSTA, Marta. Ensaios no feminino. São Paulo: LiberArs, 2018. Resenha de: HEUSER, Ester Maria Dreher. Eleuthería, Campo Grande, v. 3, n. 4, p. 105 – 112, jun./nov., 2018.
Em seu Ensaios no feminino, Marta Nunes da Costa ensaia sobre uma ausência na Filosofia e busca compreendê-la: a ausência das mulheres. Nessa busca, Nunes da Costa se encontra com categorias específicas, as mesmas que os movimentos feministas encontram em outros espaços culturais e sociais, naquilo que se refere às mulheres. Trata-se das categorias de invisibilidade; patriarcado; violência e desigualdade. Dá a ver que a Filosofia não é um campo assim tão distinto dos demais, como se gostaria de supor, afinal trata-se de um espaço de suposto uso da razão esclarecida. São ensaios que repensam e reconstroem criticamente nossa herança filosófica, social e política e que questionam: por que, apesar de os movimentos feministas que alcançaram reconhecimento pela dignidade das mulheres, as mulheres filósofas ainda estão nas margens da discussão filosófica dominante? Impulsionada pela teoria crítica, Nunes da Costa (2018, p. 17) traz elementos problemáticos e contraditórios presentes na nossa condição atual, para ela, “não é possível olhar para a história da filosofia e escolher ignorar a ausência das mulheres”, pois não só o que aparece e é dito são importantes, também, ou mais que isso, o invisível e o não dito merecem atenção.
Ausência é um sinal, diz ela (2018, p. 7): sinal de luta e de relações de poder. Não é que nós mulheres não estejamos presentes na Filosofia, sim, estamos ali, mas às margens. Como não estaríamos se a filosofia é a atividade de reflexão e busca de sentido que constitui experiência fundamental da existência humana? Existência esta que é partilhada por homens e mulheres que também questionam pelo sentido de si mesmas (cf. 2018, p. 11), tanto ou mais que os homens – afinal, são elas que mais leem1, que mais frequentam consultórios médicos2, os bancos escolares3 e também as igrejas4. Ainda assim, estamos ausentes porque rodeamos, perifericamente, aquilo que é central na Filosofia; são os homens, sobretudo, que conferem visibilidade à atividade filosófica, porque detém o poder também nessa instituição.
CULTURA PATRIARCAL
Para a autora, ocuparmos apenas as suas bordas indica que a Filosofia repete a ordem vigente da sociedade, a qual é orientada pela (quase) naturalizada lógica patriarcal e capitalista. O que “conduz a uma reprodução do valor masculino que só se faz à custa da violência contra o seu outro, a mulher” (2018, p. 26) e ecoa o “discurso do capital que parece assentar sobre um princípio sexualmente neutro” (2018, p. 27) elaborado por uma “visão androcêntrica que se impõe como neutra e não tem necessidade de se enunciar” com vistas à sua legitimidade, uma vez que é hegemônica. Segundo a autora (2018, p. 28), essa visão androcêntrica e hegemônica precisa ser contestada. Contestação que Nunes da Costa (2018, p. 31ss) faz também por meio da apresentação de números e dados acerca da legislação, brasileira em especial, que refletem a cultura patriarcal, “essa lógica de dominação em que o homem teve até muito recentemente total domínio sobre a mulher”. Isto do ponto de vista cultural e legal, pois só com a Constituição de 1988 que a mulher passou a ter “igualdade de funções” no âmbito familiar. A autora, no ensaio “Patriarcado, violência, injustiça – sobre as (im)possibilidades da democracia(?)”, informa que até a década de 70, no Brasil, se debatia se “o marido poderia ser sujeito ativo do crime de estupro, já que era dever da mulher cumprir com as suas funções e manter relações sexuais”, e que até 2009, “o estupro era tipificado como crime de ação privada contra os costumes” e não contra a mulher que sofreu o estupro. Há menos de uma década “o estupro passou a ser um crime contra a dignidade e liberdade sexual” (2018, p. 32 [os grifos são nossos]). Portanto, somente 25 anos depois da “abertura democrática” é que o direito à igualdade foi reconhecido no Brasil, este valor que “diz respeito ao fundamento da própria democracia: a dignidade da pessoa humana” (2018, p. 33). Se trata, porém, não de uma igualdade completa, pois aindahoje, em 2018, não temos o direito legal sobre o nosso próprio corpo, uma vez que as leis brasileiras ainda restringem os casos de aborto. Muitas mulheres, por lei, ainda não são “sujeito de sua própria vida e narrativa” (2018, p. 64) – algo que, na Rússia foi garantido durante a revolução de 1917. Mais de um século separa a condição das mulheres russas de nós, brasileiras, em termos de direitos (ao menos das mulheres da Revolução Russa). Apesar deste caso, o mais alarmante ainda, entretanto, é que “a violência continuada contra as mulheres” e as “relações desiguais de poder entre homens e mulheres” não são “privilégios” brasileiros. A autora expõe dados de países nórdicos, como a Dinamarca e a Suécia, que, apesar de se apresentarem em números inferiores, “não estão imunes à lógica da dominação da qual o Brasil se torna exemplar” (2018, p. 35).
O patriarcado, e as decorrentes desigualdade, injustiça e violência que fomentam a cultura do estupro, é real e geral, não se trata de exclusividade nem privilégio brasileiro. Embora mais gritante em algumas sociedades do que noutras, os efeitos do patriarcado, concebido “como sistema social de dominação via categoria de gênero” (2018, p. 26), está presente não só nos escandalosos números dos registros policiais feitos a partir dos boletins de ocorrências, os quais denunciam que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil, mas também na “linguagem quotidiana, músicas e ditos populares […] manifestações artísticas e culturais” (2018, p. 31). Para a autora, os países que partilham da “grelha conceitual” do Ocidente têm em comum a violência contra a mulher naturalizada e culturalmente aceita. Caso contrário, não teríamos, por exemplo, listas sem fim de letras de músicas que trabalham “a ideia fundamental de que mulheres querem ser violentadas, que pedem esta violência, que a violência faz parte do ‘jogo’ do relacionamento, do sexo, do prazer ou do amor” (2018, p. 40). Letras e músicas que, inclusive, recebem prêmios! Entretanto, a autora compreende que enquanto a representação da mulher não for positiva, enquanto as produções culturais perpetuarem o status quo que parte do olhar do homem sobre a mulher, ao qual a mulher se esforça para corresponder, a luta por emancipação, “no sentido de superação da dominação ou opressão”, não terá êxito. Sim, Marta Nunes da Costa não interpreta simplificadamente que se trata da modificação de apenas um lado; por se tratar de uma cultura, reconhece que muitas mulheres “promovem uma cultura de degradação da sua própria imagem, contestam a sua autonomia e os seus direitos objetivando-se deliberadamente” (2018, p. 40). Para a autora, a cultura patriarcal será desconstruída se o meio for “usado para desconstruir e reconstruir efetivamente as identidades de gênero e as ideologias culturais que tentam cooptar esses esforços, integrando-os novamente na lógica globalizante e totalizadora do sistema e da ideologia dominante e patriarcal” (2018, p. 41).
Para que a modificação aconteça, nos homens e nas mulheres, Nunes da Costa afirma a necessidade de uma “revolução realmente revolucionária”, a “revolução no feminino” que implica a “reinvenção de um feminismo radical” (2018, p. 59) capaz de confrontar abertamente a lógica patriarcal e expor a ilegitimidade das práticas culturais, tradicionais, consideradas normais e até naturais, sustentadas pelo neoliberalismo capitalista. Para a autora, de mãos dadas com Arendt, a revolução no feminino “é a mudança radical que cria um novo início” sem “compromisso com a ordem existente” (2018, p. 62; p. 65). Porisso também, essa reinvenção de um feminismo radical é questão e dever das mulheres e dos homens, porque implica a conquista da liberdade também deles, pois “onde existe dominação não há liberdade”, nem para quem se considera livre e que domina, nem para quem é dominado, uma vez que a experiência da liberdade é interditada “para quem não tem um igual” (2018, p. 61). Este feminismo radical compreende que “os iguais que se reconhecem e têm relações de reciprocidade constroem um mundo que é deles, de inclusão, de diálogo, de partilha, um mundo feito por nós e não por ‘eus’, como prega o capitalismo neoliberal” (p. 2018, p. 57).
ATOS POLÍTICOS
Os cinco ensaios que compõem o livro ensaiam, sobretudo, atos políticos. Ao explicitarem também a ausência das mulheres na Filosofia, os ensaios indicam o que a presença delas pode significar em um sistema de pensamento masculino, feito por homens e para os homens: ato de rebeldia e de subversão desse sistema. Esses atos, por serem políticos, se ocupam daquilo que é indispensável para a realização da política por excelência, a democracia. Para Nunes da Costa, a democracia só pode se efetivar em condições de dignidade da pessoa humana – o que supõe a igualdade de condições entre gêneros – e de pluralismo – que implica um espaço de diferenças, de dissenso e de lutas “por objetivação de sentido às práticas desenvolvidas, definição de narrativas dominantes, de lentes conceituais” (2018, p. 42). Ou seja, enquanto, dentro e fora da Filosofia, mulheres e homens não estiverem em condições de igualdade de fato, enquanto as relações de dominação não estiverem banidas, não haverá liberdade, nem democracia, portanto, pois “a democracia exige sempre uma pluralidade de agentes que se encontram e se reconhecem entre iguais” (2018, p. 9) com vistas a construírem uma “sociedade bem ordenada, regulada pela igualdade, liberdade e sim, fraternidade, aquela virtude quase esquecida” (2018, p. 30).
Nunes da Costa defende que, para que a pluralidade de agentes que atuam juntos deixe de ser sonho, é necessário que inventemos um NÓS, porque ele ainda não existe; uma vez que quando dizemos nós, em verdade, nos referimos a um conjunto de eus que funda o “novo homem democrático” o qual tende ao individualismo, ao isolamento e à solidão “enquanto prática quotidiana” promotora de um despotismo de novo tipo promovido por “ninguéns” (2018, p. 82). A fim de inventar esse NÓS, contudo, distintamente das perspectivas defensoras da dissociação entre moral e política, a autora propõe a refundação de uma ordem política que dá lugar à uma moral, também refundada, que tem em seu horizonte as questões “para onde queremos ir? Que tipo de seres nos queremos tornar? Ninguéns, anônimos e desprovidos de humanidade ou, pelo contrário, pessoas?” (2018, p. 87).
A saída para essa refundação da política e da moral, pensa Nunes da Costa, está na reinvenção de um povo que se produz pela experiência humana de associação, mas não de “unificação” (2018, p. 55), com vistas a um propósito comum que acaba, inevitavelmente, por inventar um NÓS. Considera ela que, ao nos associarmos politicamente, salvaguardamos a experiência de liberdade coletiva, o que dará sentido ao mundo comum democrático sustentado por uma “grelha moral” construída por um NÓS que define o certo e o errado num contexto privado e público. Para ela, é só este NÓS, que cria e vive em um mundo comum feito “pelos humanos e que nos torna humanos” (2018, p. 60), que poderá interiorizar a vida como valor em si, como fim último da moralidade. Um NÓS que não elimina o confronto, mas afirma um confronto não aniquilador do outro, ao contrário, que reconhece “uma igualdade que transcende as diferenças’” e constrói um “espaço comum que permite a liberdade” de agir com o outro que é livre e igual (2018, p. 54). Enquanto não formos um NÓS, enquanto não pensarmos “o desafio da existência humana em conjunto”, seremos nada mais do que “observadores quietos e imperturbáveis” que assistem ao total colapso “de valores que permitem a construção e a sustentação de um projeto humano democrático viável” (2018, p. 81).
Nunes da Costa propõe a invenção deste NÓS pensando no Brasil, este país que ela escolheu para viver, educar seus filhos e filha e ajudar a fazê-lo por meio da docência pesquisa com estudantes e professores da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul –UFMT (e agora também na UNIOESTE). Ela considera o Brasil “um excelente laboratório para pensar o desafio da democracia […] um desafio que é moral (porque ainda precisamos responder à questão ‘o que é certo e errado?’) e político (porque ainda precisamos imaginar soluções que estanquem a sangria e a morte)”. Não é à sangria das investigações da Operação Lava jato5 que Nunes da Costa se refere, isto porque, para ela, o colapso de valores “não está retratado, apenas, nos governantes corruptos e mal-intencionados. Este colapso está entre nós, em todo o lado”. O colapso ao qual a autora se refere “aponta para a superficialidade da existência humana” e denuncia “a normalização de um modo de vida […] alienado” (2018, p. 81). Estamos alienados do mundo porque nele não encontramos lugar, tal como Arendt dizia. E não encontraremos lugar enquanto os ninguéns, aqueles que não se veem como responsáveis, porque não se reconhecem como seres morais, logo como pessoa, existirem e dominarem.
Como já antecipamos, para Nunes da Costa, a despeito de sua instabilidade frequente, a democracia é a única via para a construção desse NÓS e o banimento dos ninguéns. Isto porque, para ela (2018, p. 75), apesar de quererem nos fazer acreditar que a democracia deve ser considerada uma utopia a ser abandonada, porque impossível – e o Brasil é palco de tentativas quase quotidianas de desacreditar a democracia, seja ela como sistema político, social ou até como modo de vida – ela é a escolha humana que inclui homens e mulheres, em condições de liberdade, enquanto responsabilidade, e de igualdade, enquanto dignidade.
Dentre as várias conceptualizações de democracia, Nunes da Costa a concebe no sentido determinado por John Dewey: “como modo de vida” (2018, p. 26, 52 e 76 [grifos da autora]), vida que, aliás, “nasce sempre de uma mulher”, não esqueçamos disso (2018, p. 22); mas modo de vida que só pode ser construído pela pluralidade, inclusive de gêneros. Uma vez concebida como modo de vida, a democracia é pensada como uma estrutura básica de sociedade que engloba todas as instituições, costumes, práticas, imaginário coletivo; um projeto de constante transformação que orienta, dá direções sem impor nenhuma; apresenta papeis possíveis a desempenhar; não diz o que deve ser, mas o que pode ser; produz caminhos, ao invés de defini-los. Neste sentido, a democracia não define necessidades, mas produz possibilidades porque ela mesma não é, “na realidade, não existe algo como ‘a democracia’”, o que há somos nós humanos, mortais, que temos “um poder extraordinário de viver ou não democraticamente” (2018, p. 76).
Assim, o ato fundador da democracia é a “escolha humana”. A escolha pela democracia como modo de vida orientado por “relações democráticas” (2018, p. 53) é “o ato da determinação do possível, da construção do possível sobre o necessário” (2018, p. 79). É apenas com ela que a liberdade e o valor da dignidade humana, posto no centro do projeto democrático pela autora, na acepção kantiana daquilo que “não tem preço” (2018, p. 47), podem se materializar. Não se trata, entretanto, de uma relação causal, no sentido de que a democracia se realiza primeiro para então a liberdade e a dignidade ganharem existência. Do modo que pensa a autora, uma é impossível sem a outra. Nunes da Costa compreende que “a liberdade é a ideia que suporta a construção da moral e que atribui sentido ao mundo físico [… e que] inventa o possível” (2018, p. 47). Portanto, se a democracia é o “ato de determinação do possível”, para que ela ganhe efetividade, a liberdade, que é inalienável e confere dignidade àquilo que não pode ser trocado por nada – a pessoa –, lhe é imprescindível. Não haverá, portanto, democracia sem liberdade, dignidade e igualdade, pois há uma relação essencial entre elas. Para a autora, “a dignidade constrói o horizonte de igualdade entre membros de uma comunidade racional, e nesse horizonte eles são livres” (2018, p. 55). Considerando o entrelaçamento desses conceitos, é possível afirmar que enquanto não formos tratados e nem tratarmos os outros como fins em si mesmos, numa relação de igualdade, não será possível agir livremente e resistir àquilo que fere a dignidade e impede de imaginarmos e criarmos alternativas para a afirmação da vida ativa de cada uma e cada um de NÓS em um mundo comum que juntos construímos, assim como a democracia continuará sendo um sonho. Nos parece, contudo, que a autora, ainda que ao longo do livro, na maior parte das vezes, sugira a horizontalidade e a relação necessária entre esses conceitos para a efetivação da democracia, no que se refere à reivindicação primeira da luta feminista, nessa sua proposta de reinvenção de um feminismo radical, se trata de lutar, antes de tudo, por liberdade (2018, p. 70). Mais precisamente, para ela, lutar pela “experiência da liberdade, que é sempre uma experiência que nasce do encontro dos ‘eus’ transformando-os em ‘nós’, tem potencial unificador das vontades individuais” que constroem “um mundo comum” (2018, p. 73). Além do mais, nos parece que Nunes da Costa sugere que a bandeira número um desse feminismo radical seja a liberdade também porque, como pensa Arendt, somente quem é livre, para resistir e propor o novo, pode ocupar “o espaço das aparências que é o espaço político por excelência” (2018, p. 72). Em síntese, se somos iguais unicamente quando aparecemos e só podemos aparecer se sairmos do espaço privado que nos foi destinado há séculos, só conquistaremos a igualdade se tivermos a liberdade de atuarmos na aparência da esfera pública e democrática. Pensado assim, arendtianamente, a primazia da luta pela liberdade sobre a bandeira da igualdade ganha sentido e necessidade. Nas palavras da autora:
Feminismo é a ação política conduzida por mulheres que buscam, pela sua ação, transformar a condição da qual partem. Por isso, feminismo deve passar necessariamente pela crítica social, pois visa a (re)construção do mundo de acordo com um ideal de emancipação, onde liberdade e igualdade se encontram (2018, p. 23).
É o que faz com que o sloganimpresso em camisetas e pichado em muros urbanos “lugar de mulher é onde ela quiser” deixe de ser “clichê feminista” para ganhar sentido e força de novidade. O que só pode se realizar via escolha democrática.
Mas por que escolher a democracia e não outra alternativa para viver, pergunta Marta Nunes da Costa (2018, p. 79-80). Ela e nós escolhemos a democracia porque “não queremos ser átomos, instrumentos singulares nas mãos de uma vontade que não é e nunca será a nossa”; porque consideramos a nossa existência imprescindível, mas não aceitamos viver apenas para sobreviver. Isto porque, não queremos e nem merecemos viver para morrer; porque não se trata de pensar “a sobrevivência do ser humano só como indivíduo e espécie, mas também como ser Humano […] ser que cria o seu mundo e é inteiramente responsável por ele” (2018, p. 59 [grifos da autora]). Assim, para a autora, escolher a democracia implica, ao mesmo tempo em que se faz escolhas políticas, fazer uma escolha moral pela humanidade, isto que não tem propriedade física nem se encarna nos indivíduos, mas é o “que nos torna humanos” (2018, p. 47 [grifos da autora]). Eis a defesa da indissociabilidade entre política e moral e a tese que parece atravessar todo o livro, de modo sutil e quase circular: Feminismo hoje é Humanismo que só se torna viável em Democracia, a qual não pode se realizar se não tiver como fim a escolha pela humanidade constituída por um NÓS composto de mulheres e homens diferentes, que coexistem em condições de igualdade, uma vez que são livres. Nos arriscamos a apresentar uma fórmula circular de igualdade absoluta entre: FEMINISMO = HUMANISMO = DEMOCRACIA, uma vez que a autora afirma que:
a luta feminista é antes de mais humanista, e democrática de espírito, pois reclama acima de tudo uma transformação nas práticas orientadas pela busca de equilíbrio entre diferentes, i.e., entre não-iguais de fato, mas que se projetam como iguais pelo compromisso que têm com a construção de um mundo comum (2018, p. 30).
Todas e todos estão convidados para esta luta que é nossa!
Notas
1 “Por que as mulheres, brasileiras ou francesas, leem mais que os homens?”. Disponível em: <https://blog-saraiva-com-br.cdn.ampproject.org/v/s/blog.saraiva.com.br/por-que-as-mulheres-brasileirasou-francesas-leem-mais-que-oshomens/amp/?amp_js_v=0.1&usqp=mq331AQGCAEYASgB#origin=https%3A%2F%2Fwww.google.co m.br&prerenderSize=1&visibilityState=prerender&paddingTop=54&p2r=0&horizontalScrolling=0&csi= 1&aoh=15259491313941&viewerUrl=https%3A%2F%2Fwww.google.com.br%2Famp%2Fs%2Fblog.sa raiva.com.br%2Fpor-que-as-mulheres-brasileiras-ou-francesas-leem-mais-que-os homens%2Famp%2F&history=1&storage=1&cid=1&cap=swipe%2CnavigateTo%2Ccid%2Cfragment% 2CreplaceUrl>. Acesso em 16 Maio 2018.
2 “Mulheres vão mais ao médico que homens, mostra IBGE”. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2015/06/02/interna_nacional,653986/mulheres-vao-maisao-medico-que-homens-mostra-ibge.shtml>. Acesso em 16 Maio 2018.
3 “Mulheres estudam mais que homens, segundo IBGE”. Disponível em: <http://www.crmariocovas.sp.gov.br/noticia.php?it=14482>. Acesso em 16 Maio 2018.
4 “Mulheres são mais religiosas do que os homens, exceto no judaísmo e no islamismo”. Disponível em: https://www.semprefamilia.com.br/mulheres-sao-mais-religiosas-do-que-os-homens-exceto-no-judaismoe-no-islamismo/. Acesso em 16 Maio 2018.
5 Sobre isso ver: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1774018-em-dialogos-gravados-juca-falaem-pacto-para-deter-avanco-da-lava-jato.shtml. Acesso em 08 Maio 2018.
Ester Maria Dreher Heuser – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
[DR]
Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres – MACHADO (EL)
MACHADO, Bruno. Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres. Campinas-SP: Editora Phi, 2016. Resenha de: VECCHIA, Ricardo B. Dalla. Eleuthería, Campo Grande, v. 2, n. 2, p. 125 – 130, jun./nov., 2017.
Bruno Martins Machado apresenta à crítica brasileira o seu primeiro livro: Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres, publicado pela Editora Phi de Campinas-SP. Com prefácio de Oswaldo Giacoia Jr. ele resulta de sua tese de doutoramento defendida no programa de pós-graduação em filosofia do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da UNICAMP, com estágio de pesquisa na Ernst Möritz Arndt Universität – Greifswald, sob supervisão de Werner Stegmaier.
Já nas primeiras linhas da apresentação Machado delimita o caminho de sua investigação, dividida em três capítulos: i) “Monumento de uma crise”, ii) “A pergunta sobre a origem” e iii) “A psicologia: o caminho para os problemas fundamentais” –, por sua vez subdivididos em seções que favorecem a apresentação das ideias, muito embora não constem no sumário. Trata-se de uma investigação temática sobre o conceito de psicologia no horizonte do período intermediário de produção de Nietzsche (1876-1882), mais especificamente na obra Humano demasiado Humano (1878), doravante HH.
Psicólogo de formação, Machado está atento à reciprocidade existente entre as análises de Nietzsche e a emergência da psicologia como ciência da subjetividade na segunda metade do séc. XIX. Reciprocidade, pois como ele sugere ao aproximar as obras do autor de Ecce Homo a textos do métier da psicologia há alguma razão na posição requerida por ele de “primeiro psicólogo”1, uma vez que a sua obra moldou e foi moldada no próprio movimento de emancipação das ciências humanas deste século.
Em que pese a irônica contradição entre as últimas aspas e aquelas do Crepúsculo dos Ídolos onde Nietzsche outorga a Dostoiévski o título de “único psicólogo, diga-se de passagem, do qual tive algo a aprender”2, Machado discute a originalidade do filósofo e nos revela como ele recorre a inúmeros interlocutores, no momento da redação de HH particularmente ao então filósofo Paul Rée (1849-1901), na tentativa de delinear um método próprio de análise das representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos.
A psicologia tal como pensada por Nietzsche – no final da década de 1870 ainda caudatária do pensamento de Rée e também dos psicólogos ingleses (não necessariamente psicólogos nem ingleses) e da moralística francesa com seus mestres na “arte de polir sentenças” (HH 35) – é o objeto de análise do livro em questão.
O que significa “psicologia” para Nietzsche? Qual é a sua relação, no contexto da reestruturação do pensamento nietzschiano no período intermediário, com a filosofia histórica, a ciência natural e a química das representações e sentimentos? Qual é especificamente o ofício do psicólogo? O que somente a psicologia é capaz de revelar? Machado se propõe a investigar essas e outras questões, que mesmo a Nietzsche pareciam obscuras à época de HH, de forma ordenada, gradual e através de uma linguagem clara que resulta num bom guia de leitura sobre HH e uma introdução ao período intermediário da filosofia de Nietzsche.
No aforismo 23 de Além do bem e do mal, obra que aprofunda o esforço crítico de HH, Machado encontra a melhor definição para rotular a sua hipótese. “Rainha das ciências”, diz ali Nietzsche, “a psicologia é o caminho para os problemas fundamentais”. Machado se debruça sobre essa definição para evidenciar a especificidade do registro da psicologia em HH e a sua função no reconhecimento e na dissolução do que ali se denuncia como os erros da razão, “a falência psicológica dos pressupostos metafísicos” (p. 143). De acordo com o autor, além de um erro na produção do conhecimento a metafísica traz um erro psicológico na construção dos seus fundamentos. Uma crítica efetiva da metafisica exige, por isso, a análise da construção psicofisiológica dos seus significados. Como ferramenta crítica, “caminho”, a psicologia erige como a “ciência responsável pela explicação das diferentes formas de se apropriar da efetividade” (p. 131), capaz de responder à “pergunta pelo ilógico, mostrando como as sensações foram organizadas em torno de um sentido” (p. 142).
Uma comparação parece-me possível. De modo análogo ao procedimento que Nietzsche descreve no prefácio póstumo de O nascimento da tragédia – “ver a ciência com a ótica do artista, mas a arte, com a da vida”, uma vez que o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência –, também em HH Nietzsche se vale da estratégia do jogo de óticas para reconhecer e submeter à crítica o âmbito da metafísica. Parafraseando a última citação, se o problema da metafísica não pode ser reconhecido no terreno da própria metafisica é necessário articulá-lo a outro terreno, outra ótica, outra perspectiva, que seja capaz de revelar não apenas os seus significados, mas as motivações, as construções, as apropriações, as intenções que competem para eles. A psicologia é esta ótica. Ela é o caminho para as questões fundamentais dada a sua capacidade de desvelar o sentido do próprio sentido.
Contrastando a ótica da psicologia nietzschiana a alguns dos mais exponenciais sistemas filosóficos, de Platão a Schopenhauer, Machado enfatiza a desrazão (Unvernunft) escondida por trás da razão (Vernunft), os interesses por trás do suposto desinteresse, os erros e crenças por trás da verdade, a necessidade e o egoísmo por trás da liberdade e do altruísmo. Antes, Machado está preocupado em revelar o modo como Nietzsche mobiliza diversos elementos (interlocutores, métodos, estilos etc.) para construir uma nova perspectiva de análise. É o trabalho, diríamos “artesanal” de Nietzsche na construção de sua psicologia o que o autor pretende nos apresentar.
Graças à expansão e aperfeiçoamento da cada vez mais variegada NietzscheForschung Machado é capaz de recompor um híbrido referencial teórico. Fazendo dialogar a melhor crítica internacional, como o célebre comentário de Peter Heller (1979) e a recepção brasileira de intérpretes como Giacoia (2001), ele extrai o melhor de uma interlocução “teuto-brasileira” como destaca Henry Burnett na orelha do livro e ainda transita por uma série de outros títulos como os da consagrada escola italiana com Fazio (2005) e Fornari (2006). Esta diversidade, aliás, é um dos pontos fortes do livro e corrobora para o seu vigor e atualidade.
O modo como Machado articula a sua investigação é ainda mais peculiar. Muito embora não desenvolva o método da interpretação contextual de Stegmaier3, sua obra gira em torno de apenas um aforismo que ele denomina como “ponto gravitacional”, precisamente o primeiro de HH. Intitulado Química dos conceitos e sentimentos esse aforismo pode ser lido como uma propedêutica não apenas ao primeiro volume de HH, mas a todo o período intermediário da obra de Nietzsche. O aforismo 1, como mostrará Machado a partir de uma série de digressões, condensa um vasto manancial de temas, referências e interlocutores que exigem do leitor um árduo exercício de reconhecimento e decifração, generosamente abrandado pelo autor.
A precisão no delineamento do objeto de análise não se estende, porém, ao método de abordagem. A decisiva questão “como ler Nietzsche?”, adensada pelo menos desde a década de 1990 por intérpretes como P. Wotling (1995), não recebe maior atenção. Na medida em que a análise do aforismo central avança e exige o autor realiza uma série de digressões promovendo mais a identificação dos referencias teóricos e a delimitação do horizonte semântico das questões do que o seu aprofundamento. Com isso, a obra de Machado resulta num mapeamento bastante amplo das temáticas que norteiam HH, especialmente os capítulos iniciais. Diferente de Nietzsche que pelo recurso de entimema retoricamente superestima a erudição de seu leitor desobrigando-se de apresentar as premissas básicas de seus argumentos, Machado parece optar por detalhá-los. Também não há um posicionamento muito claro sobre questões como o uso e o valor do Nachlass e do espólio, a necessidade do estudo de fontes ao qual ele eventualmente recorre, tampouco sobre o objetivo exato das frequentes digressões. Na verdade, ao adotar esses expedientes o autor acaba por legitimá-los sem parecer considerar mais cautelosamente a decisiva relação, com a qual o próprio Nietzsche passa a se ocupar de modo mais radical com o desenvolvimento da escrita aforismática em HH, entre forma e conteúdo. Uma vez que se trata de uma obra que já em seu titulo recobre a investigação de dois autores parece-me particularmente onerosa a ausência de uma reflexão sobre o que pode significar uma “influência” no pensamento de Nietzsche, o filósofo que no prefácio da mesma obra analisada por Machado confessa: “onde não encontrei o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de falsificá-lo e criá-lo poeticamente para mim”.
Quem é o Paul Rée de Nietzsche? O autor da Ursprung der moralischen Empfindungen que aparece no mosaico formado pela icônica foto que Machado escolhe para a capa de seu livro ou uma falsificação deste, um “valente confrade fantasma” como Nietzsche designa no mesmo prefácio após declarar explicitamente que os “espíritos livres” não existem, nunca existiram? Em que pese a comodidade da crítica na voz passiva, poderia Machado ter se demorado mais sobre os recursos do escritor Nietzsche, que estiliza mesmo os seus interlocutores mais declarados.
Ainda assim, a comparação que inspira o livro revela-se exitosa e, sobretudo, rara. Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres passa a ser um dos poucos estudos, particularmente entre nós, a debruçar-se sobre a subestimada relação entre Nietzsche e Rée. A esteira de intérpretes como Assoum (1982), Machado defende a sua relevância filosófica para além de um mero “evento biográfico” como o consideram, por exemplo, Jaspers (1950) e Halévy (1989) no espectro do rompimento com Wagner. Afinal de contas, lembra o autor, não por acaso no prefácio da Genealogia da Moral Nietzsche menciona o “livrinho” de Rée como o primeiro impulso para divulgar as suas hipóteses sobre a procedência da moral. No limite, como tem argumentado D’Iorio (2014), é a importância do período intermediário de Nietzsche o que se coloca em questão em análises como esta, posto que já em sua designação o seu valor é diminuído e com ele o de seus interlocutores.
Não só por resgatar o valor filosófico da interlocução entre os autores de Humano demasiado Humano e A origem dos sentimentos morais, mas por descer aos bastidores do pensamento de Nietzsche para mostrar como ele articulava os seus experimentos filosóficos, como lidava com os temas e personagens que figuravam no horizonte de suas preocupações, como se aproximava e afastava de determinadas referências o livro de Bruno Martins Machado tem a contribuir para os leitores de Nietzsche e será ocasião para novos e bons debates como aqueles da Vila Rubinacci que ainda hoje povoam o nosso imaginário.
Notas
1 “Não existiu antes de mim nenhum psicólogo”. Cf.: Ecce Homo, Por que sou um destino, 6. Todas as citações das obras de Nietzsche reproduzem a tradução de Paulo César de Souza publicada pela editora Companhia das Letras.
2 Cf.: Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, 45.
3 Sobre o método da interpretação contextual, cf.: STEGMAIER, Werner. Nietzsches Befreiung der Philosophie: Kontextuelle Interpretation des V. Buchs der “Fröhlichen Wissenschaft”. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012.
Referências
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WOTLING, P. Nietzsche et le problème de la civilization. Paris: PUF, 1995.
Ricardo B. Dalla Vecchia – Universidade Federal de Goiás (UFG).
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O problema da crise capitalista em O Capital de Marx – BENOIT; ANTUNES (EL)
BENOIT, Hector; ANTUNES, Jadir. O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Resenha de: PRADO, Carlos. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 88-90, dez. 2016/mai. 2017.
Em meados de 2008, as contradições da produção capitalista, muitas vezes escondidas e camufladas pela fumaça do crescimento econômico, vieram à tona com o pedido de concordata do Lehman Brothers. A notícia da quebra de um dos bancos mais importante do mundo abalou as estruturas do mercado. A crise que sempre parecia atingir apenas os países periféricos se instalou no centro do capitalismo mundial. A crise chegou em Wall Street. A quebra do Lehman Brothers foi apenas o estopim de uma crise que ainda se arrasta. Mais uma vez, as ilusões liberais que defendem o livre mercado e o Estado mínimo se desmanchavam no ar.
As esperanças liberais de que a economia se recuperaria rapidamente não se concretizaram. Pelo contrário, diante de medidas provisórias que não alteram a lógica produtiva capitalista, a crise persiste. A economia mundial segue apresentando baixos níveis de crescimento e a desaceleração da economia chinesa é um fator determinante nesse processo. O receituário burguês para a aceleração econômica continua sendo a implantação de políticas de austeridade, que culminam no aumento do desemprego, no arrocho salarial, no prolongamento da jornada de trabalho e no corte de programas sociais. Enfim, na busca de salvar a “economia”, os trabalhadores são os primeiros a sofrer com a ofensiva do capitalismo em crise.
É nesse cenário incerto e de questionamentos à lógica da produção capitalista que a obra de Marx mostra mais uma vez sua vitalidade e atualidade. A crítica à economia política realizada em O Capital é indispensável para se pensar a realidade capitalista, suas contradições e sua superação. E é justamente esse o objetivo do livro de Hector Benoit e Jadir Antunes: O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Em primeiro lugar, temos que dizer que o conceito de crise é um dos principais problemas tratado pelos marxistas ao longo do século XX. E mesmo diante de uma vastíssima produção acerca da questão, o texto de Benoit e Antunes consegue apresentar uma análise original, realmente inovadora e inspiradora, pois lança luz em uma problemática cada dia mais atual e urgente, principalmente para pensarmos a transformação da atual sociedade.
O livro que é o objeto dessa resenha foi lançado pela primeira vez em 2009, no rastro do surgimento da crise. O título era O movimento dialético do conceito de crise em O capital de Karl Marx. Mas não foi apenas o título que se alterou, segundo os autores, o texto passou por uma revisão e ampliação, tornando-se mais sintético e assumindo uma forma definitiva. Nessa nova edição, o livro também conta com um prefácio escrito por Benoit que apresenta o cenário no qual essa problemática foi pensada e também com uma apresentação assinada pelo professor Plínio de Arruda Sampaio Júnior, do Instituto de Economia da Unicamp. Esses dois textos contribuem para enriquecer ainda mais essa nova edição.
O problema em torno das crises já foi objeto de investigação de diversos estudiosos marxistas. Contudo, a questão permanece sem uma conceituação que seja amplamente aceita. Não se chegou a um veredicto sobre esse tema. Muitos autores investigam esse conceito buscando encontrar uma passagem na obra de Marx onde ele apresentasse a “causa” das crises. É por meio dessa noção de causalidade de base empirista que autores clássicos como Kaustky, Luxemburgo, Hilferding, Grossman, Sweezy, Mandel, entre outros, apresentam a questão. Assim, a chave para entender a crise seria identificar a sua causa primeira. Nesse debate, alguns defendem que a causa seria a desproporção entre o departamento produtor de meios de produção e o departamento de meios de subsistência, outros falam da lei da queda tendencial da taxa de lucro e outros ainda lançam a ideia de que a causa é a superprodução.
Mandel foi um dos autores que se dedicou a essa problemática e lançou uma nova luz à questão quando questionou essas teorias monocausais, apresentando uma concepção multicausal, ou seja, apresentando uma teoria que englobava as diversas causas em um único movimento, estabelecendo assim, um encadeamento multicausal. A contribuição de Mandel foi relevante, mas ele também permaneceu preso à noção empirista de “causa”. E é aqui que podemos destacar a produção de Benoit e Antunes, pois a teoria lançada por eles rompe com essa concepção empírico-factual da crise. A proposta de ambos busca expor o conceito de crise a partir da dialética expositiva de O Capital, a partir do seu modo de exposição (die Darstellungsweise).
Essa leitura também rompe com a tese defendida por Rosdolsky, de que Marx não deixou uma teoria sobre as crises, de que essa seria uma lacuna em sua obra. Para Benoit e Antunes, Marx deixou sim uma teoria sobre as crises. A questão é que ela não se desenvolve em um capítulo determinado ou passagem específica de O Capital, pois é desenvolvida ao longo de todos os três tomos desta obra, exposta juntamente com o conceito de capital. Os autores defendem que Marx não abandonou a ideia de elaborar o conceito de crise, ele o fez em todo o percurso dialético-expositivo de O Capital. Nessa concepção, tal conceito aparece enquanto possibilidade ainda no Livro Primeiro, desde o primeiro capítulo, quando se trata da mercadoria e da contradição entre valor de uso e valor. A crise já está ali enquanto pressuposto.
Os autores não estão buscando as manifestações empíricas da crise, mas o seu conceito. E tal desenvolvimento conceitual é encontrado a partir da dialética. Abandona-se a noção de causalidade e se apresenta a noção de modo de exposição. Não se trata de uma visão fragmentada, mas de conjunto, pois o conceito de crise é apresentado ao lado do próprio conceito de capital, a partir da própria mercadoria.
O livro está dividido em três capítulos que representam os três tomos de O Capital e os três grandes momentos da exposição dialética. O primeiro capítulo apresenta uma análise das contradições potenciais e abstratas do capital na esfera da produção de mais-valia. No segundo capítulo se investiga essas contradições na esfera da circulação. Somente no terceiro capítulo, quando se avança para o livro terceiro, é que se realiza a conversão das possibilidades formais e abstratas de crise em realidade.
Vale destacar que a perspectiva apresentada por Benoit e Antunes não é apenas dialética, mas, também, revolucionária. Compreendem que junto com o desenvolvimento dos conceitos de capital e de crise também está o desenvolvimento das classes em luta. Os autores não se esquecem do permanente conflito irreconciliável entre capital e trabalho. Ele não está ausente, mas presente, desde o início. Assim, abre-se um caminho para o desenvolvimento de um projeto político de superação do capital, justamente a partir do conceito de crise. Afinal, a crise é o momento em que as contradições encobertas do capital se revelam e a luta de classes emerge na cena política de forma mais clara. A crise significa a abertura de um novo caminho para a construção de uma alternativa para além da sociedade produtora de mercadorias.
A partir dessa análise surge uma mudança substancial na interpretação do problema das crises em Marx. Ao deixar de lado a perspectiva empirista e causal e desenvolver o conceito de crise a partir do modo de exposição, a obra de Benoit e Antunes se mostra extremamente original e significa uma importante inovação na investigação dessa problemática. Trata-se, sem dúvida, de uma contribuição original e que merece ser discutida e analisada por todos os interessados no trabalho de superação do estado de coisas dado.
Carlos Prado – Universidade Federal Fluminense (UFF).
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Agonística: Pensar el mundo politicamente – MOUFFE (EL)
MOUFFE, Chantal. Agonística: Pensar el mundo politicamente. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. Resenha de: BONIN, Joel Cezar. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 83-87, dez. 2016/mai. 2017.
A obra em relevo é uma das últimas publicações em espanhol da pensadora política Chantal Mouffe, datada de 2014, com o título de Agonística, pensar el mundo políticamente. A versão utilizada para esta resenha foi traduzida por SoledadLaclau e publicada pelo “Fondo de Cultura Económica de Argentina S.A”, sendo que a versão original em inglês, foi lançada em 2013 com o título de Agonistics, Thinkingthe World Politically pela editora “Verso”. A obra está dividida em sete capítulos fundamentais, a saber: I –O que é política agonista?; II – Que democracia para um mundo agonista multipolar?; III – Uma aproximação agonista para o futuro da Europa; IV – A política radical hoje; V Política agonista e práticas artísticas (incluindo introdução e conclusão) e mais uma entrevista com a autora. O trabalho aqui desenvolvido se propõe em abordar, em linhas gerais, a temática fundamental do texto, a saber, o agonismo político e assinalar os principais interlocutores de Mouffe em sua pesquisa política.
Diante disso, se faz assaz necessário destacar que a autora em tela é professora de Teoria Políticado “Centro para Estudos da Democracia” da Universidade de Westminster, Londres e autora de vários livros que abordam a temática política dentro do cenário contemporâneo. Sua linha de pensamento pode ser denominada de “agonística”, pois sua visão contempla a ideia de que, para além dos dilemas antagonistas inerradicáveis da política, devemos ponderar e considerar um cenário agonista, no qual não se vê o outro como um opositor/inimigo, mas como um adversário que luta agonisticamente por uma democracia radical e vibrante. Ela aponta para um viés que não é unânime e nem tampouco uníssono, contudo, em suas obras nota-se que o caráter dissensual das disputas políticas é visto como algo salutar para o desenvolvimento de um senso político crítico e sagaz, dissociado de vicissitudes dialéticas entre esquerda/direita ou entre burguesia/proletariado. Dessa maneira, a resenha desse livro visa, diante disso, mostrar as ideias fulcrais da autora e o modo como a mesma desenrola o novelo epistemológico e filosófico de seu pensamento agonista.
De início, no primeiro capítulo, Mouffe tenta demonstrar como já fizera em outras obras132, o que significa, de fato, uma política agonista. Por este prisma, sua abordagem revela o papel preponderante da ideia de hegemonia. Segundo ela, “denominamos ‘praticas hegemônicas’ aquelas práticas de articulação mediante as quais se cria uma determinada ordem e se fixa o significado das instituições sociais. Segundo este enfoque, toda ordem é a articulação temporária e precária de práticas contingentes. As coisas sempre poderiam ser diferentes e toda ordem se afirma sobre a exclusão de outras possibilidades. Qualquer ordem é sempre a expressão de uma determinada configuração de relações de poder. O que em um determinado momento se aceita como a ordem ‘natural’, junto com o sentido comum que a acompanha, é o resultado de práticas hegemônicas sedimentadas” (MOUFFE, 2014, p. 22).
Essa citação nos leva a reflexão de que o conceito de hegemonia é resultado de uma eleição de práticas, isto é, tal assertiva nos leva a ponderação de que aquilo que decidimos como político/antipolítico/apolítico é o resultado de uma criteriosa definição de prioridades que são “optadas” como as mais aceitáveis ou mais eloquentes para o convencimento de um modo de pensar e agirque é mais “forte diante dos outros”. Contudo, nos fica evidente que a configuração das práticas hegemônicas não é algo que ocorre de modo casuístico. O que definimos como hegemonia, segundo os moldes de Mouffe, é algo definido pela maioria ou pelo ato democrático de uma escolha. Porém, essa definição não é permanente e não é definitiva. Ela é volátil e contingente e, por sua vez, sempre suscetível a mudanças.
Diante disso, é essencial que entendamos que o pensamento de Mouffe nos orienta a uma prática de dissenso, pois diante de práticas hegemônicas podemos apresentar condutas contrahegemônicas justamente porque aquilo que consideramos como hegemônico está provisoriamente posto. Além disso, Mouffe compreende que as práticas que envolvem o universo político estão sempre em conflito e essa é a “natureza própria” desse universo, mesmo que cindido em dois: “‘O político’ se refere a essa dimensão de antagonismo que pode adotar diversas formas e que pode surgir em diversas relações sociais. É uma dimensão que nunca poderá ser erradicada. Por outro lado, ‘a política’ se refere a um conjunto de práticas, discursos e instituições que busca estabelecer uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que sempre são potencialmente conflitivas, já que estão afetadas pela dimensão ‘do político'” (MOUFFE, 2014, p. 22).
Diante do exposto, nos faz necessária uma indagação: mas afinal o que Mouffe quer dizer com essa ideia de antagonismo e agonismo? Se lermos com atenção o parágrafo anterior, podemos compreender o seguinte: o olhar “político” é o olhar do dissenso, da diferença e da antagonia. Esse fato é impossível de ser dirimido ou subsumido no universo dos interesses pessoais, das contendas pelo poder. Contudo, o espaço da “política” é o espaço no qual essas ideias não suplantadas pelo exercício racional do discurso ou da “boa vizinhança”. Eles permanecem, porém, o modo como essas questões são encaradas se modifica. É aqui que o agonismo ganha importância e valor. Se no primeiro conceito, ve-se o outro como um inimigo a ser massacrado ou destruído, no segundo momento, verifica-se a noção da luta de interesses mediados por uma “cadeia de equivalências” nas quais todos possuem o direito à diversidade e à multipolaridade de intenções. Dito de outro modo, se trata de se pensar o mundo para além de uma visão cosmopolita que por inúmeras vezes, se reveste de uma perspectiva eurocêntrica. Parafraseando Mouffe, não se pode pensar o mundo apenas como um universo, como um pluriverso de interesses, todos eles legitimáveis e consideráveis. É nesse ponto que Mouffe critica veementemente a postura liberal de que o campo político é um campo neutro, onde os ditames da razão são os únicos esteios orientadores do debate. As paixões nunca foram e nunca serão eliminadas, pois no campo da disputa pelo poder sempre emergem vozes e atitudes que, supostamente teriam sido superadas pela evolução racionalizada do pensamento e do agir humano.
Segundo a pensadora belga, não vivemos mais os tempos de Maquiavel e Kant, contudo, isso não quer dizer que as vicissitudes de outrora não ecoam mais em nosso tempo. Por isso, ela afirma – com base em Carl Schmitt, uma ideia importante na relação entre amigos/inimigos ou entre nós/eles: “De fato, muitas relações nós/eles são meramente uma questão de reconhecer as diferenças. Porém significa que existe a possibilidade de que esta relação ‘nós/eles’ se converta em uma relação de amigo/inimigo. Isso ocorre quando os outros, que até o momento eram considerados simplesmente como diferentes, começam a ser percebidos como questionando nossa identidade e como uma ameaça a nossa existência. A partir desse momento, como assinalou Carl Schmitt, toda forma de relação nós/eles – seja religiosa, étnica ou econômica – se converte em um locusde antagonismo” (MOUFFE, 2014, p. 24-25).
No decorrer do texto, Mouffe faz vários “links” entre o seu pensamento e de outros pensadores políticos contemporâneos como Badiou, Connolly, Habermas, Virno,Hardt, Negri, etc. Contudo, gostaria de delinear uma visão um pouco mais aprofundada da relação do pensamento mouffeano com os de Virno e Hardt/Negri. No capítulo no qual ela trata da “política radical hoje”, ela aponta os pontos essenciais do trabalho de Antonio Negri e Michael Hardt (Império, Multidão e Commonwealth), que tentam demonstrar que o “império” como fonte de acumulação do capital não está mais territorializado, pois ele se manifesta em todos os cantos do mundo por meio de um modo de apreensão da vida na qual a disciplina se dá de modo biopolítico. É um controle muito mais profundo pois envolve toda a vida das pessoas, desde suas práticas mais comezinhas até o mundo do trabalho. Contudo, se trata de extrapolar esse modo de controle sobre a vida pois visto que não há mais territorialidade e sim conectividade ao redor do mundo que pode-se pensar em alternativas que rompam com esse modelo de controle, por meio de um contra-império, no qual a criatividade e a inventividade busquem formas concretas de viver o mundo político. As ONGs, as associações de grupos minoritários133 são modelos de como isso pode acontecer, pois ligados a ambientes virtuais de debate, nascem os modelos contrahegemônicos de inserção e discussão social. Isto posto, pode-se dizer que a interconexão virtual engendra mudanças reais na análise de “visão de mundo” de seus participantes. Se, contudo, tais possibilidades de ação prática não se fazem possíveis, a “saída pela tangente” deve ser o êxodo e a deserção, como meios de distanciamento da vida pública.
Por outro lado, o pensamento do filósofo italiano Paolo Virno opõe-se em alguns aspectos ao pensamento de Negri e Hardt, pois ele não consegue vislumbrar outra alternativa para a vida social que não seja a deserção. “[…] Se na era disciplinária, a sabotagem constituía a forma fundamental de resistência, […] na era do controle do império, esse papel é desempenhado pela deserção. De fato, considera que é por meio da deserção – mediante a evacuação dos espaços de poder – que se podem ganhar as batalhas contra o império. A deserção e o êxodo constituem […] uma forma poderosa de luta de classes contra a pósmodernidade imperial” (MOUFFE, 2014, p. 81).
Entretanto, a análise de Mouffe é bem diferente nesse quesito, pois o que ela considera como fundamental não é a deserção dos espaços de poder, mas a sua verdadeira e legítima posse por parte de todos os envolvidos como se vê na nota de rodapé da página anterior. Antes ainda, afirma Mouffe, faz-se necessário que uma visão renovada do papel e do valor dos espaços públicos de democracia. E aqui ela volta ao ponto inicial: é preciso que haja
dissenso, luta, desentendimento se preciso for, pois somente por meio desse movimento contínuo de retorno ao debate democrático, por vezes consensual, mas mais ainda dissensual que os conflitos podem encontrar um espaço adequado de desenvolvimento. Contudo, ela reitera: a extinção, deserção ou eliminação do Estado não é o caminho que levará as sociedades à plenitude de uma democracia vibrante e radical. Em verdade, a única radicalidade conclamada por Mouffe é a da participação dissensual agonista. Dito de outro modo, trata-se de repensar as possibilidades políticas de nosso tempo por um viés constantemente rechaçado por políticas liberais ou neoliberais, o de que só possível a vivência plena da política num ambiente que seja capaz de “incluir o outro na sua diversidade”: eis um caminho possível, segundo Mouffe, para uma vida política que aponta possibilidades, pois já compreende de antemão a impossibilidade de uma erradicação total do antagonismo, mas que nas brechas, nos interstícios do sistema político-econômico luta (agoniza134, no sentido grego do termo) por uma vida democrática onde todos são iguais e dignos dessa igualdade.
Notas
132 É fundamental lembrar também que a obra em relevo é uma “revisitação” e atualização de outras obras por ela publicadas, tais “En torno a loPolitico” e “El retorno delo Político”.
133 […] Não se pode definir o adversário em termos amplos e gerais como “império” ou “capitalismo”, senão em termos de pontos nodais de poder que devem ser atacados e transformados com o fim de criar as condições de uma nova hegemonia. Se trata de uma “guerra de posição” (Gramsci) que deve ser lançada em uma multiplicidade de lugares e isto exige uma sinergia entre uma pluralidade de atores: movimentos sociais, partidos e sindicatos. (MOUFFE, 2014, p. 85, grifo meu).
134 Nesse ponto, Mouffe aponta uma ideia fundamental de William Connolly e se apropria dela: “Connolly está influenciado por Nietzsche e tentou tornar compatível a concepção nietzscheana do ‘agón’ com a política democrática”. Reclama uma radicalização da democracia, que resultará do cultivo por parte dos cidadãos de um novo ethosdemocrático de compromisso, que os levará a entrar em uma disputa agonista a fim de impedir toda forma de fechamento. Para esta perspectiva resulta central a ideia do ‘respeito agonista’ que Connolly percebe surgindo da condição existencial compartilhada da luta pela identidade e moldada pelo reconhecimento de nossa finitude. O respeito agonista representa para ele a virtude cardeal do pluralismo profundo e é a virtude política mais importante em nosso mundo pluralista contemporâneo. (MOUFFE, 2014, p. 31, grifos no original)
Joel Cezar Bonin – Pontíficia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
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Platão e as temporalidades: a questão metodológica – BENOIT (EL)
BENOIT, Hector. Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: ANTUNES, Jadir. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 91-97, dez. 2016/mai. 2017.
livro Platão e as temporalidades: a questão metodológica (São Paulo -SP: Annablume, 2015) de Hector Benoit é um livro extremamente claro e didático nos argumentos a favor de uma compreensão de Platão, e de todas as grandes filosofias, a partir de sua lexis imanente, i.é, a partir da narrativa dramática imanente ao texto, a partir do sentido temporal interno e arquitetônico do texto, desconsiderando todas as determinações externas e, por isso, superficiais, como a datação cronológica e a estilometria, na elaboração de determinada grande obra filosófica.
Hector Benoit é extremamente claro e preciso em mostrar os vários níveis e temporalidades do discurso filosófico de Platão, desde seus momentos mais simbólicos e alegóricos até seus níveis mais abstratos e propriamente conceituais, mostrando a ausência de sentido nas leituras dominantes e tradicionais que pretendem encontrar, e revelar, em Platão, a existência de uma teoria ou doutrina pronta, fechada, dogmática, e purificada de toda referência não propriamente conceitual contida no interior dos diálogos. O livro de Hector Benoit não ensina apenas a ler metodológica e corretamente Platão, mas a todos os grandes filósofos. Por isso, seu método parece ter uma aplicação universal –ao menos para as grandes filosofias.
O livro é uma crítica radical ao modo dominante de se fazer filosofia, ou, mais precisamente, ao modo dominante de se entender as grandes filosofias. O modo dominante de se fazer filosofia e se compreender os grandes filósofos tem sido o analítico, em seus vários matizes, tem sido o método de divisão de um texto em suas menores partes, de análise deste texto fatiado e fragmentado em seus menores detalhes, sem, contudo, relacionar estes fragmentos com o conjunto e o sentido interno da obra, da história de vida do autor e dos grandes conflitos filosóficos e históricos enfrentados por ele.
Os métodos historiográficos, biográficos, estilométricos, e todos os demais métodos externos empregados no entendimento de uma grande filosofia, são a condenação ao esquecimento e à confusão de toda grande obra filosófica e o livro de Hector Benoit deixa isto muito bem claro em relação à grandiosa obra de Platão. Ainda que a prática de se estudar um texto possa querer levar em consideração todos os seus aspectos empíricos, é preciso encontrar nesta leitura a ordem imanente, dramática e conceitual, é preciso encontrar a ordem própria ao discurso filosófico do autor que considere esta obra como a obra de uma vida.
O livro de Hector Benoit nos ensina não apenas a estudar corretamente um texto filosófico, mas a entender corretamente o que seria a filosofia. Seria a filosofia, uma ciência, uma episteme, ou uma arte? Seria a filosofia, uma obra destituída de esforço, de paciência, de tempo, sem relação alguma com a experiência de vida, com a experiência política, com a experiência em geral de seu autor? Seria ela, uma obra produzida exclusivamente pelo intelecto do filósofo, pela genialidade e pureza de sua alma racional, seria a filosofia, por isso, uma obra sem qualquer relação com o universo simbólico das representações de uma época e de seus leitores, sem qualquer relação com a experiência e a vida prática destes mesmos leitores e autores?
O livro de Hector Benoit nos ensina que a filosofia estaria, por este aspecto, muito mais próxima da arte do que da episteme. Neste aspecto, Aristóteles não pareceria ter algo de platonista, porque para ele a filosofia não pareceria possuir qualquer relação com a arte e a experiência de vida de seu autor. A questão fundamental exposta por Hector Benoit parece ser exatamente a crítica ao modo aristotélico de se fazer filosofia, ao modo de se estudar um autor através de recortes despedaçados de sua obra convenientes à construção de sua própria obra.
O modo socrático de exposição, o dialógico poético, parece ser sempre mais complicado politicamente do que a prosa corrida de Aristóteles. Galileu Galilei que o diga. Dizem que a causa da desgraça de Galileu não teria sido tanto as suas concepções heliocêntricas sobre o universo, mas, sim, porque o Papa fora convencido por seus assessores de que o personagem Simplícius, personagem ridicularizado por Galileu como defensor do sistema ptolomaico, representaria no Diálogo sobre os dois mundos a posição do Papa e da Igreja. Por este motivo, Galileu teria sido condenado à prisão. Numa narrativa de tipo aristotélico não há, geralmente, personagens da vida real, não há condenação destes personagens, não há a vida atrapalhando o pensamento. Por isso, a narrativa lógica e linear aristotélica parece ser sempre menos perigosa e ofensiva politicamente que os diálogos vivos e dramáticos platônicos.
De acordo com o livro de Hector Benoit, a filosofia estaria mais próxima da arte do que da episteme, porque uma obra filosófica é construída da mesma maneira que se constrói uma obra de arte, como a obra de um artesão-operário. O importante na análise desta obra não consiste tanto em compreender cada uma de suas peças isoladamente, mas, sim, o conjunto e o sentido interno e vivo desta obra. Numa obra de arte, as diferentes peças do conjunto não precisam necessariamente ser fabricadas na ordem da montagem, do funcionamento e da importância desta peça para o conjunto. Cada peça pode ser fabricada, até certo ponto, de maneira totalmente independente das outras peças. A peça principal, por exemplo, pode ser fabricada por último em relação a todas as outras peças.
O importante no estudo de uma obra de arte, por isso, não é compreender a ordem de fabricação destas peças no tempo, a ordem cronológica desta obra, mas, sim, a posição e o papel de cada peça fabricada no conjunto da obra construída. Já imaginastes montarmos um carro na ordem da fabricação de suas peças no tempo, segundo a ordem do tempo em que cada peça individual foi fabricada? Evidentemente, não teríamos um carro ao final do processo, mas apenas um agregado linear de peças sem sentido algum.
A leitura e interpretação de Hector Benoit sobre os diálogos de Platão possuem como premissa fundamental as mesmas premissas e fundamentos da ordem encontrada nas obras feitas pela mão humana. Não há sentido algum, segundo sua interpretação, querer estudar os diversos diálogos de Platão segundo a ordem cronológica de sua feitura. Não há sentido racional algum querer dispor esta ordem segundo a ordem de sua produção temporal externa, segundo o momento em que esta obra foi redigida empiricamente. Uma disposição dos diálogos platônicos segundo esta ordem alógica corresponderia à disposição, e montagem, de nosso carro segundo a ordem do tempo de fabricação de suas peças.
O entendimento correto da obra platônica, segundo Hector Benoit, é o entendimento que compreende esta obra como uma obra dotada de beleza plástica e poética, como uma obra que só revela seu sentido e direção se seguirmos o sentido e a direção contidos e apontados pelo próprio Platão no interior dos próprios diálogos, no interior de sua sequencia dramática e poética. O racional, o poético/poiético, consiste, por isso, em compreender estes diálogos segundo sua ordem dramática interna, segundo sua construção conceitual interna, segundo o desenrolar temporal interno à própria trama dramática dos diálogos, e não à suas tramas e tramoias cronológicas externas.
O livro de Hector Benoit, por isso, transmite esta importante lição metodológica: de compreendermos, até certo ponto, uma obra filosófica como a obra de arte de um artesão, de um artesão do pensamento. Digo até certo ponto porque o artesão comum realiza uma obra que desde o princípio já se encontra pronta e acabada no pensamento, somente mais tarde, com a prática, esta obra ganha realidade como coisa feita, enquanto que o filósofo, por sua vez, não possui, desde o começo de sua trajetória filosófica, uma ideia clara e pronta do que quer fazer, de onde quer chegar e quais caminhos irá percorrer. Esta ideia vai sendo iluminada e ganhando sentido na mesma medida em que a obra vai sendo realizada. Por isso, são normais as frequentes idas e vindas do filósofo, as frequentes revisões, correções, reedições e aperfeiçoamento de sua obra. Fato que também geralmente ocorre com os produtos da mão humana. O lançamento, a primeira edição da obra é, por isso, geralmente, inferior à obra lançada nos anos seguintes.
Neste sentido, argumenta Hector Benoit, o que seriam os personagens de Platão, senão diferentes operários-artesãos, diferentes artesãos do pensamento, diferentes artesãos que, em conjunto e de maneira mais ou menos combinada, trabalham em vista de uma obra comum, a obra de uma vida, da vida dos que começaram e morreram durante sua construção, e da vida das novas gerações que surgirão para continuá-la. Quem seria Platão nesta história senão um mero coordenador, um mero condutor e dirigente, um mero engenheiro do pensamento e, como tal, um artesão, um operário qualificado, o operário-chefe de uma obra coletiva.
Como na construção dos grandes templos anônimos da cidade, que não levam o nome do engenheiro chefe, de seu arquiteto, onde cada operário parcial trabalha em vista de uma obra coletiva que ultrapassa o tempo de suas próprias vidas, não seria a obra de Platão semelhante ao Parthenon e todas as obras coletivas da cidade? Não seria, assim, a obra de Platão equivalente à obra de Phidias, uma obra da cidade, de seus operários, de seus arquitetos, uma obra sem autoria definida, uma obra que conta com o esforço, o trabalho e a participação de todos os personagens da cidade, de todos os seus artesãos, cada um com sua ocupação específica, onde alguns participam como soldados, outros como sacerdotisas, adivinhos, jovens, anciãos, anfitriões, sofistas, políticos, filósofos de profissão, visitantes estrangeiros e assim por diante?
O livro metodológico de Hector Benoit é muito útil e instrutivo para todos os estudiosos da filosofia que desejam acordar da sonolência metafísica moderna. A metafísica e a analítica, a pretensão de encontrar a essência e a verdade em um pedaço estilhaçado da realidade, a metafísica em todos os seus múltiplos modos, como o racionalismo, o positivismo e o sociologismo, domina por inteiro nossa filosofia. As diversas “filosofias”, as filosofias da linguagem, do conhecimento, da ciência, da política, da arte, da ética e assim por diante, não passam de formas mascaradas de metafísica, de formas analíticas de se compreender a filosofia e a tarefa do filósofo. Estas diversas “filosofias” não são mais do que epistemes, não são mais do que formas aristotélicas modernizadas de se fazer e se compreender a filosofia.
O livro de Hector Benoit nos leva a pensar que todos estes métodos modernos de se fazer filosofia estariam inteiramente impregnados pelos princípios práticos da época moderna: a negação do trabalho como a forma própria e fundamental da vida humana coletiva, a visão meramente negativa do trabalho, do trabalho como roubo do tempo destinado ao prazer e ao ócio. O hedonismo que domina nossa prática filosófica moderna é inteiramente incompatível com o esforço que vem do trabalho e da arte, com o esforço da leitura lenta, sistemática e total de uma obra filosófica, com o esforço do labor exercido pelo pensamento, por isso, para este hedonismo, é necessário abreviar todo esforço em vista do prazer, é preciso construir atalhos que evitem o desperdício de tempo e esforço do leitor, é preciso construir filosofias fragmentadas, fáceis, superficiais, passageiras, ao gosto do mercado editorial e do senso comum burguês.
A crítica de Hector Benoit a Goldschmidt e ao método estruturalista de interpretação de um grande autor e de uma grande filosofia parece clara em associar este método ao método do estilhaçamento e da confusão, próprio das práticas filosóficas modernas. Pelo caminho de Goldschmidt parece ter seguido toda a história da filosofia. Para o cristianismo era necessário batizar e cristianizar todos os grandes filósofos, especialmente Platão e Aristóteles, era necessário negar o paganismo filosófico antigo e construir uma filosofia que justificasse as crenças religiosas cristãs. Para o mundo moderno trata-se não mais de construir uma filosofia, não mais de criticar a filosofia, mas de destruir a filosofia, de transformá-la em coisa fácil de ser feita, em coisa feita pelas mãos e cérebro de um único gênio, de transformá-la num ramo da ciência e, como tal, num ramo da indústria do entretenimento, da fantasia e da ideologia.
Se para Hector Benoit, o modo filosófico de se fazer filosofia em Platão deve ser compreendido a partir da compreensão do modo de se fazer as grandes obras coletivas da mão humana, para o mundo moderno, pelo contrário, trata-se de radicalizar a visão aristotélica de filosofia, de separá-la do trabalho, da arte e da vida em geral. Para o mundo moderno, como para Aristóteles, o trabalho é uma coisa negativa, é desperdício de tempo e de vida, é roubo do tempo destinado ao ócio e ao prazer, por isso deve ser erradicado da vida humana e destinado apenas a escravos, a homens inferiores, sem logos e sem episteme.
Por essa visão poiética de Platão, de Platão como um operário do pensamento, operário do logos que é ação de pensar e ação de fazer, a interpretação de Hector Benoit é um alento e sopro de vida sobre nossas almas cansadas desta monotonia e lenga-lenga filosófica moderna, desta filosofia que padece lentamente a cada dia nas teias da lógica e da linguagem, desta filosofia que tem se tornado um agregado mecânico de peças mortas, de peças fatiadas e sem organicidade, de peças isoladas e sem conexão com a totalidade da vida, desta filosofia que já não possui qualquer negatividade e impulso vital criativo.
O livro de Hector Benoit é mais do que um livro de interpretação de Platão, o livro é uma crítica radical deste modo moderno de se fazer filosofia e uma luz para nossas almas românticas e poéticas, presas às cadeias da tradição positivista e da metafísica em todos os seus modos de existência. A filosofia, para ser filosofia, não pode permanecer presa às cadeias da lógica e dos métodos quantitativos e segmentados da ciência. Para ser filosofia, ela tem que ser poesia, tem que ser arte e existir como obra que existe na totalidade da vida e em vista desta mesma vida.
O livro de Hector Benoit é uma crítica destruidora a toda a tradição filosófica que acredita ser o logos uma coisa, uma propriedade, uma substância que pode ser tomada e revelada isoladamente ao gênio individual de cada autor. O logos, como nos diz Hector Benoit lembrando Heráclito, não é substância, não é coisa nem propriedade. O logos é koinonia, é o-que-é-em-comum, é o que se manifesta no ser-em-comum, como nas grandes obras coletivas feitas pelas mãos e cérebros humanos. Nada de grandioso pode ser feito isoladamente – é o que nos ensina o logos heraclitiano e o Platão revelado por Benoit: nem mesmo uma obra filosófica. Os filósofos não constroem nada sozinhos, os filósofos são somente aqueles que sabem que tudo-é-ser-em-comum e querem, com seu intelecto e esforço, juntar-se ao ser-em-comum de sua época. O filósofo não trabalha nem constrói sua obra isolado em seu gabinete de estudos. Para ser filósofo e fazer filosofia é preciso sair para o mundo e misturar-se com ele: como Sócrates em seus diálogos mundanos e Platão em suas aventuras políticas pelo Mediterrâneo. Nesta construção coletiva são necessários não apenas cérebro e intelecto, são também, e fundamentalmente, necessários braços e energia física humana para fazer do Parthenon da Filosofia uma realidade tal qual foi no passado o Parthenon de Phidias.
O livro de Hector Benoit é uma obra revolucionária que merece, mais do que nunca, ser lido e discutido por todos os amantes das grandes filosofias, destas filosofias que têm como meta a reconstrução completa e impiedosa da realidade segundo o que-é-em-comum. O livro deve ser lido por todos aqueles que se compreendem como operários de uma obra e de um mundo em construção, que se compreendem como membros menores de uma grande obra coletiva que transcende a vida e a vaidade de toda existência idiotizada pela propriedade privada, pelo empilhamento de dinheiro, pela desmedida da ganância e pela metafísica. Nesta obra e projeto coletivo, cada personagem participa de acordo com suas próprias forças e capacidades, alguns com o cérebro, outros com os braços e outros com a poesia e o sonho romântico dos grandes filósofos do passado –como parece ser o caso de Hector Benoit.
Jadir Antunes – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
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