Poder e religião no Egito Antigo / Hélade / 2018

Poder e religião no Egito

É muito raro encontrar uma pesquisa acerca da sociedade egípcia que não envolva de alguma forma o fenômeno religioso e sua interligação com o poder. Isso se deve ao fato de que a concepção de mundo para os antigos egípcios mesclava todas as esferas que atualmente insistimos em analisar separadamente: religião, poder, cultura, sociedade, economia, etc. A estrutura do poder faraônico estava solidamente baseada em preceitos cosmogônicos e cosmológicos, de forma que todos os habitantes do Egito compunham a parte de um todo ordenado pela concepção de Maat, princípio que regia o equilíbrio cósmico do mundo (BAINES, 2002, p. 200).

O faraó era o responsável pela manutenção de Maat através das práticas diárias de culto aos deuses, preservação de templos, conservação do ciclo natural do Rio Nilo. O surgimento de situações de caos significava que Maat não tinha sido devidamente respeitada. No entanto, não só o faraó tinha um papel importante no afastamento do caos, mas sim todos os egípcios que, por meio de seus respectivos papeis na vida social, auxiliavam no funcionamento próspero do Egito, desde um camponês que realizava a colheita de alimentos até um sacerdote iniciado nos mistérios dos deuses que executava rituais templários.

Existe uma complexidade inerente ao esforço de lidar analiticamente com uma sociedade tão distante espaço-temporalmente da nossa. No entanto, ao fazê-lo, verificamos não apenas que as estruturas de poder e as formas de agência se modificaram ao longo de mais de cinco mil anos, mas também permitiram uma continuidade que por vezes nos faz olhar para o Egito Antigo não com total estranhamento, mas com certa identificação. Assmann, historiador e egiptólogo alemão, afirma: “O Egito é o lugar clássico da experiência do tempo” (ASSMANN, 2005, p. 21). Tal afirmação caracteriza uma tendência nacional e internacional das pesquisas sobre o Egito Antigo e é a partir dessa premissa que as diversas pesquisas presentes neste dossiê foram desenvolvidas.

O primeiro artigo que compõe o nosso dossiê é de autoria do Prof. Dr. José das Candeias Sales, da Universidade Autônoma de Lisboa, e tem como objetivo traçar paralelos entre as narrativas cosmogônicas egípcias, mais especificamente as de Hermópolis e Mênfis, e o relato bíblico do Gênesis. O autor inova ao procurar diálogos intertextuais entre as narrativas egípcias e a hebraica, uma vez que grande parte dos pesquisadores tende a analisar o Gênesis à luz dos textos mesopotâmicos.

A segunda contribuição, de autoria do Prof. Dr. Mariano Bonanno, da Universidade de Buenos Aires, analisa o Sarcófago de Amenirdis (XXVI Dinastia) sob a luz dos conceitos de agência e mirada. Bonanno operacionaliza as diversas facetas do sarcófago, desde sua materialidade até sua iconografia, para demonstrar como um agente da não-elite mobilizou um objeto que, de forma limitada, conferiu-o certo status na sociedade egípcia. Segundo o autor, o sarcófago era um objeto de poder, tendo em vista o seu significado religioso e sociocultural.

O Prof. Dr. Pablo Martín Rosell, da Universidade de La Plata, analisa as fórmulas abidianas presentes nas estelas votivas do Reino Médio com o intuito de compreender o seu significado para o mundo social e religioso, e, ainda, demonstrar sua relação com os festivais em honra ao deus Osíris – o Mistério de Osíris. Rosell afirma que a análise da construção de capelas e estelas votivas em Abidos por parte das elites egípcias que peregrinavam anualmente para participar do festival auxiliam no entendimento da hierarquia social egípcia e nas formas de diferenciações sociais que tais elites procuravam elucidar através destas materialidade.

O artigo de Profa. Ms. Keidy Matias, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, adota o conceito de Espaço Absoluto do filósofo francês Henri Lefebvre para entender a relação entre os humanos e a natureza como uma forma de produção social do espaço. A autora objetiva compreender de que forma a expressão herodoteana “O Egito é uma dádiva do Nilo” encontra eco na prática social do espaço e da natureza no Egito Antigo.

A sexta contribuição que compõe o nosso dossiê é de autoria do Prof. Ms. Thiago Ribeiro, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e tem como objeto de estudo o conceito de magia no Egito Antigo e a sua relação com a religião egípcia. O autor delineia que é comum que os estudiosos da área entendam magia e religião como fenômenos distintos. No entanto, através da análise da documentação escolhida, Ribeiro demonstra que para os egípcios, religião e magia eram indissociáveis, constituindo em duas faces da mesma moeda.

Por fim, o artigo do Prof. Dr. Juan José Castillos, do Instituto Uruguaio de Egiptologia, versa sobre as primeiras formações institucionais da estrutura de poder faraônica através da análise da transição de uma situação de ausência de poder institucionalizado para o surgimento de chefes hereditário que posteriormente tornar-se-iam os faraós de um Egito unificado. Castillos afirma que a religião em construção no período pré-dinástico foi crucial para a justificação e validação desta nova ‘realidade social, política e econômica’.

Convidamos todos(as) a lerem o nosso dossiê Poder e Religião no Egito Antigo, composto por importantes pesquisas nacionais e internacionais que caracterizam o gradual crescimento dos estudos egiptólogos no Brasil, assim como a sua sintonia com o cenário internacional, especialmente na América Latina.

Boa leitura.

Referências

ASSMANN, Jan. Egipto: Historia de um sentido. Madrid: Abada Editores, 2005.

BAINES, John. Sociedade, Moralidade e Práticas Religiosas. In: SHAFER, Byron E. (org.). As Religiões no Egito Antigo. São Paulo: Editora Nova Alexandria Ltda, 2002.

Beatriz Moreira da Costa – Doutoranda em História pelo PPGH-UFF. Pesquisadora vinculada ao NEREIDA-UFF, LHIA-UFRJ e Coordenadora do Grupo de Estudos GEKmet. E-mail: beatrizmoreira190@ hotmail.com


COSTA, Beatriz Moreira da. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,4, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]

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