Mobilidade e materialidade dos textos. Traduzir nos séculos XVI e XVII | Roger Chartier

Debruçar-se sobre livros centenários não nos permite acessar o mundo de onde vieram, a menos que consigamos traçar a história de suas formas de existência ao longo do tempo, ou seja, de suas diferentes vidas. Mas quantas vidas afinal pode ter uma obra? De acordo com Roger Chartier, a Brevissima relacíon de la destruycíon de las Indias, de Bartolomé de las Casas, por exemplo, tem sete vidas, referentes às sete diferentes edições publicadas em circunstâncias e espaços distintos entre os séculos XVI e XIX. E quando uma obra ganha outras formas de circulação, ao ser representada, adaptada, reescrita? Daí suas numerosas vidas podem garantir-lhe a posteridade ou mesmo a imortalidade. Em Mobilidade e materialidade. Traduzir nos séculos XVI e XVII, publicado no Brasil em 2020 pelas editoras Argos e EDUFBA, com tradução de Marlon Salomon e Raquel Campos, Roger Chartier oferece uma nova faceta de seus estudos realizados na Biblioteca da Universidade da Pensilvânia, onde tem atuado como professor visitante. Em seu livro intitulado La main de l’auteur et l’esprit de l’imprimeur, de 2015, Chartier apresentou análises das coleções consultadas nessa mesma biblioteca, a partir das quais destacou o papel do autor e do impressor nas significações adquiridas pelas obras. No livro recentemente traduzido no Brasil, são a materialidade e a mobilidade de obras que ocupam o plano central de sua investigação, sendo realçadas na própria organização do volume, que conta com cinco capítulos distribuídos sob as seguintes designações: Publicar; Representar; Traduzir; Adaptar e Epílogo: reescrever. Leia Mais

Na transversal do tempo: natureza e cultura à prova da história | Ana Carolina Barbosa Pereira

Na transversal do tempo: natureza e cultura à prova da história encara “o desafio de propor um diálogo entre a teoria da história e a etnologia” (Pereira, 2019, p. 24). Ana Carolina Barbosa Pereira, professora na Universidade Federal da Bahia, aponta de saída que “se a etnologia fala exclusivamente aos(às), etnólogos(as), a teoria da história tampouco apresenta disposição para ouvi-los(as)” (Pereira, 2019, p. 24). E se o diálogo entre esses campos já é inusual, as vozes que a autora convoca para travar a conversação não parecem menos estranhas umas às outras: de um lado, o perspectivismo ameríndio; do outro, o historicismo alemão.

A rigor, o que a obra enseja não é bem uma conversa, mas um jogo (de cartas); ou ainda, como sugere a autora, “uma séria e desafiadora brincadeira” (Pereira, 2019, p. 24). Não há melhor modo de compreender um jogo do que jogando-o; de experimentar a seriedade de uma brincadeira do que brincando-a. Pois bem: valendo!

Como colocar-se na transversal do tempo? Em relação a que tempo uma determinada história se poria na transversal? Ou, ao revés, em relação a que história um tempo determinado estaria na transversal? Como dar conta desses atravessamentos recíprocos? E o que se diz através dessa operação?

Antes de abordar essas questões – e como em qualquer jogo -, é preciso aceitar o conjunto de regras proposto. Elas são poucas, relativamente simples e têm o fito de seguir lance a lance o argumento do livro, que é dividido em três grandes partes. Na primeira, as cartas serão dispostas segundo seus naipes e viradas para cima, de modo a explicitarem quais delas conferem vantagem desleal (porque não relacional) a quem as mobiliza(r). A despeito dessa propriedade distintiva, do ponto de vista formal, não se distinguem das demais. Daí o título do capítulo: “Um jogo de cartas conceituais (não) marcadas”.

Isso feito, na segunda parte acompanhamos a autora “Embaralhando as cartas conceituais”. O propósito aqui é deixar manifesta que vantagem posicional permanente não é contingente, mas arbitrária e, do ponto de vista conceitual, uma impostura. Na língua dos jogos – e no jogo das línguas – dir-se-ia que se trata de mera convenção. Como tal, em tese e sem nenhum prejuízo à natureza da atividade, poderia ser repactuada pelos participantes.

A terceira e última parte é, por assim dizer, um pseudoamistoso: uma tentativa de demonstrar como poderia se dar a dinâmica do jogo – entre as categorias “cultura”, “tempo”, “natureza” e “história” – se a interação entre elas fosse conduzida segundo o design conceitual esboçado a partir de uma redistribuição das cartas conceituais, orientado pelo conjunto de reflexões elaboradas ao longo do livro.

CARTAS CONCEITUAIS (NÃO) MARCADAS: TELEOLOGIA FORMALISTA

A História como discurso acadêmico profissional repousa sobre um consenso disciplinar acerca da obsolescência conceitual de abordagens teórico-metodológicas à moda teleológica das chamadas “velhas filosofias da história”. No lugar delas, a historiografia desenvolveu um campo próprio de reflexões e o batizou com o substantivo mais afeito ao propósito de constituir a História como ciência social dotada de critérios específicos de positividade: teoria.

Nesse sentido, uma das tarefas fundantes da teoria da história é, efetivamente e como argumenta a autora, “esvaziar o conteúdo das filosofias da história” (Pereira, 2019, p. 21). O primeiro giro de pensamento exigido para pôr-se na transversal do tempo é depreender em que medida, apesar de ter seu conteúdo esvaziado na e pela teoria da história, o cerne conceitual das filosofias da história – a saber, seu caráter teleológico – segue formalmente ativo, ou seja, atua na forma da forma.

Repare: não se trata de dizer, como de hábito, que há discrepância ou desconformidade entre conteúdo e forma. Muito menos se trata de delinear aspectos que comprovariam quanto a forma escamoteia o conteúdo que traz a efeito. Ou, pior do que isso, de construir esse escamoteamento como condição sine qua non da própria relação entre forma e conteúdo da história. Não se trata, em suma, de supor que a teoria da história não pareça, não tenha a forma, não se apresente como teleológica, mas, na verdade, o seja. Na transversal do tempo, a teoria da história parece, tem a forma, se apresenta como teleológica… e o é.

Uma empreitada conceitual empenhada em demonstrar que algo não é outra coisa senão precisamente o que parece ser pode ver-se obrigada, ao menos provisoriamente, a conceder que alguma noção deve estar sendo empregada de maneira “controversa”. No caso de Na transversal do tempo, a “controvérsia” se dá com a noção de teleologia. Pereira (2019, p. 21) explica que “por teleologia se entende aqui o descompasso entre o desenvolvimento e a consciência deste mesmo desenvolvimento”.

O exercício desse descompasso é, sem tirar nem pôr, a marca patente do que – o mais tardar desde a célebre formulação de Jürgen Habermas (1988) – veio a ser batizado como “discurso filosófico da modernidade”. O inaugurador deste discurso? Hegel. “Controverso” é, pois, o inverso do adjetivo mais apropriado para insinuar a homologia entre os modos de pensar filosoficamente a modernidade e a inclinação às teleologias à la Hegel, isto é, indelevelmente finalistas, mas, dado seu assentamento no contingente, à prova da acusação de determinismos tacanhos.

Na transversal do tempo traça um dos percursos possíveis para entender essa trama no campo da teoria da história. Aqui, assinala dois pontos de inflexão. O primeiro, em Newton e sua mecânica clássica, responsável pela noção de espaço e tempo absolutos e verdadeiros em si mesmos (Pereira, 2019, p. 30). O segundo, na “revolução copernicana” de Kant, que atribuiu uma dupla natureza a esses pressupostos, de sorte a transmutá-los em “grandezas ontológicas e transcendentais” também do espírito: espaço e tempo transmutados em “formas puras da intuição sensível”, que se constituem como condição de possibilidade do conhecer e, nesse sentido, “conteriam, anteriormente a toda experiência, os princípios de suas relações” (Pereira, 2019, p. 31-32).

O caráter absoluto, contínuo e homogêneo do “tempo em si”, herdado das acepções newtoniana e kantiana, operará por dentro do discurso filosófico da modernidade até ganhar a forma do que Na transversal do tempo (se) apresenta como “continuum temporal.

Aceitando a tese de que o germe filosófico que inaugura a modernidade é o pensar teleológico que deriva do investimento incessante em suprimir o descompasso entre o que já é (ou seria) e o que se é capaz de pensar que ainda é (ou venha a ser), pode-se dizer, acompanhando o argumento de Pereira, que, a partir dessa matriz, tudo quanto viermos a chamar de interpretação histórica “moderna” (a despeito de assumir a forma de teoria da história ou de historiografia) consistirá na diferenciação desse continuum através de um processo que ela denomina “dinâmica da insciência/consciência do tempo” (Pereira, 2019, p. 65).

A teoria da história de extração alemã será o campo de prova desta hipótese. Aqui, pensando com Manuela Carneiro da Cunha, a autora efetua uma “recuperação das cosmologias ocidentais como objeto de estudo antropológico” (Pereira, 2019, p. 208) e empreende uma densa análise cujo fito é delinear afinidades conceituais. Tais afinidades, para usar uma metáfora antropológica afim, funcionam como um verdadeiro deslinde das estruturas elementares de parentesco de dois dos mais importantes expoentes contemporâneos da teoria da história, Reinhart Koselleck e Jörn Rüsen – entre si e com seus conterrâneos e antecessores, a saber, Wilhelm Dilthey e Gustav Droysen -, num primeiro galho genealógico; e, em passado ainda mais recuado, os vínculos de todos com a filosofia de Kant, de Herder e de Hegel.

Visto nessa perspectiva, e parafraseando Lévi-Strauss ([1958] 2008, pp. 32 e 39), o “continuum temporal” faz as vezes da natureza enquanto a “consciência histórica”, tal qual a proibição do incesto, se apresenta como o ponto de passagem (ou mecanismo de articulação) entre natureza e cultura. Ou ainda, na mesma chave, o “continuum temporal”, do qual a etnóloga tentar se aproximar através da consideração de suas expressões mais ou menos conscientes, equivale a uma “condição inconsciente” (da teoria da história).

A partir de uma engenhosa reconstrução do arcabouço analítico de Reinhart Koselleck, cuja formulação mais célebre é a díade espaço de experiência/horizonte de expectativa, “arriscando uma síntese”, Pereira (2019, p. 78) conclui que “o conceito de ‘tempo histórico’ participa da Historik de Koselleck, ora como condição transcendental das histórias, ora como indicador do processo de tomada de consciência do tempo em si mesmo”. Submetendo o pensamento de Jörn Rüsen a escrutínio semelhante, a autora diagnostica, em sua “razão histórica”, outra variante deste movimento que vai da insciência à consciência do tempo.

Em suma, tanto um como o outro “concordam em relação ao essencial”, isto é, mantêm a prerrogativa de um continuum temporal “natural” que, diferenciado pela ação da consciência, faz emergir o tempo propriamente histórico. É esse o arranjo que Na transversal do tempo (se) apresenta correta e peremptoriamente como uma “teleologia formalista” (Pereira, 2019, p. 86): um tempo que faz as vezes de natureza (o continuum temporal), espécie de unidade originária ainda indiferenciada, é submetido à ação reflexiva do pensamento humano e, nesse processo, que pode ser também descrito como “desenvolvimento da consciência do tempo em si mesmo”, se transmuta em algo intencionalmente diferenciado e, nesse sentido, histórico. E é nessa forma que “consciência histórica” e “tempo histórico” passaram a ocupar um lugar irremovível não apenas na teoria, mas na ciência da história.

Por essa razão, como sugere Pedro Caldas (2004, p. 11), ao se considerar que “pensar historicamente é pensar teleologicamente”, não se está “ressuscitando um cadáver” conceitual. Muito pelo contrário. Vista Na transversal do tempo, esse tipo de “teleologia formalista” – constituída pela relação mimética entre tempo natural e tempo histórico ou consciência histórica – oferece régua e compasso para “esclarecer qual a finalidade do saber histórico, ou seja, […] explicitar seu método, seus limites, funções, normas” e, nesse sentido, representa “o esforço para o estabelecimento de uma autonomia do conhecimento histórico” (Caldas, 2004, p. 11).

“Teleologizar” pressuporia, portanto, manter a excepcionalidade relacional de categorias desenvolvidas a partir de uma experiência particular da consciência do tempo que, em sua própria consecução como cânone de um campo de saber, se projetou como imprescindível à “interpretação humana do tempo e consequente construção histórica de sentido” (Pereira, 2019, p. 21).

EMBARALHANDO AS CARTAS: FUTURO SEM DEVIR HISTÓRICO

O embaralhar de cartas tem como objetivo expandir a superfície de contato da contingência e, assim, aumentar o nível de dificuldade de controle de um jogo. Parte fundamental da arte de jogar cartas, aliás, consiste em dominar as formas de embaralhamento e, não menos, torná-las objeto de admiração e fascínio. Quem nunca terá visto algo do tipo nas apologias hollywoodianas dos cassinos e da jogatina? A propósito e não por acaso, a prática é também uma modalidade distintiva no mundo da mágica.

Vão longe as analogias possíveis entre o que a magia faz com os sentidos, sobretudo o da visão, e o que a teoria faz com o sentido das palavras e das coisas. Com isso em mente, consideremos que o embaralhamento conceitual que Na transversal realizará pretende nos fazer compreender que, “alheia e indiferente ao princípio da insciência/consciência do tempo, a consciência histórica ameríndia não é um devir histórico” (Pereira, 2019, p. 156). Para chegar à tese, a autora nos conduz por um longo percurso conceitual. Sintetizo-o em duas manobras.

Primeiro, ela mobiliza o perspectivismo ameríndio para replicar, dentro da teoria da história, a “inversão multinaturalista” que produz um tipo específico de deslocamento da disposição relacional entre natureza e cultura, a saber, “a cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal; a natureza ou o objeto, a forma do particular” (Viveiros de Castro, [2002] 2017, p. 303). Assim, fica neutralizada de saída aquela “carta marcada” da ontologia da modernidade, isto é, a persistente oposição entre natureza e cultura, e produz-se algum desarranjo na correspondência entre seus correlatos simétricos universal/dado/objetivo/fato versus particular/construído/subjetivo/valor (Viveiros de Castro, 2017, p. 303).

O segundo movimento consiste em produzir um tipo análogo de deslocamento relacional no que diz respeito à noção de indivíduo em sua relação com a sociedade. Aqui, Pereira (2019, p. 98) lança mão da noção do conceito de “personitude fractal”, termo desenvolvido por José Luciani para estabelecer o “fio da relacionalidade, isto é, a constituição relacional de pessoas e contextos” através da descrição do processo pelo qual se dá “tanto o encerramento de pessoas inteiras em partes de pessoas quanto a replicação de relações entre Eus [selves] e Outros [alters] em diferentes escalas (intrapessoal, interpessoal e intergrupal)” nas sociedades indígenas (Luciani, 2001, p. 97).

O primeiro deslocamento, entre natureza e cultura, é fundamental para que se entenda que qualquer ente pode participar da configuração de um campo relacional: um animal, um objeto, um espírito e, claro, pessoas, mesmo as completamente estranhas a um dado grupo. Aqui, a natureza do vínculo não decorre nem depende da identificação com o semelhante (na forma de corpo humano) e sim do estabelecimento de uma relação de afinidade na qual o corpo não é, em primeira linha, compleição material, traço físico, mas, antes, “feixe de afecções” – um conjunto de capacidades e comportamentos típicos de um ser (Viveiros de Castro, 2017, p. 128). Instituída nesses termos, a afinidade assume, portanto, “a função de matriz relacional cósmica” e “constitui-se, virtualmente, como o modo genérico da relação social” ou, usando o conceito de Viveiros de Castro (2017, p. 108) Na transversal, constitui-se como “afinidade potencial”.

Um exemplo de caráter intergrupal pode ser bem elucidativo para entender o modo como a categoria tempo entra – via personitude fractal – nesse arranjo conceitual e fecha o nó do ser e do tempo que nós chamamos de história. Falando dos tupinambás, Viveiros de Castro (1992, p. 291 apud Luciani, 2001, p. 105) analisa o modo como se estabelece um “momento crucial de mútua identificação” entre cativo e captor/matador, de sorte que “o cativo representa o futuro do matador (ser executado pelo inimigo) e o matador representa o passado do cativo (que foi um matador)”.

Em trabalho de campo etnográfico conduzido junto aos Yamináwa, Pereira reconhece traços desses mesmos princípios – afinidade potencial e personitude fractal – na relação entre tempo e pessoa. As estratégias de reprodução de nomes e dos termos entre os Yamináwa, ela explica, na medida em que tendem à replicação entre eus e outros em escala temporal, criam uma estrutura dinâmica e propriamente fractal do tempo (Pereira, 2019, p. 151). A partir dessa conclusão, ela convida: “especulemos por conta própria”.

Se é possível instalar-se no passado e/ou futuro conforme o princípio da reversibilidade, isso se deve, ao que parece, à existência de um fundo virtual de temporalidade não-marcada. A própria dinâmica da fractalidade é indicativa dessa relação de dependência. Aqui, é a simultaneidade (potencial) que impõe a não simultaneidade de “antes” e “depois”. Passado, presente e futuro correspondem justamente àquela dimensão não marcada da história que, por isso, deve ser atualizada (Pereira, 2019, p. 151).

A história assim atualizada é, portanto, ela também potencial, e seu traço fundamental, por conseguinte, é a relacionalidade: “Se o tempo histórico ameríndio é o tempo do parentesco e este é fabricado a partir da afinidade potencial, o mesmo se dá com o tempo como atualização de uma história potencial (Pereira, 2019, p. 153).

E assim, para fechar esta seção retomando o fio do raciocínio, compreende-se o que significa dizer que a “história potencial ameríndia” não pressupõe nenhum vínculo apriorístico “entre passado, presente e futuro que deva ser diferenciado por meio da consciência histórica”; ou seja, que “não é um devir histórico”.

REDISTRIBUIR AS CARTAS: HISTÓRIA MULTIVERSAL DA DIFERENÇA

Tendo, primeiro, deslocado as noções de “tempo histórico” e “consciência histórica” de sua posição não marcada e, em seguida, aguçado nossa compreensão da história rumo a uma relacionalidade radical via perspectivismo ameríndio, Pereira volta aos alemães na terceira (e última) parte do livro, mais precisamente ao projeto de história intercultural – ou humanismo moderno – de Jörn Rüsen.

Para que cheguemos a esse ponto bem equipados, um importante contorno epistemológico é feito: estabelecer a posição relacional da própria história Yamináwa, isto é, da história dos povos indígenas, em um quadro que tem o Acre como pano de fundo, mas que é bastante ampliado. Se usarmos aqui a própria noção de fractal – no que ela serve como recurso visual para imaginar o padrão de repetição de um fenômeno em diferentes escalas -, veremos a história do Acre como uma iteração ampliada da narrativa mestra que estrutura também, a um só tempo, o “paradigma da formação” da nação (no Brasil) e a evolução da modernidade (no Ocidente). Em síntese, produz-se uma epopeia acreana como capítulo particular da marcha universal e inexorável do progresso e da civilização, na qual os povos indígenas ou não figuram ou apenas aparecem para confirmar uma suposta incapacidade inata de oferecer qualquer resistência à ação colonizadora (Pereira, 2019, p. 175).

Isto é feito para que entendamos o excurso político que Na Transversal nos propõe quando traz a ideia de “florestania”. Fusão de “floresta” e “cidadania”, o termo pretendia, historicamente, enfatizar o protagonismo dos povos indígenas e, politicamente, sintetizar um caminho para a superação do antropocentrismo, preconizando um regime de igualdade de direitos entre todos os elementos da natureza, inclusive, naturalmente, os seres humanos. No fim, degenerou em “mero slogan”, de todo desvinculado da ambição originária, calcada numa mudança radical de paradigma (Pereira, 2019, p. 182).

Nessa altura, somos reconduzidos ao que Jörn Rüsen preconiza ao falar de um conceito de história intercultural que “deve vencer o próprio etnocentrismo e contribuir para uma nova cultura do reconhecimento mútuo das diferenças” (Pereira, 2019, p. 185).

Como Na Transversal apresenta essa aspiração em seus pressupostos, entendemos também em que medida a “cultura do reconhecimento mútuo das diferenças”, como critério normativo de validade universal na teoria da história de Rüsen, acaba desempenhando um papel análogo ao da “florestania” como princípio orientador da política, ou seja, o de “mero slogan”. Ambas, cada qual em sua seara, não apenas não operam o giro paradigmático que anunciam, mas, ao revés, atuam como vetor da primazia do moderno.

À luz do que essa modernidade tem sido até aqui para os povos indígenas, a saber, um processo contínuo de reprodução do genocídio como cerne da dinâmica de interação, Pereira (2019, p. 203) conclui que o argumento da “razão inclusiva” subjacente ao humanismo moderno de Rüsen “soa no mínimo ofensivo”. Mas, se não a nobre e bem-intencionada “inclusão”, então o quê? Hora de, finalmente, redistribuir as cartas conceituais.

As narrativas de contato dos Yamináwa – a exemplo da de outros povos indígenas, como os Arara e Manchineri – são dispostas de maneira tal que, embora os brancos sejam acomodados em lugares pré-marcados, isso não impede o surgimento de reordenações cosmológicas que derivam de uma “constante reelaboração do contingente como experiência inédita de algo conhecido de antemão”. Orientada pela “afinidade potencial”, a incorporação do outro se dá, via de regra, “em sua e pela sua diferença”. A história que assim se conta, portanto, “não é uma narrativa post festum, ela é o fundo virtual que prefigura toda a experiência, um veículo para a realização e simbolização de relações efetivas” (Pereira, 2019, pp. 143-144).

Em termos mais abstratos, dir-se-ia que o princípio de reconhecimento mútuo da diferença do qual Rüsen lança mão opera com base em uma lógica de diferenciação ancorada nas categorias tipológicas da semelhança, da oposição, da analogia e da identidade. Daí seus critérios de inclusão acabarem desandando sempre no taxonômico e classificatório, em um movimento que não cessa de repor as regulações hierárquicas que tenciona deslocar (Pereira, 2019, p. 203).

As matrizes de pensamento ameríndias, por sua vez, operam através de uma “síntese disjuntiva” cujo princípio de diferenciação é precisamente o não taxonômico e não substancial. Sua dinâmica relacional de individuação conduz, por isso, à constante “atualização do virtual”. Para retomar a metáfora geométrica, em vez de uma “ontologia plana”, corolária de uma lógica inclusiva da diferença, na qual existir pressupõe a identidade como causa ou como finalidade, poderíamos arriscar uma “‘ontologia fractal’ em que existir significa diferir: diferença intensiva, diferença das diferenças”. Assim, trocando em miúdos historiográficos, em vez de uma “história universal da identidade” construiríamos uma “história multiversal da diferença” (Pereira, 2019, pp. 204 e 207).

AFINIDADE (TEÓRICA) POTENCIAL

“Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória.” (Benjamin, 1996, p. 222). É assim, imaginando um jogo, que Walter Benjamin principia seu célebre “Sobre o conceito de história”.

O alvo declarado da crítica de Benjamin é um historicismo composto por dois traços fundantes: 1) a aspiração de representar o passado como “ele de fato foi” e que, como tal, 2) “culmina legitimamente na história universal” (Benjamin, 1996, pp. 224 e 231). No limite, Benjamin (1996, p. 231) provoca, o historicismo possibilita o paradoxo de apresentar uma “imagem ‘eterna’ do passado”, o que só é possível porque ele “faz da história objeto de uma construção cujo lugar é um tempo homogêneo e vazio” que se manifesta como “o continuum da história” (Benjamin, 1996, p. 229).

O materialismo histórico benjaminiano desejava explodir esse continuum (Benjamin, 1996, p. 230). Se seguirmos Na transversal do tempo, podemos fazer algo afim. Há (parece) uma afinidade potencial entre o jogo do tempo e da história de Ana Carolina B. Pereira e de Walter Benjamin.

Não obstante, é a diferença que os vincula: o tempo de Benjamin é monológico, intrassubjetivo e messiânico; está impregnado de um salvacionismo cuja virtuosidade parece imanente e, mormente, dado a “revolucionário”. O de Pereira é dialógico, intersubjetivo e contingente; de saída, desconfiado da própria virtude e avesso às epifanias da salvação.

Entre Pereira e Benjamim, a metáfora do jogo interpõe um elo dissonante. Na imagem que Benjamin (2020, p. 66) constrói há um elemento fundamental: “através de um sistema de espelhos criava-se a ilusão de que a mesa era transparente por todos os lados” e, assim, ocultava o espírito que animava o jogo (o anão corcunda da teologia). O truque, portanto, não consiste unicamente em ser guiado pela mente do mestre (de xadrez), mas garantir que – por intermédio da transparência – sua onipresente efetividade na condução dos eventos transcorra na forma da ausência e iluda quem entrar na contenda. Pereira, por sua vez, não quer parecer transparente, não aposta no logro do outro; seu jogo não demanda repor a consciência alheia a partir de uma posição declaradamente misteriosa.

O caso é que, e eis o nó, ao acenar com o estratagema da consciência escondida como guia – a transparência como opacidade -, Benjamin parece adotar prumo mais afeito à assimetria de poder, pois pretende equipar melhor quem joga em franca desvantagem. No que concerne à Pereira, ao revés, quem joga limitado por injustiças dadas de saída segue algo exposto, precisando contar, antes, com a abertura (ou transparência) de um outro que agora – não mais a despeito, mas dada a sua opacidade finalmente declarada – encerraria uma virtuosidade intrínseca e, mormente, capaz de engendrar uma dinâmica de supressão gradual de assimetrias que poderia ser tomada como o início de um tímido processo de reparação.

Que jogo teríamos se o corcunda de Benjamin aprendesse a jogar com as cartas ora embaralhadas e redistribuídas por Ana Carolina B. Pereira?

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996. pp. 222-243.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história: edição crítica. São Paulo: Alameda, 2020.

CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Que significa pensar historicamente: uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav Droysen. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004. 215 f.

HABERMAS, Jürgen. Der Philosophische Diskurse der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008 [1958].

LUCIANI, José Antônio Kelly. Fractalidade e troca de perspectivas. Mana, v. 7, n. 2, pp. 95-132, 2001.

PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Na transversal do tempo: natureza e cultura à prova da história. Salvador: EDUFBA, 2019.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu Editora, 2017 [2002].

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. From the Enemy’s Point of View: Humanity and Divinity in an Amazonian Society. Chicago: Chicago University Press, 1992.


Resenhista

Fernando Baldraia – Freie Universität Berlin, Berlim, Alemanha. E-mail: fbaldraia@gmail.com  https://orcid.org/0000-0002-0140-757X


Referências desta Resenha

PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Na transversal do tempo: natureza e cultura à prova da história. Salvador: EDUFBA, 2019. Resenha de: BALDRAIA, Fernando. O jogo da afinidade.  Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 42, n. 89, 2022. Acessar publicação original [DR]

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Há livros que costuram temas apaixonantes. Esse é um deles. Temas já clássicos na história do Brasil, como o abolicionismo, o republicanismo, o movimento operário, foram discutidos com o aporte de novos conceitos, base documental sólida e uma abordagem sensível às fontes, sem plainar no alto de teorias grandiloquentes que, não raro, deixam de escrutinar as experiências vividas pelos sujeitos. A História Política, que praticamente funda a História como ciência, tem em Felipe Azevedo e Silva um sopro renovador, um frescor que traz sujeitos subalternos ao centro de suas próprias inquietudes e projetos políticos. E aqui já expresso uma contribuição inestimável: o escrutínio do autor sobre as eleições nos últimos anos do Império e primeiras décadas da República tem muito a ensinar para nós, contemporâneos de uma República em crise, onde, para muitos, votar parece um fardo. Leia Mais

Fantasmas modernos. Montagem de uma outra herança | Paola Berenstein Jacques

A modernidade é um fenômeno histórico altamente complexo, e que não pode ser facilmente enquadrado em perspectivas lineares ou unívocas. Qual seria a sua “verdadeira” natureza? Sintética (coesa e construtiva), ou analítica (fragmentária e destrutiva)? Voltada à integração das múltiplas artes, como na ideia alemã de “obra de arte total” (Gesamtkunstwerk), ou, ao contrário, como defendia Clement Greenberg, vocacionada à purificação e à autonomia de cada arte conforme suas técnicas e meios específicos? (1)

São muitas as correntes e vertentes modernas, com discursos múltiplos, dissonantes, e por vezes inconclusos e intervalares. Diversidade e polifonia que, no entanto, não evitou que essa mesma modernidade, confundida com os vários modernismos, e sua miríade de vanguardas, fosse lida como razoavelmente una e homogênea, e dotada de um discurso coerente, contínuo, teleológico e sem fissuras. Tendência generalizante das leituras históricas e historiográficas que é particularmente forte no caso da arquitetura e do urbanismo, onde a clara predominância das vanguardas de matriz construtiva eclipsou uma série de outras produções não alinhadas a ela. Produções estas que, uma vez amputadas de seu lugar e de sua organicidade histórica, parecem ter se tornado desgarradas, destituídas de sentido, entendidas como isoladas e estéreis, e, portanto, aparentemente incapazes de deixar heranças fecundas. Esse é o grande mito da modernidade que o belíssimo livro de Paola Berenstein Jacques –Fantasmas modernos: montagem de uma outra herança vol. 1 – vem contestar e desmascarar, refazendo minuciosamente as pontes dinamitadas, e revelando sementes muito frutíferas que nos pareciam invisíveis. Leia Mais

Carnaval e Política: o Ilê Aiyê e a reinvenção da África | Niyi Afolabi

Vinte e dois anos atrás, escrevi para o n. 24 da Afro-Ásia uma resenha sobre o livro de Michel Agier, Anthropologie du Carnaval, uma contribuição substancial sobre o Ilê Aiyê, o bloco afro de Salvador que, ao longo dessas quatro décadas e meia, vem recebendo mais atenção de pesquisadores, jornalistas e cronistas.1 Provavelmente, trata-se do grupo de exaltação à Negritude que mais atrai os acadêmicos, bem como o Afoxé Filhos de Gandhy e as casas de Candomblé mais famosas, como o Gantois, a Casa Branca e o Axé Opô Afonjá. Leia Mais

Travessias no Atlântico Negro: reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel R. Querino | Sabrina Gledhill

De certa maneira, os historiadores são verdadeiros parceiros dos eguns – ancestrais cujos mundos pretendemos reviver com nosso trabalho. Um dos exemplos mais claros disso tem sido o desenvolvimento da nossa compreensão da escravidão; abordagens inovadoras da história social têm nos ajudado a ouvir atentamente os escravizados e a dar voz à natureza horrenda da escravidão e à imensidão do esforço, fé e criatividade necessários para se sobreviver a ela. A biografia tem desempenhado um papel particularmente importante nesse sentido. Leia Mais

Lutas pela memória em África | Cláudio Alves Furtado, Lívio Sansone

Durante o ano de 2015, eclodiu na Cidade do Cabo, na África do Sul, uma onda de protestos estudantis que procurou denunciar os resquícios de colonialismo que percorriam o currículo da Universidade da Cidade do Cabo e, o que ganhou mais visibilidade, atacou diretamente a estátua de Cecil Rhodes situada nas dependências da instituição.1 O personagem, que esteve inegavelmente envolvido na colonização de diversas regiões da África e foi autor de várias declarações acerca do direito inglês ao governo e exploração de povos e territórios africanos, era representado nesse monumento de maneira imponente. A estátua lá estava porque Rhodes fora um dos financiadores da universidade, em tempos outros, com uma fortuna, muitos disseram, obtida graças à espoliação colonial. Leia Mais

Fantasmas modernos. Montagem de uma outra herança v. 1. | Paola Berenstein Jacques

A leitura deste texto revela, desde suas primeiras páginas, tensão, busca persistente de sentidos nem sempre visíveis a olho nu, escavação à procura de nexos articulados numa outra herança, num outro modo de contar a história, numa trama que foi se tornando subterrânea a partir das narrativas hegemônicas e canônicas. Essas mesmas narrativas que produziram uma suposta pureza das leituras e proposições estéticas, desdobraram-se e/ou conjugaram-se às leituras e proposições urbanas tecidas igualmente numa concepção hegemônica da modernidade e dos processos de modernização. Impurezas, contaminações, tramas, nexos são postos à luz ao longo dessa construção ao mesmo tempo inédita e rigorosamente fiel a todo trabalho de pesquisa de Paola Berenstein Jacques. Essa fidelidade a si e ao seu próprio trabalho permite pensar o texto construído ao mesmo tempo como tese e como diálogo reflexivo com temas e objetos, com um modo de olhar e de ler já presentes em sua trajetória intelectual, nos livros e textos que a testemunham. O resultado desse esforço de proporções gigantescas se articula, assim, a uma trajetória intelectual e seus temas: a deriva como exercício crítico, a estética como outro modo de olhar, a aesthesis como possibilidade crítica e como chave de uma intervenção urbana sempre avessa a uma razão instrumental e tecnicizada, a uma racionalidade proveniente das relações promíscuas entre verdade e poder. A autora de Montagem de uma outra herança, ao longo de seus temas e questões, pergunta sempre insidiosamente: qual verdade? Produzida por quem? A partir de quais pressupostos? Para quem? Contra quem? Leia Mais

Estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980 | Lucas Porto Marchesini Torres

Lançado pela EDUFBA, em 2017, o livro estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980 é resultado de dissertação de mestrado defendida em 2013 no Programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFBA), por Lucas Porto Marchesini Torres. Este é bacharel e licenciado em História por esta mesma instituição e atualmente cursa o doutorado em História Social na Unicamp, se empenhando-se no estudo sobre comunismo e movimentos sociais na Bahia entre os anos de 1945 e 1964.

O livro apresenta uma pesquisa histórica e inédita sobre a tentativa frustrada de assalto ao Banco do Brasil, no Bairro do Canela, na capital baiana, Salvador, por cinco militantes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), em 1986 (TORRES, 2017. p. 21). Após serem presos os cinco homens, com medo de ser confundidos e tratados como bandidos comuns, assumiram que eram petistas e que desejavam com o assalto levantar fundos em ajuda à Nicarágua Sandista (p. 21). Leia Mais

Planos de Saúde e Dominância Financeira – SESTELO (TES)

SESTELO, José A. F.. Planos de Saúde e Dominância Financeira. Salvador: EDUFBA, 2018. 397p. Resenha de: ANDRIETTA, Lucas Salvador. Planos de saúde: protagonistas da acumulação de capital na saúde brasileira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.18, n.1, Rio de Janeiro, 2020.

As lacunas que se pode apontar no livro de Sestelo são consequência de seus próprios méritos: a ambição de seus objetivos e o rigor de sua execução. Trata-se de um trabalho inconcluso, em muitos sentidos, embora não menos interessante.

Fruto de uma abordagem exploratória, o livro acrescenta peças importantes a discussões em andamento. Não hesita em enfrentar debates teóricos controversos e não ignora que trata de uma matéria em movimento. Ao fazê-lo, contribui enormemente para colocar algumas questões em outro patamar. Nesse sentido, as perguntas que deixa em aberto são mais valiosas que suas conclusões.

Como resultado, o autor nos oferece um extenso mosaico, tanto teórico quanto empírico, embora sua obra deixe suspensa no leitor a expectativa por uma síntese.

Sestelo nos apresenta uma tese bastante atual. Dedica-se a compreender como os traços mais marcantes do capitalismo contemporâneo se expressam na atuação das empresas de planos de saúde no Brasil. Suas conclusões são inequívocas: os aspectos fundamentais daquilo que se convencionou chamar de financeirização se manifestam cada vez mais intensamente na saúde brasileira.

O livro vem somar-se à tradição de trabalhos que buscaram problematizar e compreender a convivência incômoda entre a lógica sanitária e a lógica empresarial. Esta herança está evidenciada ao longo de todo o texto, seja no diálogo crítico que faz com essa literatura, seja de forma implícita nas inquietações que perpassam o trabalho.

Contudo, não se restringe ao tributo monótono às referências do passado. Embora mostre como o empresariamento da saúde é um processo com décadas de continuidade, Sestelo enfatiza a todo momento a importância de compreendermos suas novidades históricas. Nesse sentido, contribui para um esforço atual – e coletivo – de abordar o papel de grandes grupos econômicos dentro do sistema de saúde brasileiro.

Para isso, explora a trajetória de seu objeto, os planos de saúde, revelando seus contrastes e transformações. Recupera o passado de arranjos comerciais incipientes, empresas familiares de pequeno alcance e esquemas que, mesmo quando atingiam maior escala, permaneciam geridos de forma simplória.

Mas não o faz senão para evidenciar as características das empresas que hoje dominam o setor. Entes que atuam em escalas muito mais elevadas, em mercados de concorrência mais acirrada; que profissionalizam sua gestão; que despertam o interesse do capital nacional e estrangeiro, promovendo operações financeiras de grande magnitude; e que transitam por diversas atividades econômicas, – não apenas na saúde.

Algumas escolhas teóricas e metodológicas feitas pelo autor merecem a atenção especial da comunidade acadêmica que se situa na fronteira entre a Saúde Coletiva e as Humanidades. O livro aponta para algumas questões comuns a todos nós. Ainda que sem resolvê-las todas, tem o mérito de limpar o terreno de pistas falsas e concepções equivocadas que tanto influenciam o senso comum e, também, o trabalho de especialistas. Destacamos algumas dessas escolhas.

Em primeiro lugar, o autor rejeita a visão do mercado de planos de saúde no Brasil como algo ‘natural’, ou seja, uma necessidade inexorável induzida pela demanda espontânea da população. Nesse sentido, resgata a tradição da Economia Política ao buscar compreender o real papel das operadoras dentro do sistema, sobretudo o esforço permanente que realizam para criar, recriar e ampliar seus espaços de atuação e suas condições de acumulação de capital.

Em segundo lugar, o autor se afasta de interpretações binárias e estanques sobre as noções de ‘público’ e ‘privado’ que permeiam o sistema de saúde (cap. 1). Nesse sentido, enfrenta um problema crucial: como apreender corretamente as inúmeras articulações, sobreposições, contradições e fluxos entre os distintos componentes do sistema de saúde? Como fazê-lo sem perder uma perspectiva sistêmica? Sem restringir-se à mera apreciação de mixes público-privados, como um enólogo que comenta uma carta de vinhos?

Em terceiro lugar, o autor demonstra cuidado no tratamento do conceito de financeirização, que tantas acepções distintas recebe na literatura (cap. 2). Sem entrar aqui nos pormenores relacionados ao termo ‘dominância financeira’, o trabalho acerta ao enquadrar sua análise empírica das empresas como entidades integrantes do padrão de acumulação que caracteriza o capitalismo contemporâneo.

Para isso, apoia-se numa definição de ‘capital financeiro’ que nos parece a mais apropriada. O autor se distancia daqueles que insistem em separar o que é inseparável. Que insistem em tratar como diferentes e antagônicos os interesses do ‘capital produtivo’ e do ‘capital rentista’. Pelo contrário, encara o capital financeiro precisamente como a fusão das formas parciais do capital. Como nos lembra Eleutério Prado: “ambos têm de ser compreendidos como momentos da totalidade social constituída pelo próprio capital” (Prado, 2014, p. 21).

Dessa forma, Sestelo consegue escapar de armadilhas recorrentes e enquadrar melhor seu objeto. O leitor não encontrará em seu trabalho uma ‘esfera das finanças’ descolada e independente da ‘economia real’. Não encontrará também empresas não financeiras passivas diante de um processo que lhes subverte as ‘virtudes’.

O que o leitor encontrará é um esforço de compreender como as empresas de planos de saúde expressam a lógica geral do sistema e a ela se integram. Em outras palavras, como esta lógica se difunde de forma cada vez mais intensa sobre domínios como a intermediação assistencial.

No caso específico da saúde, não se trata de dizer que os esquemas de comércio de planos e seguros são uma novidade recente. Mas sim de mostrar como o processo vivido pelo setor, sobretudo nas últimas duas décadas, aprofunda tendências que antes eram incipientes. Especialmente, como algumas empresas relativamente irrelevantes se transformaram em grandes grupos econômicos multissetoriais, multifuncionais e transnacionais, capazes de impor sua agenda sobre inúmeros assuntos de interesse público no campo da saúde.

Além do esforço de articular diferentes temas num referencial teórico consistente, o livro recorre a uma extensa pesquisa documental (cap. 3). O resultado é um quadro rico de informações sobre a trajetória das maiores empresas de planos de saúde brasileiras.

Mais que o mero interesse nas transformações e pormenores do mundo corporativo, Sestelo sugere, durante todo o texto, possíveis desdobramentos de seus achados e reflexões, deixando em aberto uma agenda de pesquisa ampla.

Sobressai a conclusão de que as empresas de plano de saúde ocupam, cada vez mais, um papel central dentro do ‘complexo econômico-industrial da saúde’:

Não há dúvida de que o esquema de intermediação assistencial ocupa um lugar estratégico nessa constelação. O lugar da intermediação permite múltiplas interfaces de relacionamento comercial e fundamentalmente detém o poder discricionário de gestão financeira sobre os valores pagos a título de contraprestação pecuniária pelos trabalhadores/clientes, seja na forma de pré-pagamento ou pós-pagamento (p. 360).

Esta constatação se desdobra em muitas questões atuais, algumas delas enunciadas pelo próprio autor.

Contribui, por exemplo, para elucidar a grande capacidade dos planos de saúde de manterem seu desempenho durante as oscilações econômicas que afetaram a economia brasileira nos últimos anos. Não apenas pelo seu poder de mercado diante de clientes, fornecedores e prestadores, mas também pela facilidade com que obtêm benesses do setor público, seja do ponto de vista tributário, seja da regulação de suas práticas. Este tema excede a problemática específica das empresas, sobretudo num país com grandes desigualdades em saúde, que essas tendências parecem estar aprofundando.

Outros campos de pesquisas recentes podem se beneficiar do trabalho de Sestelo, embora não façam parte do escopo da obra. Vale a pena mencionar dois deles.

Primeiro, o papel que os planos e seguros ocupam hoje no sistema de saúde faz com que sejam protagonistas nas transformações observadas no mundo do trabalho dos profissionais de saúde. As novas formas de contratação, as mudanças nas condições de trabalho, as relações de trabalho que fogem à legislação ou que foram remodeladas pela recente reforma trabalhista.

Igualmente, é preciso sempre lembrar que o mercado de planos de saúde brasileiro é constituído por uma grande maioria de planos coletivos empresariais vinculados a contratos formais de trabalho. Tem, portanto, uma relação íntima com a dinâmica do mercado de trabalho em geral. E os planos de saúde, embora de forma ainda indefinida, terão de reagir às tendências futuras do mundo do trabalho brasileiro.

Segundo, o livro corretamente menciona o Sistema Único de Saúde (SUS) no sentido de explicar como as acepções sobre a articulação público/privada abriram espaço para a conformação de um mercado hipertrofiado de saúde suplementar no Brasil. Contudo, o trabalho não aprofunda a discussão sobre o espaço que o SUS e o orçamento da saúde ocupam nas estratégias atuais dos planos de saúde. Este passo adicional contribuiria muito, empiricamente, para as pesquisas dedicadas a entender os processos de mercantilização e privatização que afetam as políticas públicas, não apenas na saúde.

Esses caminhos abertos por Sestelo ajudam a alargar uma agenda de investigações sobre as empresas que atuam na saúde brasileira. Seus apontamentos deixam claro que essas pesquisas não ficam limitadas aos fenômenos que interessam aos clientes de planos privados – cerca de 1/4 da população brasileira –, mas interferem nas questões relativas a todo o sistema de saúde.

Pelas razões expostas acima, o livro Planos de saúde e dominância financeira é muito bem-vindo ao acervo da Saúde Coletiva, assim como despertará o interesse daquelas pessoas situadas nas suas fronteiras com outras áreas do conhecimento.

Referências

PRADO , Eleutério . Exame Crítico da Financeirização . Crítica Marxista , n. 39 , p. 13 – 34 , 2014 . [ Links ]

Lucas Salvador AndriettaUniversidade de São Paulo , Faculdade de Medicina e Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde . Campinas , SP , Brasil . E-mail: lucasandrietta@gmail.com

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Ominíbú – maternidade negra em Um defeito de cor | Fabiana Carneiro da Silva

Um projeto de nação só é legítimo se reconhece todos os elementos que historicamente constituem os elos que formam aquilo que se pode compreender como povo. Essa é uma premissa ainda distante da realidade – especialmente no caso brasileiro –, onde a democracia é solapada por projetos obscurantistas, engendrados por falsos messias e apoiados por expressiva massa obnubilada por fake news, engenhosamente a serviço de quem sempre esteve em posição de mando. Leia Mais

Coleção Arquitetura Moderna na Bahia | Nivaldo Vieira de Andrade

O arquiteto Nivaldo Vieira de Andrade Júnior enriquece a fortuna crítica da história da arquitetura brasileira com os cinco volumes da Coleção Arquitetura Moderna na Bahia (1947-1951), os quais devem ser apreciados com vigoroso reconhecimento. Os principais personagens e processos de configuração da arquitetura na cena mítica do Movimento Moderno são os focos desse exemplar estudo de Andrade Junior, o jovem presidente nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil que é, também, professor da Universidade Federal da Bahia. Representante da nova geração de “arquitetos de projeto” que são, ao mesmo tempo, teóricos e historiadores da arquitetura, o autor aborda a complexidade do Modernismo em primorosa coletânea autoral.

A Coleção recorta e desdobra uma história da nossa arquitetura modernista que, idealizada, corria sem amarras, ou seja, “deitava o cabelo”. Particular interesse tem o reconhecimento e o diálogo transformador que Andrade Júnior impõe ao que define de “obras canônicas”. Ao denominar alguns dos roteiros sacralizados que tratam do Movimento Moderno brasileiro, ele utiliza estratégia sutil, pois a Coleção anuncia o propósito de romper com as regras que foram estabelecidas “a contrapelo” das realidades regionais. Portanto, na Coleção de Andrade Júnior, Objeto e Sujeito fundem História e Memória para trazer à cena elementos inéditos. Leia Mais

Salvador e os descaminhos do plano diretor de desenvolvimento urbano. Construindo novas possibilidades | Hortênsia Gomes, Ordep Serra e Débora Nunes

Aprovado em 2016, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU de Salvador (1) é, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade (2), o dispositivo legal e de planejamento urbano que balizará o ordenamento e a produção do espaço urbano soteropolitano pelos próximos anos. Este plano é parte do Plano Salvador 500, plano estratégico que buscaria “materializar uma visão transformadora do futuro da cidade até o horizonte de 2049, quando a cidade completará 500 anos de sua fundação” (3). Fez parte desse processo também a revisão da Lei de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo do Município de Salvador – Louos (4), ou seja, esse plano estratégico englobou a revisão de dois fundamentais instrumentos de política urbana para o desenvolvimento urbano da cidade.

Dada a importância do Pddu e das questões que o atravessam, é fundamental que nos debrucemos sobre ele para entendermos o que está em jogo, não apenas em sua redação final, mas também com relação às disputas travadas no processo de sua elaboração, às conquistas, aos impasses e aos potenciais prejuízos à coletividade. A isto se propõe o livro Salvador e os descaminhos do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano: construindo novas possibilidades, organizado por Hortênsia Gomes Pinho, Ordep Serra e Débora Nunes e publicado pela Edufba. Os organizadores são importantes figuras no debate acerca da questão urbana na cidade. Hortênsia Pinho é Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público da Bahia, Ordep Serra é cientista social e professor da pós-graduação em Antropologia da UFBA e Débora Nunes é arquiteta e urbanista, professora do curso de Urbanismo da Uneb. Leia Mais

Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano – COUTO (C)

COUTO, Edvaldo Souza. Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano. Salvador: Edufba, 2012. Resenha de: JÚNIOR, Osvaldo Barreto Oliveira. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 195-200, jan/abr, 2014.

“Corpos voláteis, corpos perfeitos: estudos sobre estéticas, pedagogias e políticas do pós-humano” é um livro do professor universitário Edvaldo Souza Couto (EDUFBA, 2012, 182 páginas) que analisa as mutações por que passa o nosso corpo na contemporaneidade, argumentando que estar-no-mundo nos faz seres mixados, híbridos, pós-humanos. Assim sendo, as políticas, as filosofias e as fisiologias modernas, que legitimaram uma humanidade dividida, dicotômica e racional, dão lugar a políticas do pós-humano, do corpo ciborgue, da hibridização homem-máquina.

O livro reúne sete ensaios publicados pelo autor em revistas científicas, em anais de eventos, ou como capítulos de livros, entre 2000 e 2009. Nesses ensaios, o autor discute a busca incessante das pessoas pela transformação do próprio corpo, apresentando-nos análises consistentes de fatores sociopolíticos, ético-filosóficos, estéticos, técnicos e culturais que promovem a transformação do humano em pós-humano, do corpo natural em corpo ciborgue, ou do psicocorpo em cibercorpo. Leia Mais

Relações Internacionais: perspectivas francesas | Carlos R. S. Milani

Lançado em 2009 para completar uma série de quatro publicações em comemoração ano Ano da França no Brasil, “Relações Internacionais: Perspectivas francesas” apresenta aos leitores brasileiros uma seleção de textos clássicos e contemporâneos do pensamento Frances em Relações Internacionais. Coube ao Professor Carlos Milani a organização desses textos que permitem aos interessados viajar pela produção acadêmica francesa, de Raymond Aron à Bertrand Badie.

O livro se divide em duas grandes partes. A primeira, chamada de “O conceito de ‘Internacional’”, apresenta textos que trabalham os sentidos e contornos das Relações Internacionais. A segunda parte, intitulada “Atores e Conflitos”, retrata o pensamento francês acerca de atores e processos internacionais contemporâneos. Opinião pública internacional, regionalismo, igreja, meio ambiente e redistribuição do poder no sistema internacional são alguns dos objetos abordados nesta segunda seção da obra. Leia Mais

O tutu da Bahia. Transição conservadora e formação da nação, 1838-1850 | Dilton Oliveira de Araújo

Nos últimos anos, os estudos sobre a conformação política do Estado e da Nação brasileiros no Oitocentos têm fornecido valiosas contribuições para a compreensão das experiências vivenciadas por homens e mulheres em um período fortemente marcado por amplas transformações políticas. Ao se debruçarem sobre temas relacionados à dinâmica da vida política no Brasil do século XIX, sobretudo no que diz respeito à diversidade de buscas de alternativas em meio a um conturbado processo de construção do Estado nacional nas primeiras décadas desse século, as pesquisas apontam para uma sociedade rica em manifestações políticas de variado tipo, cujo elemento central indica um acentuado aprendizado coletivo e individual resultante dos muitos confrontos políticos que, não raras vezes, saíram dos gabinetes e dos espaços institucionais para ocuparem as ruas e as praças públicas do Brasil Imperial. Felizmente, aos poucos começa a adquirir solidez o entendimento de que a constituição do Estado nacional, formalizado enquanto corpo político em 1822, não foi um projeto conquistado sem grandes atritos nas diversas províncias que compunham o vasto território da antiga América portuguesa. É, nesse sentido, que se insere o livro de Dilton Oliveira de Araújo, O tutu da Bahia: transição conservadora e formação da nação, 1838-1850, fruto da sua tese de doutorado defendida na Universidade Federal da Bahia, onde atua como professor.

O que chama a atenção, de imediato, no livro de Dilton Araújo é o título – O tutu da Bahia – adotado para exemplificar o clima tenso e de suspeição que se instalou na província nos anos seguintes à derrota da Sabinada. Conforme esclarece, tutu significava medo, pavor, algo que provocava nos indivíduos o receio de que alguma coisa temível estava para acontecer. “A insurreição era uma tutu para meter medo aos legalistas”, dizia o Correio Mercantil de 19 de junho de 1838, poucos meses depois de as tropas do governo reconquistarem a cidade de Salvador do controle dos sabinos. E aqui reside, certamente, a originalidade do seu trabalho. A violenta repressão que se abateu sobre os rebeldes que promoveram a sabinada foi suficiente para varrer da província baiana novas tentativas de contestação? O que aconteceu com as personagens centrais – e outras menos conhecidas – das lutas rebeldes ocorridas nas décadas de 1820 e 1830? Quais as dificuldades, antigas e novas, encontradas pelas autoridades locais para selar o pacto político necessário à conformação da unidade nacional? Essas são algumas das questões que o autor busca responder ao se debruçar sobre a conjuntura política que marcou a Bahia nos anos de 1838-1850. Para isso, recorre, principalmente, aos periódicos que circularam no período, responsáveis, em grande medida, por dar vazão ao clima de insegurança presente naqueles anos. Mas, em que medida, essa instabilidade política tinha correspondência na realidade?

A hipótese levantada pelo pesquisador é que a tão propalada pacificação da Bahia após os anos 1840 foi um objetivo duramente perseguido pelas autoridades políticas – tanto da província quanto em âmbito nacional – associadas às elites econômicas locais. No entanto, a pulsação da sociedade baiana, evidenciada pela documentação, delineava um quadro oposto ao desejado: “A pacificação, mais do que uma realidade consumada, era um devir histórico, que foi, a posteriori, incorporado ao discurso dos historiadores e, anacronicamente, imputado a uma época à qual não pertencera” (2009, p.22). A conquista da estabilidade política após um período de grande turbulência foi, portanto, fortemente almejada por grupos políticos e econômicos e variados foram os caminhos utilizados para a sua efetivação.

Uma das primeiras constatações importantes feitas por Dilton Araújo é que a historiografia sobre o período pós-Sabinada deixou um imenso vazio sobre o tema. A rigor, os estudos que têm a questão política como foco de análise se dirigiram quase que exclusivamente para as rebeliões ocorridas em 1798 e 1838. Quando muito, as abordagens sobre a dinâmica política na província baiana restringiram-se aos espaços institucionais sem fazer alusão ao que ocorria fora desses ambientes. Afora isso, a ênfase é dada nas questões econômicas ou culturais. Desse modo, o que sobressai nas obras analisadas pelo autor – inclusive em estudos clássicos sobre a história da Bahia a exemplo daqueles produzidos por Braz do Amaral e Luiz Henrique Dias Tavares e que serviram como referências importantes em trabalhos posteriores –, é a incorporação reiterada da ideia de pacificação da província e, em decorrência, a omissão, com raras exceções, de posicionamentos distintos aos projetos políticos capitaneados pelos governos local e central.

Na esteira das pesquisas recentes que buscam recuperar a historicidade de categorias como nação, federalismo, centralização, o historiador parte da concepção de que o processo de unificação da nação brasileira se deu em meio às distintas identidades políticas coletivas que anteriormente compunham o território da América portuguesa. Os empecilhos para se concretizar a unidade nacional foram uma constante após a ruptura política com Portugal em 1822 e o estabelecimento da autoridade monárquica sob o comando dos herdeiros da casa de Bragança. A Bahia, ao lado de outras províncias como Pernambuco e Pará, foi palco privilegiado de diversas manifestações de descontentamento com a linha política centralizadora assumida pelas autoridades situadas no Rio de Janeiro. De fato, as décadas de 1820 e 1830 expressam da maneira mais veemente que a constituição da nação não seria conquistada pelo recém-Estado independente senão à custa de virulenta repressão às atitudes e práticas oposicionistas. No entanto, a complexidade dessa dinâmica política somente pode ser apreendida em suas conexões mais amplas quando associadas às fortes mudanças do período decorrentes da expansão das ideias liberais e nacionalistas no mundo Ocidental, às condições políticas vivenciadas pelo Brasil nesse contexto e, sobretudo, às especificidades de uma província que detinha um papel importante – tanto econômico quanto político – na construção do Estado imperial.

Importante notar que a despeito das linhas centrais de contestação dos movimentos ocorridos nos anos 1830, com exceção da rebelião escrava dos malês, serem definidas pela crítica ao processo de centralização política, as motivações dos participantes não se restringiam a isso. Militares, homens pobres livres e de cor buscavam, cada qual a seu modo, inserir-se na cena política de maneira a solucionar os seus problemas imediatos, seja àqueles relacionados aos baixos e atrasados soldos, seja as condições precárias de sobrevivência marcada por uma estrutura econômica fortemente desigual e restritiva. A combinação da insatisfação política e social aparecia assim como um elemento impulsionador tanto no que se refere à adesão dos segmentos menos favorecidos, quanto na radicalidade a que estavam dispostos a assumir. Para estes, as novas condições políticas abririam amplas possibilidades de inserção, contrariamente ao intento das elites dirigentes. No projeto de Estado e de Nação a ser efetivado, nem todas as aspirações poderiam ser contempladas ou, dito de outro modo, era preciso ceifar as propostas desagregadoras de modo a afirmar a unidade política e territorial do Império do Brasil sem maiores sobressaltos. Dilton Araújo mostra que, no caso da Sabinada – uma experiência que afrontou fortemente os poderes local e central tendo em vista que os rebeldes ocuparam a cidade de Salvador por alguns meses (7 de novembro de 1837 a 16 de março de 1838) –, a repressão não se restringiu ao período subsequente à derrota do movimento. Pelo contrário, os anos que se seguiram foram testemunhas de um processo intermitente de erradicação de possíveis lideranças e das práticas rebeldes, no qual, autoridades políticas e camadas economicamente dominantes firmaram alianças para assegurar a tranquilidade pública e desobstruir o caminho rumo à desejada unidade nacional.

Em que medida a derrota dos sabinos significava a impossibilidade de ocorrência de novos movimentos rebeldes? Esta parece ter sido uma questão frequentemente formulada pelas autoridades. O estudo de Araújo se apoia fortemente na visão dos periódicos para demonstrar que, na opinião da imprensa conservadora e legalista, o tutu não poderia ser menosprezado, razão pela qual, o castigo infligido aos rebeldes deveria ser exemplar sob o risco de que novas rebeliões pudessem ocorrer caso o governo se mantivesse leniente. Esta é a posição do Correio Mercantil que, de maneira permanente, insistiu na necessidade de o Estado não descuidar da vigilância e acentuar os modos de enquadramento dos desviantes. Não obstante a intensidade da repressão contra os envolvidos, evidenciada em número de mortos, presos e deportados pela justiça, os editores desse periódico não se davam por satisfeitos assim como alguns dos seus correspondentes, a exemplo do Lavrador do Recôncavo, que conclamava os defensores do trono e do Império a se unirem contra os opositores da ordem, além de defender a centralização do poder nas mãos do Imperador. A fala do Lavrador expressa a insatisfação com os rumos políticos trilhados pelo Brasil sobretudo no que se referia à legislação imperial, com os seus variados códigos legais, assim como a atuação do parlamento, incapaz de apresentar soluções compatíveis com as exigências demandadas pela sociedade. A Bahia, mais uma vez, enfrentava uma forte crise política, momento propício para a emersão de posições conservadoras que encontravam guarida na imprensa e, certamente, possuíam muitos adeptos entre determinadas camadas sociais da província. O período de reação, como aquele vivenciado logo após a derrota dos sabinos, motivava a exposição dessas posturas, cujas denúncias potencializavam a falta de segurança das propriedades e das liberdades caso as instituições não agissem com rapidez e eficiência, como afirmavam os signatários das representações à assembleia geral em 1839, publicadas pelo Correio Mercantil. Para além de uma preocupação meramente local, essa movimentação das classes proprietárias revela um interesse com as novas formas de organização política do Estado que, em seus contornos mais amplos, apontavam para as articulações entre o centro e os poderes regionais, necessárias para debelar as inquietudes locais, sem perder de vista, no entanto, as aspirações políticas e econômicas da elite baiana.

Essa interlocução entre o governo local, as elites econômicas da província e o poder central – questão a exigir maior aprofundamento – denota que a almejada eficácia das formas de ordenamento político era um projeto difícil de ser consolidado. O autor busca extrair das fontes documentais que a apregoada paz política no pós-Sabinada não condizia com o quadro de intranquilidade delineado a partir dos próprios discursos das autoridades e reforçado pela imprensa local. A frequência com que as notícias sobre possíveis inquietações aparecem nesses registros na década de 1840 informa sobre um período no qual o desejo de pacificação da província estava longe de ser concretizado. Os distúrbios poderiam ser promovidos por escravos, homens livres pobres, índios, militares ou até mesmo ex-integrantes da sabinada à espera do momento mais apropriado para voltarem à ativa. O fato de não ter ocorrido um evento de maior envergadura no período não retira a gravidade das tensões sociais e políticas que colocaram o governo em estado permanente de alerta. Prova disso, foram as medidas para intensificar a segurança na província, além do cerco em torno dos suspeitos de envolvimento em ações ameaçadoras da ordem e o combate à imprensa oposicionista, sobretudo, o Guaycuru, cuja contundência da crítica formulada aos governos local e central levou seus editores a enfrentarem alguns processos judiciais. Dilton Araújo mostra como foram variadas as tentativas para legitimar a nação brasileira, seja por meio das comemorações cívicas das datas consagradoras do futuro promissor da Bahia e do Brasil, ao tempo em que outras deveriam ser menosprezadas, seja pela desaparição, alijamento ou cooptação de antigas lideranças dos movimentos rebeldes. Sobressai da leitura de O tutu da Bahia, a constatação de que as profundas alterações ocorridas com a independência e a organização do Estado imperial não foram suficientes para resolver problemas antigos, que em meados do século XIX apareceriam renovados em meio a um processo de experiência e aprendizado também compartilhado pelas elites.

Com base em uma pesquisa rigorosa na documentação, com destaque para os dois importantes periódicos da época – o Correio Mercantil e o Guaycuru –, a dinâmica política da Bahia nos anos 1840 retratada por Dilton Araújo não somente preenche uma lacuna nos estudos sobre a complexa formação do Estado e da nação brasileiros, quando vista sob outras perspectivas, como também aponta possibilidades para novos estudos sobre uma sociedade oitocentista em busca da construção de uma unidade nacional obstaculizada pelas muitas contradições geradoras de conflitos outros, nas quais a província da Bahia, com a sua tradição de lutas e rebeldias, adquire particular relevância.

Maria Aparecida Silva de Sousa – Professora adjunta no Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Vitória da Conquista/Brasil). E-mail: sousa.mariap@gmail.com


ARAÚJO, Dilton Oliveira de. O tutu da Bahia. Transição conservadora e formação da nação, 1838-1850. Salvador: Edufba, 2009. Resenha de: SOUSA, Maria Aparecida Silva de. Tempos de paz, tempos de tensão política. A Bahia no pós-Sabinada. Almanack, Guarulhos, n.2, p.147-150, jul./dez., 2011.

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Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX | Walter Fraga Filho

Resenhista

Danilo Rabelo Rabelo – Professor do CEPAE/UFG e Mestrando em História pela Universidade Federal de Goiás.

Referências desta Resenha

FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec. Salvador: EDUFBA, 1996.  Resenha de: RABELO, Danilo Rabelo. História Revista. Goiânia, v.2, n.1, p. 167-170, jan./jun.1997. Acesso apenas pelo link original [DR]