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Entre rios e impérios: a navegação fluvial na América do Sul | Francismar Alex Lopes
Cena do documentário “Porto das Monções”, de Vicentini Gomez | Imagem: Cidade de São Paulo/Cultura
Fruto da dissertação de mestrado de Francismar Alex Lopes de Carvalho, defendida na Universidade Estadual de Maringá em 2006, Entre rios e impérios analisa, com abordagem renovada, as relações interculturais entre as populações envolvidas nas rotas das monções. Confrontada com o texto que lhe deu origem, a redação do livro, publicado em 2019 pela Editora Unifesp, apresenta a incorporação de reflexões, documentos e referências bibliográficas acumulados ao longo dos anos.
A obra está dividida em 3 partes e 10 capítulos. Na primeira, Itinerários do Extremo Oeste, Carvalho, hoje professor de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), focaliza os caminhos fluviais e terrestres que levavam à fronteira oeste da América portuguesa desde o século XVII, com destaque para as ações dos grupos nativos no controle das rotas. Na segunda, Os práticos da navegação fluvial, ressalta o protagonismo dos mareantes mamelucos no movimento monçoeiro. Na última, Os senhores dos rios, problematiza as guerras e alianças entre as populações indígenas e os adventícios na disputa pelo domínio do rio Paraguai, sobretudo durante a primeira metade do Setecentos, encerrando com a discussão sobre a nova correlação de forças estabelecida a partir da instalação dos fortes fronteiriços no contexto dos tratados de limites. Leia Mais
Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV) | Simone Ferreira Gomes de Almeida
Influxos do Céu: uma história das previsões (sécs. XIII – XV), de Simone de Almeida, foi fruto de uma pesquisa de doutorado produzida no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus Franca – com direito a um período sanduíche na Universidade de Múrcia, na Espanha. Inicialmente com o nome de Influxos do céu na existência dos homens. Os escritos astrológicos na Península Ibérica (séculos XIII, XIV e XV), o trabalho destinou-se a analisar os escritos astrológicos produzidos na Península Ibérica do período. Na publicação, a autora preferiu alterar o título (ou seus editores) para que este funcionasse melhor no mercado editorial. Segundo consta em seu currículo Lattes, Simone de Almeida no momento não leciona em nenhuma universidade, sua última produção consta como um pós-doutorado na Biblioteca Nacional, onde se dedicou a tradução do El sumario de las maravillosas y espantables cosas que en el mundo han acontescido, de Álvaro Gutiérrez de Torres (obra datada do século XVI), findo em 2017. A autora também é membra do grupo de pesquisa Escritos sobre os novos mundos, com sede no campus Franca da Unesp; também é de sua autoria o livro A figura do herói antigo nas crônicas medievais da península Ibérica (séculos XII e XIV), 2 fruto da sua tese de mestrado. Leia Mais
Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche – FORNARI (CN)
FORNARI, Maria Cristina. Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche. Trad. Maria Elisa Bifano, São Paulo: Editora Unifesp, 2019. Resenha de: NASSER. Descoberta e redescoberta de um espólio itinerante. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.41 n.1 jan./abr. 2020.
O mais novo título da série Recepção, parte da coleção Sendas & Veredas, Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche, de Maria Cristina Fornari, renomada pesquisadora e professora da Universidade de Salento, tem por objeto o destino do espólio de Nietzsche, “de suas obras e cartas, da biblioteca” e “em especial do que ficou por fazer” (p. 11). Longe de ser um enfadonho trabalho de arquivista, consiste numa trama vibrante, margeada por um meticuloso empreendimento investigativo. Fornari salienta que quis contar essa história aos moldes de um romance, sem renunciar ao “rigor científico” (p. 13)1. Essa admirável combinação de elementos é engrandecida pela competente tradução de Maria Elisa Bifano, bem como pela preciosa revisão técnica de Scarlett Marton.
O cerne da primeira parte do livro são os delitos editoriais cometidos por Elisabeth Förster-Nietzsche e seus efeitos desastrosos. Somos levados a ver, com uma impressionante riqueza de detalhes, de que forma a soeur terrible, dominada por desejos sórdidos de fama e fortuna, e cercada por pávidos cúmplices e bajuladores, se apodera da herança espiritual de Nietzsche a fim de criar um novo objeto de culto, não importando os onerosos custos morais e científicos, incluindo ocultação, falsificação e até mesmo destruição de manuscritos, cartas e livros da biblioteca pessoal.
Essa parte embaraçosa da história começa logo após o colapso de Nietzsche em Turim, quando as conversações mais ponderadas e respeitosas mantidas por Franz Overbeck e Heinrich Köselitz sobre os rumos das últimas obras do amigo e mestre, prestes a serem publicadas por Naumann, são rapidamente sucedidas pelo cenário mais caótico criado por Elisabeth. Recém-regressada da experiência malograda no Paraguai e ávida por algum tipo de compensação, ela define como a sua nova meta de vida ser a única representante de Nietzsche. Almejava ser a biógrafa, organizadora das obras completas e, até mesmo, tutora do irmão alienado, que seria levado a Weimar para ser usado como um acessório extravagante dos Arquivos Nietzsche. A última tarefa não é de imediato levada a bom termo devido à resistência colocada por Franziska, a mãe protetora que mantém o filho sob a sua custódia em Naumburg até 1897; mas Elisabeth tem melhor sorte nos outros intentos.
Após assumir o comando da organização das obras completas, destituindo um impotente Köselitz, e se ocupar mais firmemente de sua “biografia hagiográfica”, Elisabeth dá início à reunião de todo o material que Nietzsche escreveu – “cada linha era um tesouro em potencial” (p. 33) -, incluindo as missivas, tanto dele quanto dos destinatários, um tipo de atividade extenuante que dá uma ideia de sua obstinação. Todavia, Fornari deixa muito claro que esse afinco jamais foi pautado por motivações genuinamente científicas. O real intuito de Elisabeth era se beneficiar do estrondoso impacto cultural que o irmão estava provocando em vários segmentos da sociedade alemã. Dirige toda a sua energia para a elaboração da imagem de Nietzsche, um propósito estritamente propagandístico que termina por involucrar a organização das obras completas (“minha missão nas próximas décadas será a de enraizar fundo no coração do público a imagem de Nietzsche, essa figura iluminada. É isso o que me motiva a fazer as minhas publicações”, p. 36). Essa era uma finalidade inegociável. E qualquer um dos inúmeros colaboradores de Elisabeth (como Koegel, Steiner, Seidl, os irmãos Horneffer, Weiss, etc., além, naturalmente, do inconstante Köselitz, todos cautelosamente tematizados por Fornari) que colocasse objeções, ou que não estivesse suficientemente comprometido – o que significava, no geral, incapacidade em conciliar o tempo de trabalho com os manuscritos, obrigatoriamente vagaroso, com a velocidade da máquina de propaganda, tolerante com toda sorte de infidelidade filológica -, tinha invariavelmente o mesmo destino: o afastamento.
Um momento particularmente didático a esse respeito, evocado de forma estratégica no livro, é a reação de Elisabeth a um fato inusitado ocorrido em Sils-Maria, quando Nietzsche, interessado na pintura de natureza morta que uma jovem dama inglesa realizava, a aconselha a contrastar o belo com algo feio, um sapo (ou uma rã?), que ele mesmo se encarrega de capturar. Indignada com o relato, Elisabeth publica um artigo na revista Die Zukunft em que acusa o divulgador da historieta, Durisch, de transmitir uma imagem difamatória do irmão enquanto um tipo de delinquente que se diverte ao “assustar senhoras discretas e debochar delas” (p. 43). Contudo, o fato é que Elisabeth estava inteirada da veracidade do relato, visto que era de seu conhecimento a carta enviada pela mãe da pintora, Emily Flinn, para Franziska, na qual confirma o ocorrido. Portanto, como diz Bernoulli, guardião da correspondência de Overbeck, num trecho oportunamente citado por Fornari, “talvez justamente este pequeno e insignificante exemplo seja útil para abrir os olhos de muitas pessoas indulgentes demais a respeito do sistema operacional que era responsável pela produção das ‘lendas Nietzsche’” (p. 45).
A anedota funciona como um tipo de preparação para o leitor ser conduzido ao cenário mais obsceno de adulterações e violações praticadas por Elisabeth. A lista causa perplexidade:
- Destruição e falsificação, integral ou parcial, das cartas de Lou, Rée, Franziska, Overbeck, Bernhard Förster e “uma boa parte de suas próprias, dentre as quais, sem exceções aquelas dos anos de 1882-1884” (p. 51);
- Quando da publicação do oitavo volume da Grossoktavausgabe(GOA), alteração do título de O Anticristo, que teve também “quatro passagens censuradas” (p. 57);
- Constante adiamento da publicação de Ecce Homo, cujo conteúdo poderia ser prejudicial à “imagem de Nietzsche” e, ao lado de Köselitz, e mesmo de Franziska, falsificações dessa obra, “não de poucas e pequenas passagens que as edições seguintes poderiam nos devolver, mas de textos importantes, não se sabe quais, que foram ocultos e propositalmente destruídos” (p. 93);
- E, evidentemente, a fabricação de a Vontade de Potência, seguramente um dos incidentes mais conhecidos pelos nietzschianos, quando, por meio de uma perversa e inesperada parceria com Köselitz, agora Peter Gast, e sob a alegação de ter descoberto a obra perdida do irmão em prosa, que conferiria fechamento ao projeto da Transvaloração de todos os valores, agrupa aleatoriamente anotações de Nietzsche, mais diretamente na segunda edição, de 1906, “sozinha e sem ajuda científica” (p. 78).
Mas ao sair praticamente ilesa após executar tão graves infrações, sendo regularmente aclamada – recebe um doutorado honoris causa da Universidade de Iena, quatro indicações para o Nobel de literatura, é afagada por personalidades artísticas, acadêmicas e políticas, incluindo Hitler, com quem frequentemente se entretém -, é provável que Elisabeth tenha sido vítima do excesso de autoconfiança, tornando-se descuidada. Num dos momentos mais interessantes do livro, Fornari nos mostra de que modo a edição histórico-crítica (BAW), projeto editorial entabulado no começo da década de 1930, cujo intuito era reparar a reputação cada vez mais deteriorada das obras organizadas nos Arquivos, precipita o fim da farsa. Não obstante os membros da comissão científica da nova edição, Joachim Mette e Karl Schlechta, trabalharem nas anotações de Nietzsche com o consentimento de Elisabeth, em segredo, “com a discrição e aquiescência externa de um grupo de conspiradores” (p. 112), planejam desfazer as manipulações cometidas.
Apesar de terem sido publicados somente cinco volumes das obras (quatro das cartas) dos quarenta previstos, a edição BAW pode ser vista como um sinal de que o futuro será mais generoso com o espólio nietzschiano, afinal, foi “o primeiro exemplo de um trabalho científico durante a longa história dos Arquivos Nietzsche” (p. 115). Esse presságio é confirmado com o surgimento da edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, foco da segunda parte do livro2. Possuidores de uma jovial energia, tenacidade e zelo filológico, realizam a recuperação de documentos corrompidos, de transcrições e datações inadequadas, além de divulgarem uma grande quantidade de material inédito. Existem, por certo, pontos de contato entre as diretrizes da nova iniciativa italiana com o projeto descontinuado da edição BAW, assim como com os louváveis empreendimentos alemães do pós-guerra encabeçados por Schlechta e Erich Podach, que prosseguem engajados, de diferentes formas, com a campanha desmistificadora. Mas em virtude da persistência de imperfeições técnicas nessas realizações – “as edições de Schlechta e Podach, ao lado da (suposta) boa vontade filológica mostram limites evidentes” (p. 126) -, a autora é também bastante firme, não abrindo mão de se guiar pelo indelével corte epistemológico impresso pela edição Colli-Montinari.
A edição foi gerada como que por obra do destino. Pouco depois de assinar o contrato de uma nova tradução de Nietzsche com Einaudi em 1959, Colli é alertado por Montinari, que tinha ido a Weimar em abril de 1961 para avaliar os manuscritos, acerca da necessidade de providenciar uma nova edição, porquanto “correções de texto não seriam suficiente” (p. 139). Segue-se uma cadeia de impactantes repercussões provocadas pela audaciosa decisão de assumir o desafio, todas aclaradas por Fornari: mudança de editora (Adelphi); transferência em definitivo de Montinari para Weimar no ano de 1965, onde ficaria por nove anos; e, dentre as consequências cientificamente mais prósperas, implantação de um critério confiável de ordenação dos póstumos – cronológico ao invés do temático, outrora adotado na edição GOA – e a criação de uma nova metodologia de estudo, “em uma direção histórica e anti-metafísica, filológica e não atualizadora” (p. 150). Posteriormente, graças a Giuliano Campioni, esse método serve de estímulo para a formação da escola italiana de pesquisadores, dedicada especialmente ao estudo de fontes e à preservação e catalogação da biblioteca de Nietzsche.
Em todo o caso, as inovações contidas na edição crítica enfrentam uma recepção relutante, ao contrário do que se poderia supor. A começar pela prenunciada indisposição de nomes importantes da pesquisa Nietzsche, cujas monografias eram amplamente respaldadas pela Vontade de Potência, como Karl Löwith. É por esse motivo que Colli e Montinari participam do célebre Colóquio de Royaumont munidos de um “plano de batalha” (p. 140). Mas os inconvenientes não estão circunscritos à época. No momento mais desconcertante do livro – mais até do que a exposição do caso Elisabeth -, Fornari nos coloca em contato com recentes ataques feitos por nomes conhecidos da comunidade filosófica, como Maurizio Ferraris e Domenico Losurdo. Convencidos de que a edição crítica não provoca uma significativa alteração no conteúdo de a Vontade de Potência, entendem que os resultados divulgados seriam de teor dissimulatório e que Colli e Montinari continuam vinculados ao antigo plano de canonização de Nietzsche, ainda que com outra roupagem ideológica. É possível que esse argumento falacioso tenha sido benéfico para o mercado editorial, haja vista a quantidade de reimpressões de a Vontade de Potência em vários países nas últimas décadas, inclusive no Brasil.
Embora o fantasma de Elisabeth ainda assombre, Fornari conclui o livro trazendo um panorama alentador. Nesse momento, discorre sobre os herdeiros de Colli e Montinari que em nossa atualidade promovem avanços em direção a um tratamento mais criterioso dos escritos de Nietzsche. Trata-se do Nietzsche Source, um desdobramento do HyperNietzsche. O projeto, dirigido por Paolo D’Iorio, disponibiliza “a todos os nietzschianos, a Digitale Kritische Gesamtausgabe (ou seja, a versão digital da edição Colli-Montinari das obras e das cartas), a Digitale Faksimile Gesamtausgabe (reprodução em fac-símile, embora ainda incompleta, do espólio de Nietzsche: primeiras edições das obras, manuscritos, cartas e documentos biográficos)”, além da inclusão, a ser em breve concluída, “dos volumes da biblioteca pessoal completamente digitalizados e acrescidos de comentários” (p. 183). A edição digitalizada vem também acompanhada por uma grande quantidade de correções da edição Colli-Montinari, melhorias que não passam despercebidas aos olhos do pesquisador experimentado3.
Nietzsche dizia que a obra, quando descolada do criador, passa a gozar de uma vida própria, algo que, num certo sentido, ele reafirma ao se voltar para a sua produção mesma: uma coisa sou eu, outra são meus escritos. O livro de Fornari revela que, malgrado essa apreciação, o espólio de Nietzsche conhece uma vida similar à do autor: atribulada, incerta, itinerante, enfim, aventurosa. Resta agora saber se terá um desfecho menos dramático.
Referências
CAMPIONI, G. Leggere Nietzsche. Alle origini dell’edizione critica Colli-Montinari. Con lettere e testi inediti. Pisa: ETS, 1992. [ Links ]
D’IORIO, Paolo. “The Digital Critical Edition of the Works and Letters of Nietzsche” in: The Journal of Nietzsche Studies, 40, 2010, pp. 164-74. [ Links ]
FORNARI, Maria Cristina. Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche. Trad. Maria Elisa Bifano. São Paulo: Editora Unifesp, 2019. [ Links ]
HOFFMANN, David Marc. Zur Geschichte des Nietzsche-Archivs. Chronik, Studien und Dokumente. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1991. [ Links ]
HOFFMANN, David Marc. Das “Basler Nietzsche-Archiv”. Katalog der Ausstellung. Basel: Universitätsbibliothek Basel, 1993. [ Links ]
Notas
1Diferencia-se, assim, de outros empreendimentos similares, tais como os realizados por Hoffmann. Cf. Hoffmann, 1991, p. 3 – 131; 1993, p. 25 – 94. Saliente-se, ainda, que a obra de Fornari traz um aporte mais atualizado, como era de esperar.
2Cf. também: Campioni, 1992.
3A esse respeito, Cf.. Paolo D’Iorio, Paolo, 2010, pp. 164-74.
Eduardo Nasser – Professor pesquisador da Alexander von Humboldt-Stiftung na Albert-Ludwigs-Universität Freiburg, Freiburg, Alemanha. Bolsista CAPES. E-mail: eduardo.nasser@philosophie.uni-freiburg.de
Representações Utópicas no Ensino de História | Antônio Simplício de Almeida Neto
O que pensar sobre o ensino na ditadura militar brasileira? O que modificou na estrutura do ensino com o término deste período? Em que o ensino de História contribuiu para a formação intelectual, social e política dos alunos? Refletir a partir destas indagações, motiva-nos à busca pela apreensão através do conhecimento das experiências de professoras que lecionaram entre as décadas 1960 a 1990, em pleno regime militar. Porém, o que se vislumbra nessa obra são as representações que fazem do passado, presente, até mesmo do futuro, onde suas utopias por um país melhor e uma educação de qualidade, recaem em desejos de conscientização dos alunos sobre o mundo que os rodeiam, tornando-se essencial em seus trabalhos com o ensino de História, embora há os desconfortos, as decepções, as angústias, as incertezas que trazem ao leitor uma perspectiva dualista no ensino durante o período totalitário.
A princípio, Antônio Simplício faz uma discussão sobre a concepção de história e seu utópico ensino nas escolas básicas. Refletindo sobre as interpretações de Walter Benjamin e Sevcenko da pintura intitulada Angelus Novus, tendo em vista suas perspectivas acerca do rumo que a história teria com a “falência e fim da modernidade” e o tão estimado advento da pós-modernidade.
Com isso, constatam-se os anseios e as irrealizações dos professores diante das novas perspectivas do ensino, havendo o intuito de conscientizar e educar os alunos para que compreendam a sociedade em sua totalidade, e busquem soluções para os problemas políticos, econômicos e sociais. Essa “pretensão redentora da história” traz aos livros didáticos uma carga de desejos utópicos, implicando um diferenciado modo de ver e reconhecer o ensino de História, como também sua importância no amadurecimento intelectual, crítico e participativo de professores e alunos na contemporaneidade.
De acordo com a construção da obra, é importante ressaltar a composição a partir dos fragmentos de introduções de livros, artigos, textos em geral sobre a expectativa atual dos professores para o ensino de História, na verdade, seus desejos por uma História politizadora. Pois, como numa das partes da introdução da coleção História Nova “Resta esperar, de professores e alunos, que de uma nova reflexão sobre os dados componentes de nossa história se passe de imediato àquela ação capaz de dar ao povo brasileiro o Brasil pelo qual ele realmente anseia” (ALMEIDA NETO, 2011, p.25)
. Esse desejo e sonho de ter um país emancipado no que tange aos problemas socioeconômicos, parte do pressuposto da educação como libertadora dos males da sociedade, tendo em vista o ensino de História uma arma capaz de mudar as estruturas sociais pela inteligibilidade dos alunos de que “a análise de situações passadas cria o hábito da análise de situações contemporâneas. ” (ALMEIDA NETO, 2011, p.26)
Além disso, a crise das utopias, como um dos tópicos de análise do autor, refere-se ao “declínio da modernidade” e o efeito que houve na educação, como também a oposição da pós-modernidade contundente às bases estruturais das sociedades modernas desde o período renascentista. Para isso, discute-se sobre a visão prospectiva utópica, idealizadora de transformações significativas na realidade, e como essa prospecção inclinou-se diante dos anseios e desejos dentro da sala de aula.
Diante dessas bases de discussão, ressaltar referenciais que possibilitaram o desenrolar das questões inerentes ao ensino de História durante o regime civil-militar, torna-se imprescindível à compreensão do objetivo do autor ao propor essa temática.
Antônio Simplício de Almeida Neto é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), possui mestrado e doutorado em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Tem como ênfase de trabalho Ensino de História e História da Educação. Membro da linha de pesquisa em Ensino de História; Educação: Memória e Representações; Livro didático: história e memória. Concebe-se, portanto, as características que elucidam os aportes teóricos, metodológicos e historiográficos utilizados na problematização do tema em questão.
Além disso, a trajetória em relação ao estudo de memórias e ensino durante o regime militar advém desde sua dissertação de mestrado, ou mesmo antes, pois busca elucidar nos trabalhos, tanto do mestrado quanto do doutorado, aspectos relativos ao professor como sujeito histórico das experiências escolares; ao seu silenciamento e hierarquização dentro do âmbito escolar; e seus conhecimentos e práticas de ensino de História que transformam-se em desejos, anseios, irrealizações e decepções.
A obra divide-se em quatro capítulos, possuindo suas especificidades em relação às concepções, relatos e explanação dos problemas propostos. No primeiro capítulo, intitulado “Utopias, Representações e Memória”, abre-se discussões e conflitos de ideias acerca da utopia, partindo do ponto de situar e refletir sobre o objetivo da dimensão utópica na realidade, pois, como pensam Ricouer e Falcon, que a sociedade e o ser humano não podem se desvincular das utopias por dar significado a tudo que os rodeia, sobretudo a vida.
Perspectivas de autores que também constituíram a problematização, como Boaventura Santos e Antônio Moreira, contribuintes para construção de um ensino com bases pedagógicas fixas, de acordo com ideais educacionais modernos para a renovação das escolas, o revigoramento da democracia e “dar voz aos oprimidos”, restituindo a dimensão utópica. Contudo, esse desejo de transformação e realização é inerente ao ofício do professor, tendo uma finalidade ao lecionar e explicitar conteúdos, havendo projeções e intuitos a serem alcançados com a elucidação dos temas propostos.
O autor também aborda concepções sobre Representação, melhor dizendo, Teoria crítica das representações. Uma teoria de Henri Lefebvre que trata do que de fato é a representação e como ela é formada, veiculada e seu uso em diversos momentos históricos como forma de legitimar discursos falsos ou verdadeiros – refiro-me ao mundo publicitário e as campanhas políticas. Mas também sua manifestação nas entrevistas das professoras, imbuída de desejos, realizações, projeções, limites, na sua prática de ensino, como também dentro e fora do âmbito escolar, até mesmo nos conteúdos selecionados.
Logo no segundo capítulo intitulado “Representações de História: Conhecimento e ensino”, começou-se com relatos dos professores sobre suas concepções do ensino de História, e suas representações surgidas ao longo do tempo no magistério e fora dele. Ademais, compreender a lógica da memória na busca da rememoração de conjunturas inerentes ao trabalho dos docentes, torna-se fundamental na análise dos relatos, além de que as representações presentes na rememoração motiva o autor a analisar minuciosamente as concepções de história que envolvem as práticas de ensino, os conflitos dentro e fora da sala de aula, as dificuldades em lecionar, nas referências que contribuíram para escolha de graduação, no crescimento intelectual e pessoal e na busca por ser progressista no que tange ao tradicionalismo vigente em muitos professores de História. Portanto, suas representações acerca do ensino de História, recaem em conceitos que dão luz ao que fizeram, ou fazem ao longo das suas trajetórias na educação.
Em “Representações sobre a Prática: Intenção e Gesto”, Antônio Simplício analisa as representações das professoras entrevistadas sobre suas práticas, abarcando questões que vão além de conteúdos e exposição. Através da óptica do presente sobre o passado, as professoras visualizam suas práticas, oscilando entre sentimentos de desprezo e angústia, orgulho e felicidade acerca de suas atividades realizadas durante o tempo de magistério, ou para aquelas que ainda continuam lecionando. Além disso, problematiza-se as utopias presentes nas lembranças sobre o objetivo em lecionar História, através de “noções de cidadania e cidadão crítico apresentam-se como incertos, é sobre ele que certa dimensão utópica se erigiu, disparando ações e freando impulsos, ensejando práticas criadoras ou meramente reprodutivas.” (ALMEIDA NETO, 2011, p.170)
No entanto, “abre-se os olhos” para uma nova perspectiva que é o desvelo e carinho no trato com as metodologias e conteúdos preparados aos alunos. Essa noção modifica as formas didáticas-pedagógicas da História, como as experiências das professoras Vera e Inês que “parecem ter descoberto, entre o vivido e o concebido, que outros aspectos estão envolvidos no ensino de História, além dos conteúdos e da intenção crítica”. (ALMEIDA NETO, 2011, p.171)
Por fim em “Representações sobre o ensino de História: Conservação e busca”, procura-se compreender a totalidade da prática de ensinar História, levando em conta a dimensão utópica que envolve suas representações acerca da rememoração do passado não tão distante. Além de que se discute sobre o objetivo do ensino dessa disciplina, levando em conta a visão prospectiva do presente sobre o passado, com o desejo de retorno e permanência daquele momento de “bons alunos, boas escolas e bom ensino e sociabilidade”, e a construção da consciência histórica nas alunas e alunos através da exposição em sala de aula, como também os trabalhos extraclasse – promover festa junina, lavar banheiro, pintar escola, militância – enfim, todas essas lembranças envolvem as falas das professoras como “momentos de glória”.
No entanto, contrapondo esses grandes momentos, existem seus desvios em relação à ineficácia e precariedade do ensino em geral, alegando como fatores da decadência da educação, a grande leva de alunos semianalfabetos, o choque de valores, o desinteresse dos alunos e professores, até à falta de recursos em promover uma boa aula.
Por conseguinte, a contribuição do livro de Antonio Simplício na formação de professores de História é relevante para compreendermos o processo histórico da educação no Brasil, a partir das perspectivas de professoras que atuaram num dado momento “divisor de águas” na história brasileira, e, por isso, nos instiga a refletir sobre o que buscamos com o ensino de História, e sua utilidade na formação do cidadão “racional, autônomo e democrático” (ALMEIDA NETO, 2011, p.216).
Ademais, torna-se desejável ao leitor (a) o método utilizado na busca dos relatos orais, sendo a História Oral revolucionária no campo da História, trazendo consigo diretrizes a ser seguidas para captação de tão rico material histórico: a memória. Assim, conduzindo ao cerne da história, trajetórias antes silenciadas pela historiografia tradicional, no caso as memórias de professoras do ensino básico, e que agora possibilita outra perspectiva para o tema em questão.
Michele Pires Lima – Graduanda em História pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Bolsista de IC pela mesma Instituição e CNPq.
ALMEIDA NETO, Antônio Simplício de. Representações Utópicas no Ensino de História. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. Resenha de: LIMA, Michele Pires. Mandurarisawa – Revista Discente do Curso de História da UFAM, Manaus, v.1, n.1, p.157-161, 2017. Acessar publicação original
Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil – BURNETT
BURNETT, Henry. Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. Resenha de: GARCIA, André Luis Muniz; PETERLEVITZ, Mayra Closs. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p.135-140, n.1, 2016.
Pode ser estranho iniciar uma recensão pelo final de um livro, mas esse parece ser o melhor caminho para se compreender a estratégia de Henry Burnett neste livro, Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil, que reúne artigos publicados ao longo de 4 anos de pesquisa. Nas duas grandes partes que compõem o livro, uma temática comum pode ser destacada: pensar as mais diversas tendências da cultura europeia e brasileira a partir da música, ou como sugere Burnett, a partir da “canção popular” [Volkslied]. Essa relação entre cultura e Volkslied parece ser o ponto central das reflexões de Burnett. Isso não apenas porque ele quer pensar o reconhecido fracasso da aliança de Nietzsche com a arte de Wagner no que concerne ao “renascimento da tragédia” (primeira parte do livro de Burnett). Seu argumento é mostrar também que as reflexões sobre a música nortearam importantes debates sobre o estatuto da Volkslied no processo de massificação, primeiramente, das culturas ocidentais no início do século XX em decorrência da consolidação do capitalismo como modus operandi de toda formação cultural pautada pelo elemento musical (segunda parte do livro). Se cultura, dentre suas várias definições, pode ser entendida como aquilo que pelos indivíduos é imediatamente comunicável e compreendido, a proposta de Burnett parece ser então conceber a forma “canção popular” como elemento universal unificador, basilar na construção de uma Weltanschauung. Essa é a importância do capítulo final do livro (Autenticidade, Comunidade, Povo: A Canção Popular em O Nascimento da Tragédia), no qual Burnett concebe como seu projeto de pesquisa um estudo sobre o conceito de Volkslied para um diagnóstico mais específico da cultura (2011: 243), em especial, da cultura brasileira.
Essa proposta parece tocar, exatamente, em um sutil e decisivo insight de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia. Ao afirmar que a poesia lírica de Arquíloco é a criadora da forma “canção popular”, supõe ter entendido como ocorreu a unificação (Vereiningung) da cultura grega a partir dela:
Quão distinto [era] aquele perpetuum vestigium de uma unidade do apolíneo e do dionisíaco; sua grandiosa propagação, que se estende por sobre todos os povos e insurge em renovados nascimentos, é para nós testemunha de quão poderoso é aquele duplo impulso artístico da natureza: um impulso que, de maneira análoga, deixa suas pegadas na Volkslied tal como os movimentos orgiásticos de um povo se eternizam em sua música. Sim, dever-se-ia também demonstrar historicamente como nas canções populares [an Volksliedern] todo rico período produtivo foi, simultaneamente, estímulo aos mais fortes por meio de fluidos dionisíacos, os quais temos sempre que observar como sendo o fundamento e o pressuposto da Volkslied. (NIETZSCHE, KSA 1: 48) 1
Essa citação apresenta mais do que um ponto de vista sobre a cultura grega, ela apresenta um prognóstico de Nietzsche que Burnett parece perseguir com precisão: ainda não existia um estudo que comprovasse a tese segundo a qual épocas e períodos produtivos e maduros de uma cultura teriam sido estimulados por uma dionysische Strömung, que manifestar-se-ia, assim sugere Nietzsche na seção 6 d’O Nascimento da Tragédia, justamente, na forma “canção popular”. Burnett persegue a compreensão filosófica da forma canção popular em todos os capítulos do livro. Daí seu interesse não apenas pela filosofia de Nietzsche, mas também por Theodor Adorno (um dos mais severos críticos da versão novecentista da Volkslied, a “popular music”) e pelo pensamento de Mário de Andrade, poeta, musicólogo, novelista, reconhecido fundador do modernismo no Brasil. Apesar da ausência de um sistemático diálogo entre os três pensadores, que não ocorreu nem em obras, nem em cartas ou apontamentos, a preocupação com os rumos da cultura ocidental no exato momento em que é patente a deterioração da forma “canção popular” surge como fio condutor das reflexões de Burnett.
Adorno observou e analisou a “morte” do conceito de cultura, tal como o século XVIII e XIX o concebeu, com a insurgência de sua apropriação pelos mecanismos e técnicas de produção industrial. Mário de Andrade via na cultura brasileira, nas primeiras décadas do século passado, o solo fértil para se pensar o contrário: enquanto o Brasil não padecia, como a Europa e a América, do maciço processo de evolução do sistema capitalista, e também devido ao seu “atraso industrial”, o Brasil teve condições de mapear e ordenar as mais diversas fontes de seu “impuro” surgimento. Foi na música popular, na unidade de sua diversa manifestação em solo brasileiro, que Mário de Andrade buscou a origem “impura” (interracial e polissêmica), portanto híbrida e muito rica, da nossa cultura. Não me parece exagero afirmar, seguindo Burnett, que, assim como Nietzsche, Mário de Andrade parece ter entendido a canção popular como o perpetuum vestigium da nossa cultura.
No caso de Nietzsche, a tarefa é mais complexa, não só porque a forma “canção popular” é apenas tratada pelos escritos de juventude do filósofo e de modo, muitas vezes, genérico, como também porque o conceito Volkslied, tal como em Adorno e Mário de Andrade, não é tratado no âmbito de uma “teoria social”. Antes, o tratamento de Nietzsche do conceito Volkslied2 , como mostra boa parte dos apontamentos póstumos, dá-se no âmbito da Kulturkritik, portanto, na esteira de autores como J. G. Herder, W. Goethe e J. Burckhardt. Se por um lado Herder é considerado o “fundador” do conceito de cultura3 , por outro Burckhardt é o responsável por dissolvê-lo em uma pluralidade de processos de formação históricos [Kulturen] ao investigar seu surgimento e morfologia no âmbito das Geisteswissenchaften4 ; mas, no que concerne ao conceito de Volkslied, Goethe é o autor com quem Nietzsche mais dialoga nas anotações e textos preparatórios ao Nascimento da Tragédia. A referência constante a Goethe aponta para um fato muito importante5. Goethe via na incorporação da Volkslied à sua lírica a unificação da força criativa do Individuum – o gênio [das Genie] – enquanto a mais espiritualizada forma de manifestação linguística da natureza: o espírito [der Geist]. 6
Os inúmeros estudos de Nietzsche sobre a lírica poderiam então convergir com seus esforços para entender o elemento poéticomusical presente nas mais genuínas “manifestações de vida de um povo [Lebensäusserungen eines Volkes]”, cuja unidade [Einheit] de estilo poderia ser designada cultura7 . Todavia, aqui, deve-se advertir para o fato de que, ao tratar da função da lírica na formação do drama musical grego, Nietzsche não concede a ela stricto sensu a forma Volkslied. Nietzsche sabia que a relação entre Melodie e Strophenform é conditio sine qua non da formaLied, como observa Henry Burnett em seu livro, mas disso não decorre que a forma musical moderna Lied seja o modo genuíno de comunicação musical e construção (universal) de sentido que Nietzsche reivindica a partir da tragédia grega. Em uma importante passagem de O Drama Musical Grego, Nietzsche, ao falar da peculiar característica da língua grega [Musikvokal], aponta para uma sutil nuance entre a forma Lied e Gesang.
Os gregos aprendiam uma Lied tal como eles aprendiam uma Gesang: no ouvir, eles sentiam, assim, o mais íntimo ser-um da palavra e do tom.(NIETZSCHE, KSA: 529) 8
Nessa fundamental passagem, ele emprega duas palavras, que em geral são traduzidas por “canção” [Lied e Gesang], e então associa ambas. Ali, não se trata de uma distinção conceitual entre Lied e Gesang. A nuance está em apontar para o modo como a Lied é universalmente compreendida, a saber, como Gesang, isto é, como unidade entre Tonsprache (linguagem tonal) e Wortsprache (linguagem-por-palavra). Essa unidade indica que, no caso da língua grega, o timbre e rítmica naturais do tom e do signo fonético articulado (a palavra) ainda não foram rompidos. A compreensão não é tangenciada pela aspecto lexical da canção, mas puramente musical. Assim, o poeta compositor de uma Lied, isto é, o poeta lírico da antiguidade clássica, argumenta Nietzsche em Os Líricos Gregos, “não conhece nenhum leitor [Leser], mas apenas o ouvinte [Hörer], que, em geral, é também o espectador [Zuschauer]” (NIETZSCHE, 1933, V: 307). Assim, Gesang poderia ser interpretada como forma mais geral da comunicação e compreensão musical de sentido; Gesang, portanto, é o tornar comum, o “tornar popular” o componente músicovocal da língua na sua função de estruturação de significar e comunicar. E sua forma fundamental é o coral, o “cantar em conjunto”. Talvez aqui poderia residir o paralelo fundamental entre o popular e o coro, que Nietzsche exaltou no caso da “dionisíaca rural”.
Essa comunhão popular da arte é vista por Nietzsche, no final do famoso apontamento 12[1], que é citado e comentado por Henry Burnett em seu livro, como o momento de passagem do Singen – o cantar – (i.e. a forma Lied) para o Mitsingen – cantar-com – (a forma Gesang, muito próxima, como dito, do que entendemos por forma-coral). Esse talvez possa ser um plausível fio condutor para se pensar as inúmeras confusões que surgem quando se trata de compreender o conceito Volkslied. O caso exemplar, que Burnett chama atenção, é o de Adorno, que, ao relacionar popular music à noção (para ele idêntica) de mass music9 em seu famoso ensaio “O fetichismo na música e a regressão da audição” (1938), mostra surpreendente desconhecimento de uma já diagnostica, na Alemanha, nuance entre Volkslied e Volksgesang. Em seu livro Das Deutsche Volkslied: Über Wesen und Werden des deutschen Volksgesang, de 1921, Johann Weygardus Bruinier apresenta um decisivo argumento para aquele insight de Nietzsche concernente aos conceitos Lied e Gesang no âmbito do popular (o coro).
O modo popular de cantar coletivamente [Volksgesang] é a canção [Gesang] dos círculos onde são vívidas as intuições populares, ele está livre dos tipos de coro introduzidos pela moral [Sitte], isto é, não possui uma legislação pela batuta [Taktstock], ele ainda soa em alguns tipos conservados de coro, pois sempre ressoa a partir da memória. Apenas lá onde a moral estabelecida conserva esse coletivo modo de cantar a partir da memória, [apenas ali] vive ainda a Volksgesang, e lá onde a Volksgesang, desbotada pela bruma da vida, tem que ressoar novamente, ali o cantar coletivo, livre e dependente da memória tem que, tal como a moral, surgir. Tem-se que distinguir da Volksgesang e da Volksdichtung [a canção poética popular] a Volkslied. A Volkslied surge sempre da Volksgesang, mas ressoa também na boca do indivíduo [im Munde des Vereinzelten]e daqueles que não mais exercitam a Volksgesang; conserva-se, com efeito, a Volkslied, mas sua apresentação, no entanto, não é de modo algum Volksgesang. (BRUINIER, 1921: 23-24)
Em suma: três são as teses que o argumento de Bruinier apresenta, e que enriqueceriam, por exemplo, os insights de Mário de Andrade explorados por Henry Burnett nos capítulos 8, 9 e no capítulo final (denominado “Um Projeto”): (i) que a Volksgesang é essencialmente uma intuição popular, um sentimento popular livre, que não se deixa fixar em um costume (numa técnica), mas, pelo contrário, o costume mantém-se vivo em virtude da Volksgesang, isso quer dizer que os costumes, a moral é “fundada” esteticamente; (ii) que a Volksgesang é o paradigma de reconhecimento público dos valores, é o paradigma de comunicação e compreensão destes em uma cultura, uma vez que são conservados pela sua memória; por fim, (iii) a Volkslied é uma forma musical especial, “particular”, que, no momento de sua produção, pode representar a ruptura do “costume enquanto canção popular [Sitte als Volksgesang]”. Volkslied é a forma musical por meio da qual uma ação individualmente (já que ela não mais ressoa o “coletivo”, mas o “indivíduo”, e nós podemos pensar aqui na origem do poeta lírico) não mais deseja praticar a “Sitte als Volksgesang”. Em Nietzsche, o poeta lírico é justamente aquele que deseja uma nova “Sitte”, e por isso precisa romper com a anterior. A canção popular [Volkslied] surge de uma prática coletiva, mas é pelo indivíduo (o “cancioneiro” lírico) que ela se distingue de sua forma matricial. É aqui que ato individual e sentimento popular, do qual ela deriva, mais se aproximam. Parece-nos que o insight de Nietzsche vai justamente nesta direção, isto é, em apresentar a força da cultura grega para fazer convergir o (suposto) antagonismo individual/popular. Por fim, perguntamo-nos ainda sobre a utilidade dessas teses de Bruinier para o argumento de Henry Burnett: a terceira tese de Bruinier não ajudaria a compreender a confusão feita por Adorno e discutida por Burnett (2011: 217) concernente ao aspecto “individual” na produção da música popular? A segunda não tornaria ainda mais consistente o insight de Mário de Andrade (2011: 231), qual seja, de que ainda é preciso discutir o “valor mnemônico da canção”? Em suma: em que medida a árdua preservação dessa unidade entre movimentos antagônicos de ruptura e criação musical não custou aos gregos a própria dissolução de sua cultura? Pensamos aqui na transição, diagnosticada por Nietzsche como “natural”, da tragédia na assim chamada dionisíaca rural em direção àquela cultivada em Atenas, pelos poetas nos concursos, e que culmina, com Eurípedes, na potencialização da Wortsprache, do logos. Talvez o projeto que o último capítulo do livro de Burnett pretende realizar possa nos ajudar, futuramente, a entender melhor essas questões.
Notas
1 Trata-se da oba NIETZSCHE, F. Nascimento da Tragédia, 6. Salvo indicações contrárias, as obras de 1 Nietzsche serão citadas a partir da seguinte edição. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Hg. G. Colli und M. Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter/DTV, 1999. Essa edição é resumida pela sigla KSA, seguida do número do volume e página. As traduções são de responsabilidade dos autores.
2 Cf. GAIER, Ulrich. „Herder als Begründer des modernen Kulturbegriffs“, in: Germanisch-Romanische Monatsschrift. Bd. 57, Heft 1, 2007: 5-18.
3 Apenas duas vezes o conceito ocorre na obra publicada, Nascimento da Tragédia 6 e Para Além de Bem e Mal 190.
4 Cf. EBERSFELD, „Durchbruch zum Plural. Der Begriff der ,Kulturen’ bei Nietzsche, in: Nietzsche- Studien, 38, 2008.
5 Cf. KSA 1, 8[47]; 9[85]; 9[146]; 19[270].
6 Cf. SUTER, J. Das Volkslied und sein Einfluss auf Goethes’ Lyrik. Druck und Verlag von H. R. Saueländer & Co., 1897.
7 Cf. NITEZSCHE, F. Segunda Consideração Extemporânea 4. In. KSA 1: 271
8 Mais precisamente trata-se do texto NIETZSCHE, F. O Drama Musical Grego 1.
9 A partir de um famoso artigo de Philip Tagg, pode-se notar que essa relação “contaminou” boa parte dos estudos, na América, do conceito de “popular music”. “There is no room here to define ‘popular music’ but to clarify the argument I shall establish an axiomatic triangle consisting of ‘folk’, ‘ar’ and ‘popular’ musics. Each of these three is distinguishable from the other two according to the criteria presented in Figure 1. The argument is that popular music cannot be analysed using only the traditional tools of musicology because popular music, unlike art music, is (1) conceived for mass distribution to large and often socioculturally heterogeneous groups of listeners, (2) stored and distributed in non-written form, (3) only possible in an industrial monetary economy where it becomes a commodity and (4) in capitalist society, subject to the laws of ‘free’ enterprise, according to which it should ideally sell as much as possible of as little as possible to as many as possible”. In TAGG, Philip. “Analysing popular music: theorie, method and practice”. In. Popular Music, 2: 1982: 41
Referências
BRUINIER, J. W. Das Deutsche Volkslied: Über Wesen und Werden des deutschen Volksgesang. Leipzig und Berlin: Verlag und Druck von B. G. Teubner, 1921.
EBERSFELD, „Durchbruch zum Plural. Der Begriff der ,Kulturen’ bei Nietzsche, in: Nietzsche-Studien, 38, 2008.
GAIER, Ulrich. „Herder als Begründer des modernen Kulturbegriffs“, in: GermanischRomanische Monatsschrift. Bd. 57, Heft 1, 2007.
NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Hg. G. Colli und M. Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter/DTV, 1999.
NIETZSCHE, F. Historisch-Kritike Gesamtausgabe Werke. Hg. H. J. Mette et alli. München: DTV, 1933.
SUTER, J. Das Volkslied und sein Einfluss auf Goethes’ Lyrik. Druck und Verlag von H. R. Saueländer & Co., 1897.
TAGG, Philip. “Analysing popular music: theorie, method and practice”. In. Popular Music, 2: 1982.
André Luis Muniz Garcia – Professor Adjunto Departamento de Filosofia – UnB.
Mayra Closs Peterlevitz – Mestre em Filosofia -UNIFESP.