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Agonie terminée, agonie interminable – BLANCHOT (A-EN)
BLANCHOT, Maurice. Agonie terminée, agonie interminable. [Agonia terminada, agonia interminável]. Paris: Editora Galilée, 2011. Resenha de: PENNA, João Camilo. Alea, Rio de Janeiro, v.13 n.2 July/Dec, 2011.
“A experiência da morte – esta pura impossibilidade – seria a condição, o fim e a origem, ou quem sabe o imperativo categórico (o ‘é preciso’ incondicionado) da literatura como do pensamento”. Essa frase resume o livro póstumo de Philippe Lacoue-Labarthe (1940-2007), Agonie terminée, agonie interminable. Sur Maurice Blanchot, que chega agora à forma de volume, graças ao trabalho de Aristide Bianchi e Leonid Kharlamov. O livro fora anunciado na Amazon.com e .fr desde 2004, mas fora deixado incompleto, ou “interminado”, como diz o próprio título, pelo autor em vida. A publicação coincide com a abertura do arquivo de Lacoue-Labarthe no IMEC (Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine), onde estão depositados os arquivos de muitos dos grandes escritores franceses contemporâneos. O livro é composto de textos heterogêneos, três conferências, dois textos encomendados, um outro mais antigo, da série de prosas Frases (Phrases), coligidas em volume em 2000 (Paris: Christian Bourgois). Pelas notas deixadas em seus arquivos, pode-se reconstituir o formato que teria o livro se concluído, o que nos permite deduzir-lhe o escopo. A apresentação dos dois editores faz o trabalho de recomposição do todo, citando notas de seminários, correspondência, anotações esparsas do autor para si próprio, e não chegam propriamente a preencher-lhe as lacunas, mas dão uma medida do contorno fantasmático do que seria a obra, caso Lacoue-Labarthe tivesse podido concluí-la. Os editores dão um passo adiante com relação ao todo, de maneira discreta mas firme, demonstrando que em parte Lacoue-Labarthe deixou o livro incompleto não apenas pela doença que o matou, mas por dúvidas essenciais com relação ao objeto de sua investigação, que de alguma maneira o título agônico, mais uma vez, nomeia.
Todos os textos que compõem o volume, no estado possível em que foi deixado pelo autor após sua morte, giram diretamente em torno de Maurice Blanchot, mais especialmente em torno de dois textos de caráter autobiográfico, ou testemunhal, mesmo que o primeiro termo faça problema e o segundo fuja ao tema que interessa a Lacoue-Labarthe. Os dois textos são: o pequeno fragmento “Uma cena primitiva?” (“Une scène primitive?“), publicado pela primeira vez em 1976, em uma revista editada por Lacoue-Labarthe,*1 e depois incluído, em versão ligeiramente modificada, com uma série de outros fragmentos de que ele é como que a condição de possibilidade, em A escrita do desastre (L’Écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980); e o segundo é O instante de minha morte (L’Instant de ma mort. Paris: Gallimard, 2002). Os dois textos não têm aparentemente nada em comum. O primeiro relata um episódio de infância: um menino “de sete ou talvez oito anos”, olhando pela janela, e subitamente encarando o céu, reconhecendo-o como vazio – “o céu, o mesmo céu, de repente aberto, negro absolutamente e vazio absolutamente” – e fazendo a revelação determinante para o resto de sua vida, resumida na seguinte frase: “nada é o que há e antes de mais nada nada além” (“rien est ce qu’il y a et d’abord rien au-délà “). O que doravante fará o menino viver “no segredo”: “Ele nunca mais chorará”. O segundo relata um episódio ocorrido no final da Segunda Guerra Mundial, em 1944, com um “jovem”, no interior da França, quando, preso por um pelotão da SS, escapa por um acaso da sorte de ser fuzilado. A experiência da quase morte é vivida como um êxtase, “uma espécie de beatitude”, uma revelação da leveza (ele “experimentou então um sentimento de extraodinária leveza”). Essa experiência e o sentimento inanalisável que provocou no jovem o marcarão para sempre, transformando o resto de sua vida em uma espécie de resto póstumo: “nem felicidade, nem infelicidade. Nem ausência de temor e talvez já o passo além [le pas au-delà : ao mesmo tempo ‘passo além’ e ‘nada além’]”.
O que têm os dois textos em comum além do aspecto, como já disse, problematicamente autobiográfico, disfarçado pelo uso da terceira pessoa? Duas coisas. Em primeiro lugar, trata-se em ambos os casos de experiências, mas de experiências paradoxais, “experiências sem experiência”, para usar uma expressão de Blanchot, em que nada propriamente é experimentado ou em que precisamente o “nada” é experimentado, e sobretudo em que a impossível experiência da morte é, por assim dizer, vivida enquanto quase morte, simulacro da morte. Em ambos os casos, temos uma espécie de êxtase vazio, sem objeto, beirando a revelação mística, como mística negativa, revelação ateia do vazio dos céus no primeiro, e, no segundo, como dádiva da vida, vivida, a partir da experiência crucial que se conta, como sobrevivência, sobrevida ou segunda vida, de tal modo que se inverte a fórmula consensual: a vida é que é a consequência da morte, esta sendo a íntima condição daquela. Teríamos aqui dois exemplares do que Lacoue-Labarthe chama de “a escrita póstuma” de Blanchot.
Em segundo lugar, e aqui tocamos no cerne da hipótese de Lacoue-Labarthe, os dos textos situam-se no contexto do programa rigoroso estabelecido pelo “último Blanchot” de desmitologização ou de desconstrução do mitológico, do sagrado ou da religião. A hipótese é formulada de maneira mais clara quando Lacoue-Labarthe lê a referência lacônica a André Malraux, no final de O instante de minha morte. O “jovem” teria se encontrado pouco tempo depois do incidente do quase fuzilamento com André Malraux em Paris, que lhe relata a perda de um manuscrito, em um incidente com um pelotão SS. Na invasão ao Castelo em que morava o “jovem”, a propriedade da tradicional família de Blanchot, em Quain, o SS teria encontrado também um “grosso manuscrito”, talvez “planos de guerra”. O texto sugere a junção entre os dois manuscritos (o do “jovem” e o de Malraux), nos fazendo pensar, com Lacoue-Labarthe, que eles fossem quem sabe o mesmo. O fundo do problema, no entanto, está na motivação dessa referência a Malraux no texto de Blanchot. Lacoue-Labarthe desentranha um episódio narrado nas Antimemórias de Malraux. Ele teria passado por um quase fuzilamento semelhante ao de Blanchot, e exatamente na mesma época, fato que Malraux aparentemente ignorava. Após ser preso com documentos falsos, perto de Gramat, e interrogado pela Gestapo, Malraux fora colocado diante de um pelotão de fuzilamento que, no entanto, não o executa. O paralelo entre os dois simulacros de execução aponta, na verdade, segundo Lacoue-Labarthe, para uma oposição entre duas políticas da escrita, que Blanchot visaria demonstrar: a sua e a de Malraux. A operação romanesco-memorialística de Malraux contém uma intensa mitologização, enquanto a de Blanchot se construiria como negação do mitológico.
Lacoue-Labarthe analisa a bela cena de renascimento para a vida, como repetição da origem do mundo, também em Le Miroir des limbes, nas Antimemórias, em termos que lembram os de Blanchot, embora carregados de uma mitologia inteiramente ausente do texto de Blanchot.
Eu sabia agora o que significavam os mitos antigos dos seres arrancados aos mortos. Eu quase não me lembrava da morte; o que eu levava comigo era a descoberta de um segredo bastante simples, intransmissível e sagrado.
Assim, talvez, Deus olhou o primeiro homem…*2
A oposição de procedimento literário se completa por uma oposição política, Blanchot tendo se contraposto resolutamente às posições defendidas pelo Malraux-homem de estado a partir do final dos anos 1950.
A conclusão de Lacoue-Labarthe é que aqui justamente se situaria o cerne do paradoxo banchotiano: a escrita antimitológica não deixa de conter sua parte de mitologização, nem que seja a mitologia da falta de mitologia. De maneira essencial, Blanchot teria encarnado mais do que ninguém o mito do escritor e da escrita moderna. Afinal, é ele quem coloca em O espaço literário a escrita sob a égide do mito de Orfeu, ou seja, da descida aos infernos, a nékuia, inscrita nas Geórgicas de Virgílio, e que encontra o seu modelo na Odisseia de Homero, na descida de Ulisses aos infernos. Esta travessia da morte é precisamente a matriz da cena do quase fuzilamento de Malraux, Blanchot e, é claro, de Dostoievski, que Malraux não deixa de citar em suas Antimemórias. A nékuia remeteria a um rito iniciático quem sabe universal, e que teria como complemento esta outra cena paradigmática, também originada em Homero, desta vez na Ilíada, a da ira, com todos os harmônicos políticos contidos nela: a ira contra a injustiça, fonte de toda a protestação política, como a do jovem Marx.
A desmitologização programática de Blanchot não deixa de conter a sua parte de mitologia. A cena do nascimento depois da morte, a “leveza”, a “beatitude”, e a alegria que sucede à travessia da morte retomam uma tópica que aparece em uma certa literatura francesa: ela aparece no ensaio “De l’exercitation” de Montaigne e na segunda rêverie de Rousseau. Em ambos os casos, trata-se de voltar literalmente da experiência da quase morte. A citação consistindo no método da mitologização, contra a qual alertava Blanchot, sem querer nem poder de todo recusá-la.
As duas cenas paradigmáticas que resumem a literatura ocidental, ou o Ocidente enquanto literatura, a nékuia e a da ira, do protesto e da revolta, enfeixariam a relação essencial entre mitologia e política, sacrifício e política, formulados de modo matricial na modernidade pela sequência que se abre com o terror jacobino (1792-1794) e a Festa do Ser Supremo (1794). A recusa à mitologia tem uma importância essencial no programa político-literário de Blanchot, no que toca o nazismo, e este acontecimento que divide o século XX, o extermínio dos judeus da Europa. Pois, segundo Blanchot: “No judeu, no ‘mito do judeu’, o que Hitler quer aniquilar é precisamente o homem liberto de mitos”. Afirmação polêmica, questionada por Derrida (onde há religião há sempre uma parte de sacrifício e sagrado), que assinala a judeofilia de Blanchot. É em torno desta cena político-literária, ou mitológico-política, que se divide também a vocação política de Blanchot: sua dupla “conversão” à direita nacionalista no início dos anos 1930, e à esquerda, ao que parece, após o encontro de Georges Bataille, em 1940.
O livro de Lacoue-Labarthe deixa todas essas questões em aberto. Em seu estado póstumo de fragmento inacabado, ele instala de forma definitiva a questão ético-política que ocupou a vida de seu autor: a afirmação de que “é a remitologização que traz sozinha a responsabilidade do mal”. Aqui ele retorna a todos os seus temas e autores prediletos: Bataille, Hölderlin, Rousseau, Freud e, sobretudo, Blanchot. É, portanto, em torno do motivo do póstumo e da morte que se fecha o ciclo literário e essa vida. Em torno mais precisamente desta revelação: a de que a morte é a condição de possiblidade, no sentido transcendental, kantiano, da vida.
1 (Première Livraison, nº 4, Mathieu Bénézet e Philippe Lacoue-Labarthe (eds.). Paris-Strasbourg, fevereiro-março, 1976.)
2 (Malraux. André. “Antimémoires, III, 2, Oeuvres complètes, volume III. Paris: Éditions Gallimard, 1966, p. 240. Minha tradução.)
João Camillo Penna – Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
[IF]