Teoria da História (v.1) Razão Histórica: os fundamentos da ciência histórica | Jörn Rüsen

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UnB, 1ª reimpressão, 2010. Resenha de: SOUZA, Fernanda Almeida de; URBAN, Ana Claudia. Revista de Educação Histórica, Curitiba, n.18, p.94-98, jan./jun., 2019.

Jörn Rüsen, professor emérito da Universidade de Witten/Herdecke (Alemanha), foi professor nas Universidades de Braunschweig, Berlin, Bochum e Bielefeld. Presidiu o Instituto de Estudos avançados (KWI), de Essen, de 1997 a 2007. É autor de obras fundamentais nos campos da teoria, da metodologia e da didática da História, assim como da história dos direitos humanos e das ciências da cultura. Sua obra encontra grande eco internacional no Brasil, em Portugal, na Espanha, no Canadá, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na África do Sul. É professor e conferencista visitante em diversas universidades alemãs e internacionais, notadamente no Brasil: Brasília, Curitiba, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo.30 Sua obra mais conhecida e estudada nos últimos anos nas Universidades e Pós-Graduação no Brasil é Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica publicado em três volumes: Razão Histórica (Volume 1); Reconstrução do passado (Volume 2); História Viva (Volume 3). A análise que apresento é sobre o Volume 1: Razão Histórica, na qual aponto os parâmetros relevantes da obra por eixos temáticos, e não seguindo a ordem da narrativa do livro.31

Jörn Rüsen é um filósofo da história, assim como outros autores desse campo de estudo, se propôs a fundamentar uma Teoria da História, sendo assim, conceituar a história como ciência está presente nas suas análises. O conceito de História como Ciência é apresentado a partir do questionamento, o que é ciência? O autor apresenta que cada área científica tem suas particularidades, logo, a história também tem sua especificidade. Mas é preciso uma reflexão além do fator das especificidades, para afirmar a História como Ciência se faz necessário também, refletir sobre o caráter comum que valida as diversas áreas das ciências, que é o procedimento metódico, de acordo com Rüsen (2010, p. 99) “o pensamento histórico é científico, portanto, à medida que procede metodicamente”. O parâmetro de História Ciência ocorre então, quando o processo histórico de regulação metódica da pesquisa, leva o conhecimento genérico à plausibilidade racional e controlável da ciência.

Observamos o gráfico de ideias que norteiam as explanações do livro Razão Histórica:

Figura Matriz disciplinar de Rusen1 Razão Histórica

O gráfico é apresentado no livro sob perspectiva de explanar o conceito de matriz disciplinar. Para Rüsen a Teoria da História é vista com extrema importância, evidenciando que os historiadores necessitam primeiramente estar muito bem inseridos neste universo da História Ciência, faz uma análise firme e crítica dos propósitos que devem ter a Teoria na construção da Ciência da História, no sentido da história como produto da operação científica da história acadêmica ou investigativa, ou seja, faz parte da História Ciência reflexões profundas sobre o caráter específico do historiador, que para o autor é a especificidade do trabalho de dar sentido à experiência da mudança temporal do passado.

A Teoria da História tem de apreender, pois, os fatores determinantes do conhecimento histórico que delimitam o campo inteiro da pesquisa histórica e da historiografia, identificá-los um a um e demostrar sua interdependência sistemática. E como a pesquisa e a historiografia nada tem de estático, cabe à teoria mostrar como esse processo é dinâmico. Seu objeto são os fundamentos e princípios da Ciência da História. O termo técnico para descrevê-lo é matriz disciplinar: o conjunto sistemático de fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da Ciência da História como disciplina especializada. (RÜSEN, 2010, p. 29).

A matriz disciplinar apresentada no gráfico está propondo um processo lógico-dedutivo para fundamentar a Ciência da História. O ponto de partida é o vínculo entre História enquanto ciência (História Ciência) e o trabalho do historiador (Ciência da História) que ocorre, na medida em que o historiador para dar sentido à experiência do passado com o propósito de torná-lo presente, segue regras e métodos construídos pela História Ciência. O ‘sentido’ referido na obra, tem um caráter norteador, deve ser buscado pelas carências do presente, e esse processo racional pela busca de ‘sentido’ através das carências do presente, passa pelo campo das ideias, que seriam as perspectivas orientadoras da experiência do passado. A partir dessa estrutura racional do pensar, ocorre o uso do método, para concretizar os encaminhamentos da pesquisa. Esses fatores aparecem, em princípio, em todo pensamento histórico, “no entanto, articulados na matriz disciplinar da Ciência da História, eles adquirem a especificidade que permite distinguir o pensamento histórico constituído cientificamente do pensamento histórico comum.” (RÜSEN, 2010, p. 35).

O texto expressa que para Rüsen é primordial que a pesquisa histórica ou historiográfica se inicie não como forma de se encaixar ou adaptar-se a regras teóricas somente, ou que uma pesquisa se constitua a partir de interesses puramente pessoais ou quaisquer, dessa forma se produziriam histórias ‘não válidas’, ou seja, sem conexão com as demandas de interesse da sociedade presente, sem que o conhecimento produzido tivesse significado aos seus interlocutores. A história ‘válida’ então, seria aquela na qual o historiador estabelece seu objeto cognoscível através de um olhar cuidadoso a partir do seu presente, buscando observar quais são as carências da vida prática da sociedade, e a partir das carências sinalizadas, buscar um ‘sentido’ de conexão entre o passado e o presente, esse processo fundamenta o conceito de consciência histórica, explorado por Rüsen (2010, p. 57) “como a suma das operações mentais com quais os homens interpretam sua experiência na evolução temporal do seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo.”

Rüsen evidencia com clareza que a Ciência da História deve se movimentar pela consciência histórica, e que essa através de uma narrativa inteligível, consegue chegar ao âmbito de perspectivar o futuro.

“História” é exatamente o passado sobre o qual os homens têm de voltar o olhar, a fim de poderem ir à frente em seu agir, de poderem conquistar seu futuro. Ela precisa ser concebida como um conjunto, ordenado temporalmente, de ações humanas, no qual a experiência do tempo passado e a interação com respeito ao tempo futuro são unificadas na orientação do tempo presente. (RÜSEN, 2010, p. 74).

A valorização da consciência histórica é central na obra, bem construída e articulada por Rüsen, por exemplo, quando parte do princípio do questionamento, como surgem dos feitos a História? O autor para construir sua argumentação em favor da consciência histórica como resposta, fundamenta-se em bibliografias alemãs que responderam à pergunta em questão, ou de forma muito subjetiva ou de forma muito objetiva, os fatores de subjetividade (de Max Weber) e objetividade (do materialismo histórico) passam pela criticidade do autor, como forma de validar sua defesa por respostas históricas estruturadas a partir da matriz disciplinar.

Para Rüsen a matriz disciplinar e as conexões de orientações apresentadas nela: carências de orientação, diretrizes de interpretação, métodos; formas de apresentação, funções de orientação, é uma explicação teórica do tipo de racionalidade da constituição histórica de sentido, mas essas diretrizes não devem ser interpretadas como uma série de etapas sucessivas e estanques, ao contrário, esses fatores devem ser condicionados mutualmente representando uma forma de ‘pensar a história’ dentro de um conjunto sistemático e complexo.

Fazer uso da matriz disciplinar implica no uso de valoração da narrativa, para que todos os fatores apresentados na matriz possam ser articulados. Essa reflexão está no apêndice à edição brasileira e seu objetivo maior é articular a defesa da matriz disciplinar ao referencial teórico.

O apêndice mencionado, recebeu como título: a constituição narrativa do sentido histórico, no qual Rüsen explora o tema de forma bem argumentativa, mostrando por referenciais teóricos, como a questão da história narrativa foi tratada e refletida historicamente; o tema é explorado sob perspectiva do paradigma narrativista, onde para Rüsen como não existe uma racionalidade única, mas sim diversos tipos de racionalidade, trata-se agora de desenvolver “um tipo de racionalidade da constituição histórica de sentido na forma de um paradigma que resista à crítica feita à racionalidade até agora dominante no pensamento histórico moderno e que exprima em pretensões convincentes de racionalidade.” (RÜSEN, 2010, p. 169).

Para a narrativa histórica “é decisivo, por conseguinte, que sua constituição de sentido se vincule à experiência do tempo de maneira que o passado possa tornar-se presente no quadro cultural de orientação da vida prática contemporânea.” (RÜSEN, 2010, p. 155).

Rüsen argumenta com propriedade sobre as questões paradoxais da Ciência História, percebe isso como extremamente necessário, e expressa que o campo teórico da história não pode ser dado como finalizado, é necessário continuar explorando e ressignificando os teóricos e bibliografias. O livro também aborda outras temáticas próprias da Teoria da História, como, conceito de verdade, partidarismo, uso das fontes, humanismo, que não foram abordados, pois optei em encaminhar a resenha dentro do conceito que julguei ser a verdadeira alma do livro: a importância da consciência histórica estabelecida e guiada a partir da matriz disciplinar na produção da ciência da história. Como se trata de uma trilogia, os temas abordados em Razão Histórica continuam sendo explorados em perspectiva teórica em Reconstrução do Passado e História Viva.

Notas

30. www.joern-ruesen.de

31. Esta resenha foi produzida para a disciplina de Teoria da História (disciplina do Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR/ 2019), o objetivo estabelecido era buscar na leitura contribuições que pudessem dialogar com o projeto de pesquisa.

Fernanda Almeida de Souza – Professora da Rede Estadual de Ensino do Paraná, graduada em História, mestranda no Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR. E-mail: fernanda.giles.28@hotmail.com

Ana Claudia Urban – Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do Paraná – Setor de Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Mestrado Profissional em Ensino de História e Professora de Metodologia e Prática de Docência de História. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica (LAPEDUH – UFPR). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001- 9957-8838. E-mail: claudiaurban@uol.com.br

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Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia do século XX – SIMON (FU)

SIMON, S. (Org.). Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia do século XX. Brasília: Editora UnB, 2001. Resenha de: NEDEL, José. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.2, 199-208, mai./ago., 2012.

A obra e o século XX

O organizador da obra, Samuel Simon, professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília, faz a apresentação, falando do seu objetivo, de sua abrangência, além de traçar uma síntese dos acontecimentos mais relevantes do século relacionados ao tema.

Objetivo

O principal objetivo da obra, em 31 capítulos, em 1.282 páginas de 24 x 17 cm, é a análise completa, escrita em língua portuguesa, das teorias científicas nas várias áreas do conhecimento do séc. XX e dos desdobramentos daí advindos. A cada autor foi solicitada a análise crítica e prospectiva de uma área de conhecimento, compreendendo: situá-la historicamente, referir seu desenvolvimento na passagem do séc. XIX para o séc. XX, quando fosse o caso, oferecer uma análise propriamente dita, e apresentar as tendências possíveis da respectiva área para o séc. XXI.

Abrangência

O livro resultou sendo uma versão crítica do que tem sido feito no séc. XX, fora alguns domínios do conhecimento, não contemplados, por não ter sido possível contar com os respectivos especialistas (p. 18).

As informações abrangem ciências humanas, da natureza e exatas; saúde e nutricionismo; tecnologias e artes. Estão contempladas as seguintes especialidades, umas mais desenvolvidas que outras: Administração, Agronomia, Antropologia, Arqueologia, Arquitetura, Biologia, Botânica, Ciência cognitiva, Ciência da informação, Cinema, Computação, Comunicação, Cosmologia, Ecologia comportamental, Educação física e esporte, Engenharia aeroespacial, Engenharia de minas, Estatística, Filosofia, Física, Geografia, História, Matemática, Museologia, Música, Nutrição, Paleontologia, Química, Relações internacionais, Sociologia e Teoria literária.

Panorâmica do séc. XX

A descrição geral do séc. XX pode ser composta pelo que consta da Apresentação (p. 7-19) e do Prefácio de Roberto A. Salmeron (p. 21-26). Uma advertência oportuna é a de que o conhecimento teórico e aplicado, que obteve grande desenvolvimento no séc. XX, não se iniciou nele, nem mesmo no séc. XVII, com a revolução científica. Com efeito, as atuais definições da teoria científica são herdeiras de uma tradição de 2,5 mil anos de conhecimento ocidental e oriental. Ao lado do desenvolvimento científico e tecnológico, ocorreu também o das artes e da filosofia.

Desenvolvimento

Em síntese, o conhecimento científico no séc. XX ensejou o aparecimento de novas áreas, aprofundando duas tendências iniciadas no séc. XVII: a crescente especialização do conhecimento e o estabelecimento de interconexões entre áreas até então bastante distintas (p. 7). A história das ideias ensina que a aproximação entre fenômenos antes sem conexão, integrando um mesmo conjunto explicativo, é uma tendência definitiva. Segundo Roberto A. Salmeron, as novas interconexões das várias ciências, ao lado da matematização crescente em vários domínios científicos e da abstração, são, talvez, os traços mais característicos das ciências no séc. XX (p. 14).

Interconexões

Como exemplos, vale notar as interconexões nos seguintes tópicos: O uso da matemática constitui-se a base da física moderna (Galilleu Galilei e Newton). A física, até então, fundamentalmente qualitativa, apropria-se da matemática e a desenvolve, como se vê do cálculo diferencial e integral nos estudos de Newton e Leibniz. A química também tem fortes vínculos com a física e a matemática. A biologia mantém conexões com a química e a matemática, importante desde os trabalhos de Mendel. A sociologia, a antropologia e a área das relações internacionais são tributárias da história que, de maneira recíproca, examina novos fatos à luz dessas ciências e de outros domínios das ciências humanas. A museologia mantém estreitas relações com a arqueologia (p. 8). O uso cada vez mais relevante da computação compete com a matemática em muitos casos. Herdeira disso é a inteligência artificial, conduzindo a novos domínios, como o da vida artificial (p. 15).

Abstração

Para Salmeron, “a característica mais importante do séc. XX […] é a passagem para a abstração, nas ciências e nas artes” (p. 23 e 26). É assim que Louis de Broglie, em 1924, apresentou tese de doutorado na qual mostrou que a cada partícula se pode associar uma onda. Foi a origem da mecânica ondulatória, posteriormente chamada mecânica quântica, que tem fundamentos abstratos, isto é, sem relação com nossa experiência diária. E ela é fundamental para a interpretação da física moderna, em particular dos fenômenos atômicos. Uma teoria abstrata tem inúmeras aplicações, das quais nem nos damos conta: máquina fotográfica digital, ressonância magnética, scanner, transistor, etc. Mais de 30% da indústria moderna de vanguarda são baseados em fenômenos quânticos. Outro exemplo de abstração: a psicanálise que trata da mente humana sem medicamentos, sem intervenção física no corpo (p. 24).

Também na arte houve mudança radical, com a introdução da abstração no modo de pensar. A primeira obra nesse sentido foi o quadro de Picasso Les Mademoiselles d’Avignon, de 1907: cinco mulheres nuas, com desenho simplificado, rostos de três delas representados por máscaras africanas, o fundo com cores vivas sem gradação e contrastes violentos. O quadro, que suscitou escândalo e forte rejeição na época, abriu nova perspectiva para a pintura: a produção de obras que não representam objetos reais. Isso logo foi seguido por outros artistas, como o inglês Thomas Moore, que desenvolveu a abstração na escultura, e Arnhold Schönberg, que o fez na música, com seu dodecafonismo, vindo ele a tornar-se o precursor do que se convencionou chamar música moderna.

Avanços

Os avanços nas ciências e no domínio da natureza ao longo do séc. XX são notáveis. O desenvolvimento tecnológico tem sido extremamente acelerado. O homem conseguiu sobrevoar os oceanos em poucas horas, ir à Lua, desenvolver computadores de altíssima velocidade e pequeno porte, manipular o código genético, aumentar a expectativa de vida, propor conceitos altamente abstratos, como de sinergia (administração), estruturalismo antropológico (antropologia), axialidades (arquitetura), totipotência (botânica), sistemas especialistas (ciência da informação), espiral do silêncio (comunicação), frases protocolares (filosofia), cadeia trófica (paleontologia), etc. Pôde ainda olhar para os confins do universo e obter evidência empírica sobre a existência de um objeto extragaláctico, chegando à cifra de 100 bilhões de galáxias em contínua expansão (p. 8-9).

As artes também conheceram mudanças importantes: o cinema, produto genuíno do séc. XX, tornou-se uma poderosa indústria. Além de oferecer entretenimento, tornouse espaço para a reflexão sobre o homem, sua diversidade cultural, seus valores (p. 9).

Qualidade de vida

O resultado de pesquisas das ciências fundamentais e do aprimoramento da técnica ajudou a minorar o sofrimento de milhões de pessoas. Desde o início do séc. XX, o aumento da oferta de alimentos foi maior que o crescimento da população. Houve enorme progresso social: o homem vivia melhor no fim do que no começo do século, apesar das injustiças e desigualdades existentes em muitos lugares. Trabalha com muito mais conforto e produz muito mais, goza de saúde melhor, vive 30 anos mais e tem mais lazer do que no começo do século (p. 22).

Pela metade do século, iniciando a descoberta dos antibióticos, a medicina deu um salto: muitas doenças passaram a ser curadas, e a procura de medicamentos para tratar ou prevenir doenças tornou-se rotina. Com os avanços da genética e a descoberta da biologia molecular, a biologia se transformou: passamos a ter nova visão da herança da vida e dos fenômenos vitais. Inúmeras aplicações da física tornaram-se inseparáveis de nossa vida cotidiana, tais como telégrafo, telefone, rádio, televisão, computador, novos materiais, aparelhos domésticos e de aplicação na medicina, no transporte, etc. (p. 22).

Limitações

Contudo, são de notar também limitações do conhecimento científico. Muitas questões não estão resolvidas até hoje. Há implicações éticas da ciência aplicada, v. g., da engenharia genética. O conhecimento produzido e acumulado ao longo de milênios tem pouca influência sobre os governantes no tocante à sua adequada utilização em prol de uma vida mais digna (como as questões ecológicas). Esse conhecimento também não tem conseguido reverter o uso indevido, muitas vezes com a ajuda de cientistas, de alguns de seus resultados (p. 10-11).

Algumas observações pontuais

Os autores deste livro monumental, no âmbito da respectiva especialidade, procuram dar conta do que aconteceu no séc. XX, tão rico em desenvolvimento e novidades científicas e tecnológicas. Uma súmula de cada um dos capítulos não caberia nesta simples nota bibliográfica. Por isso apenas alguns tópicos são selecionados e trazidos à consideração dos leitores, não mais do que para despertar o interesse pela leitura exaustiva da obra.

Roque de Barros Laraia (“Da ciência biológica à social: a trajetória da antropologia no século XX”, p.95-117) chama a atenção para o postulado da unidade biológica da espécie humana, já afirmada por Confúcio, 400 anos antes de Cristo, nestes termos: “A natureza dos homens é a mesma; são os seus hábitos que os mantêm separados” (p. 103). Segundo Laraia, aliás, “a antropologia reafirmou o princípio da igualdade da mente humana” (p. 116). A reafirmação dessa verdade reconhecida pela antropologia científica abala, com toda a pertinência, o próprio fundamento de concepções ou teses a favor da desigualdade qualitativa entre raças humanas, que ao longo da história têm ensejado discriminações e exclusões, hoje universalmente condenadas, mesmo que na prática por vezes apenas em vias de superação.

Waldenor Barbosa da Cruz (“Herança e evolução: aventuras da biologia no século XX”, p.195-288). Merece destaque esta observação do autor: “Nenhuma tecnologia científica tem consequências mais profundas sobre o homem do que a derivada da biologia: a biotecnologia. Isto porque afeta não somente nosso estilo de vida, mas também nossos valores éticos e morais e até mesmo põe em questão a evolução de nossa espécie. Por essa razão, os avanços da biologia, particularmente da biotecnologia, são tão amplamente discutidos em todos os meios de comunicação social […]” (p. 279).

O autor pondera que, nesse contexto, surge a bioética. A biologia molecular possibilitou o mapeamento físico do genoma humano e a criação de técnicas para sua manipulação. Isso possibilita ações com objetivos médicos (prevenção, diagnóstico, tratamento de doenças), práticas de exclusão social de indivíduos com genes não desejáveis e construção de indivíduos perfeitos (em suma, processos de cura e eugenia). A mesma tecnologia aplicada a genomas vegetais leva aos alimentos transgênicos, que também envolvem discussões éticas. O patenteamento de genes humanos é inaceitável. Aliás, a UNESCO já o deixou claro na Declaração universal sobre o genoma humano e direitos humanos, 1997 (p. 281). E o autor conclui: “Não é preciso ter bola de cristal para prever que a bioética será cada vez mais importante nas próximas décadas” (p. 282).

Bem apropriadas são as ponderações do autor. É que as questões de bioética são por via de regra polêmicas. Volta e meia retornam à pauta das discussões em âmbito nacional, como já tem acontecido com o aborto, inclusive de feto anencefálico, o uso de embriões humanos na pesquisa, alimentos transgênicos e outras questões que envolvem a vida e a dignidade humana. Nesses casos, a pura ciência biológica, não tendo o alcance necessário para a solução, deve mesmo ser socorrida pela ética em sua vertente aplicada, no caso a bioética.

Aluizio Arcela (“Computação: uma ciência exata com aspirações humanas e sociais”, p.503-557), em meio à explicitação de sua “ciência exata” da computação, faz um juízo crítico da psicanálise, nestes termos: “A psicanálise […] mostra-se vítima de seus próprios ensinamentos ao demonstrar dificuldades de sair da sua infância científica e, assim, ainda não traz uma luz suficiente, algo que explique formalmente, como convém à computação, o que são os complexos, os medos, os desejos e tudo o mais que se manifesta nesse domínio chamado inconsciente, se possível na mesma medida que a lógica o faz para o raciocínio” (p. 554).

Em verdade, exigir da análise da mente humana o rigor da lógica ou da computação, no mínimo, não é devido nem razoável. É que a psyché é misteriosa, apenas acessível de forma indireta, por introspecção, e nunca de modo cabal. Aliás, cada saber tem o rigor e a exatidão que seu objeto permite ou requer, como Aristóteles já ensinou in illo tempore. Se o teorema da incompletude de Kurt Gödel, segundo o qual todos os sistemas matemáticos suficientemente fortes são incompletos, porque neles há teoremas que não podem ser demonstrados nem negados (proposições indecidíveis), tem aplicação na própria computação na versão segundo a qual “nem todos os enunciados verdadeiros da aritmética podem ser demonstrados por computador” (p. 515), não deve causar espécie que na análise dos complexos, medos e desejos da alma humana não haja clareza insofismável como a que é possível na lógica e na computação. Há outros modelos de ciência, particularmente na área das ciências humanas.

Luiz Martins (“Teorias da comunicação no século XX”, p.559-604) faz judiciosas observações acerca do mundo atual e da qualidade da comunicação despejada sobre todos diariamente. Segundo ele, a humanidade foi vitoriosa no campo tecnológico e do ponto de vista das possibilidades de uma interconexão global. Porém, a sociedade moderna está marcada por exclusões e alargamento dos abismos sociais. O mundo sistêmico venceu o mundo da vida, dito em categorias habermasianas (p. 564-565). Há livre trânsito de capital financeiro e mercadorias, mas barreiras à circulação de pessoas, sobretudo em busca de trabalho e asilo. O mundo globalizado se caracteriza por exclusões: fechamento de fronteiras e apartheids sociais (p. 588). “Tal como ironicamente aconteceu no período das circunavegações, novamente o mundo se completa enquanto esfera, mas fragmenta-se em matéria de humanismo. A ‘aldeia global’ totaliza-se para explodir em estilhaços, sucumbindo às categorias dominantes do poder e do dinheiro, diabolicamente fragmentadoras” (p. 589). Pelo visto, a influência do discurso de Habermas sobre o autor é palpável, aliás, expressamente admitido.

O autor pondera que, em relação aos MCM, não raro vence o mau gosto, o grotesco. Na radiodifusão educativa há muito input e pouco output. O papel dos MCM, especialmente da TV, tem estado mais para a deseducação das massas do que para a elevação do nível educacional e cultural das populações, a julgar de obras recentes publicadas pela UNESCO. As crianças são mais vítimas do que beneficiárias dos meios de comunicação: os conteúdos educativos perdem para as programações repletas de violência e degradação dos valores morais e humanos. Os meninos são fascinados por heróis agressivos, como o Exterminador do futuro (p. 573-574).

Obviamente, o alerta do autor deve ser levado em conta. A qualidade das apresentações artísticas e de diversão é ruim, quando não péssima, na maioria dos canais da TV brasileira. O exemplo atual mais chocante disso é o programa Big Brother Brasil que anualmente é encenado e continua no ar, apesar das muitas críticas, por razões de faturamento da empresa de comunicação que o promove, desprezados os bons costumes, os valores educativos e a qualidade artística do espetáculo digno de um zoológico humano.

Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro (“A abordagem evolutiva no estudo do comportamento animal e humano”, p.631-659) defende em sua abordagem evolutiva que não há dicotomia verdadeira entre o genético e o cultural; que a cultura também é vista como manifestação genética dos animais, evoluída dentro das populações e moldada por seleção natural. Segundo ele, somos seres culturais porque fomos moldados pela seleção natural para sermos assim. Por sinal, atualmente se acredita que há genes até mesmo para a religiosidade. O principal argumento em favor dessa ideia é que, apesar da enorme diversidade étnica e cultural entre os homens, até hoje não se descobriu povo ou civilização totalmente ateu sobre o nosso planeta (p. 651). Assim, “para desvendarmos as virtudes e maldades da natureza humana, precisaremos conhecer um pouco mais sobre os genes” (p. 655).

Com certeza, uma antropologia de feição mais clássica não teria dificuldade em relativizar esse entendimento biologista do autor. O ser humano é um composto psicofísico que ultrapassa seu patrimônio genético. Nessa condição, realiza atos orgânicos em que o corpo (no caso, a parte biológica) e a psique são concausas; e outros atos, os da inteligência e da vontade, em que o corpo entra apenas como condição, não como causa. Nesse nível situa-se o mundo da cultura criado pelo ser humano ao longo de sua rica aventura sobre o planeta. Na cultura, nela incluída a religião, os genes intervêm, não como causas (que produzem o resultado), ou como determinantes, mas como condições (necessárias para que a causa – a alma, a mente, o espírito – possa produzir o resultado). Entre genético e cultural há, sim, uma distinção radical. Mas distinção não quer dizer separação, pois ambas as partes funcionam sinergicamente no ser humano hígido. A valer a tese do autor, de que a cultura, inclusive a religiosidade, é genética, caberia indagar: por que dela não ocorre nenhum indício entre os chimpanzés, cujo patrimônio genético, segundo pesquisas recentes, é idêntico ao dos humanos em noventa e nove por cento? Não chegaram lá ainda? Ou porque, encerrados na mera perspectiva biológica, não têm acesso ao mundo simbólico? Essa, porém, não é uma questão científica, de antropologia física, mas de antropologia filosófica. A luz da biologia é insuficiente, de curto alcance, para resolvê-la.

Aldo Antônio de Azevedo e Alexandre Luiz Gonçalves de Rezende (“As dimensões humanas da educação física e do esporte na cultura”, p.661-710) fazem um grave alerta sobre Educação Física nas escolas brasileiras. Segundo eles, com as mudanças na concepção educacional, a ginástica foi perdendo espaço no contexto escolar para o esporte, passando a consolidar-se nas academias, ao lado da musculação, como prática orientada para a modelagem estética do corpo. No Brasil, a esportivização da Educação Física resultou na perda de sua identidade pedagógica e no questionamento de seu papel dentro da escola. O professor passou a ser técnico esportivo interessado em treinar seleções, relegados a segundo plano os alunos apontados como desprovidos de aptidões naturais para o esporte (p. 700).

Se a denúncia é verdadeira, deve ser levada em conta pelos educadores e instituições de ensino, a fim de que não se perca uma prática indispensável à educação integral, consagrada ao longo da história da educação no Ocidente, e não se induza a discriminação dos educandos havidos como menos prendados para o esporte.

Nelson Gonçalves Gomes (“Os progressos da filosofia no século XX”, p.795-871) escreve um valioso ensaio de síntese das reflexões filosóficas no séc. XX. Passa pelas principais correntes, como o idealismo, o positivismo, a fenomenologia, a filosofia analítica, até a pós-analítica para a qual as lógicas intensionais abriram horizontes (p. 867). Observa que na filosofia não há progresso consensual (p. 861), mas progressos controversiais, isto é, formação de correntes, em processo contínuo, com diferentes posições diante dos grandes problemas. As concepções exercem influência umas sobre as outras e evoluem, por exemplo, o neotomismo analítico (p. 861-862).

Da filosofia analítica o autor aponta os resultados mais interessantes: o papel privilegiado conferido à linguagem, como instrumento de pensamento; o emprego de métodos formais no tratamento das questões filosóficas; o uso da lógica como recurso auxiliar (p. 864). Afirma: “A filosofia analítica, tal como existiu na primeira metade do século XX, esgotou-se. ‘Filosofia analítica’ tornou-se uma espécie de guarda-chuva que abriga toda uma família de filosofias, que têm em comum o cuidado no uso da linguagem e a exigência do emprego de argumentos” (p. 867). Informa que, a partir daí, alguns falam em “filosofia pós-analítica”, que retoma grande parte da tradição, mas não de forma conservadora, uma vez que discute grande variedade de problemas novos. O retorno dos temas clássicos se faz muitas vezes com emprego de linguagens sofisticadas e argumentação rigorosa, frequentemente formulada com o auxílio de lógicas intensionais. Esclarece que essas lógicas, desenvolvidas na segunda metade do séc. XX, são sistemas nos quais se trabalha com frases regidas por expressões como necessariamente, possivelmente, obrigatoriamente, surgindo assim a lógica modal, a deôntica, a epistêmica e outras, para as quais são construídos sistemas peculiares de semântica, as semânticas dos mundos possíveis (p. 867).

Pelo visto, o autor traz a análise até os dias atuais e transita por tudo com objetividade e desenvoltura. No mais, oferece preciosas dicas para extensão e aprofundamento dos temas por parte dos interessados.

José David M. Vianna (“A física e o século XX”, p.873- 916) apresenta um longo estudo sobre os avanços da física no último século e faz uma observação sobre cuja pertinência a história futura da ciência dirá, a saber.

No início do séc. XX, pelo menos o primeiro quarto de século, a física foi marcada por desdobramentos de resultados e propostas da segunda metade do séc. XIX: a sintetização das leis do eletromagnetismo (Clerk Maxwell); a descoberta dos raios catódicos (Johann W. Hittorf e William Crookes); do efeito fotoelétrico (Hertz e Philipp von Lenard); dos raios X (Wilhelm K. von Roentgen); da radioatividade (Henri Becquerel); a confirmação da existência de ondas eletromagnéticas (Heinrich Rudolf Hertz); o desenvolvimento da teoria clássica do elétron (Hendrick A. Lorentz), etc. (p. 873-874). Isso leva a pensar sobre quanto das ideias surgidas nos últimos 25 anos do séc. XX poderão influenciar as descobertas do séc. XXI. Nessa situação encontram-se estes tópicos: a informação quântica, as cordas e supercordas (strings e superstrings), os materiais nanoestruturados, o confinamento e os novos materiais, o caos, os quarks, os campos de calibre (gauge), a unificação da interação forte com a fraca e a eletromagnética, e a superunificação das quatro interações básicas, etc. Tudo pode entrar como itens de uma pauta de projetos cujo desenrolar continuará a fazer da física uma ciência de interesse cada vez maior (p. 912). E ela tem de assinalar novos progressos, porque desafios múltiplos lhe estão postos. Um deles é não menos do que este, como afirma o autor: “Um dos desafios para este século que se inicia é encontrar um modelo para a estrutura fundamental da matéria” (p. 898).

Haverá de encontrá-lo? Se acontecer, com certeza, não será pouco.

Ignez Costa Barbosa Ferreira (“A visão geográfica do espaço do homem”, p.817-944) traça um estudo preciso do desenvolvimento da geografia, das origens até as perspectivas atuais. Enquadra-se no novo paradigma de base ecológica, surgido em decorrência da pressão dos problemas ambientais, preocupado com a atuação antrópica sobre a natureza, em que o próprio homem seja visto como elemento do ecossistema (p. 935). A autora pensa que “a preservação do hábitat do homem na superfície da Terra é a grande questão da sociedade” (p. 918). Por isso, “desenvolvimento e preservação do ambiente torna-se uma das grandes questões atuais e um dos maiores desafios para a produção do espaço geográfico pela sociedade” (p. 940). Sobre o papel da geografia entende que sua principal contribuição está em “apontar saídas, a partir do território, no sentido de se construir um espaço socialmente mais justo e ambientalmente sustentável” (p. 941). Pelo visto, a postura da autora é coerente com o paradigma da sustentabilidade do nosso planeta, hoje elemento precípuo de agendas internacionais.

Estevão de Rezende Martins (“A renovação contemporânea da historiografia”, p.945-985) conclui seu estudo pelo caráter científico de sua disciplina, nestes termos: “A história do século XX tornou-se, indiscutivelmente, ciência histórica. Seus procedimentos metódicos, suas práticas de pesquisa e seus resultados satisfazem aos critérios da confiabilidade, verossimilhança e controlabilidade. Seu produto – a historiografia – submete-se ao crivo intersubjetivo da comunidade profissional” (p. 979).

É de notar, porém, que a submissão ao crivo intersubjetivo não é marca exclusiva da ciência, mas de todo produto cultural. A rigor, não representa critério de cientificidade, nem que conduza ao consenso, pois nem este não é indicativo infalível de verdade. Com efeito, o consenso pode estar alicerçado em falsas evidências capazes de ensejar juízos e afirmações equivocadas. Disso a história universal registra exemplos abundantes.

Conrado Silva (“O século mais instigante de toda a história da música”, p.1049-1067) faz uma observação que suscita preocupação, nestes termos: “É um fato singular do século: pela primeira vez em toda a história da música, não existe um cânone que sirva de base para definir as características do estilo. O próprio conceito de cânone hoje já não tem mais função. A divergência de critérios é o que importa” (p. 1052). Nesse contexto, compreende-se quiçá melhor o próprio Schoenberg com sua música atonal (sistema dodecafônico).

O autor continua sua observação, quase uma lamentação: “Ainda na primeira geração pós-internet, a realidade mostra uma nivelação por baixo da criação musical. A difusão de programas de criação e de sequenciação de som permitiu a entrada no meio musical de uma quantidade enorme de aprendizes de feiticeiros interessados em mostrar suas experiências, em geral objetos sonoros banais, de pouco interesse musical, resultado de pouca reflexão nos princípios básicos de confecção da estrutura musical” (p. 1064).

Essa situação, profundamente lamentável, não representa sequer novidade para um consumidor leigo de música, porque a indigência cultural, literária e musical muitas vezes salta aos olhos de qualquer pessoa minimamente informada. Infelizmente, esse experimentalismo permeado de pobreza, banalidade e mau gosto denunciado pelo autor não é exclusivo da música, mas atinge também outras áreas, como a das artes plásticas e da literatura, especialmente na poesia. Qualquer garatuja ou instalação por mais abstrusa que seja vai para bienal… Uma simples prosinha empilhada, em geral hermética ou sem sentido, sai premiada em concurso de poemas. A exemplo do abandono dos princípios da estrutura musical, também foram descartadas para o cadoz das antiqualhas as regras clássicas da composição poética. Cada um agora faz a sua regra, o que transforma a suposta arte em pura facilidade, impulso emocional, sem racionalidade. Entretanto, a verdadeira arte, como toda virtude, é da ordem do difícil, segundo a lição indescartável de autores como Platão, Aristóteles, T. de Aquino e outros. Salústio a recolheu dos gregos e a transmitiu a César: Ad virtutem una ardua via est (Epistolae ad Caesarem 1, 7) – O caminho da virtude é um só, e este é árduo. É urgente um retorno aos clássicos.

Marcus Faro de Castro (“De Westphalia a Seattle: A teoria das relações internacionais em transição”, p.1153-1222) examina com amplitude o complexo das relações internacionais em sua gênese e transformação. Passa pelo realismo de Edward Carr e Hans Morgenthau, o neorrealismo de Kenneth Waltz, a teoria da interdependência de Robert Keohane e Joseph Nye, e chega ao construtivismo dos tempos mais recentes, perspectiva constituída de apropriação e adaptação de contribuições oriundas sobretudo da teoria social europeia, que surgiu em meados de 1980 e teve seu florescimento nos anos 1990. Nessa perspectiva, os fatos do mundo, inclusive a política, o uso do poder, a violência exercida pelo Estado, são socialmente construídos, em parte com base em elementos subjetivos (significados linguísticos, valores, crenças religiosas, aspirações, normas morais, preconceitos, valores culturais, sentimentos), que formam estruturas motivacionais da ação. Esses elementos ideacionais podem ser criticados ou expostos à interpretação e possível reelaboração por meio de práticas sociais participativas (p. 1205-1206).

O autor visualiza, para a Teoria das Relações Internacionais, como perspectiva profícua no futuro previsível, tanto como atitude do trabalho intelectual quanto como prática política, a abertura ao pluralismo de valores (p. 1211), o que será consentâneo com a preservação da liberdade. Obviamente, essa perspectiva é coerente com a tendência majoritária hoje de progressivo apreço dos direitos humanos pelos povos e a sua efetiva aplicação na prática das nações.

Vilma Figueiredo (“Do fato social à multiplicidade social”, p.1223-1253) faz observações que ressumam a humildade que deveria ser o apanágio do todo cientista. Lembra esta palavra de Max Weber: “Nenhuma ciência […] será capaz de, definitivamente, ensinar aos homens a melhor maneira de viverem, ou às sociedades, de se organizarem, e tampouco de dizer à humanidade qual será o seu futuro: sempre existirão as esferas ou dimensões da sociedade nas quais a ação social não-racional prevalece e a ciência pode expressar-se, apenas, em termos de probabilidades” (p. 1230). Em outras palavras, a ciência é limitada, quer na extensão, quer no aprofundamento das questões de seu objeto. “O século ensinou que a teoria sociológica não deve pretender ser abrangente no sentido de não deixar lugar para o desconhecido, para o indefinido. Isso não é desejável nem necessário. A ciência apenas é possível porque se pode afirmar algo sem que se saiba tudo. A ciência é inexaurível” (p. 1245).

Ninguém jamais saberá tudo, nenhuma ciência humana exaurirá o cognoscível. Por isso, a correta organização das sociedades há de ser sempre criação humana, em condições históricas concretas, observadas algumas verdades incontestes que a história, inclusive a recente, nos ensinou: que é falaciosa a busca exclusiva da igualdade social em detrimento da liberdade. A prova dessa falácia, já a deu o rotundo fracasso da marcante experiência histórica que mudou a face do mundo contemporâneo, ou seja, a implantação do comunismo na Rússia e a criação da União Soviética (p. 1232).

Em suma, a experiência soviética permitiu confirmar hipóteses derivadas de Durkheim e Weber sobre a natureza do vínculo social e da dominação política: que o vigor das sociedades se origina da relação equilibrada entre igualdade, disciplina e regulação de um lado, e liberdade, inovação e criação de outro. “O excesso de disciplina leva à rotinização e ao marasmo; a liberdade sem controle opõe-se à formação do consenso e dá origem à anomia social” (p. 1232). Em verdade, a eterna questão política é encontrar o equilíbrio entre liberdade e disciplina: o grau ótimo de liberdade que não só não prejudique, mas ainda assegure a estabilidade e a segurança desejadas no convívio social.

Henryk Siewierski (“Correntes e perspectivas da teoria da literatura no século XX”, p.1255-1281), na questão da intertextualidade, termo que Julia Kristeva propôs em substituição à intersubjetividade, rejeita a crítica desconstrucionista, ou pós-estruturalista, dos que negam a autonomia do texto. Esses autores questionam o caráter objetivo da estrutura de uma obra literária (p. 1272), dizendo que qualquer texto é inconcebível isolado de outros textos, por ser privado de autonomia ou significado fixo (independência da intenção do autor e do contexto histórico), de objetividade (estabilidade estrutural e independência da interpretação) e unidade (unicidade e integralidade) (p. 1269). Para os desconstrucionistas, “não há texto em si”, sendo impossível seu “fechamento” (p. 1270).

Para o autor, esse radicalismo leva ao ceticismo extremo segundo o qual “toda leitura é desleitura” (misreading), porque todo texto dependeria de interpretação, e essa seria imprevisível (p. 1270). Aponta, ao final, para a moderação, nos termos do aviso de Gadamer, no posfácio de Wahrheit und Methode: “Seria mau hermeneuta aquele que imaginasse que a ele pertence a última palavra”. Com certeza, a moderação, tão exaltada por Aristóteles e a tradição ocidental, vale como caminho seguro, mormente em matérias distantes da evidência cartesiana das ideias claras e distintas.

Considerações finais

Os destaques feitos até aqui não pretendem mais do que despertar a curiosidade para toda a obra, inclusive para os capítulos não mencionados, por motivo de espaço. Trata-se de uma obra que merece não apenas ser lida, como também estudada, pelo alto valor de seu conteúdo quase enciclopédico. As lacunas mencionadas pelo organizador com certeza serão preenchidas em alguma reedição. Talvez até, na questão das relações internacionais, ou na da filosofia, uma referência à importante contribuição recente de John Rawls, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor e outros. Como o trabalho está, porém, já comprova à saciedade, relativamente à oportunidade de sua publicação, o que a coautora Vilma Figueiredo afirma da ciência, em si inexaurível, em relação à qual “se pode afirmar algo sem que se saiba tudo” (p. 1245). O dito já é mais do que suficiente para atrair não só o leitor comum, a exemplo deste da nota bibliográfica, mas também o estudioso de cada área, inclusive o especialista.

José Nedel – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: josenedel@hotmail.com

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[DR]

 

Teoria da História (v.2) Reconstrução do passado: os princípios da pesquisa histórica | Jörn Rüsen

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Teoria da história II: os princípios da pesquisa histórica. Tradução de Asta-Rose Alcaide. Brasília: UnB, 2007, 188 p. Resenha de: ARRAIS, Cristiano de Alencar. Métodos e perspectivas na teoria da história de Jörn Rüsen. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p.218-222, setembro 2010.

Fruto de um projeto de pesquisa que demandou aproximadamente uma década de reflexões sobre os fundamentos, limites e possibilidades do conhecimento histórico, Reconstrução do passado é parte constituinte da trilogia de Jorn Rüsen sobre teoria da história que teve sua publicação original iniciada em 1983 com Razão histórica e finalizada em 1989, com a publicação de História viva. O conjunto desses três livros constitui-se numa das mais importantes contribuições desse historiador e filósofo da história que, desde a década de 1960, com a publicação de sua tese de doutoramento sobre J. G. Droysen, vem militando no campo da teoria da história e da história da historiografia.

Como observou Rocha (2008), a relação sistêmica entre os volumes faz com que a importância de cada um deles deva ser pensada, num primeiro momento, de maneira mais ampla. Essa relação está explícita na tentativa do autor de cobrir os principais elementos constituidores da história como ciência, tomando como referência a estrutura experimental desenvolvida por Droysen (2009) – uma autojustificativa sobre o significado da teoria da história e sua função para a constituição do saber histórico, uma reflexão sobre os fundamentos do método histórico, desenvolvidos a partir dos conceitos de metódica e sistemática, e um exame da função tópica do saber histórico.

Evidentemente que essa referência sintética não dá conta do vigoroso empreendimento de apropriação desenvolvido pela trilogia. A utilização do termo apropriação não é injustificada, na medida em que, para além dessa dívida intelectual com a obra de Droysen, pode-se perceber também a utilização de um dispositivo heurístico que comanda as reflexões produzidas nos três volumes.

Se como nos próprios termos de J. Rüsen, a teoria da história é uma metateoria (um pensar sobre o pensamento histórico), nada mais coerente que esse tipo de reflexão nortear também o seu próprio projeto filosófico. Nesse sentido, o primeiro volume é dedicado a questões relativas aos interesses (as carências de orientação na mudança temporal), o segundo volume, aos métodos (as regras da pesquisa empírica) e às perspectivas de interpretação (modos de explicação, perspectivas e categorias de análise) e o terceiro e último volume às formas (de representação do passado, associado à historiografia) e às funções (a didática como instrumento capaz de direcionar o agir humano).

Essa retomada das reflexões produzidas ainda no século XIX também pode ser em parte percebida, por exemplo, em Memória, história e esquecimento, de Paul Ricoeur, na medida em que este autor estrutura seu projeto filosófico segundo uma tríade sustentada por uma proposta fenomenológica para a relação entre história e memória (a história como herdeira erudita da memória), epistemológica (a metódica, sistemática e tópica, identificadas, respectivamente, com a fase documental, explicativa e de representância) e hermenêutica (uma crítica à pretensão da história como saber absoluto, uma ontologia da condição histórica e uma fusão de horizontes, no sentido gadameriano) (RICOEUR 2008). Mas no caso da trilogia de Rüsen, existe uma dimensão pragmática que procura associar o produto da pesquisa em sua forma expositiva – a historiografia – às necessidades de socialização humana, visto que a mesma se torna instrumento formador da identidade histórica.

Dentro desse grande projeto de análise é que se situa, portanto, Reconstrução do passado. Em que pese a mudança de tradutor, que acarretou uma sensível modificação na forma do texto e afetou a inteligibilidade de algumas passagens – demandando ao leitor uma atenção redobrada às suas torções e à linguagem adotada neste volume – considero importante destacar três temas que demonstram a vitalidade dessa obra específica.

Primeiro, a inversão da relação entre metódica e sistemática, visto que nos tradicionais manuais dedicados à teoria e metodologia da história, a parte dedicada à “teoria” tem apenas valor provisório e acessório. Na proposta do autor, a regulação metódica depende das determinações prévias sobre o que deve ser elaborado como “história”, ou seja, existe uma dependência explícita entre os métodos empregados na pesquisa e os pontos de vista que o pesquisador aplica à matéria. Assim, “O conhecimento histórico não é construído apenas com informações das fontes, mas as informações das fontes só são incorporadas nas conexões que dão o sentido à história com a ajuda do modelo de interpretação, que por sua vez não é encontrado nas fontes” (RÜSEN 2007, p. 25).

Daí porque, partindo da crítica ao uso análogo que certas filosofias da história fazem de suas teorias, com as ciências da natureza – uma aproximação que parte, por um lado, de uma suposição equivocada de que só é racional uma explicação que recorra a leis, e que trata um determinado tipo de racionalidade como o único existente, como percebeu Perelman (2004), e por outro, de uma preocupação de tornar a história tecnicamente útil, sem levar em consideração que essa pragmática no interior das ciências humanas não deve ser julgada a partir de critérios técnicos, mas existenciais – o autor analisa duas formas de explicação na história: a nomológica e a intencional, apontando suas limitações. O intuito, neste caso, seria determinar uma forma mediana do procedimento explicativo na ciência da história. A superação desses dois modelos seria encontrada na explicação narrativa associada às considerações desenvolvidas por Danto (1965). Entretanto, há que se ressaltar que elas pouco avançam sobre as teses de Ricoeur (1994) ou White (1995), denotando, portanto, uma necessidade de atualização dessa discussão, tão importante à época da publicação de Reconstrução do passado.

Um segundo importante elemento a ser destacado na obra está associado ao tratamento dado às filosofias da história, no âmbito de uma teoria da história, ou seja, a solução encontrada pelo autor para o problema da possibilidade de uma teoria da história que incorpore a noção de totalidade para a ciência da história. Neste caso, a primeira tarefa empreendida é a de destruir o edifício teleológico das filosofias da história de tipo especulativo, seja com um argumento formal (a história “não pode deixar de ser concebida como universal sem deixar de ser história, isto é, estruturada narrativamente” [RÜSEN 2007, p. 58]), seja sob o ponto de vista material (a crítica de uma concepção de humanidade derivada de uma dimensão biológica, sem levar em consideração suas implicações para o mundo histórico). Tais questões, segundo o juízo do autor, implicam a inviabilidade de um tipo de teoria da história que possa ser considerada sob o ponto de vista absoluto, total e fora do próprio processo que narra.

Isso não implica, entretanto, um alinhamento a um ponto de vista que imponha uma concepção de experiência histórica marcada pela diversidade e pela diferença. Como opção a essas duas alternativas, Rüsen propõe uma antropologia histórica teórica que, formalmente, apresente a mudança como cognoscível por meio de seus conceitos elementares. Nesse sistema de categorias históricas, o tempo seria caracterizado como história, de maneira a ser apreendido pela pesquisa. É importante notar que se trata aqui de uma distensão da concepção kantiana de tempo como categoria a priori, na medida em que o tempo da natureza torna-se humano. Além disso, materialmente, uma antropologia histórica teórica explicaria os fatores que são determinantes nesse processo, dimensionando um “sistema de suposições quanto às razões da mudança temporal do homem e do mundo” (RÜSEN 2007, p. 67) e construindo um quadro de referências das interpretações históricas, além de funcionar como instrumento de reconhecimento de uma identidade coletiva.

Dessa forma a noção de totalidade poderia ser recuperada por meio do conceito de humanidade (agora uma concepção normativa que procura responder às perguntas sobre como o homem realiza sua historicidade), cujo sentido seria gerado pela própria mobilidade temporal do agir e sofrer humanos. A proposta do autor, entretanto, carece de um desenvolvimento maior, na medida em que não analisa a forma como essa proposta se realizaria historiograficamente, assim como suas consequências para interpretações da experiência temporal baseadas em sistemas de categorias que tematizam a própria mudança.

Por último, o autor efetua um reposicionamento do conceito de heurística no âmbito da metodologia histórica nesse momento de redefinição das fronteiras da ciência da história. A julgar pela forma como a heurística é geralmente tratada na maioria das obras dedicadas a este tema, este parece ser um aspecto menor, meramente técnico, de catalogação e tipologização das fontes. Na direção contrária dessa perspectiva, Rüsen entende a heurística como o momento em que o saber teórico toma a forma de questionamentos claros e abertos à experiência, ao mesmo tempo em que produz uma estimativa metodologicamente regulada do que as fontes podem dizer (de modo a superar a limitação dos campos de experiência já apreendidos e direcioná-las ao historicamente estranho). É, além disso, o momento de exame e classificação das informações das fontes relevantes para responder às questões levantadas (visto que a relevância de uma fonte depende das perguntas históricas elaboradas) e da ampliação do conteúdo informativo das mesmas. Nesse sentido, o autor proporciona à heurística um status até então esquecido, afinal “uma hipótese é heuristicamente fecunda se corresponder às carências de orientação das quais, em última análise, se originou” (RÜSEN 2007, p. 119).

Há que se ressaltar também o esforço do autor em abordar as operações substanciais da pesquisa, ou seja, a forma como o conteúdo experiencial do passado, projetado nas fontes, pode ser apreendido. Entre a abordagem analítica e a abordagem hermenêutica existiria a abordagem dialética, com uma função análoga ao modelo narrativo de explicação histórica, desenvolvido no primeiro capítulo da obra. Muito embora a pretensão dialética esteja explícita, a tentativa de aproximação dos dois modelos denota uma clara submissão da analítica à hermenêutica. Nesse sentido, não se realiza exatamente um movimento dialético, mas uma incorporação de contextos de causalidade e de processos estruturais e sistêmicas do agir humano aos processos reconstrutivos de sentido desse agir. Assim, embora mascarado, o privilégio dado por Rüsen continua associado pela tradição hermenêutica da qual é um legítimo representante.

Finalmente, a ênfase dada pelo autor aos problemas lógicos e conceituais que envolvem os princípios da pesquisa histórica revela uma marca própria e inovadora que permeia todos os três livros que compõem suas reflexões para o campo da teoria da história. Ao invés de um conhecimento enciclopédico e de catalogação, típico dos mais populares manuais, Reconstrução do passado é um convite ao aprofundamento sobre os fundamentos da ciência da história e dos fatores que articulam o pensamento histórico com vistas à sua racionalização. Nesse sentido e na medida em que supera uma concepção eunuca do exercício teórico na pesquisa histórica, Rüsen denota a face mediadora da teoria da história, expondo sua capacidade de articular a abstração conceitual com as determinações empíricas do processo de constituição do saber históricocientífico.

Referências

DANTO, A. Analytical philosophy of history. London: Cambridge University Press, 1965.

DROYSEN, J. G. Manual de teoria da história. São Paulo: Vozes, 2009.

PERELMAN, C. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2008.

_______. Tempo e narrativa – V. 1. Campinas: Papirus, 1994.

ROCHA, S. M. Resenha do livro História viva. In História da historiografia, n° 1. 2008. Disponível em http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/ article/view/29/26. Acesso em 25 de julho de 2010.

WHITE, H. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.

Cristiano Alencar Arrais Professor Adjunto Universidade Federal de Goiás (UFG) alencar_arrais@yahoo.com.br Rua 1044, 129/903, Ed. Imperial – Setor Pedro Ludovico Goiânia – GO 74825-110 Brasil Palavras-chave Teoria da história; Sistemática; Metodologia.

Reconstrução do Passado – Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica | Jörn Rüsen

É inconteste que o grosso calibre do arsenal historiográfico estrangeiro importado pelo mercado editorial brasileiro é constituído por pesquisas oriundas da historiografia francesa, nossa maior referência em se tratando de estudos históricos. Entretanto, as reflexões historiográficas originárias na atmosfera intelectual alemã também encontram grande receptividade dentre os historiadores brasileiros, prova disso é a retumbante proliferação dos trabalhos de Jörn Rüsen no Brasil. Nos últimos anos, a editora da Universidade de Brasília, através do professor Estevão de Rezende Martins, propiciou à nossa comunidade acadêmica a tradução, para a língua portuguesa, da vigorosa trilogia de Jörn Rüsen, denominada de Grundzüge einer Historik (Esboço de uma teoria da história), composta pelas obras: Historische Vernunft (Razão Histórica)1 , publicada no Brasil em 2001; além de Rekonstruktion der Vergangenheit (Reconstrução do Passado)2 e Lebendige Geschichte (História Viva)3 , estas derradeiras oferecidas ao público brasileiro em 2007.

Tencionando atualizar a tradição intelectual da Historik e desenvolvendo profundos estudos sobre os trabalhos teóricos de Droysen, Rüsen vem dedicando-se à reflexão sobre os princípios que fundamentam o pensamento histórico, dando ênfase aos processos históricos de formação da moderna ciência da história e à apropriação do conhecimento histórico no contexto da vida social, naquilo que cunhou como “função didática da história”. Por intermédio do construto teórico denominado de “matriz disciplinar”, Rüsen apresenta um sistema de teoria da história, cuja amplitude reside na análise dos complexos problemas que envolvem a prática profissional dos historiadores: desde o polêmico vínculo entre conhecimento histórico e vida humana prática, até a complexa relação entre pesquisa e escrita da história. Leia Mais

Teoria da História (v.3) História Viva: formas e funções do conhecimento histórico | Jörn Rüsen

RÜSEN Jörn 2012 TOPO What is Metahistory vimeo com Razão Histórica
RUSEN História viva Formas e funções Razão HistóricaRetrato de Jörn Rüsen/What is Metahistory/vimeo.com/2020.

RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história - Formas e funções do conhecimento histórico. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora UNB, 2007, 159p. Resenha de: ROCHA, Sabrina Magalhães.[1] História da Historiografia. Ouro Preto, n.1, ago. 2008.

História Viva: teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico é a mais recente publicação brasileira da obra do historiador alemão Jörn Rüsen.

Lançada pela editora da Universidade de Brasília e traduzida pelo professor Estevão de Rezende Martins em 2007, essa obra corresponde ao último volume da trilogia intitulada Teoria da História, cujos dois primeiros volumes se encontram publicados pela mesma editora. Trata-se, certamente, de uma importante publicação que viabiliza ao leitor brasileiro o contato com a reflexão desse importante historiador, ainda pouco conhecido nos círculos acadêmicos nacionais.

Sua significação se revela também na medida em que a obra preenche um espaço importante no que se refere à discussão teórica sobre o conhecimento histórico, contribuindo para minorar essa grande lacuna em nosso mercado editorial.

Configurando-se, portanto, como último volume de uma trilogia, essa obra conclui a reflexão que Jörn Rüsen vinha desenvolvendo nos dois números anteriores: Razão Histórica e Reconstrução do Passado. Compreendida nesse sentido, a obra pode ser considerada como parte de um sistema. Contudo, e embora guarde uma conexão íntima com os volumes anteriores, História Viva pode ser apreendida isoladamente, tendo em vista que se dedica a refletir com profundidade sobre dois pontos específicos desse sistema mais amplo. Essa questão que se está tratando como um “sistema” da trilogia de Rüsen refere-se à reflexão, pela perspectiva da teoria da história, sobre a matriz disciplinar da ciência da história. Nesse sentido, enquanto nos volumes anteriores se trata de idéias e métodos, nesse terceiro a reflexão é dedicada às formas e funções do conhecimento histórico.

A perspectiva central da obra de Rüsen é refletir sobre o conhecimento histórico a partir da teoria da história, ou, em seus próprios termos, entender a teoria da história como autocompreensão da ciência da história. Trata-se de uma produção situada em um contexto de retomada das discussões teóricas acerca do conhecimento histórico. Rüsen faz parte de um conjunto de pensadores contemporâneos, como Reinhart Koselleck, Hayden White, Michel Foucault, François Hartog, Frank Ankersmit, dentre muitos outros, que, especialmente a partir da segunda metade do século XX, defrontou-se com os desafios impostos pelas novas configurações nas esferas econômica e política, e, por sua vez, com a crise de paradigmas nas ciências humanas e sociais. Tratava-se de conjunturas originais que transmitiram suas incertezas para o âmbito do conhecimento histórico, colocando-lhe questões relativas à sua fundamentação, seu estatuto de cientificidade, sua relação com as artes. Configurou-se, portanto, um quadro que demandava reflexões teóricas, mas não mais nos moldes dos grandes modelos explicativos elaborados no século XIX. A teoria será revestida por outras formas, as respostas oferecidas não serão sistemáticas, unívocas ou finalistas, mas múltiplas, e, em grande medida, fragmentárias.

Partindo desse contexto, pode-se compreender o desejo de Rüsen de entender a teoria da história como autocompreensão da ciência histórica, como sua resposta, sua formulação particular. Formulação essa que se desenvolve a partir da argumentação de que a história continua sendo um conhecimento, uma disciplina científica, ainda que uma ciência formatada por uma racionalidade particular. Esse será, portanto, o pressuposto básico que perpassa os três volumes de sua obra. Em História Viva, o autor aborda as formas e funções do conhecimento histórico, ou, a historiografia e a formação histórica, procurando pensá-las a partir da própria cientificidade da história. A tese desenvolvida aqui é que mesmo nesses dois âmbitos, constantemente tratados como acessórios, como externos, se revela a racionalidade do conhecimento histórico, a história enquanto uma ciência. Sobretudo, esses dois aspectos, historiografia e formação histórica, são partes constituintes dessa racionalidade, momentos da investigação nos quais o saber histórico efetivamente se completa; como o próprio autor insinua no título da obra, se torna vivo.

No primeiro capítulo, “Tópica: formas da historiografia”, Rüsen reflete sobre a formatação historiográfica do conhecimento histórico, sobre a escrita da história propriamente dita, sua constituição em uma narrativa. Partindo da elaboração de uma diferenciação entre pesquisa histórica e historiografia, demonstra-se como essas duas operações, apesar de distintas, guardam conexões entre si e se constituem em operações científicas. Uma das principais singularidades dessa análise, portanto, é a atribuição de estatuto de cientificidade também ao procedimento de escrita da história. Na construção de Rüsen esse argumento justifica-se na medida em que reconhece a interpretação como uma operação cognitiva da pesquisa. Nesse sentido, é a pesquisa que revela um sentido narrativo à historiografia, e não essa que lhe impõe tal característica.

Há aqui o pressuposto de uma organização do real preexistente, um sentido que não deve ser imputado, mas apreendido pelo pesquisador. Rüsen afirma que a historiografia não deve criar, mas “rememorar sentido”.

Compreendendo pesquisa e historiografia como racionalidades, Rüsen associa a primeira a uma função cognitiva e a segunda a uma função comunicativa, desenvolvendo um raciocínio kantiano. A historiografia, através dos procedimentos da estética e da retórica, transmite a “razão pura”, a análise teórica obtida pela pesquisa, a uma “razão prática”, que se relaciona diretamente com as formas de vida. Pesquisa e historiografia seriam, portanto, processos da constituição narrativa de sentido. Propõe-se então que essa constituição pode ser configurada em uma tipologia, apresentando assim quatro topoi: o primeiro, o tradicional, volta-se para as origens, tendo a interpretação da experiência do tempo determinada pela categoria continuidade; o segundo, o exemplar, é um topos cujas determinações de sentido são mais abstratas que no topos tradicional, refere-se às formatações historiográficas no modelo da historia magistra vitae, em que as expectativas são orientadas pelas experiências; já o terceiro, o topos crítico, seria aquele que esvazia os modelos de interpretação histórica dominantes, problematiza-os, desestabiliza-os, representa a ruptura da continuidade; por fim, o topos genético refere-se à interpretação da experiência do tempo em que o foco central é a própria mudança temporal, sendo marcado por categorias como “processo”, “progresso”, “evolução”, “revolução”.

Esses tipos não seriam formas puras já que estariam sempre articulados uns com os outros em contextos complexos, em grande medida contextos de tensão. Para o autor, essa seria uma tensão responsável por conferir à historiografia uma historicidade interna própria. Tal afirmação parece-nos ser um dos pontos menos seguros da obra ou, pelo menos, pouco esclarecido. Ao afirmar que a tensão entre os tipos dota a historiografia de historicidade, Rüsen está concebendo-os em uma perspectiva de epocalidade, de sucessão temporal.

Poder-se-ia vislumbrar em sua elaboração até mesmo uma perspectiva evolutiva, em que o topos genético supera, em um sentido hegeliano, os demais. Ao que nos parece, tal abordagem da história da historiografia demanda alguns cuidados, especialmente pelo fato de que ao se trabalhar com uma perspectiva evolutiva corre-se o risco de não historicizar devidamente o objeto. Contudo, como se disse, essa é uma questão que parece passar pela obra de forma um pouco obscura, especialmente porque a própria construção em tipos ideais parece apontar não para a sucessão, mas para a convivência entre os quatro topos.

Uma outra questão que se pode colocar a essa tipologia refere-se a sua operacionalidade. Certamente, essa não é a preocupação central de Rüsen; mas se trata de uma questão relevante, especialmente para aqueles que se dedicam à história do conhecimento histórico. Rüsen constrói uma análise sofisticada teoricamente e em muitos pontos esclarecedora, contudo, podermos nos interrogar sobre sua utilização como ferramenta teórica, como categoria que auxilia e viabiliza a compreensão histórica da historiografia. Ao que nos parece, a tipologia construída pelo autor coloca alguns problemas ao historiador, especialmente por minimizar as relações das formatações historiográficas com seus contextos de produção. Uma possível aplicação direta dessa formulação incorreria, portanto, no risco de apagar o caráter propriamente histórico da historiografia. No entanto, esse é um risco apresentado por quaisquer categorizações, no qual por vezes é produtivo incorrer a fim de se buscar aspectos poucos iluminados por uma análise mais particularista. Nesse sentido, pode-se compreender que a construção de Rüsen poderia sim se prestar como um importante instrumento teórico de análise para a história da historiografia, desde que conjugada com esse olhar mais “individualizante”.

Já o segundo e último capítulo, “Didática: funções do saber histórico”, tem como tema central a práxis como fator determinante da ciência histórica. Nesse sentido, Rüsen se propõe a elaborar os pontos da didática da história que são relevantes para a teoria da história, compreendendo tanto a historiografia quanto o aprendizado como operações constitutivas da ciência histórica. Rüsen defende que o pensamento histórico só se “forma” plenamente quando se relaciona diretamente ao todo, ao agir e ao eu de seus sujeitos. A formação histórica representa, então, o conjunto de competências de interpretação do mundo e de si próprio, articulando orientação do agir com autoconhecimento. Em outros termos, formação histórica seria a capacidade de constituir sentido narrativamente, uma capacidade que não é inata, que requer aprendizado.

Parece se processar, assim, um salto quanto ao capítulo anterior no que se refere à constituição narrativa de sentido. Como se analisou, o autor coloca à historiografia o papel de “rememorar” um sentido pré-existente no real e que se revela através da pesquisa histórica. Tratando da formação histórica, a operação parece ser invertida. Rüsen defende que é importante conhecer essa construção que denomina de “história objetiva”, mas que os sujeitos não se constituiriam se aprendessem somente ela. É necessário possuir a própria capacidade de constituir sentido, apropriar subjetivamente esse aprendizado histórico objetivo, e, logo, imputar-lhe novos sentidos. A formação histórica cumpre assim uma função de orientação cultural, na medida em que viabiliza a consciência da própria relatividade histórica e da dinâmica temporal interna da relatividade histórica. Nas palavras de Rüsen, viabilizando o autoconhecimento e a orientação para o agir, ela abre uma chance para a liberdade.

Expressos esses pontos, faz-se necessário retornar à questão inicial de Rüsen: “o saber histórico pode ser utilizado na prática sem perder sua cientificidade?” Sua resposta passa pela própria fundamentação da formação histórica. Rüsen afirma que quando se completa, quando está “formado”, o saber histórico dos sujeitos estabelece um equilíbrio argumentativo entre o relacionamento com a experiência e o relacionamento com o sujeito, correspondente, portanto, ao nível argumentativo da história como ciência. É interessante observar que mesmo construindo um “sistema” que busca afirmar a história como uma disciplina científica, Rüsen argumenta contrariamente ao excesso de especialização e de metodologização da ciência histórica, afirmando que esse caminho a desvincularia de sua função e de sua própria fundamentação, qual seja, a relação, o contato com a práxis, com a experiência.

O autor conclui sua obra remetendo-se à relação entre história e utopia e argumentando que se pode visualizar em ambas um superávit de expectativas, a vontade humana de querer ser outro. Contudo, entre elas há a diferença substancial de que a história não ficcionaliza o real como a utopia, mas historicizao, logo, o desejo de mudança, de transcendência, aparece como possível, esperável, pois é fundado na experiência. Com isso, podemos também concluir retomando a tese que perpassa toda a obra e também se revela nessa construção história-utopia. Todo o esforço de Rüsen pode ser compreendido a partir de seu anseio em demonstrar que a história é uma disciplina científica, com uma racionalidade particular, que tem como princípio e como fim a relação com a experiência, com a práxis. Utilizando a teoria da história como autocompreensão da ciência histórica, essa se revela, então, como uma disciplina científica, mas em íntima relação com a experiência histórica, que emerge de seus anseios e tem como função responder a eles.

[1] Mestranda em História Universidade Federal de Ouro Preto Rua Prefeito João Sampaio, 80 - São Gonçalo Mariana - MG 35420-000.

The Paraguayan War (1864-1870) | Leslie Bethell || História do Cone Sul | Amado Luiz Cervo e Mário Raport || A guerra contra o Paraguai | Júlio J. Chiavenato || A espada de Dâmocles: O exército/ a guerra do Paraguai e a crise do Império | Wilma Peres Costa || A Guerra do Paraguai | Francisco Doratioto || Guerra do Paraguai: como construímos o conflito | Alfredo da Mota Menezes

Até onde as relações entre os Estados processam-se em virtude do confronto dos interesses independentes de cada um deles? Em que medida a História de um povo ou de um conflito pode ser pensada como um contexto autônomo frente ao contato com outras nações? As respostas para estas perguntas são múltiplas, mas, divergentes ou não, há algo que as torna semelhantes: a cada forma de contar a História das relações internacionais corresponde um projeto – pessoal ou mais comumente coletivo –, de manter ou de transformar a situação atual da convivência entre os povos. Em outras palavras, o conhecimento produzido sobre o mundo não costuma estar desvinculado de um conjunto específico de interesses.

O tema da Guerra do Paraguai é perfeito para explicitar essas questões. Realmente, diversas pesquisas têm sido realizadas recentemente sobre o assunto e isso não é por acaso, já que aquele conflito representa um divisor de águas na história do Cone Sul. Numa época em que a globalização e o Mercosul dão o tom dos debates políticos e acadêmicos envolvendo o relacionamento dos países sul-americanos, discutir as origens da guerra e o real peso de influências externas ao sub-continente nas mesmas torna-se um exercício fundamental. Leia Mais

A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII | Roger Chartier

Resenhista

Rosilene Alves de Melo


Referências desta Resenha

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: Editora da UnB, 1994. Resenha de: MELO, Rosilene Alves de. História da leitura, leituras da História: o livro e os leitores na Idade Moderna. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 2, p. 233-238, jul./dez. 1996.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidade no Brasil Colônia / Mary Del Priori

A obra Ao Sul do Corpo. Condição feminina, matemidades e mentalidades no Brasil Colônia, de autoria da historiadora Mary DEL PRIORI, publicada por J o s é Olympio e EdUnB, em 1993, cobre uma enorme lacuna existente para o estudo da condição feminina na Colônia, povoada sobretudo por “mestiças” e marcada pelo entrecruzamento de etnias diversas, caracterizadas pela alteridade: brancas, negras e índias. Além de demonstrar grande trânsito com a bibliografia internacional, a autora realizou excelente pesquisa de documentos, muitos deles certamente inéditos: fontes manuscritas e impressas (Arquivo Nacional e do Estado de São Paulo e da Cúria Metropolitana de S ã o Paulo; Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e de Lisboa; Arquivo Nacional da Torre do Tombo).

DEL PRIORI referencia sua reflexão no processo civilizatório europeu de normatização da mulher que atinge toda a cristandade ocidental, sobretudo a partir do Concilio de Trento (1545-1563), e que é elemento central do movimento de reorganização das funções do corpo, dos gestos e dos hábitos, traduzidos em condutas individuais, as quais deveriam refletir a pressão organizadora moderna dos jovens Estados burocráticos sobre toda a sociedade. Ou seja, tratava-se da privatização do eu e, simultaneamente, da apropriação privada dos meios de produção. Esta nascente ética sexual assentada no adestramento, sobretudo da mulher, fez-se, nos trópicos, a serviço do processo de colonização.

Tratava-se de organizar as gentes e o povoamento da Colônia marcada nos três primeiros séculos pelos fluxos e refluxos humanos, isto é, por uma convulsiva mobilidade, especialmente dos homens. Em lugar de condutas individuais (noção de privacidade do eu), identifica-se, no p e r í o d o , uma enorme disponibilidade sexual contaminada pela exploração sexual do escravismo, por um amolengamento moral e, como diria Caio Prado Jr. em Formação do Brasil Contemporâneo, por “falta de nexo moral” e “irregularidade de costumes”. Predomínio de ligações consensuais, chamadas de “tratos ilícitos”, de filhos gerados em amasiamento de brancos com í n d i a s e em concubinato (trazido pelos portugueses e amplamente divulgado nas classes subalternas) e de famílias matrifocais: a mãe integradora de seu fogo doméstico, ou seja, mantenedora, gestora e guardiã dos seus e de outros filhos ilegítimos.

A reflexão sobre o processo de normatização e adestramento da mulher na Colônia é feita, sobretudo, a partir da análise dos discursos e práticas da Igreja e dos médicos. A ação moralizante da Igreja após o século XVI, que teve como alvo o combate às sexualidades alternativas, o concubinato, as religiosidades desviantes e a valorização do casamento e da austeridade familiar, vai se erigir na Colônia por razões do Estado: necessidade de povoamento das capitanias, de segurança e de controle social. As mães, em sua função social e psicoafetiva, transformam-se no período em estudo, num projeto do Estado e principalmente a Igreja encarregarse- á de disciplinar as mulheres da Colônia, fazendo-as partícipes da cristianização das índias. Os filhos nascidos fora do casamento comprometiam a ordem do Estado Metropolitano, pois implicavam no incremento de “bastardos” e “mestiços”, colocados pelo p r ó p r i o sistema nas fímbrias da marginalidade social As mães, chefes da maioria das casas e das famílias – mantenedoras de seus fogos domésticos -, foram eleitas como responsáveis pela interiorização dos valores tridentinos. O casamento insolúvel, a estabilidade conjugai, a valorização da família legítima – espécie de fermento da cristandade -, apresentadas como recompensa e reconforto frente à generalizada situação de abandono por parte dos homens-maridos-companheiros- pais.

O modelo europeu é trasladado à Colônia, pois aqui, no “trópico dos pecados”, morava por excelência, o Diabo. Daí a maior necessidade de ordenação e de normatização. O alvo preferido foram as mães solteiras pois estas não conheciam as benesses do casamento.

A maternidade passa a ser a remissão das mulheres e o preço da segurança do casamento o “portar-se como casada”. A identidade da mulher que se constituía de uma gama de múltiplas funções (mãe de filhos ilegítimos, companheira de um bígamo, manceba de um padre, etc.), deveria passar a introjetarse apenas nas relações conjugais.

A Igreja contou, para a implantação de tal projeto, com a fabricação generalizada da culpa (Pastoral de culpabilização dos fiéis), do medo (Pedagogia do medo), da vitimidade e da intensificação da polaridade mãe-santinha X puta. Esta última tornou-se o bode e x p i a t ó r i o do projeto de normatização, enquadrável enquanto tal toda a mulher que não se “portasse como casada” e como “mãe-santinha”: ambigüidade dos papéis de lascívia e pobreza que confundiam a vida sexual irregular com prostitutas, identificadas ainda no século XIX pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com “cancro”, “chaga”, “úlcera” e “gangrena”.

As não casadas e o aborto associados à luxúria, ao de mônio, ao inferno. O parto sem dor como parto sem pecado: maior devoção, melhor parto. O filho imperfeito, resultado da prática do sexo em dias proibidos ou com animais, ou então resultado da “imaginação feminina”. Os filhos gerados fora do casamento, comparados à “imperfeição da cristandade” e “aleijados da natureza”.

Destacam-se a eloqüência dos sermões difundindo a idéia de mulher como naturalmente sereia, diaba e perigosa e impondo a devoção a Nossa Senhora com vistas a comportamentos ascéticos, castos, pudibundos e severos, a l ém do culto à virgindade e o confessionário como instrumento potente de controle de intenções.

Por sua vez, o discurso normativo médico sobre o funcionamento do corpo feminino apoiava o discurso da Igreja na medida em que indicava como função natural da mulher, a procriação. Fora desta, restava-lhe o lugar da exclusão: a melancolia ou a luxúria. Ao estatuto biológico da mulher, o discurso médico procurava associar outro, moral e metafísico: esta tem um temperamento comumente melancólico, é um ser débil, frágil, de natureza imbecil e enfermiça.

O critério do útero como regulador da saúde física e mental da mulher irradiava-se da Europa do Antigo Regime, difundindo a mentalidade de que a mulher era física e mentalmente inferior ao homem. A concepção e a gravidez como rem é d i o para todos os “achaques femininos”. A medicina comprazia-se, ainda no século XVIII, em enxergar nos males físicos, sinais de transgressão sexual. Assim, histeria guardou o nome grego de ú t e r o (hyster) e um corpo h i s t é r i c o era denotativo de desordem moral.

A menstruação era associada à magia, transformações e veneno, atualizando as proposições de Santa Hildegarda de que aquela era um castigo decorrente do pecado original. Este sangue envenenado tinha o poder de estragar o leite, vinho, colheitas e metais: pelo excesso de secreções e odores a mulher devia se isolar em seu cotidiano.

Se menstruada a mulher era ameaçadora e grávida vulnerável, conclui-se pela urgência de novas matemidades. A autora localiza, inclusive, anotações médicas indicando o mal-estar dos homens diante das feiticeiras, capazes de adoecê-los, mas também de curá-los com seu sangue poderoso.

Só a partir de 1750 os médicos vão substituir o temor pelo cuidado. Apenas no final do século XVIII identificam-se modestos avanços da medicina no sentido de identificar outras razões para enfermidades femininas que não o clima ou a vida pecaminosa – os terríveis males da “madre”.

A importância da lactação passa a ser percebida tanto por doutores, quanto pela Igreja como um dever moral, desde o século XVI. A partir daí instaura-se o combate às amas-deleite: cada vez mais o aleitamento torna-se um dever e parte fundamental do processo de sacralização do papel da mãe.

Assim, no século XVIII localiza-se uma nova representação da Nossa Senhora do Bom Parto: uma mulher feliz com filhos nos braços e não mais grávida.

Por sua vez, se a puta era o bode expiatório do projeto de normatização, a partir do século XIX será o bode expiatório também do processo de higienização da sociedade. Tratava-se de higienizar a noção de sexualidade: exaltação da sexualidade conjugai, na medida em que o prazer em excesso e a ausência de finalidade reprodutora passam a ser condenados pela medicina como doença física e moral.

Fundamental no processo, localizar o papel do marido: cabeça da mulher, que cuida para que ela cumpra os encargos da profissão cristã. Para evitar as tentações ela devia ser obrigada a obedecê-lo por preceito divino, nem cabelo cortar sem sua autorização. As mulheres deveriam ser fiéis, submissas, recolhidas e sobretudo fecundas. O marido passava a ser o único elo de ligação com o mundo. Assim, aquele torna-se uma espécie de porta-voz das demandas de adestramento propostas pela Igreja, a l ém de ser motivo para um sutil processo de culpabilização, pois em torno dele se mostraria uma estratégia de gratidão escravizante. Os maridos deveriam ser dominadores, voluntariosos, insensíveis e egoístas no exercício da vontade patriarcal.

Assim, pode-se pensar que o processo de adestramento, ao colocar os maridos, os filhos e os pais ocupando determinadas posições em relação às mulheres, disciplina o próprio gênero masculino, construindo, conseqüentemente, uma nova identidade masculina. Por sua vez, ainda que a autora destaque o projeto matrimônio-maternidade enquanto concebido como espaço normatizador, n ã o aponta a sua contra face que é a ligação com a paternidade, matrimônio-paternidade. O silêncio das fontes sobre a paternidade é denunciador da própria incerteza e da dificuldade de naturalização da mesma. Isto se deve, em boa medida, pela sinonimização que é feita da categoria de g ê n e r o ora por sexo, ora por mulher. Neste sentido, o conceito é desvirtualizado, pois não se remete à dimensão relacionai, fundante do mesmo.

Outro aspecto a considerar é a questão da misoginia. Na verdade a autora atribui às mentalidades populares a missão “…de guardiã da misoginia” (pg.334). No entanto, no conjunto mesmo do texto, percebe-se que a misoginia é transversal a todos os segmentos sociais. Todos os saberes que as bruxas tinham sobre o corpo feminino causavam pânico, e foram responsáveis pela instauração da Caça às Bruxas. Obviamente a condenação das mesmas deveu-se à Igreja e à nobreza e n ão às classes populares. Ao contrário, estas recorriam, nas suas necessidades fundamentais, às feiticeiras, simultaneamente chamadas de fadas, quando seus conhecimentos e práticas davam resultados.

Assim, a misoginia n ã o pode ser atribuída fundamentalmente às mentalidades populares, conforme exprime a autora. Ao contrário, apesar de se referir inúmeras vezes ao Diabo, parece n ã o considerar que a T o l i t i z a ç ã o do Diabo” deu-se na Europa, simultaneamente, como mecanismo de resistência dos oprimidos e como mecanismo de dominação por parte da Igreja e das elites, processo de lutas que eclodirá na Caça às Bruxas, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Assim, a proximidade da q u e s t ã o referida à misoginia, bem como do p r ó p r i o processo de normatização da mulher, com a questão das feitiçarias, do Diabo e da Caça às Bruxas é evidente. Porém disto a autora n ã o se ocupou.

Enquanto historiadora, poderia ter realizado uma excelente análise, ainda que para melhor referenciar-se, do próprio movimento desencadeado na Europa no p e r í o d o estudado: o Racionalismo, colocando todos os homens e mulheres como iguais e que seguirá convivendo com a misogina ancestral.

A mulher continuará pecadora, lasciva, demoníaca, etc, embora igual ao homem perante Deus e perante a Lei. O projeto de normatização e adestramento, objeto de estudo da pesquisadora, é o exemplo mais bem acabado desta ambigüidade.

Esta lacuna é de certa forma compreensível, quando a autora não se permite falar pela maioria: n ã o explicita os segmentos sociais a que se remete. Isso faz supor que fale por todos, mas é a partir do lugar das elites que sua fala é construída.

Pode-se exemplificar através da atribuição que Del Priori indi ca (p.37) às mães no que tocava à responsabilidade pelo ensino das primeiras letras aos filhos. N ã o se pode esquecer que a maioria da população, no p e r í o do considerado pelo estudo, era analfabeta.

Neste sentido, observa-se ainda que a autora, embora expresse conhecimento exaustivo da literatura francesa, e uma lógica narrativa enunciativa foucaultiana, não cita este autor (Foucault), em sua bibliografia, e ao mesmo tempo, n ã o consegue realizar, à semelhança do mesmo, o estudo processual da construção e da expansão nos diferentes segmentos sociais do projeto que trata de se tornar hegemônico.

A virtude mais frutífera da obra para a historiografia da mulher é a comprovação de “… que existiam, sim, fontes para a história da mulher no p e r í o do colonial…” (p.15). Essa comprovação implicou num volumoso trabalho de busca e organização de novas fontes, bem como uma originalidade expressiva no tratamento das fontes j á conhecidas.

Também descreve com agudez a rede de solidariedades e de micro poderes e saberes que as mulheres desenvolvem e se envolvem durante o p e r í o do colonial, mas não consegue perceber as tensões geradoras de resistências neste processo.

Desta forma, Del Priori reforça o pensamento tradicional, ainda dominante, do feminino e das mulheres incorporadas historicamente como objetos e não como sujeitos.

É lamentável, portanto, que o olhar que localiza e investiga as mulheres continue a ser o olhar que vê e fala pelas mulheres dando luz às suas passividades, n ã o visibilizando nem buscando (pg.335) suas opções, práticas, gritos e projetos.

Nesta direção, exemplificando, podemos lembrar que a pesquisadora não assume a promiscuidade e as relações não legítimas como projetos possíveis de resistência por parte de uma grande maioria de mulheres. Simultaneamente, não consegue explicitar como estas assumem o matrimonio-maternidade como projeto próprio, sendo que, segundo ainda a própria autora, o destino das mulheres-mães casadas era quase trágico (pg. 63).

A “irregularidade de costumes”, o fluxo contínuo, sobretudo de homens, as mulheres mantenedoras de seus fagos domésticos, mães de filhos de muitos pais, nunca deixou de ser uma constante, principalmente entre os pobres aqui e em outras colônias. Na atualidade, na América Latina, h á 25 milhões de lares chefiados por mulheres.

O fato do projeto normatizador ter se tornado hegemônico para as elites e as classes médias brasileiras com linhagens e/ou patrimônios a salvaguardarem não nos permite pensar que estes milhões de mulheres chefes de família foram “deixadas para trás” e a elas atribuir unilateralmente a solidão, a humilhação, o abandono e a violência (noções que transversalizam todo o texto).

E o olhar católico que parece não permitir o olhar e a análise críticos do dado destacado pela investigadora (pg. 51 e repetido na pg. 175), de que em Minas Gerais no século XIX ainda havia um predomínio de famílias matrifocais – cerca de 45% do total, sendo que 83% destas nunca haviam se casado.

A promiscuidade e o casamento não sacramentado podem ter sido e continuar a ser um projeto para muitas mulheres. Por que não? Por que olhá-las apenas a partir da vitimidade? Neste sentido, o olhar da autora coincide com o olhar do projeto normatizador da Igreja-Estado, apoiados pela j u r i s p r u d ê n c i a e pelo discurso médico. E que é, por excelência, o olhar masculino racional-universalizante. E um dos inú meros avanços possibilitados pela perspectiva de g ê n e r o é a construção de outros olhares e de outros lugares de fala, que rompam com aquele, ainda hegemônico no pensamento ocidental moderno.

Deis Siqueira – Doutora em Sociologia e professora na UnB, Lourdes Bandeira – Doutora em Sociologia e professora na UnB e Silvia Yannoulas – Mestre em Sociologia.


DEL PRIORI, Mary. Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidade* no Brasil Colônia. Brasília, Rio de Janeiro: Editora da UnB, José Olímpio, 1993. Resenha de: SIQUEIRA, Deis; BANDEIRA, Lourdes; YANNOULAS, Silvia. Textos de História, Brasília, v.2, n.3, p.148-157, 1994. Acessar publicação original. [IF]