Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa – MAGALHÃES et. al. (A-RL)

MAGALHÃES, I.; MARTINS, A. R.; RESENDE, V. de M.. Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Ed. da UnB, 2017. 259p. Resenha de: OTTONI, Maria Aparecida. Análise de discurso crítica e Etnografia. Alfa – Revista de Linguística, São José Rio Preto, v.12 n.2 São Paulo May/Aug. 2018.

Há quase vinte anos, Izabel Magalhães vem defendendo uma proposta de pesquisa etnográfico-discursiva, segundo a qual a Análise de Discurso Crítica e a etnografia, em uma relação de complementaridade, são articuladas para a análise das práticas sociais. Contudo, ainda não havia sido publicada no Brasil uma obra centrada nesse tipo de pesquisa e o livro Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa vem oportunamente preencher essa lacuna, o que o torna singular e de suma relevância.

Nesse sentido, a obra tem um enfoque que a distingue de todas as outras relacionadas à Análise de Discurso Crítica (ADC) publicadas no Brasil: a ADC como um método de pesquisa qualitativa e sua relação transdisciplinar com a etnografia. Ela traz uma contribuição ímpar, especialmente a estudantes e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento interessados na análise das práticas sociais de que os textos são parte, o que demanda uma pesquisa de campo.

Considerando que toda prática social é constituída de elementos: atividade produtiva; meios de produção; relações sociais; identidades sociais; valores culturais; consciência; e semiose (FAIRCLOUGH, 2012), para compreender o seu funcionamento e as relações do discurso/semiose com os outros elementos da prática social, é necessária uma abordagem que vá além da análise textual do discurso e que não se paute apenas no aspecto discursivo das práticas. É preciso, como defendem Magalhães, Martins e Resende, realizar pesquisa etnográfica para o estudo do discurso como um dos elementos das práticas, ou seja, adotar uma abordagem etnográfico-discursiva. Isso implica não perder de vista o papel do discurso na compreensão dos momentos da prática nem a relação dialética entre eles.

Tendo em vista esse enfoque, o livro é constituído de nove capítulos, organizados em três partes, cada uma composta de três capítulos: Um método de pesquisa qualitativa para a crítica social (parte 1); Análise de Discurso Crítica e etnografia (parte 2); Um método de análise textual (parte 3), além da introdução e da conclusão.

Na introdução, os autores expõem o objetivo principal da obra e descrevem como ela está organizada. No primeiro capítulo, Pesquisa qualitativa, crítica social e Análise de Discurso Crítica, fazem uma apresentação geral da ADC, situando-a na tradição da pesquisa qualitativa e a relacionando à crítica social. Eles destacam a existência de diferentes abordagens em ADC, as concepções de discurso e de texto e a importância do conceito de texto para o estudo dos processos sociais contemporâneos, uma vez que os textos são artefatos para esse estudo e “causam efeitos – isto é, eles causam mudanças” (FAIRCLOUGH, 2003, p.8).

No segundo capítulo, ADC – teoria e método na luta social, Magalhães, Martins e Resende enfatizam o papel da ADC na luta social. Primeiramente, retomam algumas considerações gerais sobre essa teoria e método, dando especial atenção para os conceitos de discurso, interdiscursividade, intertextualidade, poder e ideologia e para o lugar do discurso na modernidade posterior e na mudança social. Na sequência, elencam alguns procedimentos metodológicos que consideram básicos na seleção do foco de investigação em ADC e no processo de análise, reforçando, com isso, a relação da ADC com a pesquisa etnográfica. A apresentação desses passos a serem seguidos no desenvolvimento de uma pesquisa etnográfico-discursiva constitui uma contribuição importante do capítulo, pela orientação clara e útil que fornece a estudantes e pesquisadores, iniciantes ou não nos estudos do discurso.

Em Textos e seus efeitos sociais como foco para a crítica social, último capítulo da primeira parte, os autores concentram o olhar em um aspecto já mencionado em capítulo anterior – os efeitos sociais dos textos. Eles descortinam como esses efeitos podem ser usados em pesquisas voltadas para a crítica social, a partir da análise de reportagens publicadas em jornal sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes em Brasília e de entrevista com uma das educadoras do projeto GirAÇÃO, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do Distrito Federal, o qual foi afetado de forma direta pelas reportagens. No capítulo, o exame da intertextualidade e da polifonia em uma das reportagens constitui uma referência a outros pesquisadores sobre como organizar e tecer uma análise com base nessas duas categorias. A abordagem da entrevista revela os efeitos das reportagens na atuação do projeto mencionado e como a análise textual sozinha não consegue elucidar o “envolvimento de textos na construção de significado e o efeito causal de textos” (p.91). Sem dúvida, é uma mostra da produtividade de uma pesquisa etnográfico-discursiva.

A segunda parte do livro, denominada Análise de Discurso Crítica e etnografia, é constituída dos capítulos quatro, cinco e seis. Dois deles – o quarto e o sexto – são muito próximos tanto em relação ao título quanto ao objetivo. No capítulo quatro, Análise de Discurso Crítica e Etnografia – uma relação complementar, e, no capítulo 6, Etnografia e Análise de Discurso Crítica, os autores advogam a complementaridade entre etnografia e ADC. Julgando por esse propósito comum dos dois capítulos e pela semelhança dos títulos, a reunião deles em um só poderia representar uma escolha produtiva e resultar em uma abordagem mais ampla e aprofundada da relação complementar a favor da qual argumentam os autores.

No capítulo 4, Magalhães, Martins e Resende tratam sobre os tipos de notas de campo, apresentam exemplos de notas conceituais, recomendam a complementaridade entre ADC e etnografia como uma forma de validação da pesquisa e dedicam uma seção à exposição sobre a metodologia etnográfico-discursiva. Tendo em conta o fato de que é uma obra escrita por três pesquisadores, é necessário eliminar as marcas de autoria individual de capítulos, como a primeira pessoa do singular, na página 120 deste capítulo, em que se tem “Existe uma série de fatos que, a meu ver, são verdadeiros”.

No capítulo 6, ressaltam a importância da coerência entre ontologia e epistemologia e evidenciam “[…] que há inconsistência entre a perspectiva ontológica da ADC e sua tradição de análise documental.” (p.155), uma vez que essa tradição não permite a construção de conhecimentos sobre todos os componentes ontológicos do mundo social inter-relacionados, conforme a concepção adotada pela ADC faircloughiana. Nessa direção, o paradigma etnográfico articulado ao método para análise textual da ADC é indicado como um caminho adequado. Entretanto, os autores alertam para o fato de que apenas as abordagens etnográficas “que preveem um engajamento com o contexto de pesquisa e com os participantes” (p.156) são coerentes com a ADC. Tal alerta é fundamental, especialmente para os principiantes nesse tipo de pesquisa. Ainda no capítulo seis, Magalhães, Martins e Resende explicam como se pode construir um planejamento de pesquisa articulando ADC e etnografia, o que inclui uma relação entre reflexões e decisões de caráter ontológico, epistemológico e metodológico. Explanam que essas decisões “[…] dão-se num eixo de sucessividade, isto é, as decisões ontológicas são prévias às epistemológicas […], que são prévias às metodológicas.” (p.161) e que pode haver inúmeras possibilidades de paradigmas epistemológicos para uma versão ontológica, o que significa que não há um só caminho a ser seguido. Posteriormente, os autores discutem sobre a geração e coleta de dados etnográficos e sobre os métodos usados para esse fim. Também no capítulo seis são oferecidas várias indicações de leitura sobre todos os aspectos nele contemplados, o que pode auxiliar os leitores no aprofundamento dos conhecimentos sobre a pesquisa etnográfico-discursiva. É um capítulo com valor inestimável na obra, pelo seu conteúdo, organização e pertinência.

O capítulo cinco, Mudança social – prática e discurso, que igualmente integra a parte dois, parece destoar do foco desta parte, o que é perceptível por meio da comparação dos títulos das seções que o compõem com os das que constituem os outros dois capítulos da segunda parte – o quatro e o seis –, uma vez que não há referência alguma à etnografia. Observa-se que o capítulo cinco tem proximidade com o segundo do livro, pois nele os autores voltam a tratar da modernidade tardia ou posterior (os autores usam um termo no capítulo dois e outro no capítulo cinco) e da mudança social e, assim como no segundo capítulo, tecem considerações sobre os conceitos de prática social e de prática discursiva, estabelecendo uma distinção entre eles. A discussão sobre os dois conceitos é de grande interesse a todos os analistas do discurso e é tecida de modo a tornar mais claras as relações entre eles e a produtividade do trabalho com ambos em ADC. Entretanto, considerando-se o foco da primeira e da segunda parte do livro e o dos capítulos dois e cinco, o enquadramento destes não se mostrou o mais adequado. Uma inversão na ordem dos dois poderia contribuir para maior harmonia e fluidez do texto.

Quanto à terceira parte do livro, seu título – Um método de análise textual – anuncia que seu foco não é o diálogo da ADC com a etnografia, mas, sim, a ADC como um método de análise textual. Seguindo esse foco, nos capítulos que constituem tal parte são apresentadas análises de reportagens, de um relatório sucinto de uma reunião e de uma notícia. Ela é iniciada pelo capítulo 7, ADC e minorias – representação e peso político na esfera pública. Ao discorrerem sobre a ADC e minorias, os autores jogam luz a um caminho de diálogo e de possibilidades e apontam cinco frentes de lutas: “[…] o conhecimento e acompanhamento da situação social; a descoberta e preservação da identidade social; a luta por direitos e por mais democracia; a luta por espaço na esfera pública; e o empenho pela representação positiva na mídia.” (p.178). Além de explicarem cada uma, eles demonstram como a ADC pode ser útil na efetivação dessas frentes e analisam quatro reportagens publicadas em jornal, que tratam da situação das comunidades quilombolas na área rural de Alcântara no Maranhão. A análise contempla as dimensões do texto, da prática discursiva e da prática social.

No capítulo oito, Análise de Discurso Crítica: conceitos-chave para uma crítica explanatória com base no discurso, os autores relevam a interdisciplinaridade como uma das características comuns a todas as abordagens vinculadas à ADC. Como uma teoria preocupada com o funcionamento social da linguagem, a ADC não pode desconsiderar teorias do funcionamento da sociedade, o que significa um estabelecimento necessário de articulação entre a ADC e estas teorias. Magalhães, Martins e Resende também sublinham, como um dos aspectos centrais da ADC, a abordagem da relação de constituição mútua entre linguagem e sociedade e focalizam os conceitos de discurso, gênero e texto. Eles acreditam que a distinção entre esses conceitos tem sido uma das principais dificuldades dos estudantes na compreensão do modelo teórico-metodológico da ADC e que a confusão entre eles tem implicações teóricas que comprometem o trabalho empírico. Para ilustrar as distinções entre os termos, os autores apresentam um texto, Relatório sucinto da reunião, e o analisam de modo a esclarecer a concepção de discurso, de gênero e de texto e a auxiliar outros pesquisadores no desenvolvimento de seus estudos e análises.

O capítulo 9, intitulado Identidades e discursos de gênero, encerra a terceira parte do livro. Nele, os autores se propõem “examinar algumas contribuições dos estudos críticos do discurso” (p.213). Cabe destacar que é a primeira vez que Magalhães, Martins e Resende fazem referência a Estudos Críticos do Discurso (ECD) e que o fazem sem qualquer explicação acerca da relação desses estudos com a ADC e de modo que se constrói uma representação de que a ADC e os ECD são sinônimos, pois dão continuidade ao texto tratando da ADC sem voltar a mencionar os ECD, o que é um problema neste capítulo. Partindo da concepção de que as práticas incluem discursos, letramentos e identidades femininas e de que a notícia de jornal é um produto de práticas socioculturais, os autores analisam uma notícia de jornal sobre um crime contra uma mulher com o intuito de investigar a construção textual de identidades de gênero. Para isso, observam as escolhas lexicais, as relações intertextuais, os discursos articulados na notícia, as identidades de gênero construídas e os letramentos. Os autores destacam os resultados da análise, mas reafirmam que ela deve ser complementada pela pesquisa de natureza etnográfica, o que é coerente com o enfoque da obra. Cabe neste capítulo uma correção na figura 9.1 da p.230, em que o termo “interdiscursividade” está indevidamente repetido. A segunda ocorrência do termo deve ser substituída por intertextualidade, em conformidade com a análise desenvolvida no capítulo.

É inegável a contribuição desta terceira parte da obra. Todavia, considerando que há no Brasil várias publicações com exemplos de análises pautadas na ADC como método de análise textual, seria mais profícuo e apropriado ao enfoque da obra se a terceira parte fosse constituída de capítulos que trouxessem exemplos de pesquisas, com detalhamento de resultados, nas quais a relação de complementaridade entre ADC e etnografia tivesse sido estabelecida.

No tocante à conclusão, os autores fazem uma retomada de algumas bases nas quais se sustenta a ADC, mostrando em qual capítulo da obra elas foram contempladas, e chamam a atenção dos leitores para o fato de que a ADC, como teoria e método, está em construção e sujeita a reformulações, o que implica que tem limitações. Além disso, salientam que a relação complementar entre ADC e etnografia é muito benéfica para os dois campos, pois a ADC ganha com ela no que toca à validade e à consistência analítica e a etnografia ganha com a articulação com métodos para análise de textos e de interações desenvolvidos por analistas de discursos. Desse modo, a leitura deste livro é indispensável a estudantes, profissionais e pesquisadores interessados na análise das práticas sociais e não apenas na análise de sua representação no discurso, o que requer a realização de uma pesquisa etnográfico-discursiva. Ele constitui um convite e um incentivo ao desenvolvimento desse tipo de pesquisa.

Referências

FAIRCLOUGH, N. Análise Crítica do Discurso como Método em Pesquisa Social Científica. Tradução de Iran Ferreira de Melo. Linha d’Água, São Paulo, v.25, n.2, p.307-329, 2012. [ Links ]

FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres and New York: Routledge, 2003. 270 p. [ Links ]

Maria Aparecida Resende OTTONI – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Instituto de Letras e Linguística, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. cidottoni@gmail.com.

Análise de Discurso Crítica – MAGALHÃES (B-RED)

MAGALHÃES, I; MARTINS, A. R.; RESENDE, V. M. Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora da UnB, 2017. 260 p. Resenha de: ARGENTA, Júlia Salvador. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.13 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2018.

A obra Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa, de Izabel Magalhães, André Ricardo Martins e Viviane de Melo Resende, lançada em 2017 pela editora da Universidade de Brasília, é uma contribuição aos estudos de Análise de Discurso Crítica/ADC, principalmente quanto aos aspectos metodológicos. Sendo uma área de estudo relativamente nova, com sua consolidação nos anos de 1980, a ADC surge como uma teoria e um método capazes de interpretar qualquer texto, superando a Linguística Crítica/LC (MAGALHÃES, 2005)1. Fairclough é um dos precursores deste campo, tendo publicado diversos trabalhos, tanto analíticos quanto teóricos (por exemplo, FAIRCLOUGH, 20032; 20103). Outros estudiosos importantes para a ADC em esfera mundial são Teun A. Van Dijk, Theo Van Leeuwen e Ruth Wodak, para citarmos alguns.

Izabel Magalhães, em seu livro Eu e tu: a constituição do sujeito no discurso médico, publicado em 20004, desenvolveu o termo etnografia discursiva, uma proposta metodológica que une Análise de Discurso Crítica e pesquisa etnográfica. Desde então, orientou diversos estudantes de pós-graduação a adotarem tal método em suas pesquisas. Porém, até agora, não havia sido publicado nenhum livro que abordasse exclusivamente a etnografia discursiva enquanto método da ADC. Por isso, a obra em questão vem para preencher essa lacuna e para contribuir ainda mais com o debate da ADC. Para que isso fosse possível, os autores dividiram o livro didaticamente em três partes: Um método de pesquisa qualitativa para a crítica socialAnálise de Discurso Crítica e etnografia e Um método de análise textual.

Na primeira parte da obra, os autores justificam suas escolhas pela abordagem etnográfico-discursiva em estudos discursivos críticos através da recapitulação dos principais trabalhos desenvolvidos em ADC. Afirmam que, apesar de serem importantíssimos para a ADC, as análises apresentadas são puramente textuais. Para os autores, uma análise mais consistente e válida precisa da etnografia como ponte de acesso a práticas sociais e discursos, permitindo, consequentemente, maior compreensão da produção, distribuição e consumo de textos. “Textos são objetos que constroem significados para as pessoas, relacionando-se com outros objetos do contexto local e mesmo translocal” (p.35). Assim, a ADC não é apenas um campo teórico, mas sim, um método de pesquisa qualitativa capaz de produzir crítica social.

Outro aspecto presente na obra que se faz cabal destacar é que os autores asseveram a necessidade da transdisciplinaridade em estudos discursivos críticos e de se conhecer discussões teóricas de outras áreas a respeito da modernidade tardia, da globalização, do poder, da ideologia (conceitos basilares da ADC) e de outros componentes teórico-sociais que se fizerem relevantes. Ademais, os autores chamam atenção para a urgência de se debater a relação entre linguagem e sociedade, com especial interesse nos efeitos sociais dos textos nas práticas sociais e discursivas. Portanto, a transdisciplinaridade, bem como o debate da relação linguagem-sociedade vão ensejar a articulação eficaz da análise textual com a análise de caráter social, que facilitará, por sua vez, o processo de reconhecer o papel do discurso e de outras semioses na preservação de interesses.

A segunda parte foi dedicada a explicar a abordagem metodológica da etnografia discursiva. Os autores recuperam a discussão de Chouliaraki e Fairclough (1999)5 sobre modernidade tardia, à luz de trabalhos de Giddens, Harvey e Habermas, para elucidar como se faz necessário que entendamos o papel do discurso nessa “nova” conjuntura social. As práticas discursivas são, então, formas de acessar as práticas sociais, para fim de desvelar ideologias e práticas hegemônicas de abuso de poder. A partir do reconhecimento dessa potencialidade das práticas discursivas, elas podem vir a ser utilizadas a favor da igualdade social e da democracia, para conseguir a tão desejada mudança social. Isso quer dizer que a linguagem se constitui como uma forma simbólica de luta. Resgatamos aqui o trabalho de Resende (2012)6, em que afirma que a ADC é um campo teórico-metodológico com especial interesse em examinar o discurso em situações de desigualdades sociais e que possui caráter posicionado, isto é, os pesquisadores assumem parcialidade.

Assim, os autores apresentam a etnografia articulada à ADC como método eficaz para estabelecer ligação entre textos, práticas discursivas e práticas sociais. Essa ligação proporciona a compreensão da estrutura social hegemônica que, por sua vez, molda e constrange tais textos, práticas sociais e práticas discursivas. Como proposta do livro, os autores, então, ensinam a planejar uma pesquisa articulando ADC e etnografia. Eles novamente reiteram a necessidade da inter e transdisciplinaridade nos estudos da ADC e esclarecem que uma pesquisa consistente, capaz de compreender e analisar os dados coletados e gerados, precisa ter decisões ontológicas e epistemológicas e escolhas metodológicas coerentes, que são feitas gradativamente. Primeiramente, são tomadas decisões ontológicas, que estão ligadas ao mundo social (estruturas, práticas e ações sociais e tudo o mais que esteja envolvido nelas), depois são escolhidos aportes epistemológicos, de natureza do conhecimento, a partir dos componentes ontológicos, que, por fim, limitarão as escolhas metodológicas para coleta e geração de dados.

A terceira parte do livro apresenta três análises utilizando o aporte teórico-metodológico da ADC, uma em cada capítulo, com o intuito de ilustrar na prática alguns conceitos, servindo, inclusive, de modelo de como fazer análise de discurso crítica para além da análise puramente textual. Com vistas a não simplificar as análises feitas pelos autores, nem apresentar seus resultados de forma descontextualizada, escolhemos abordar aqui os aspectos teóricos presentes nessa parte. No sétimo capítulo, os autores discutem o termo “democracia” e o que ele implica, bem como apontam que a ADC pode servir de instrumental teórico-prático nas lutas de minorias, e quais aspectos essas lutas devem contemplar para serem eficazes.

Já no oitavo, alguns componentes ontológicos são recuperados, por meio de discussão de conceitos do Realismo Crítico de Bhaskar, adaptados à ADC. Os autores ainda conceituam os termos “práticas sociais” e “discurso”, assim como o que o constitui (estilos, gêneros e discursos – no sentido mais concreto do termo). O intuito é explicitar que nem tudo é discurso nas práticas sociais, pois elas são compostas de outros elementos, tais como crenças, valores, desejos, relações sociais e atividade material. O último capítulo do livro é uma versão do artigo escrito por Izabel Magalhães, ao periódico Linha D’água em 20117. Nele, há a discussão sobre linguagem, poder, letramentos e identidades relacionados a questões de gênero em nossa sociedade, através da análise de uma reportagem cobrindo um gravíssimo caso de violência contra mulher.

De leitura instigante e fluida e de organização didática e gradual dos capítulos, a obra de Izabel Magalhães, André Ricardo Martins e Viviane de Melo Resende, apesar de não ser uma leitura introdutória, certamente atinge a todos os públicos, desde iniciantes nos estudos do discurso, quanto profissionais da área. Sua importância por propor um “novo” método de se fazer pesquisa qualitativa é incomensurável, representando avanços não só metodológicos quanto epistemológicos. Entendemos que a etnografia discursiva já existe há quase vinte anos; no entanto, como dito anteriormente, essa é a primeira obra dedicada completamente a discuti-la, visando sua descrição e ensino, tornando-a acessível a estudantes e pesquisadores de diversas áreas de estudo de todas as regiões do país.

Por ser uma obra tão inovadora, é compreensível que haja lacunas a serem preenchidas e aspectos a serem desenvolvidos. Por exemplo, acreditamos que obras futuras possam dedicar uma seção para a descrição de alguns instrumentos disponíveis para realização de pesquisa etnográfico-discursiva e de algumas posturas que o/a pesquisador/a deve adotar durante a pesquisa de campo. Em outras palavras, sentimos que a discussão de como fazer etnografia discursiva pode vir a ser aprofundada. Por isso, é importante que os mais diversos estudiosos, dos mais diversos campos do conhecimento, leiam o livro e adotem a ADC em seus estudos, para fim de desenvolvê-la, tornando-a cada vez mais transdisciplinar e profícua, contribuindo progressivamente com a mudança social.

Referências

1 MAGALHÃES, I. Introdução: a análise de discurso crítica. In: D.E.L.T.A. vol.21 nº. Especial, São Paulo 2005, p.1-9. [ Links ]

2 FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research. London: Routledge. 2003. [ Links ]

3 FAIRCLOUGH, N. Critical Discourse Analysis: the Critical Study of Language. 2. ed. Harlow: Pearson, 2010 [ Links ]

4 MAGALHÃES, I. Eu e tu: a constituição do sujeito no discurso médico. Brasília: Thesaurus, 2000. [ Links ]

5 CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity: Rethinking Critical Discourse Analysis. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999. [ Links ]

6 RESENDE, V. M. Análise de discurso crítica como interdisciplina para a pesquisa social: uma introdução. In: Iran Ferreira de Melo. (Org.). Introdução aos estudos críticos do discurso: teoria e prática. 1ed. Campinas: Pontes, 2012, pp.99-112. [ Links ]

7 MAGALHÃES, I. Textos e práticas socioculturais: discursos, letramentos e identidades. Linha D’Água, São Paulo, v.24, n.2, p.41-57, dec.2011. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/37356/40076>. Acesso em: 25 sep. 2017. [ Links ]

Júlia Salvador Argenta – Universidade de Brasília – UnB, Brasília, Distrito Federal, Brasil; julia.argenta@gmail.com.

De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX) – VIDAL (H-Unesp)

VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009. 352 p. Resenha de: TORRÃO FILHO, Amilcar. De nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.

O professor Laurent Vidal, da Universidade de La Rochelle se debruçou sobre as cidades brasileiras ou luso-brasileiras em diversas publicações – como a nômade Mazagão, que atravessou o Atlântico, deixando o Marrocos onde era o último bastião português, passando por Lisboa e vindo aportar, finalmente, na Amazônia portuguesa em 17691 –, agora nos traz uma leitura de fôlego da construção de Brasília, nas comemorações de seus 50 anos. Trata-se de sua tese de doutorado defendida na Universidade de Paris III, em 1995, publicada em francês no ano de 2002 pelo Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine. A primeira e mais evidente qualidade deste trabalho é recuperar o longo período no qual a capital brasileira foi projetada no interior de seu imenso território, desde a Nova Lisboa, que seria a nova sede do novo Reino Unido de uma corte no exílio, até a Brasília de Juscelino Kubitschek, saída do traço da arquitetura moderna diretamente para o planalto central. Além disso, o livro tem a preocupação de colocar uma questão importante, sobretudo no caso de Brasília, que está definida em sua introdução; se com Mazagão Vidal havia se perguntado para que serve uma cidade em suspensão e em trânsito, no caso de Brasília ele questiona: “Para que serve uma cidade quando ela não existe?” Questão que é acrescentada por outra, correlata: “A que corresponde essa imperiosa necessidade social de projetar ou fundar, mesmo no papel ou em palavras, as cidades?” (p. 11). Portanto, este trabalho trata destas duas dimensões fundamentais para a compreensão de Brasília, e de todas as capitais sonhadas e desejadas: a sua dimensão material, com as agruras de sua construção e os resultados urbanísticos de sua efetiva ocupação, mas também a sua dimensão projetiva, imaterial, os projetos realizados ou não, os traços de suas utopias que revelam os desejos, as ambições e os planos por trás de sua construção ou o que vai além de sua redução ao puramente utópico ou técnico, este momento, como define o autor, “intermediário, em que a cidade ainda não possui existência física, mas em que já deixou de ser simplesmente uma visão utópica” (p.11).

No caso de Brasília, cidade capital por definição e por projeto, cabe ainda indagar-se sobre o seu papel na construção de uma memória e uma identidade da nação que ela representa, ou do processo pelo qual “a identidade de uma nação ou de uma comunidade pretende espacializar-se”; o que coloca outra pergunta importante: “quem ou o que produz uma cidade para nela depositar uma memória” (p. 16). Não se trata, portanto, apenas de um projeto de cidade nova, é uma nova capital, e uma capital que deve redefinir o país projetando um Brasil moderno, desenvolvido, interiorizado, correspondendo a um “projeto de sociedade” (p. 18). Uma sociedade até então dividida pela antinomia sertão/litoral, que para muitos impedia o desenvolvimento de todas as suas partes; não por acaso, será a nova cidade chamada de a capital da esperança.

O livro está dividido em sete capítulos, seis dos quais dedicados a projetos para a construção da cidade capital que finalmente faria o sertão vencer a dominância do litoral. O primeiro diz respeito à Nova Lisboa, a cidade que seria construída para substituir o Rio de Janeiro como sede da nova monarquia, num momento no qual havia dúvidas em relação à qualidade da nova corte para assumir o papel de capital, por seu terreno pantanoso, seu clima úmido e cheio de insetos. A decisão de manter a capital no Rio de Janeiro levou a cidade a ser remodelada para adequar-se ao decoro de uma capital real, digna da monarquia portuguesa, reformas que são bastante conhecidas e deram grande parte da feição mais típica da cidade tal como a conhecemos. Entretanto, a necessidade de “interiorização” da capital não desaparece das preocupações geopolíticas e estratégicas, presentes nos projetos de Hipólito José da Costa ou de Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira. A grande cidade portuária, para estes autores, não possui as qualidades requeridas a uma verdadeira capital, cuja criação se torna uma exigência de modernização, na qual o autor observa “um deslocamento da representação do espaço construído para o espaço mental, um deslocamento do conceito da cidade, como espaço político, lugar de trocas econômicas e sociais, para seu inverso imaterial, sua idealização” (p. 48).

O capítulo seguinte trata de projeto similar, já agora no âmbito da construção do Estado nacional separado de Portugal, a Cidade Pedrália, indefectível referência ao príncipe, depois imperador, Pedro I, homenagem de seu idealizador, o desconhecido Paulo Ferreira Menezes Palmiro. A nova capital era parte de um projeto de interiorização e povoamento do imenso interior, o “desertão” brasileiro, de José Bonifácio, o Patriarca, bem como uma estratégia para garantia da unidade territorial e a sua consequente definição da nacionalidade brasileira. Não por acaso a sua localização teria como “coluna vertebral”, diz o autor, o rio São Francisco, o rio da unidade nacional para muitos (p. 61). Apesar destes projetos, para Vidal, a permanência do Rio de Janeiro como capital imperial “se inscreve na lógica do projeto geopolítico definido pelo imperador: inserção da jovem nação brasileira no mercado comercial internacional”, com a necessidade de manter a capital num porto e seguindo a política imaginada por João VI, a “vocação do Brasil como nação ‘européia'” (p. 63). Processo coerente com outra interiorização, diferente da projetada aqui na transferência da capital para o sertão, aquela descrita por Silva Dias, o enraizamento de interesses portugueses no Brasil e o processo de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia, sendo a separação com Portugal resultado de um aumento das divergências entre os interesses portugueses no Brasil e o Reino2. É muito mais uma interiorização centrada no Rio de Janeiro, incompatível com a transferência da sede de governo para o interior. Vidal, neste capítulo, recupera o esquecido projeto ilustrado e racional da Cidade Pedrália, de Menezes Palmiro, que pretendia dar corpo a uma ambição social e geopolítica que rompia com os modelos urbanos adotados pelos portugueses até então (p. 70).

O projeto seguinte é Imperatória ou, como diz o título deste terceiro capítulo, o sonho de uma São Petersburgo tropical, seguindo as intermináveis dúvidas em relação à capacidade do Rio de Janeiro em representar bem seu papel de capital. Trata-se do projeto de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, que critica justamente o comprometimento das principais cidades brasileiras com o comércio internacional, com a exterioridade, não dando espaço à necessária construção da nacionalidade brasileira, que o Visconde buscou tanto na história quanto num projeto de capital. O interior, o homem do sertão seriam, na visão de Varnhagen, os instrumentos de redenção do país, Minas seria, então, a Castela do Brasil (p. 87). O Visconde de Porto Seguro se insere, ao mesmo tempo, num rompimento com o modelo colonizador português que convive com a sua inserção em seu modelo civilizatório lusitano, que afirma a posição preeminente da população branca no controle do aparelho de Estado. Seu modelo urbanizador vê na cidade não um quadro estático, mas “o local, o motor da modernização. Imperatória é assim a cidade do homem brasileiro reconciliado com a modernidade” (p. 100).

O quarto capítulo/projeto trata de Tiradentes, não a cidade mineira antiga São José Del Rei, mas um projeto republicano para uma nova capital que se torna um dispositivo constitucional na República. Trata-se, para Vidal, de um projeto de mudança que oferece “a possibilidade de planejar uma cidade especialmente destinada às elites, uma cidade sem povo” (p. 104). Em 1892, é criada a célebre Comissão de exploração do Planalto Central do Brasil, dirigida por Luís Cruls, diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, que deveria demarcar a localização da nova capital. Para o autor, a mudança funcionava, para as elites republicanas, como uma forma de “conjurar o medo da cidade, da grande cidade como o Rio que, todo dia, inquieta um pouco mais os republicanos no poder” (p. 124-125). O medo, presente tanto em liberais como em conservadores, de que o crescimento da cidade seja acompanhado pelo direito à cidade, o direito à cidadania. Esta discussão se apoia muito menos no conceito de progresso da nação do que na construção de uma nacionalidade na qual a cidade grande aparece para muitos, como Euclides da Cunha, citado por Vidal, como um espaço demasiadamente cosmopolita, que impõe modelos culturais importados, que não traduzem o espírito brasileiro. Uma capital cosmopolita, nessa visão, não seria uma adequada cabeça da nação, não pensaria o país de acordo com os interesses brasileiros (p. 129). Concepção que teria muita fortuna no meio intelectual e acadêmico, das ideias fora de lugar, importadas, que não estariam aclimatadas à “realidade” e ao espírito nacional. Esta visão da capital se materializa não no Planalto Central e na substituição do Rio de Janeiro, mas pela construção de Belo Horizonte, paralelamente às reformas de Pereira Passos, nova adequação da capital carioca aos desígnios das elites. Em 1930, Teodoro Figueira de Almeida propõe no jornal A Ordem um projeto de nova capital chamado Brasília: a cidade histórica da América, demonstrando, segundo Vidal, um gesto deliberado de tentativa de “reescritura da história” por meio da forma urbana, que poderia materializar o sonho de uma “capital sem povo” (p. 142).

A sequência do trabalho de Vidal nos revela como, no tema da nova capital, perpassou praticamente todos os governos monárquicos ou republicanos. O quinto projeto/capítulo trata do período Vargas, que retoma a discussão sobre a transferência para o centro do Brasil de sua sede de poder. Para Vidal, a instauração do Estado Novo, em 1937, procura estabelecer um Estado verdadeiramente nacional, o que implica uma nova divisão territorial do país, o estabelecimento de uma nova geografia, o que culmina com a criação do IBGE, em 1938. Para o autor, está em processo também, no Brasil deste momento, uma “reavaliação do papel da cidade nas atividades de uma nação”, o que é visível, por exemplo, na construção de Goiânia, cujo plano levaria em conta a dupla natureza da cidade, “lugar de exercício do poder e de atividades econômicas e sociais” (p. 156). Em seu segundo governo, Vargas voltaria ao plano de transferência, criando em 1953 a Comissão de Localização da Nova Capital Federal (CLNCF), de evidente tarefa. Neste momento, gesta-se uma ruptura em relação às anteriores propostas, pois aqui não se trata mais de discutir a criação de uma sede administrativa para o país, mas de “dar coerência a uma sociedade não mais dividida, mas reconciliada em torno de um mesmo projeto de futuro” (p. 174).

Um projeto de futuro reconciliado e unificador parece ser o mote para o definitivo projeto de Brasília, obra capital do governo Juscelino Kubitschek, no feliz título de seu sexto capítulo. Vidal trata, aqui, de feitos conhecidos, dando especial atenção ao contexto histórico da construção de Brasília, bem como ao plano vencedor de Lucio Costa e Niemeyer. A qualidade deste capítulo está justamente na forma como as dimensões políticas e arquitetônicas são analisadas na construção, não apenas de uma cidade, mas da “idéia mesmo de capital”, afirmando um Brasil moderno (p. 202). Ou como ressalta adiante, o concurso de Brasília e a sua construção colocam um problema mais amplo do que a simples construção de uma nova cidade, o da “invenção de um urbanismo político adaptado a uma democracia liberal do século XX” (p. 220). O autor vê a possibilidade de um jogo de ambiguidades entre o projeto político e o projeto social de Brasília, ou uma cidade “esticada entre duas tendências: a ambição igualitária do urbanista e do arquiteto e a ambição liberal do político, tudo isso acobertado pela idéia de modernismo” (p. 240). Ou de uma propensão latina de aspiração à grandeza, audácia e imaginação com uma lógica de disciplina que vem tolher estes impulsos.

De Nova Lisboa a Brasília propõe uma leitura histórica da construção de Brasília não apenas no estabelecimento de uma linhagem cronológica dos diversos projetos e planos de transferência, que pela primeira vez foram tratados em seu conjunto como uma unidade, mas também da representação de uma certa imagem de Brasil, de determinadas expectativas deste gesto fundador da criação de uma capital que coincide com o “batizado” do país e que nasce sob o signo deste gesto tão simples de Lucio Costa em forma de uma cruz que designa o plano piloto, dando-lhe uma feição ao mesmo tempo mítica, mística e moderna. A inauguração de Brasília é um ato fundacional; fundação de uma nação moderna, reconciliada, a marca de uma utopia que o urbanismo moderno muitas vezes sonhou, mas poucas vezes pôde realizar, com toda a esperança e a frustração que envolvem as utopias, tão bem descritas neste trabalho que recupera o longo caminho de invenção de uma capital e de um sonho.

1 VIDAL, Laurent, Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico. Trad. port. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008. Primeira edição francesa de 2005.
2 DIAS, Maria Odila Leite da Silva, A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005.

Amilcar Torrão Filho – Professor Doutor – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes, São Paulo, CEP: 05014-901. E-mail: amilcartorrao@uol.com.br.

A Invenção da Argentina: História de uma Idéia | Nicolas Shumway

Ao analisar as fronteiras do Brasil, percebe-se rapidamente que este possui um número expressivo de vizinhos, fato que sugere uma maior acessibilidade a estes países e, porque não, a necessidade do estabelecimento de relações de variados tipos. Com efeito, a proximidade territorial e o contexto geopolítico acabam por vezes determinando as grandes linhas de relacionamento externo, já que é a realidade da qual não se pode e nem se deve fugir.

Nessa perspectiva, alguns países emergem com maior relevância no conjunto das expectativas brasileiras relacionadas à sua realidade geográfica, seja por questões de high politics ou low politics. Dentre esses, a Argentina representa historicamente o principal eixo do país na América do Sul. Portanto, entender sua história e aqueles elementos que caracterizam sua cosmovisão é uma tarefa necessária ao Brasil e aos brasileiros. Leia Mais

Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990) / Eleonora Z. C. Brito

Nos anos 60 e 70, Michel Foucault abriu uma perspectiva para a leitura das relações de poder, demonstrando que, a partir do século XVIII, uma rede de dispositivos disciplinares objetivou não apenas atuar sobre o sexo, colocando-o “em discurso”, mas também inventou novas formas de apropriação de sentido.

O trabalho de Brito articula a noção de poder do pensador francês não somente pela via da negação de poder como simples repressão; a essa via a autora contrapõe a afirmação de que o poder positiva, diz sim, induz formas de saber e produz discurso. Trata-se, portanto, de um conceito de poder que produz verdades, mais do que as oculta, que constitui regras para o verdadeiro, regras, entre outras, de produção de enunciados e de reconhecimento de seus sujeitos-autores.

Justiça e gênero tem como tônica central o modo como a categoria “menor de idade”, em especial “a menor de idade”, fora lida pela Justiça de Menores no Distrito Federal entre 1960 e 1996 (embora o título estabeleça 1990, a autora nos traz dados atualizados até os meados da década seguinte). Uma leitura que adotou de uma série de estratégias que refletem questões ligadas às relações de poder e gênero, evidenciadas e criticadas pela autora. O trabalho inscreve-se no grupo de estudos de gênero que possuem como ambição desnaturalizar as relações entre homens e mulheres, mostrando-as como construções sociais, históricas e culturais.

Ao analisar os casos indicados nos arquivos do antigo Juizado de Menores de Brasília – um total de cinco mil processos de um universo de cerca de trinta e dois mil –, a autora nos apresenta a história da constituição da justiça voltada ao “menor” infrator, por meio da configuração do Código de Menores, numa clivagem entre Direito e Ciências Médicas, além das teorias assistenciais em voga desde o final do século XIX. Dessa forma, o livro localiza o leitor pelas histórias normativas que procuraram regular a relação entre a infância, a juventude e a Justiça.

Nesse aspecto, Brito indica o caráter ambíguo do Código de Menores de 1927, na medida em que, para esse instrumento legal, o “menor” foi uma criação da tensão entre um sujeito ligado ao perigo, a ser detectado e disciplinado, e o sujeito cuja inocência deveria ser resguardada ou recuperada. A autora apresenta-nos esse “leitmotiv”, intimamente ligado à dimensão punitiva – marca do Direito Penal –, que matizou a questão até 1990, ano da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e mostra-nos como esse sujeito “menor” é destituído de sexo e sofre o apagamento regulador das tensões de gênero.

Enquanto a lei desconsidera o sexo do menor, anulando-o, na prática, por meio das aplicações do Juizado, recupera-se esse sexo “anulado” hierarquizando-o. Para a autora, “antes de ser ‘menor’, a menina é seu corpo, seu sexo de mulher”, como demonstra já de início, a partir da análise do caso de estupro avaliado pelo ministro do Supremo, em que a transgressão não está no ato, mas naquele que transgride – máxima da Escola Positiva de Direito Penal.

Os casos vão surgindo de modo a configurar ora a constituição de uma vítima, ora uma delinqüência, sempre julgada a partir do sexo. Nas questões em que a “menina/mulher” é vítima de crimes sexuais, o que importa é verificar sua índole e não o caso em si. Nesse aspecto, o que os discursos proferidos pelos curadores e juízes instauram é a justificativa da violência como punição social para a “má-conduta” da mulher “devassa”. Impressiona a recorrência de preconceitos tradicionais impostos às menores; constata-se, por exemplo, que, em relação à “menina/mulher”, o crime se associava irremediavelmente à prostituição ainda no final dos anos 80. Sua sexualidade era o foco para onde convergiam essas explicações.

O trabalho nos lembra de que, na lógica das fábulas processuais, não cabia à mulher um papel ativo. Sua defesa só poderia ser constituída diante da evidência de que seu papel de agente passivo do ato estava garantido, de tal modo – mostram-nos os casos narrados –, que, protegida e vigiada pela insígnia do perigo, o respeito à mulher e o crédito de seu relato passavam pelo testemunho do homem adulto. Não são raros, por exemplo, os pareceres que culpam as mães pelas “distrações” das filhas, enquanto ao pai nada cabia senão a vergonha.

O desvio infanto-juvenil, ou seja, sua punibilidade perante a lei, insere-se, portanto, no contexto de certa “estratégia de “governamentalidade” que, por um lado, buscava disciplinar os corpos, e, por outro, objetivava a regulação da população” (p.119). Sobre as questões dos corpos, Brito narra todo um jogo de poder na constituição de uma Medicina Legal, cara às determinações hierárquicas entre homem/mulher, adulto/criança e normal/anormal. Teorias como as divulgadas por Afrânio Peixoto e Nina Rodrigues foram as que deram os contornos do debate sobre a delinqüência no Brasil e, conseqüentemente, sobre a infância e a juventude a serem “protegidas”, objetos preferenciais do saber criminológico.

Tal saber é evidenciado pela autora por meio do estudo de dois laudos solicitados pela Justiça. Um proferido para uma menina e outro, para um menino (os casos de Alice e Mário, independentes, estão entre as comparações mais impressionantes do livro). Os laudos naturalizam os comportamentos, “fixando os que são normais num e noutro sexo e classificando-os no discurso médico” (p.190). O saber médico (legal) respaldava a criação do desvio – ação fora da norma qualificada na patologia clínica –, migrando-o da ordem moral para a clínica. A perícia médica funcionava como uma guardiã da higiene sexual, medicalizando e criminalizando o sexo desviado de sua função procriativa, saudável.

Brito nos mostra como a própria pré-seleção do delito era imposta pelas relações de gênero, na medida em que certas práticas desviantes, na verdade, eram cometidas por meninos e meninas, mas classificadas de modo diverso. O que os pareceres e as sentenças não estavam preparados a permitir eram meninas em situações tidas como preferencialmente masculinas.

Um exemplo é a modalidade “perturbação da ordem”, instituída como um domínio reservado ao masculino, uma vez que corriqueiramente a rua – o espaço público – estava “estabelecida” como tal, enquanto na modalidade “inadaptação familiar” o número de transgressões femininas está “naturalizado”, pois passa-se para a esfera privada. Enfim, analisados e delimitados por critérios específicos a cada época, crianças e adolescentes têm a complexidade de seu “ser no mundo” reduzida a traçados lineares.

Contudo, as regras a que tal linearidade obedecia sofreram mudanças entre os anos 60 e o início dos 90. A autora não comete o erro de planificar os valores nas décadas estudadas.

Está, antes, interessada em como, em momentos distintos, embora próximos, o aparato regulador da “infância” lida com o paradoxo entre uma Justiça que institui para si o peso da modernização moral, ao passo que continua a reconduzir valores tradicionais instituídos às mulheres.

É certo que Brito salienta que as mutações, em muitos aspectos, só renovam alguns padrões de conduta historicamente defendidos. Ignorar que as relações de gênero impõem hierarquizações que estão para além daquelas “admitidas” pela lei – essa mesma viciada em dissimular tais hierarquias, mesmo nos dias atuais – é um alerta premente desse livro. De tal monta que a polêmica que mesmo hoje divide grupos feministas em torno do uso do sistema penal na luta pela defesa e pelo reconhecimento de direitos às mulheres deve ser evidenciada à luz das questões tratadas aqui. A autora põe em questão a eficácia de se acionar o sistema legal em favor da defesa dos direitos das mulheres, discutindo se esta prática, ao contrário, não seria promovedora de um quadro de aprofundamento das relações hierarquizadas de gênero. Pela conduta de sua pesquisa, a autora parece não crer que tal sistema – como ele se apresenta atualmente – seja capaz de garantir equidade.

Em muitos casos, como os próprios processos indicavam, eram famílias interessadas em desvincular-se daquela menor que não mais se adequava ao regime de menina da casa.

Jovens, algumas vezes crianças, trazidas do interior do país para trabalhar como domésticas sem receber salário, num dúbio jogo de exploração e tutela que, em determinado momento, era considerado indesejável. Tal questão mostra que o livro não se presta a maniqueísmos, pois aqui a autora indica como foi importante o papel do Juizado para desvelar esse jogo.

Às mulheres se perdoava, ironia discriminatória que atingia também as jovens de classe média que furtavam no comércio local. Elas eram, geralmente, enquadradas no chamado ‘descuido’, ou seja, na capacidade de pegar e não pagar por mera falta de atenção.

Ao examinar extensa documentação, a autora tomou o cuidado de questionar as determinações de produção, enquadrando-as num contexto histórico localizado, e evidenciou os procedimentos representados pela instituição. Exemplo: nos anos 60 e 70, o juizado de Menores de Brasília não possuía o aparato interdisciplinar de profissionais, previsto em lei, os quais deveriam apoiar as decisões tomadas; nem mesmo contava com instituições “corretivas”. Fatos que influenciavam as decisões e que fizeram muitos processos percorrerem uma cansativa rede burocrática, na esperança de que os problemas externos à demanda judicial fossem resolvidos antes de uma possível sentença.

São todas questões cruciais para quem quer compreender, a partir dos exemplos de Brasília, as determinações legais frente às relações de gênero. A autora não se furta a contextualizar o ambiente em que os documentos são gerados: “Profusão de imagens, Brasília era representada, ao mesmo tempo, como o espaço propício para a manifestação de uma sociabilidade que a fazia mais humana que a maioria das outras cidades (…) e lócus de manifestação do ‘perigo’ representado pela infância e pela juventude ‘desviantes’.”(p.154).

Tal abordagem confere ao livro mais esse atrativo. Além de interessar a estudiosos em gênero, ligados à história ou ao direito, há na pesquisa de Brito uma sutil, mas determinante, consciência do papel que essa “urbe”, tão exótica por sua constituição e história, ocupa na problemática. Brasília e os brasileiros vindos de todas as partes serviram a Brito para o elementar exercício de compreensão daqueles “poderes” que Foucault nos apresentou.

Mateus de Andrade Pacheco – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com apoio do CNPq.


BRITO, Eleonora Zicari Costa de. Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990). Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2007. Resenha de: PACHECO, Mateus de Andrade. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.172-176, 2007. Acessar publicação original. [IF].