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Côa e Seridó, dois rios na Pré-História – MARTINHO et al (CA)
MARTINHO, António; MARTIN, Gabriela; PESSIS, Anne-Marie. Côa e Seridó, dois rios na Pré-História. Recife: Editora da UFPE, 2017. Disponível em: https://www3.ufpe.br/editora/ufpebooks/serie_extensao/coa_serid/html5forwebkit.html?page=0 . Resenha de: CISNEIROS, Daniela. Clio Arqueológica, Recife, v.2, n.2, p.247-252, 2017.
Este livro é uma idéia original que liga Portugal ao Brasil de uma maneira nova e que tem um alcance que ultrapassa o seu conteúdo. Forma parte de uma série de publicações realizadas sob o lema Movimento Recife Porto na Arte, criado em 1992 e caracterizado como um espaço de articulação entre artistas e pesquisadores brasileiros e portugueses procedentes de várias universidades e centros culturais de Portugal e Brasil no intuito de constituir uma rede de relações culturais de amplo espectro. Nesse âmbito, já foram publicados vários livros de conteudo diverso, embora no denominador comúm da cultura luso-brasileira sob a coordenação de Maria Betânia Borges Barros.
O livro Côa e Seridó, Dois Rios na Pré-História é dedicado à arte rupestre préhistórica do Brasil e de Portugal, centrado na apresentação de dois rios e duas culturas num futuro comum. Seguindo-se o roteiro da ocupação humana préhistórica nos vales de dois rios: Côa, em Portugal, e Seridó, no Brasil, apresentam-se as raizes de dois povos que, milênios depois, o destino uniria numa cultura semelhante: as dos caçadores-coletores pré-históricos.
Descrevem-se e analisam as gravuras rupestres existentes no vale do rio Côa, afluente do rio Douro, e as gravuras e pinturas rupestres do vale do Rio Seridó no Rio Grande do Norte. Duas regiões muito distantes, sem contacto possível numa época longinqua. O contexto arqueológico e ecológico das respectivas áreas tem em comum os vales de dois rios nos quais assentaram-se grupos humanos que deixaram as marcas do seu passo, representadas nas gravuras e pinturas rupestres.
A sobriedade das representações rupestres paleolíticas de Foz Côa, contrastam com a riqueza das informações antropológicas e as manifestações da vida cotidiana das pinturas do Seridó.
A primeira parte do livro é da autoria de António Martinho Baptista que há décadas estuda as gravuras rupestres do vale do Côa e que, como diretor do Parque Arqueológico do Côa, criado em 1996, empenhou-se no reconhecimento do mesmo como Patrimônio Mundial (1998).
Além do enorme valor intrínseco das gravuras do Côa, a sua descoberta modificou o conceito de que a “arte das grutas” seria a manifestação artística quase exclusiva dos tempos paleolíticos. Mais, a partir de 1994, com a revelação das primeiras gravuras paleolíticas na Canada do Inferno, na margem esquerda do Côa, perto do local onde se pretendia construir uma grande barragem, mudou a forma de entender a arte do homem fóssil. Foram identificados 26 sítios com arte paleolítica num total de 234 rochas gravadas ao ar livre, embora algumas estejam permanentemente submersas pela construção de uma barragem da década de 1980. Os sítios estão integrados na área do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC), criado em 10 de Agosto de 1996, com sede em Vila Nova de Foz Côa.
Gabriela Martin e Anne-Marie Pessis assinam em parceria a segunda parte da obra dedicada às pinturas e gravuras localizadas no vale do Seridó e de seus afluentes, no Rio Grande do Norte. As duas autoras, professoras da Universidade Federal de Pernambuco e membros da Fundação Museu do Homem Americano e da Fundação Seridó, pesquisam há décadas a Arte Rupestre nas diferentes regiões do Nordeste Brasileiro, onde está situado o Parque Nacional Serra da Capivara, Patrimônio Mundial desde 1991.
As pesquisas arqueológicas iniciadas na região do Seridó a partir da década de 1980 demonstraram a semelhança das pinturas rupestres de mais de um centenar de sítios daquela região, com as registradas na Serra da Capivara. A diversidade das figuras, as características técnicas e a existência de figuras emblemáticas permitiram identificar o padrão gráfico de um tronco cultural, conhecido como Tradição Nordeste. Há cerca de 9.000 anos começou o processo de mudança climática que vai radicalizar as condições de existência na região. Ocorre uma diminuição das chuvas, iniciando-se uma gradativa transformação do clima tropical-úmido em semiárido, época em que se inicia a diáspora das comunidades humanas pertencentes à Tradição Nordeste a partir de um epicentro localizado no SE do Piauí. Pelos dados disponíveis podemos estabelecer que, em torno do nono milênio BP, grupos originários da área do atual Parque Nacional Serra da Capivara, dispersaram-se por outras regiões do Nordeste brasileiro, abandonando seu primitivo habitat. Uma das levas da diáspora se instala na região de Seridó.
Os grupos étnicos que pintaram os abrigos do Seridó, enriquecerem a sua arte originaria com elementos novos, entre os quais destacam maior riqueza nos ornamentos, na pintura corporal e nos objetos que as figuras humanas carregam.
Cenas violentas de luta e de atividade sexual estão também presentes. A escolha da região do Seridó deve-se primeiramente à existência de numerosos pontos d’água e ao fato de constituir uma área de Brejo, que teria características climáticas mais favoráveis e melhores condições de sobrevivência.
Niède Guidon, Presidente da Fundação Museu do Homem Americano, instituição que cela pelo acervo cultural do Parque Nacional Serra da Capivara, tece no Prefácio uma série de comentários oportunos e que merecem uma reflexão no dizer da própria autora ao refletir sobre a Arte Rupestre de dois mundos tão diversos e distantes, tanto no clima como nos biomas e nas representações rupestres das figuras humanas e animais. Mas, como pano de fundo dessa diversidade existe, também, um bloco cerrado de semelhanças. As populações autoras dessa arte tinham um mesmo estilo de vida de caçadores e coletores.
O Parque Nacional Serra da Capivara e a área arqueológica do Seridó na região Nordeste do Brasil abrigam centenas de sítios com pinturas rupestres notáveis por seu caráter narrativo, realizados no decorrer de milênios. É fonte inesgotável de dados para a reconstituição da vida das populações que habitaram o Nordeste do Brasil na Pré-história.
Como em Foz Côa, as gravuras do Nordeste brasileiro são sempre ligadas à presença da água, geralmente foram realizadas nas vizinhanças de corredeiras, quedas de água, ou poços profundos nos leitos dos rios. Hoje, em Foz Côa, o rio corre no fundo de um canyon estreito e profundo, na Serra da Capivara os rios secaram faz cerca de 8.000 anos e no Seridó, o rio é um fio de água.
Praticamente em todo o mundo, no mesmo momento o Homem iniciou a prática rupestre, e, na aparente diversidade de suas manifestações, encontramos sempre o mesmo fundo espiritual, a forte ligação entre essas representações e o universo mítico e estético dos homens do paleolítico que externa suas ligações com os ecossistemas no qual viviam.
Outro ponto de convergência entre as duas provincias rupestres, neste caso relativo ao mundo das relações humanas, os intereses políticos e economicos e do reconhcimento científico é que a descoberta da Arte do Côa nasceu envolta em polémica, da mesma maneira que mais de um século antes acontecera com a revelação de Altamira, embora na atualidade o Vale do Côa é hoje reconhecido como um dos primeiros e mais notáveis centros da arte paleolítica da Europa.
Da mesma forma, encontramos também que a resistencia ao cambio e ao reconhecimento do que poderia ser mais antigo e impactante do ponto de vista estético, criou polêmicas sobra a importância e a antiguidade dos registros rupestres do Nordeste do Brasil, com é também o caso do Seridó em franca fase de destruição pelos interesses das mineiradoras e da ocupação das terras.
Este livro mostra que a globalização não é um fenômeno novo. O Homem moderno vem de uma só raiz pré-histórica e sua evolução seguiu um mesmo caminho em todo o mundo, embora as manifestações do fenomeno gráfico sejam tão diferentes. O livro apresenta, também, numerosas fotografias de ambas regiões que ilustram os respectivos textos dos autores.
Daniela Cisneiros – Departamento de Arqueologia, UFPE. E-mail: danielacisneiros@yahoo.com.br
[MLPDB]Cecine: transformações no ensino de ciências no Nordeste – SILVA et. al (HCS-M)
SILVA, Ascendino Dias e; SILVA, Beatriz Coelho; LUCENA, Liacir dos Santos (Org.). Cecine: transformações no ensino de ciências no Nordeste. Recife: Editora da UFPE, 2013. 251pp. Resenha de: ZAIDAN, Tiago Eloy. Science centers and elementary education: teacher training and science communication. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22 n.4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2015.
O físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988) já era famoso quando veio ao Brasil, na primeira metade da década de 1950. Chegou a desfilar em uma pequena escola de samba, no carnaval de 1952, conforme faz saber o físico pernambucano José Leite Lopes (1918-2006),
tocando uma frigideira com uma colher. Adorou as festas de carnaval, compareceu ao baile do Teatro Municipal fantasiado de Mefistófeles e neste baile foi buscar a saída de incêndio, uma preocupação que tinha em tais ambientes, quando encontrou a porta fechada à chave – de cujo paradeiro não tinham a menor ideia os auxiliares da portaria (citado em Silva, A., 2013a, p.24).
Em solo brasileiro, Feynman – que viria a ganhar o prêmio Nobel de Física em 1965 – colheu impressões sobre a educação no país, comentadas, mais tarde, no livro autobiográfico O senhor está brincando, Sr. Feynman? Aqui, o cientista relembra um episódio em que, ministrando aula para futuros professores, no mais avançado dos módulos, constatou a metodologia de como se “aprendia” física por estas paragens. “Depois de muita investigação, descobri que os estudantes haviam decorado tudo, mas não sabiam o que queria dizer…” (citado em Silva, A., 2013a, p.22).
O nobelista notou também a deficiência dos livros de física elementar, em que resultados experimentais eram ilustres ausentes. Tais carências poderiam estar por trás do seguinte paradoxo: a despeito do notável quantitativo de estudo em física pelos jovens brasileiros, o país registrava um baixo número de físicos. A ineficiência dos métodos e instrumentos utilizados não gerava resultados.
As palavras do visitante corroborariam as ações pioneiras do professor Isaias Raw, diretor do Instituto Brasileiro de Educação, Cultura e Ciências (Ibecc), de São Paulo, órgão criado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Ciente das lacunas na literatura de física elementar em circulação no Brasil, Raw, por meio do Ibecc, articulava a tradução e a publicação de livros editados no bojo do projeto Physical Science Study Committee (PSSC) nos EUA.
A falta de estímulo dos estudantes para o aprendizado da física também havia sido um problema nos EUA. No contexto da Guerra Fria, com os avanços significativos da rival União Soviética no campo científico, o governo norte-americano passou a apoiar um projeto desenvolvido por professores de física do Massachusetts Institute of Technology, que redundou na publicação da série de livros do PSSC.
Isaias Raw, que esteve nos EUA em 1957 e conheceu o projeto, tornou-se articulador da publicação dos livros do PSSC no Brasil, ação que se transformou em um dos emblemas do Ibecc. O instituto, dirigido por Raw, acabou por inspirar o Ministério da Educação, ainda durante o governo João Goulart (1961-1964), com a tradução dos livros norte-americanos e a idealização de centros de ensino de ciências no país – rede que ficaria conhecida por Ceci.
O primeiro dos centros nasceu em Recife, no ano de 1963, a partir de um convênio entre a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e a Fundação Ford. Surgia assim o Centro de Ensino de Ciências do Nordeste (Cecine). Ao Cecine,1seguiram-se a implantação do Centro de Ensino de Ciências de São Paulo; o Centro de Ensino de Ciências de Minas Gerais; o Centro de Ensino de Ciências da Bahia, o Centro de Ensino de Ciências da Guanabara2 e, por fim, o Centro de Ensino de Ciências do Rio Grande do Sul, todos em 1965.
O advento do Cecine contou com o particular esforço do professor Marcionilo de Barros Lins. Diretor do Instituto de Química da então Universidade do Recife, futura UFPE, Marcionilo foi o primeiro gestor da entidade, cuja repercussão geraria um efeito em cadeia.Com os cursos,
estimulou-se o aparecimento de lideranças em vários estados, que se organizaram para criar outros núcleos de ensino de ciência com objetivos mais restritos. No Rio Grande do Norte, por exemplo, foi criado o Cetene, Centro de Tecnologia do Nordeste, para capacitação de professores das Escolas Técnicas Federais (Silva, A., 2013a, p.49).
Isto, em uma conjuntura na qual “havia uma carência quase absoluta de professores de ciências em Pernambuco, em particular, e no Nordeste, em geral” (Silva, B., 2013, p.58).
Tais centros se diferenciavam, sobretudo, pela metodologia experimental, com uso de equipamentos como laboratórios, propiciando uma nova visão para os docentes do ensino básico. Pari passu à consolidação dos empreendimentos, houve a publicação de materiais didáticos e oferecimento de cursos, aos quais se somaram as traduções de livros norte-americanos. Em muitos desses projetos, houve interação entre os centros.
Exemplo de obra publicada por um professor do Cecine é o opúsculo “Uma vela no laboratório”, de Luiz de Oliveira, em 1967, cujo conteúdo “É um texto que apresenta uma série de experiências simples com uma vela” (Silva, A., 2013a, p.46) – passíveis, portanto, de ser apresentadas por professores secundaristas em suas escolas – além de versar sobre a história e a importância desse apetrecho no passado.
É sobre essa história de pioneirismo e dedicação à pavimentação de uma cultura científica no Brasil que versa a obra Cecine: transformações no ensino de ciências no Nordeste, organizado pelo professor da UFPE Ascendino Flávio Dias e Silva, em coautoria com a jornalista Beatriz Coelho Silva e o professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Liacir dos Santos Lucena. O volume é composto por quatro artigos e um vasto apêndice, em que consta a transcrição de documentos da história da Cecine.
A concepção do livro é consequência de um projeto anterior, encetado pela professora Regina Maria Rabello Borges, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, cuja pesquisa inclui um resgate histórico dos centros de treinamento de professores de ciências. O artigo sobre a Cecine, no seio da pesquisa, fruto da investigação de Beatriz Silva, acabou inspirando a realização de um trabalho maior, que discorresse detalhadamente sobre o centro pernambucano.
A busca de recortes de jornais, fotografias e documentos que dessem conta da história da Cecine exigiu tempo e o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, através de edital do programa Pró-Cultura. O levantamento também não seria viável sem o mosaico possibilitado pela história oral. A colheita de depoimentos de pessoas que fizeram a história da Cecine ficou a cargo, sobretudo, da jornalista Beatriz Silva. Em menor escala, constam citações de depoimentos obtidos por Ascendino Silva e pelo também professor da UFPE Ari Luiz da Cruz, para um documentário em elaboração sobre a trajetória dos Cecis.
Um dos grandes méritos do livro é o de não resvalar para o ufanismo. Pressões vinculadas ao contexto histórico e os jogos de poder que permeiam praticamente qualquer atividade humana afetam, da mesma forma, as ciências e os esforços para popularizá-la. No artigo “Os centros de ensino de ciências em 1965”, Dias e Silva versa, por exemplo, sobre o fato de que as relações dos Cecis com a ditadura militar instaurada a partir de março de 1964 foram contraditórias. Foi sob o jugo da ditadura que os centros de ciências passaram a funcionar efetivamente, inclusive o Cecine, embora os primeiros movimentos de articulação da rede tenham sido engendrados durante o governo de João Goulart. Parte significativa dos professores envolvidos com o projeto não concordava com o regime instituído após a deposição de Jango.
A maior ironia, todavia, ficou reservada ao destino do intelectual Isaias Raw, pioneiro que buscou nos EUA as bases que, adaptadas à realidade local, inspiraram a criação dos centros de ciências e revolucionaram a educação científica no país. Raw acabou exilado (Silva, A., 2013a, p.34) por uma ditadura patrocinada pelo governo norte-americano, o mesmo país que exportou os livros do PSSC.
Com o decorrer dos anos de chumbo, inicia-se uma nova fase dos Cecis, que acontece no período em que o Brasil passa por ciclos que não foram muito bons para a educação nacional. Houve o período do Milagre Econômico (1969-1973) e em seguida a crise mundial do petróleo e o aumento da dívida externa, que fez o país amargar longo período de recessão (Silva, A., 2013b, p.116).
O governo federal, que se fazia presente por meio do Ministério da Educação e da Sudene, afasta-se dos centros de ciência e de seus programas de qualificação de professores. Em Pernambuco, o centro perde espaço e tem sua denominação alterada de “centro” para “coordenadoria”.
Em meados da década de 1980, mergulhada na ressaca dos anos da ditadura, mesmo enfrentado escassez de recursos, a Cecine emplacou, graças ao apoio de professores apo-sentados, as escolinhas de iniciação científica. Oferecidas aos estudantes do ensino básico nos períodos de férias, a iniciativa era mantida pela inscrição dos alunos – o que possibilitava a realização das oficinas, o fornecimento de lanche e a remuneração e despesas de deslocamento dos monitores.
Ainda assim, o legado da Cecine era indubitável: “Quase dois mil professores passaram por seus laboratórios, cursos e estágios de formação ou treinamento, apenas entre 1965 e 1981” (Silva, B., 2013, p.55). Com o passar das décadas, pode-se dizer, a Cecine mudou o seu foco: de formadora de professores de ciência para iniciadora de jovens e adolescentes no mundo da ciência.
Somente na metade da década de 2000, na conjuntura da política de investimentos na rede federal de ensino superior, a Cecine recuperou parte do prestígio. Inserida na Pró-reitoria de Extensão da UFPE, o antigo centro beneficiou-se de editais oficiais, publicados por agências federais e estadual, para obter recursos e tocar projetos como a série de programas televisivos “Falando de ciência e tecnologia” e a série radiofônica “Ondas da ciência”, exibidos nas emissoras do núcleo de rádio e televisão da UFPE e na TV Senado.
Cecine: transformações no ensino de ciências no Nordeste é um memorial à parte da história da ciência e de seu ensino no Brasil, especialmente no Nordeste. As conexões que a obra estabelece entre episódios do ensino de ciências no Brasil e a conjuntura sociopolítica a torna uma leitura para curiosos em geral. É interessante saber, por exemplo, como a viagem pioneira do cosmonauta soviético Yuri Gagarin ao espaço repercutiu no ensino de ciências no Brasil. O sucesso soviético foi o estopim para o desenvolvimento de uma nova metodologia na educação científica norte-americana, que, por sua vez, exportou seus métodos para o Brasil.
Referências
SILVA, Ascendino Flávio Dias e.Os centros de ensino de ciências em 1965. In: Silva, Ascendino Dias e; Silva, Beatriz Coelho; Lucena, Liacir dos Santos (Org.). Cecine: transformações no ensino de ciências no Nordeste. Recife: EdUFPE. p.17-51. 2013a. [ Links ]
SILVA, Ascendino Flávio Dias e. A Cecine algum tempo depois. In: Silva, Ascendino Dias e; Silva, Beatriz Coelho; Lucena, Liacir dos Santos (Org.). Cecine: transformações no ensino de ciências no Nordeste. Recife: EdUFPE. p.115-133. 2013b. [ Links ]
SILVA, Beatriz Coelho. Breve história do Cecine: como a verdade científica virou dúvida e experimentação. In: Silva, Ascendino Dias e; Silva, Beatriz Coelho; Lucena, Liacir dos Santos (Org.). Cecine: transformações no ensino de ciências no Nordeste. Recife: EdUPFE. p.53-113. 2013. [ Links ]
Notas
1 O Cecine, em dado momento, passou de centro a coordenadoria, motivo pelo qual, ao longo deste trabalho, ora é empregado o artigo masculino, ora, o artigo feminino, a depender do contexto temporal em que a sigla está inserida.
2Após a extinção da Guanabara, mudou de nome várias vezes. Atualmente é denominado Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro.
Tiago Eloy Zaidan – Professor, Curso de Comunicação Social/Faculdade Joaquim Nabuco. eloyzaidan@gmail.com
Arqueologia Funerária: Corpo, Cultura e Sociedade. Ensaios sobre a interdisciplinaridade arqueológica no estudo das práticas mortuárias – SILVA (CA)
SILVA, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da. Arqueologia Funerária: Corpo, Cultura e Sociedade. Ensaios sobre a interdisciplinaridade arqueológica no estudo das práticas mortuárias. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2014, 133p. Resenha de: MAIOR, Paulo M. Souto. Clio Arqueológica, Recife, v.30, n.1, p. 154-159, 2015.
O livro reúne ensaios extraídos de artigos e monografias escritas pelo autor desde 2001 e representa a primeira obra dedicada à Arqueologia Funerária publicada pela UFPE. Os temas dedicados aos estudos da Antropologia Biológica e Arqueologia Funerária são relativamente escassos na bibliografia brasileira, isso porque os resultados das pesquisas são restritos a artigos, dissertações e teses do meio acadêmico.
O livro contém vinte capítulos, todos introdutórios aos temas da Bioarqueologia e da Arqueologia Funerária, com revisões de autores anglo-saxões clássicos, como L. Binford, Tainter, O´Shea, P. Ucko, J. Brown, C. S. Larsen, Saxe, R. Chapman, I. Hodder, Douglas Ubelaker, Don Brothwell, Simon Mays, John Hunter, Tim White, W. Bass, Hertz, Bendann, Margaret Cox, Jane Buikstra, Ian Morris, Parker Pearson e os franceses Louis Vincent Thomas, Henri Duday, Pettitt e Edgar Morin.
E de fato, no Nordeste do Brasil, realizaram-se vários estudos arqueológicos sobre cemitérios históricos e pré-históricos, entretanto, esses trabalhos não fizeram, em certa medida, interpretações arqueológicas dirigidas aos dados mortuários de natureza biológica, com reconstituições dos perfis biológicos em conjunto com os perfis socioculturais, tecnológicos e funerários.
Por outro lado, a proposta do autor recai em uma abordagem que retoma à importância da relação das Ciências Biológicas, da Antropologia, dos sistemas de registro dos contextos arqueológicos com os estudos mortuários na Arqueologia e que possibilita reconstituir as relações sistêmicas entre os indivíduos, nas suas sociedades e destes com o ambiente. É o caso, por exemplo, do cemitério do Pilar2, recentemente escavado pela Fundação Seridó, e os pré-históricos: abrigo Pedra do Alexandre, escavado por arqueólogos da UFPE; sítio Justino; Furna do Estrago; e Gruta do Padre, nos quais a abordagem da Bioarqueologia e dos estudos mortuários permitiram reconstituir parcelas dos contextos arqueológicos e das relações homem/homem, homem/sociedade e homem/ambiente.
Além da diversidade de assuntos tratados sobre o tema da morte na Arqueologia, como a conceituação de Arqueologia da morte, da Bioarqueologia e alguns dos seus alcances, entre outros aspectos, o livro apresenta uma bibliografia significativa sobre esses temas multidisciplinares. Isso significa que, nesse texto, as formas de abordagem dos registros arqueológicos de natureza mortuária e funerária demandam leituras em áreas do conhecimento nem sempre permeáveis entre si, como a Anatomia e a História ou a Biologia e a Antropologia.
Levando em consideração que os estudos sobre a morte e a reconstituição de estilos de vida do passado têm representado campos de interesse da Antropologia da morte e História da morte, no âmbito das Ciências Humanas e Sociais, e que o corpo humano faz parte dos remanescentes arqueológicos encontrados nos sítios cemitérios, o fator biológico nas análises torna-se imprescindível, resultando no auxílio necessário da Antropologia física ou biológica, desde o séc. XIX. Sobre essas e outras questões, o autor desenvolve os seus capítulos.
O problema do corpo em sua amplitude material, social, simbólica e fenomenológica está inserido no rol de interesses da Arqueologia de longa data. No livro, esse problema é revisitado, e o corpo, ora visto como biofato — objeto da Osteoarqueologia —, ora como objeto de cultura material — objeto da Arqueologia e da Antropologia —, guarda em si mesmo traços de comportamento, da cultura e da sociedade no qual estava inserido. Essa perspectiva valoriza o tipo de vestígio oferecido pelos remanescentes ósseos humanos e o seu potencial de análise e interpretação.
O autor enfatiza sobre o corpo e o seu estudo na Arqueologia e a necessidade de integração das ciências tradicionalmente vinculadas ao seu estudo, como a Medicina, a Odontologia, a Biologia e as Ciências Biomédicas. Também aparecem como recorrentes as contribuições da Antropologia, da Psicologia, da Sociologia, da Filosofia, da Semiótica e da História. O conceito de população, advindo da Biologia, se interpõe — e ora se sobrepõe — ao de sociedade ou grupo humano nos estudos dos sepultamentos arqueológicos. Com esse foco, o autor enfatiza a necessidade constante da interação entre as Ciências Biológicas e a Arqueologia na produção de conhecimento científico sobre as sociedades do passado, seus estilos de vida, suas práticas funerárias, suas formas de subsistência e sua interação com o ambiente, com as doenças, com os traumas, com as anomalias, com os estresses e com as características demográficas.
Adverte o autor que, como os sepultamentos contêm dados mortuários relativos aos objetos de cultura material eventualmente associados ao morto, a exemplo da cova — ou a estrutura de sepultamento — e o corpo — ou seus remanescentes —, o estudo deve ser multidisciplinar e também com a devida inclusão das ciências como a Metrologia arqueológica, a Química e a Física arqueológica, amenizando as explicações eventualmente infundadas das Ciências Humanas. Esse talvez seja o maior mérito do texto. E, de fato, com caráter eminentemente vestigial ou fragmentário, os remanescentes das práticas funerárias nos sítios arqueológicos devem ser estudados contextualizados, e a sua espacialização é absolutamente necessária a uma interpretação arqueológica eficaz sobre cada indivíduo e na sociedade na qual viveu.
As interpretações arqueológicas dos sítios cemitérios pré-históricos no Brasil ainda merecem coletâneas de grande porte, especialmente voltadas aos níveis de confiabilidade dessas abordagens interpretativas. Nesse aspecto, o autor procurou expor a necessidade de terminologias e classificações objetivas para a descrição inicial dos sepultamentos humanos; sobre a importância da escavação meticulosa, sempre enfatizando a importância dos sistemas de registro, como a fotografia e o desenho de Arqueologia, dentre outros recursos que demandem um adequado alfabetismo visual; o uso do conhecimento da Osteoarqueologia em campo; e a curadoria de curta, média e longa duração de coleções antropológicas que estão sob a guarda de instituições de pesquisa científica, valorizando a elaboração de catálogos sistemáticos de remanescentes funerários voltados aos estudos comparados entre populações com formas de subsistência, localização geográfica e cronologia diferentes. Em outros termos, para que exista a confiabilidade em qualquer interpretação, é necessário o fundamento factual que apresente o benefício da prova científica, oferecida por um registro adequado dos vestígios funerários inseridos no contexto arqueológico e pela sua decapagem e observação alfabetizadas em campo e no laboratório.
A formulação de descritores fiáveis, passíveis de verificabilidade e reprodutibilidade mínimas, aplicados aos dados mortuários, é fundamental para a reconstituição e comparação de perfis funerários — culturais — e de perfis biológicos ou bioculturais, e a consequente interpretação arqueológica, a partir de unidades de análise, é uma advertência que o autor faz em estudos sobre a morte na Arqueologia. E, segundo ele, esse tipo de dado é muitas vezes fragmentário e incompleto. O estilo de vida, as interações ambientais, as doenças e as características socioculturais e demográficas de cada indivíduo exumado em um cemitério pré-histórico, tanto quanto o seu papel no processo de ocupação do continente americano e as suas afinidades biológicas e culturais, são possíveis, conforme propõe o livro, apenas a partir da interdisciplinaridade de todas essas áreas do conhecimento.
Por fim, cabe ressaltar que o livro apresenta um panorama da complexidade de abordagens e possibilidades mais adequadas no estudo das práticas funerárias em sociedades humanas do passado, com uma perspectiva teórica dada pela interação entre as Ciências Sociais e Humanas e as Ciências Biomédicas e exatas, sem, contudo, aprovar as apropriações hegemônicas das Ciências Biológicas sobre as arqueologias.
Nota
2 PESSIS et al.. Evidências de um cemitério de época colonial no Pilar, Bairro do Recife, PE. Revista Clio Arqueológica. V. 28, n. 1, 2013.
Paulo M. Souto Maior – Departamento de Arqueologia, UFPE.
[MLPDB]História Oral, desigualdades e diferenças – LAVERDI et. al (TH)
LAVERDI, Robson; FROTSCHER, Méri; DUARTE, Geni; MONTYSUMA, Marcos e MONTENEGRO, Antonio (Orgs.). História Oral, desigualdades e diferenças. Recife: Ed. Universitária da UFPE; Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 2012, 333p. Resenha de: GILL, Lorena Almeida. Tempos Históricos, v.17, p. 384 – 388, 2º Semestre de 2013.
Quando penso sobre a razão que me motiva a trabalhar durante tantos anos com a metodologia de História Oral, a resposta que encontro é, certamente, pela possibilidade de conhecer tantas pessoas com suas memórias comovedoras. Memórias como as reveladas por Roseli Boschilia (2012, p. 107), que entrevistou imigrantes portugueses, dentre eles, Maria Helena, a qual contou sobre a sua partida de Portugal e do sofrimento advindo deste fato, quando ainda era uma menina pequena: Fui arrancada dos braços de minha avó, eternamente enlutada e cega; arrancada do chão de minha terra, dos sons, das cores e dos cheiros de minha aldeia para ser ‘plantada’ em São Paulo […] Vivi com minha mãe durante 12 anos na casa da família onde ela trabalhava como doméstica. Minha mãe fugira dos ‘trabalhos sem fim dos campos’ para acabar por definhar no ‘trabalho sem fim como empregada’, numa casa alheia, numa pátria alheia, longe dos seus.
História Oral, desigualdades e diferenças, livro organizado por Robson Laverdi, Méri Frotscher, Geni Rosa Duarte, Marcos Freire Montysuma e Antonio Torres Montenegro nos apresenta narrativas como a de Maria Helena e de tantos outros depoentes, que fazem com que paremos para refletir, a cada parte de sua leitura, sobre a necessidade de se construir memórias infames, no dizer de Michel Foucault (2003), e dos seus sentimentos, sofridos, alegres, banais, cotidianos.
O livro, publicado em parceria pelas Editoras da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Federal de Santa Catarina, foi gestado durante o V Encontro Regional Sul de História Oral, realizado no ano de 2009, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon, tendo como eixo de organização as mesas que ocorreram durante a programação do evento e as discussões realizadas.
O livro é tão diverso quanto foi a proposta do encontro, refletindo sobre Teoria, prática do historiador, questões vinculadas à memória e à subjetividade, as cidades, os movimentos sociais, os processos migratórios, o ensino e a história oral como ferramenta de reflexão na ação. Há, no entanto, um fio condutor que organiza o material, ou seja, uma necessidade de trocar experiências tão ricas, como aquelas produzidas em diferentes universidades do Brasil e do exterior, especialmente da Argentina e do Canadá.
Na primeira parte do material, Regina Beatriz Guimarães Neto, Antonio Torres Montenegro, Marcos Fábio Freire Montysuma e Pablo Alejandro Pozzi analisam as fontes orais e o ofício do historiador. Ainda que discutam sobre práticas de pesquisa, constituição de fontes, autorização de cessão de uso de relatos, utilização de testemunhos, o que chama a atenção é a trajetória de cada um dos autores relacionada à história oral. Seus textos revelam experiência e cuidado ao tratar da metodologia, ao mesmo tempo em que há certo militantismo, no que diz respeito às suas escolhas profissionais. Seus textos e seus percursos lembram muito um dos escritos de Portelli (1997, p. 15), no qual reflete sobre ética e assim diz: […] compromisso com a honestidade significa, para mim, respeito pessoal por aqueles com que trabalhamos, bem como respeito intelectual com o material que conseguimos; compromisso com a verdade, uma busca utópica e a vontade de saber ‘como as coisas realmente são’, equilibradas por uma atitude aberta às muitas variáveis de ‘como as coisas podem ser’.
Na segunda parte, Benito Bisso Schmidt e Roseli Boschilia transitam com maestria pelos temas da história oral, da memória e das subjetividades. Benito se propõe a realizar uma discussão mais teórica, ao reforçar a necessidade de se utilizar a noção de subjetividade de forma profunda no momento da análise da narrativa; Roseli, ao apresentar um trabalho realizado com imigrantes portugueses, nos brinda com entrevistas plenas de sentimentos. Três homens e uma mulher portugueses, que vivem em Curitiba atualmente, falam de suas origens, da nostalgia, da saudade, em relatos onde o passado, o presente e o futuro se entrelaçam.
Na terceira parte, os temas da cidade e da diferença aparecem com ênfase. Marcos Alvito conta sobre seus primeiros trabalhos com história oral, em Acari, para chegar a uma pesquisa mais recente, construída em 2009, com descendentes de escravos do quilombo São José da Serra, município de Valença, Rio de Janeiro. Relata o autor algumas narrativas, dentre elas a de Nathanael, que compara uma árvore, o jequitibá, à comunidade de ex-escravos. Alvito usa as falas de narrador e de outros depoentes para observar a complexidade de um relato, o qual necessita de profunda análise e interpretação por parte do historiador. Já Luiz Felipe Falcão toma como estudo de caso a capital de Santa Catarina, Florianópolis, buscando revelar que ainda que existisse um discurso construído de que a cidade fosse uniforme culturalmente, os outros (moradores de bairros populares, negros, pessoas vindas de fora) estavam sempre lá para mostrar o quanto havia a diversidade e a desigualdade. Por fim, Robson Laverdi aborda a alteridade gay, a partir da maneira como eles lidam com o preconceito e a homofobia. O discurso de um deles, denominado Márcio, um jovem nascido na zona rural que passa a viver na cidade de Assis Chateaubriand, ao trabalhar em um frigorífico, revela uma forma de se forjar em espaços absolutamente discriminatórios. Não se trata, no entanto, de uma narrativa lacrimosa ou algo que o valha, mas da constituição de uma identidade. No dizer de Candau (2011, p. 76): Quando um indivíduo constrói sua história, ele se engaja em uma tarefa arriscada consistindo em percorrer de novo aquilo que acredita ser a totalidade de seu passado para dele se apropriar e, ao mesmo tempo, recompô-lo em uma rapsódia sempre original. O trabalho da memória é, então, uma maiêutica da identidade, renovada a cada vez que se narra algo.
No quarto tópico, o qual versa sobre os movimentos sociais, Davi Félix Schreiner observa que, por muito tempo, os trabalhadores rurais não tiverem espaço na historiografia, situação que foi sendo alterada com o uso da metodologia de história oral. Utilizando o conceito de liminaridade e a categoria de subjetividade, revela um amplo espectro para o que pode ser chamado de trabalhadores sem-terra, analisando narrativas, sobretudo, vinculadas à vida em acampamentos. Mônica Gatica, por seu turno, procura compreender a dinâmica dos movimentos sociais e dos “novos movimentos”, que surgem na América Latina, a partir dos anos de 1980 e para isso se utiliza de vários teóricos imprescindíveis para a História Oral; ainda há Pablo Ariel Vommaro, o qual discute a organização do Movimento dos Trabalhadores Desempregados de São Francisco Solano, que se constituiu a partir de 1997, em Quilmes, sul da grande Buenos Aires. O foco são os trabalhadores urbanos e os processos de constituição de redes sociais. Nessa conjuntura, a História Oral, para o autor, é mais do que uma metodologia, mas uma maneira de aproximação da realidade.
A quinta parte, versando sobre migração, memória e identidade, traz textos de Alexander Freund e Méri Frotscher. Alexander reflete sobre os imigrantes, afirmando que, muitas vezes, se sentem perdidos entre dois mundos. O fato de não compartilharem uma memória coletiva (conceito que reverencia como fundamental para a análise dos processos de deslocamento) no novo país em que estão, faz com que se vejam em uma espécie de meio do caminho. Para o autor, no entanto, não se trata de uma história apenas de perdas, mas também de possibilidades, ao se construir ricos intercâmbios culturais. Méri Frotscher, por sua vez, observa as possibilidades de se relacionar as fotografias de migrantes e as fontes orais. Tendo em vista dois estudos de casos, de jovens do Paraná que foram trabalhar, de forma temporária, na Áustria e na Suíça, a partir dos anos de 1970, a autora analisa os “olhares sobre a alteridade”, presentes nas narrativas orais e visuais dos depoentes, percebendo que o uso das duas fontes permite compreender, de forma mais significativa, as experiências e os sentimentos dos migrantes.
Na última parte, Geni Rosa Duarte e Bibiana Andrea Pivetta analisam as experiências no campo do ensino. Geni, ao trabalhar com as migrações, advoga o direito ao conhecimento do passado de forma plural. Não basta para a autora dar voz aos antigos moradores, sem que se aceite os novos personagens, que se colocam no presente. A escola deve se abrir para o que não é homogêneo, para o que traz o antagonismo, para o que faz pensar sobre a realidade social. Por sua vez, Bibiana apresenta o projeto Aborígine para a Integração, o qual utiliza a história oral como ferramenta didática para um maior conhecimento de saberes tradicionais. Segundo a autora, através da metodologia, é possível conhecer melhor a sociedade pluricultural em que a comunidade está inserida, fazendo com que as crianças reflitam sobre suas origens e vivências.
Na apresentação do livro é revelado que seu eixo argumentativo principal foi a construção de um diálogo, nos campos interinstitucionais e internacionais. A dialogicidade é construída pelo fato de que vários desses autores convivem em encontros de área, os quais buscam estabelecer um bom debate sobre as pesquisas em andamento e as já realizadas. Igualmente, participam de programas de pós-graduação, que possuem forte interlocução com a metodologia. Há ainda aqueles que se organizam a partir de redes, como a Rede Latinoamericana de Historia Oral, que tem como pretensão difundir as produções existentes.
O livro, mesmo com abordagens tão diversas, e este é o seu fundamento, consegue proporcionar uma visão ampla sobre como se articula o trabalho com a metodologia atualmente, ao mesmo tempo em que debate ferramentas vinculadas à práxis histórica e incita discussões sobre novos temas a serem pesquisados. Torna-se, dessa maneira, uma bibliografia fundamental, tanto para graduandos quanto para pesquisadores mais experimentados.
Referências
CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.203-222.
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética na História oral. Projeto História. São Paulo (15), abril de 1997, p. 13- 49.
Lorena Almeida Gill – Professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: lorenaalmeidagill@gmail.com.
Cultura, identidade e território no nordeste indígena: os Fulni-ô – SCHRÖDER (E-CHH)
Peter Schröder. Ascom/UPE/2019.
SCHRÖDER, Peter (org.). Cultura, identidade e território no nordeste indígena: os Fulni-ô. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012. Resenha de: OLIVA, Edson Silva. Os Fulni-ô: quem são esses índios? Múltiplos olhares para o reconhecimento das sociodiversidades indígenas no Brasil. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus, v.14, n.25, p.237-243, jul./dez., 2013.
Em se tratando dos “índios”, no geral e mesmo ainda no meio acadêmico, após alguns anos de pesquisas e de convivência nesse ambiente com colegas de diferentes áreas do conhecimento, constatamos que um dos maiores desafios é a superação de visões exóticas para abordagens críticas, aprofundadas sobre a história, as sociodiversidades indígenas e as relações dos povos indígenas com e na nossa sociedade. Isso vale tanto mais quando diz respeito às singularidades de povos como os Fulni-ô, falantes do Yaathe e do Português, sendo o único povo bilíngue no Nordeste (excetuando o Maranhão), habitando em Águas Belas no Agreste pernambucano, cerca de 300 km do Recife.
Sobre as sociodiversidades indígenas, em nosso país o índio Gersem Baniwa (os Baniwa habitam as margens do Rio Içana, em aldeias no Alto Rio Negro e nos centros urbanos de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos/AM), que é Mestre e recém-Doutor em Antropologia pela UnB, publicou o livro O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, no qual escreveu: A sua diversidade, a história de cada um e o contexto em que vivem criam dificuldades para enquadrá-los em uma definição única. Eles mesmos, em geral, não aceitam as tentativas exteriores de retratá-los e defendem como um principio fundamental o direito de se autodefinirem. (BANIWA, 2006, p.47)
Após discorrer sobre as complexidades das organizações sociopolíticas dos diferentes povos indígenas nas Américas, questionando as visões etnocêntricas dos colonizadores europeus, o pesquisador indígena ainda afirmou: Desta constatação histórica importa destacar que, quando falamos de diversidade cultural indígena, estamos falando de diversidade de civilizações autônomas e de culturas; de sistemas políticos, jurídicos, econômicos, enfim, de organizações sociais, econômicas e politicas construídas ao longo de milhares de anos, do mesmo modo que outras civilizações dos demais continentes europeu, asiático, africano e a Oceania. Não se trata, portanto, de civilizações ou culturas superiores ou inferiores, mas de civilizações e culturas equivalentes, mas diferentes. (BANIWA, 2006, p. 49)
Na introdução do livro aqui resenhado, o organizador da coletânea, Peter Schröder, antropólogo e professor no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), de forma bastante emblemática e provocativa, afirmou: “É fácil escrever sobre os Fulni-ô”, e para isso basta recorrer a uma bibliografia existente. Mas, no parágrafo seguinte, Schröder enfatiza que, apesar da literatura disponível, é difícil escrever sobre aquele povo indígena, em virtude do desconhecimento resultante de barreiras impostas pelos Fulni-ô que impedem o acesso a sua organização sociopolítica e expressões socioculturais, notadamente a língua e o ritual religioso do Ouricuri, e também em razão das contestações e questionamentos dos índios aos escritos a seu respeito, elaborado por pesquisadores, mais especificamente pelos antropólogos.
Após o texto, no qual o organizador da coletânea procurou situar de forma resumida a história territorial Fulni-ô, segue-se o texto de Miguel Foti que resultou da Dissertação de Mestrado na UnB em 1991, na qual o antropólogo procurou descrever e refletir, a partir do cotidiano durante seu trabalho de campo, o universo simbólico Fulni-ô, baseado na resistência do segredo das expressões socioculturais daquele povo indígena.
O texto seguinte de Eliana Quirino, que teve sua promissora trajetória de pesquisadora interrompida com o seu falecimento em outubro de 2011, é uma discussão baseada principalmente na sua Dissertação de Mestrado em Antropologia/UFRN. Tendo como base as memórias Fulni-ô, a exemplo do aparecimento da imagem de N. Sra. da Conceição, a participação indígena na Guerra do Paraguai, a marcante e sempre remorada atuação do Pe. Alfredo Dâmaso em defesa dos índios em Águas Belas, a autora discutiu como essas narrativas são fundamentais para afirmação da identidade indígena e os direitos territoriais reivindicados.
Um exercício em discutir a identidade étnica a partir do próprio ponto de vista indígena foi realizado no texto seguinte, por Wilke Torres de Melo, indígena Fulni-ô formado em Ciências Sociais pela UFRPE e atualmente realizando pesquisa de mestrado sobre o sistema político Fulni-ô. Em seu texto, Wilke procurou evidenciar as imbricações entre identidade étnica e reciprocidade entre os Fulni-ô, discutindo as relações endógenas e exógenas de poder vistas a partir do princípio da união, do respeito e da reciprocidade baseados na expressão Fulni-ô Safenkia Fortheke, que segundo o autor caracteriza e unifica aquele povo indígena.
A participação de Wilker na coletânea é significativa por se tratar de uma reflexão “nativa”. Além disso, como informa o organizador na introdução do livro, em iniciativa inédita todos os artigos foram enviados ao pesquisador indígena antes da publicação para serem discutidos entre os Fulni-ô, como forma de apresentarem sugestões e as “visões Indígenas” sobre conteúdos dos textos.
Uma contribuição com uma abordagem diferenciada é o artigo de Carla Siqueira Campos, resultado de sua Dissertação em Antropologia/ UFPE, na qual a autora discute a organização e produção econômica Fulni-ô fundada no acesso aos recursos ambientais no Semiárido, nas diferentes formas de aquisição de recursos econômicos por meios de salários, aposentadorias e os tão conhecidos “projetos” e as suas influências na qualidade de vida dos indígenas.
O artigo seguinte da coletânea, de autoria de Áurea Fabiana A. de Albuquerque Gerum, uma economista, e Werner Doppler, estudioso alemão de sistemas agrícolas rurais nos trópicos, a primeira vista parece muito técnico em virtude das várias tabelas e gráficos.
Seus autores discutiram com base em dados empíricos as relações entre a disponibilidade de terras, a renda das famílias e o uso dos recursos produtivos entre os Fulni-ô.
No último artigo da coletânea, Sérgio Neves Dantas abordou como as músicas Fulni-ô expressam aspectos da memória identitária e mística daquele povo indígena. O autor procurou também evidenciar a dimensão poética e sagrada dessa musicalidade. Sua análise baseia-se, sobretudo, na produção musical contemporânea gravada por grupos de índios Fulni-ô, como forma de afirmação da identidade étnica daquele povo.
Publicado como primeiro volume da série Antropologia e Etnicidade, sob os auspícios do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE), um dos núcleos de pesquisas no PPGA/UFPE, o livro é composto por sete artigos e completado com uma relação bibliográfica comentada sobre os Fulni-ô, trazendo ainda em anexo vários documentos relativos às terras daquele povo indígena.
A publicação dessa coletânea é muito oportuna pelo fato de reunir um conjunto de textos com diferentes olhares e abordagens que procuram fugir do exotismo, como também do simplismo em tratar sobre um povo tão singular, situado no contexto sócio-histórico do que se convencionou chamar-se Nordeste brasileiro, onde a presença indígena foi em muito ignorada pelos estudos acadêmicos e deliberadamente negada, seja pelas autoridades constituídas, seja também pelo senso comum.
Diante exíguo conhecimento que se tem sobre os Fulni-ô e da dispersão dos poucos estudos publicados a respeito daquele povo indígena, provavelmente a primeira edição dessa importante coletânea será brevemente esgotada. Pensando em uma segunda edição seguem sugestões. A primeira diz respeito ao próprio título do livro, pois da forma com consta, ao serem referenciados, os Fulni-ô aparecem como última parte do título: Cultura, identidade e território no Nordeste indígena: os Fulni-ô. Para um efeito prático da referenciação bibliográfica, propomos então uma inversão no título para: Os Fulni-ô: cultura, identidade e território no Nordeste indígena.
Sugerimos também a inclusão de mapas de localização que compreendam o Nordeste, Pernambuco, o Agreste e Águas Belas, onde habitam os Fulni-ô. A nosso ver é tal mapa imprescindível, pois possibilitará a visualização do povo indígena em questão e o contexto das relações históricas e socioespaciais em que o grupo está inserido. Sabemos que imagens de uma forma em geral encarecem a produção bibliográfica, todavia a inclusão de fotografias, ao menos em preto e branco, também enriqueceria muito as abordagens dos textos.
Por fim, uma pergunta: para enriquecer mais ainda a coletânea, por que não acrescentar na Introdução de uma reedição comentários sobre quais foram as argumentações dos Fulni-ô a respeito das leituras prévias dos textos antes da publicação e como ocorreu a recepção daquele povo ao receber o livro publicado? Lamentamos a ausência na coletânea de artigos na área de História. Infelizmente, frente ainda ao pouco interesse de historiadores sobre a temática, colegas de outras áreas, principalmente da Antropologia, cada vez procuram suprir essa lacuna, realizando pesquisas em fontes históricas para embasarem seus estudos e reflexões a respeito dos povos indígenas.
Ainda para uma segunda edição, ou um possível e merecido segundo volume da coletânea, lembramos o estudo A extinção do Aldeamento do Ipanema em Pernambuco: disputa fundiária e a construção da imagem dos “índios misturados” no século XIX, apresentado em 2006 por Mariana Albuquerque Dantas como Monografia de Conclusão do Curso de Bacharelado em História/UFPE.
A mesma autora defendeu na UFF/RJ, em 2010, a Dissertação de Mestrado intitulada História dinâmica social e estratégias indígenas: disputas e alianças no Aldeamento do Ipanema em Águas Belas, Pernambuco.
(1860-1920). São duas pesquisas baseadas amplamente em fontes históricas disponíveis no Arquivo Público Estadual de Pernambuco e nas discussões da produção bibliográfica atualizada sobre os povos indígenas no Nordeste.
No momento em que a sociedade civil no Brasil, por meio dos movimentos sociais, principalmente na Educação, questiona os discursos sobre uma suposta identidade cultural nacional, a publicação dessa coletânea reveste-se, portanto, de um grande significado. A afirmação das sociodiversidades no país, questionando a mestiçagem como ideia de uma cultura e identidade nacional, significa o reconhecimento dos povos indígenas (SILVA, 2012), a exemplo dos Fulni-ô, em suas diferentes expressões socioculturais.
Busca-se compreender as possibilidades de coexistência socioculturais, fundamentada nos princípios da interculturalidade, A interculturalidade é uma prática de vida que pressupõe a possibilidade de convivência e coexistência entre culturas e identidades.
Sua base é o diálogo entre diferentes, que se faz presente por meio de diversas linguagens e expressões culturais, visando à superação de intolerância e da violência entre indivíduos e grupos sociais culturalmente distintos. (BANIWA, 2006, p. 51)
Essa coletânea é uma excelente referência tanto para pesquisadores especializados no estudo da temática indígena, como para as demais pessoas interessadas sobre o assunto e principalmente professores indígenas e não-indígenas que terão em mãos uma fonte de estudos sobre o tema, mais precisamente ainda na flagrante ausência de subsídios, objetivando atender as exigências da Lei 11.645/2008, que determinou a inclusão do ensino da história e culturas dos povos indígenas nas escolas públicas e privadas no Brasil.
Referências
BANIWA, G. dos Stos. L. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: MEC: Secad; Rio de Janeiro: Museu Nacional: UFRJ, 2006.
DANTAS, M. A. A extinção do Aldeamento do Ipanema em Pernambuco: disputa fundiária e a construção da imagem dos “índios misturados” no século XIX. 2006. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.
______. História dinâmica social e estratégias indígenas: disputas e alianças no Aldeamento do Ipanema em Águas Belas, Pernambuco (1860-1920). 2ooo. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
SILVA, E. História e diversidades: os direitos às diferenças. Questionando Chico Buarque, Tom Zé, Lenine… In: MOREIRA, H. A. (org.). Africanidades: repensando identidades, discursos e ensino de História da África. Recife: Livro Rápido: UPE, 2012.
Edson Silva Oliva – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: edson.edsilva@hotmail.com Recebido em: 09/09/2013.
[IF]
O cangaço nas batalhas da memória – SÁ (PL)
“Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava.” É precisamente esse movimento de escavação extraído da proposição benjaminiana que a escrita de Fernando Sá empreende, ao configurar o recorte de passado do nordeste brasileiro, conhecido metonimicamente pelo termo cangaço. (BENJAMIN, 1997, p. 239). A familiaridade, aludida por Benjamin, entre explorador do meio de memória e o passado que busca, pela palavra, configurar, se depreende já na leitura do prefácio da obra, quando sua genealogia entre adjuvantes do cangaço é exposta. É, pois, no terreno do próprio passado que esse herdeiro de memórias, por assim dizer, escava. Legado que confere ao texto de Sá certa licenciosidade na escolha dos objetos de pesquisa, bem como no tratamento dos dados coletados e na (des) crença em relação às fontes. Leia Mais
Os Padres e a Teologia da Ilustração – Pernambuco 1817 – Antônio Jorge Siqueira
O historiador Manuel de Oliveira Lima, em seus escritos, relata que a Revolução Pernambucana de 1817 poderia também ser conhecida como A Revolução dos Padres. Não era para menos, a participação dos clérigos foi bastante vultosa, misturando as mais variadas ordens eclesiásticas e os seus diversos graus hierárquicos em um movimento que rompeu laços com o Império Lusitano por mais de 70 dias. Em 1817, o extenso bispado da Diocese de Olinda se encontrava vago, pois por volta de 1815 o clérigo que exercia a sua direção havia viajado à corte no Rio de Janeiro para receber a sagração episcopal (BERNARDES, 2006) e até então não retornara. Nesse ínterim, o cabido ficou responsável pelo controle do bispado, tendo o Deão Bernardo Luiz Ferreira Portugal como a sua maior autoridade. Rebentada a revolução em 06 de março de 1817, o deão apoiou o movimento com entusiasmo, emitindo ordens a toda a diocese e a todos os padres, para que abraçassem a pátria [1] e logo instruíssem os fiéis a fazer o mesmo. Além da adesão da maior autoridade eclesiástica do bispado à revolução, outro padre, João Ribeiro Pessoa de Mello Montenegro, Professor de desenho do Seminário de Olinda, foi um dos governadores que compôs a junta governativa, formada por cinco membros. Exemplos não faltarão sobre a participação do clero em 1817: além de ocuparem cargos governando a revolução, serviram como soldados, comandantes de tropas, emissários, propagadores dos ideais revolucionários e até o cronista por excelência de 1817 também era membro do clero. Trata-se de Francisco Muniz Tavares que nos legou a obra História da Revolução de Pernambuco em 1817, publicada pela primeira vez em 1840, um clássico da historiografia obrigatório para quem quiser entender o movimento de 1817. Leia Mais
Entre Geografia e Geosofia – MACIEL (BGG)
MACIEL, Caio A. A. (Org.). Entre Geografia e Geosofia: abordagens culturais do espaço. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. 247 p. Resenha de: SANTOS, Julyana Gomes. Boletim Goiano de Geografia. v. 30 n. 2 , jul./dez., 2010.
O livro, Entre geografia e geosofia: abordagens culturais do espaço – organizado por Caio Maciel, professor do Departamento de Ciências Geográficas da UFPE, apresenta a espacialidade da cultura na discussão de diferentes trabalhos elaborados sob diversas abordagens.
O conceito de geosofia é assim apresentado, representando o interesse de estudiosos pela renovação do campo da geografia humana. A obra está dividida em quatro eixos centrais: Cultura e espaço rural; Cultura, espaço urbano e políticas públicas; Cultura e turismo; Representações cinematográficas do espaço. No todo a obra é uma publicação do Laboratório de Estudos sobre Espaço e Cultura da Universidade Federal de Pernambuco (LECgeo) e nos traz um debate rico sobre a materialidade da cultura, com abordagens de diferentes trabalhos, sendo de fundamental relevância a abordagem interdisciplinar como meio para se compreender a renovação do modo de olhar a simbologia encontrada na paisagem, quer seja no espaço agrário, urbano, turístico ou cinematográfico.
O prefácio, de Jorge Luiz Barbosa – UFF, observa aspectos contraditórios na heterogeneidade e riqueza cultural do interior da sociedade brasileira. Enfatiza a cultura como prática socioespacial e propõe o desafio de “reconhecer a cultura como campo de cognição da sociedade e, simultaneamente, como modo de vida”. Devemos, pois, ir além da ideia de cultura como um sistema abstrato e como modismo dominante.
A Parte I nos traz três trabalhos que discutem paisagens encontradas no espaço rural. O primeiro, que se intitula “Agricultura familiar agroecológica na Mata Pernambucana: desenvolvimento territorial rural e identidade cultural”, é elaborado por Robson Soares Brasileiro e Caio Maciel.
A discussão está voltada para a prática da agroecologia num território onde domina até hoje a monocultura da cana-de-açúcar, como dinâmica econômica de base. Os autores destacam a prática da agricultura alternativa, observando as consequências da agricultura homogeneizada como a da cana – sua relação tanto ambiental (de degradação do meio ambiente), quanto de degradação do agricultor que trabalha em seu cultivo – e inscrevem a prática agroecológica familiar como forma de desenvolver o território rural, atrelado ao estímulo à identidade e ao desenvolvimento de uma agricultura que leve em conta a essência humana. Algumas conquistas obtidas pela organização dos trabalhadores, associadas às peculiaridades do desenvolvimento da agroecologia, agregam também a esta produção familiar o valor da arte vivenciada e trocada com outros agricultores.
O trabalho “Yes, nós temos bananas: globalização e bananicultura no mundo e no Brasil”, desenvolvido por Gleydson Albano, discute o processo de globalização da banana, começando por sua importância para o comércio de alimentos e chegando às características da implantação da multinacional Fresh Del Monte Produce no semiárido nordestino. Mostra a multinacional da bananicultura no Brasil como exemplo de produção de modelo fordista e do uso intensivo de biotecnologia. Discorre sobre a tendência que apresentam hoje multinacionais em fundir empresas de modo a dar conta do processo de produção, transporte e comercialização, influenciando o território com fatores sociais e culturais (novos hábitos alimentares), fatores tecnológicos (sistemas integrados de abastecimento), fatores econômicos (crescimento da demanda do produto). A Del Monte Fresh Produce encontra no território fatores favoráveis à sua instalação. É neste território que esta commodity se desenvolve, sobretudo com a mudança de hábitos da população mundial através de uma conscientização acerca da importância de uma alimentação saudável – a produção orgânica –, ao mesmo tempo em que deixa no território sua marca de exploração do trabalhador.
“Olhares para o semiárido: meio ambiente e o programa Um Milhão de Cisternas no Nordeste” é o trabalho desenvolvido por Emílio Pontes, que traz a lume o debate sobre as políticas públicas implementadas no Nordeste brasileiro e a resposta da população a estas políticas, relacionando o homem ao meio. Este capítulo desfaz o estigma em relação à seca e à visão do sertanejo como mártir. A argumentação principal centra-se na construção de cisternas com a participação da população envolvida e de setores da sociedade local. São abordados assuntos como: qualidade de vida, acesso à água potável, descentralização no consumo da água e mobilização social da comunidade local. Além disso, o texto mostra que o conhecimento do agricultor intercruza com questões do ciclo da natureza, e que as técnicas por eles utilizadas são resultado de uma cultura rica de valores ancestrais.
O primeiro trabalho da Parte II do livro, de autoria de Bruno Maia Halley, intitula-se: “Da Encruzilhada a Água Fria: revisitando o bairro para pensar a identidade do lugar na Cidade do Recife (PE)”. O trabalho coloca a “concepção de bairro, entendendo-o como lugar demarcado afetivamente, [concepção] mais atrelada à corrente humanística”, afirmando a complexidade de pensar sobre o bairro. Propondo a análise dos bairros da Encruzilhada, Arruda, Ponto de Parada e Água Fria, considera a historicidade do lugar, percebendo uma correlação entre a denominação dos bairros e suas características, sejam elas ambientais ou características relacionadas ao desenvolvimento da cidade. Estes bairros são relevantes com relação às manifestações culturais locais, às vezes associadas a formas de comemoração mais “globais” (Natal e Ano Novo); da mesma forma um estádio de futebol é importante para a identidade do bairro, o Arruda, o que é irradiado para os demais. Apesar de a modernidade influenciar o cotidiano dos lugares, seus hábitos são capazes de fazer deles “lugares- -chaves” “ou lugares-símbolos”, reforçando a ideia de “coração de bairro”.
Douglas Carvalho Francisco Viana e Isolda Belo da Fonte apresentam o texto “Envelhecimento populacional no Recife: um estudo sobre as demandas nos serviços de saúde e equipamentos urbanos da cidade” em que discutem o processo de envelhecimento da população observado na cidade do Recife que acompanha a tendência mundial. Os autores analisam o funcionamento dos serviços de saúde oferecidos a esta população e salientam a importância dos equipamentos urbanos que possibilitam a promoção de um envelhecimento ativo e favorecem a qualidade de vida desta população idosa.
“Política nacional de cultura: antecedentes e reflexões atuais” é o trabalho elaborado por Alba Lúcia da Silva Marinho, que explana sobre as políticas de cultura desenvolvidas no Brasil desde a colonização, colocando que só a partir do regime autoritário é que estas políticas passaram a ser mais sistemáticas. Avalia algumas políticas nacionais de cultura, como o primeiro Plano Nacional de Cultura, de 1976, o Programa Cultura Viva, implantado em 2004, enfatizando essencialmente uma de suas ações: os Pontos de Cultura. A análise mostra a importância da descentralização dessas ações e da parceria entre o Ministério da Cultura e órgãos culturais estaduais para a ampliação dos nós culturais.
O primeiro trabalho da Parte III – “Sítios arqueológicos e comunidades tradicionais: visitar e preservar” – foi escrito por Alba Lúcia da Silva Marinho e Gilvandro da Cunha Marinho Júnior, autores que analisam o crescimento do turismo cultural e o associam ao processo de globalização e à busca de identidade pelos indivíduos; focalizam a cultura como motivação da atividade turística que não se limita apenas aos atrativos naturais. Em meio às discussões, analisam o caso do Sítio Leitão da Carapuça, em Afogados da Ingazeira, referência de comunidade quilombola que mantém sua memória, suas práticas tradicionais e sua identidade.
No capítulo seguinte, “Turismo e representações geográficas: um ensaio sobre a construção de paisagens-metonímias no litoral do Nordeste Brasileiro”, de Paulo Baqueiro Brandão, apresenta-se uma abordagem sobre o imaginário das pessoas, construído a partir do marketing feito pelo turismo. O estudo toma como exemplo o turismo desenvolvido no litoral nordestino, analisando os mecanismos utilizados pela mídia na promoção de uma imagem das praias que geralmente entra em confronto com a realidade concreta. Segundo o autor, a moldura de novas paisagens se configuram desconsiderando sua historicidade, a partir de diversas construções que dão novas características ao lugar.
O primeiro estudo da Parte IV, que se intitula “Paisagens em movimento: ensaio sobre as análises do cinema pela geografia”, é desenvolvido por Pedro Maia Filho. O autor considera as representações cinematográficas como possibilidade de estudo da Geografia, especificamente no campo da abordagem cultural, campo que vem sendo renovado. A observação das imagens, junto ao discurso, à trilha sonora etc., torna latente uma interpretação da realidade por meio do “impulso imaginativo” dos produtores dos filmes, o que pressupõe a paisagem como meio de compreender a imagem e o imaginário.
“Paisagem, música popular e o imaginário do sertão em filmes recentes” é o capítulo desenvolvido por Kátia Maciel. A partir de filmes nacionais recentes, a autora analisa ressignificações do sertão, observando que o imaginário reconstituído na música e no cinema interfere nos fenômenos transcorridos no espaço físico, uma vez que a identidade territorial incorpora novos significados. A paisagem cultural, construída hoje a partir das interpretações fílmicas de “um outro” sertão desmistificam a imagem edificada de um Sertão de seca, miséria e “pureza”, agregando valores que sempre existiram na região.
No artigo “Imaginário geográfico do São Francisco no filme Na veia do rio: do sertão à foz do baixo São Francisco” de Cláudio Ubiratan Gonçalves e Glauco Vieira Fernandes, que encerra a obra, os autores dialogam com o filme-documentário da geógrafa Ana Rieper na perspectiva do imaginário geográfico, explicitando as lutas sociais e o modo de vida da região através da paisagem fílmica. Esta paisagem está relacionada também à ideia de espaço vivido, o espaço da percepção e materialidade do homem desenvolvido pelas experiências com o lugar social. Além de refletir sobre questões socioambientais, os autores apresentam três linhas de indagações ao significado da paisagem no filme: aquelas relacionadas aos relatos das pessoas, que são elaborados a partir de sua memória em relação ao espaço material; uma segunda, pautada nos relatos não locais, como aquele colocado pela documentarista, que direciona a construção do raciocínio; a terceira que alude à interpretação do geógrafo, como pesquisador, sobre relações estabelecidas no sistema cultural. Por tudo isto está posto o convite à leitura do livro.
Julyana Gomes dos Santos – Graduada em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco.
Cultura, gênero e infância: nos labirintos da história – NASCIMENTO; FARIA GRILLO (REF)
NASCIMENTO, Alcileide Cabral do; FARIA GRILLO, Maria Ângela de. Cultura, gênero e infância: nos labirintos da história. Recife: Editora Universitária UFPE, 2008. 282 p. Resenha de: SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Ariadne da infância e do gênero: deslindando labirintos culturais. Revista Estudos Feministas v.18 n.2 Florianópolis May/Aug. 2010.
Publicar uma coletânea de artigos é amalgamar desejos e inquietações. Fruto de pesquisas e encontros do Grupo de Estudos em História Social e Cultural (GEHISC) sediado na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), o livro Cultura, gênero e infância: nos labirintos da história consolida a ideia de que pesquisas são necessariamente a combinação entre paixão, rigor teórico-metodológico e esforço coletivo de reflexão e debate. O livro composto de 14 artigos e dividido em três partes abarca diferentes aspectos e olhares sobre o universo da cultura, gênero e infância.
Na primeira parte, “Cultura e cidade”, três autores dão conta do entendimento dos espaços urbanos como lugares de experiências humanas e de grupos heterogêneos que disputam constantemente espaços e poder. As cidades são percebidas como invenções sociais, pois se constituem e se representam através das relações entre o homem e a natureza, a concretude do ambiente visível e as sensibilidades sutis que se constroem no trânsito dos sujeitos nos espaços.
O texto de Durval Albuquerque vem, em uma defesa apaixonada da Nova História Cultural, reiterar a necessidade de um novo olhar para os saberes e duplos do conhecimento histórico, as brechas na teia de Ariadne, que a História tradicional acreditava serem fiapos sem relevância na trama. Ao analisar o livro de José Saramago O homem duplicado,1 o autor tece uma série de considerações e questionamentos epistemológicos da Historiografia brasileira. As subjetividades, os novos métodos e as novas questões mostram que a renovação trazida pela História Cultural é fundamental para o escrutínio de novas e antigas fontes e para interpretações diversas, cujos duplos de si trarão sempre a possibilidade de novas investigações. No tom efervescente e conciso das palavras, o autor instiga e desafia o leitor a buscar na trama do passado respostas, que sempre serão novas perguntas, no desafio axiológico da pós-modernidade.
Os caminhos da Rua Nova no centro de Recife em 1920 e seus transeuntes peculiares surgem na escrita do artigo de Sylvia Costa Couceiro. O espaço urbano se revela como propõe Richard Sennet em Carne e pedra,2 constituído de cimento e sangue, singrando entre os muros e o asfalto. A Rua Nova de origem velha do século XVIII encarna o símbolo de uma população que almejava o progresso, a esperança e as mudanças da modernidade. À narrativa histórica mescla-se boa dose de lirismo e criatividade. Personagens são compostos e recompostos no cenário urbano, e o leitor embarca nas páginas de uma divertida narração/análise das figuras, hábitos e costumes que frequentavam a Rua Nova. No entanto, tal recurso narrativo não diminui o compromisso com o rigor teórico-metodológico e uma minuciosa pesquisa de diversas fontes. Na cena urbana moderna personagens circulam pelo espaço como num palco: querem observar e serem observados. A rua é, como bem sintetiza Walter Benjamin, “as vitrines da modernidade”.3
Para pensar essa modernização e seu caráter excludente e hierárquico, o artigo de Luís Manuel Domingues do Nascimento traz à baila os sacrifícios que a cidade de Recife sofre na década de 70 do século XX, ao custo de um discurso modernizador do espaço urbano. Para o autor, condensada ao discurso do progresso, Recife expandiu-se sob a égide de uma lógica que nega sua memória e suas experiências históricas. A crítica assume tom de denúncia ao analisar os problemas e deficiências consequentes dessa modernização, em especial com relação à burocratização e tecnocratização das autoridades e ao aumento das favelas e classes baixas dependentes de um sistema administrativo incapaz de solucionar as crises instaladas nas áreas públicas da saúde, moradia e educação.
Em “Representações, cultura política e sexualidade na seara dos gêneros” reverberam as imagens sociais e culturais de Pernambuco. Personagens e linguagens típicos consolidados no imaginário nacional – como a literatura de cordel e o cangaceiro – são perscrutinados em análises atentas às construções históricas de múltiplas representações, à diversidade de discursos e às possibilidades de interpenetrações na construção das narrativas históricas.
Maria Ângela de Faria Grillo apresenta de maneira bastante didática inicialmente uma breve retrospectiva historiográfica de importantes estudos realizados no campo de gênero, para então expor sua análise das representações construídas sobre o homem e a mulher, e suas relações na literatura de cordel na primeira metade do século XX.
A dificuldade em lidar com as transformações do mundo moderno tendem a cristalizar o papel da mulher dona de casa/mãe ao mesmo tempo que revelam as novas situações e valores sociais. Regras sobre casamento, imagens de Eva e Maria e lições de comportamento, preconceitos e ambiguidades da época transparecem no estudo historiográfico dos versos de cordel. Imagens e representações femininas como peças-chave para a compreensão de determinados modelos e costumes sociais, a literatura de cordel é o manancial de estudo fortemente pesquisado por Grillo.
Antonio Silvino é a figura explorada através dos jornais no artigo de Rômulo José F. de Oliveira Junior. Cangaceiro, prisioneiro a maior parte de sua vida, “macho nordestino”… as representações em torno do masculino constroem-se a partir de um personagem sólito e presente no imaginário popular pernambucano, ratificando modelos e convenções da sociedade. Homem fora da lei e ao mesmo tempo preocupado com a aparência e a elegância, Antonio Silvino foi alvo de intensos debates na imprensa, cujo discurso é esmiuçado e interpretado detalhadamente pelo autor.
As imagens de ser masculino do sertão nordestino são acompanhadas em seguida pela “Cultura da beleza: práticas e representações do embelezamento feminino”, de Natália Conceição Silva Barros. A autora levanta importantes questões, alicerçada em fontes valorizadas pela História Cultural, tais como revistas, jornais, memórias e obras literárias. Ao longo do texto busca compreender as maneiras como as recifenses e os recifenses reconheciam, controlavam e moldavam seus corpos entendidos aqui como um território “biocultural”, onde as relações de poder entre os gêneros feminino e masculino se explicitam em um campo de forças diferenciado nos discursos sobre a beleza e o embelezamento dos corpos.
O culto à beleza e o consumo de produtos que realçariam e/ou consertariam traços de fealdade fizeram parte das estratégias do mercado e da modernização dos hábitos e costumes da época.
Saindo dos anos 20, o leitor embarca em uma Recife feminina insurgente dos anos pré-golpe militar entre 1960 e 1964. Juliana Rodrigues de Lima Lucena investiga a intelectualidade feminina através de três eminentes figuras pouco ou nada lembradas pela historiografia tradicional: Anita Paes Barreto, do Movimento de Cultura Popular; Geninha da Rosa Borges e Diná de Oliveira, do Teatro de Amadores de Pernambuco. Os movimentos artísticos e intelectuais que surgiram na época, a partir das discussões sobre novas ideias e modelos sobre cidadania e sociedade, tinham o intuito tanto de atingir uma parcela marginalizada da população quanto de criar uma atmosfera propícia a uma remodelação social com a inclusão na vida política dessa parcela da população.
O último artigo dessa segunda parte da coletânea lida com uma questão da História do tempo “recentíssimo”: a violência e a intolerância contra mulheres, adolescentes e crianças exploradas sexualmente no município de Serra Talhada no século XXI. Os registros de estupro, de lesões corporais, deformações e homicídios na região entre 2004 e 2006 são uma marca que, embora alarmante, não mobilizou ainda o suficiente o poder público para criar na região, por exemplo, uma delegacia feminina. Esse artigo denuncia uma situação insustentável nos tempos atuais que demonstra a permanência de discursos sexistas, preconceituosos e homofóbicos, além de perigosas práticas de violência cuja legitimidade se encontra em representações incrustadas socialmente – dados vultosos de uma realidade violenta cuja luta por mudanças passa necessariamente pela denúncia, discussão e mobilização para o exercício da tolerância e do respeito ao Outro.
Na última parte do livro, “Infâncias, histórias e rebeldias em Pernambuco”, a atenção é voltada para a infância. Enjeitados, trabalho de rua e doméstico e o cotidiano infantil são os temas de pesquisa presentes. Através de uma Pernambuco criança, percebida no limiar entre a ordem e a transgressão, os artigos demonstram os espaços de inserção e de exclusão da criança bem como as diversas políticas sociais em torno da infância desenvolvidas no Estado. Ressalto que, nesse momento da coletânea, a presença de Alcileide Cabral do Nascimento pode ser amplamente observada. Dos seis artigos a autora assina a coautoria de mais quatro trabalhos, além de seu próprio trabalho que abre essa terceira parte. Apenas o último artigo, de Humberto Miranda, não conta com a colaboração de Alcileide. Tais trabalhos podem ser interpretados como desdobramentos de um esforço coletivo de pensar a temática da infância, violência, rejeição, abandono e estratégias do Estado e da sociedade, ao longo da história de Pernambuco, para conformar e disciplinar essa população pobre, órfã e marginalizada.
Intolerância, rejeição e abandono. O final da segunda parte da obra consegue se articular perfeitamente, e infelizmente – uma vez que as permanências de uma zona sombria e tortuosa de nossa história social e cultural se evidenciam -, com o primeiro artigo da terceira parte. “A Roda dos Enjeitados” é cenário do trabalho de Alcileide Cabral do Nascimento sobre as práticas de infanticídio e/ou esquecimento dos nascimentos não desejados. O discurso legitimador da roda encontra raízes na manutenção da ordem social, encobrindo, por exemplo, atitudes que depusessem contra a honra de “moças de famílias honestas ludibriadas” ou tentadas pelos “pecados da carne”; os casos de pobreza extrema; as doenças; a viuvez e seus impedimentos morais; a loucura e/ou a prisão e seus impedimentos sociais.
Quaisquer que fossem os motivos, a Roda dos Enjeitados chancelou os desvios do padrão social constituído na ordem colonial. Qual o destino dessas crianças? De que maneira inseri-las socialmente? São as questões do artigo de Rose Kelly Correia de Brito, que analisa os mecanismos pelos quais o Estado, entre 1831 e 1860, buscou disciplinar, controlar e conformar as meninas pobres enjeitadas e órfãs do Recife. A educação elementar e o trabalho doméstico são comumente vistos como caminhos possíveis de utilidade social dessa população cujo destino parecia preocupar as autoridades, dada sua potencialidade perigosa, caso permanecesse à margem da sociedade. Conformadas ao lar e aos trabalhos domésticos, as moças eram disciplinadas dentro dos parâmetros sociais aceitáveis ao mesmo tempo que isso lhes garantia um meio de sustento, o que desoneraria o Estado. Entre os obstáculos ressaltados sobre esse projeto estavam a própria lentidão e burocracia do Estado em criar condições efetivas para a educação dessas moças, além do preconceito e repúdio das famílias em pagar por serviços que poderiam explorar das escravas. A questão racial interferiu, inclusive, na condução dos mecanismos de controle em cercear a vida social, na qual mulheres brancas tiveram claras vantagens em relação ao tratamento dispensado às mulheres pardas e negras.
Os dois artigos subsequentes, de autorias respectivas de Hugo Coelho Vieira e Wandoberto Francisco, abordam as maneiras como o Arsenal de Guerra de Pernambuco e o Arsenal da Marinha do Recife serviram como espaço de serviços educacionais e militares para populações de órfãos, pobres e renegados em meados do século XIX. Remontando à genealogia desses locais, os autores seguem a trilha da expansão desses trens militares, que inicialmente serviriam apenas como aparatos burocráticos de armazenamento de materiais, e cujas funções e ofícios aumentaram historicamente, conforme a demanda de serviços da cidade e dos materiais de guerra. A formação, o tratamento dispensado no processo educativo e as interdições sociais compõem um cenário de lutas e contradições entre o discurso dessas instituições e a realidade dispensada a essas populações.
Wendell Rodrigues Costa preocupou-se com a formação e a inserção social de meninos e jovens pobres, enjeitados e escravos no mercado de trabalho urbano em Recife no século XIX. A prática de aprendiz aparece como uma estratégia política de combate à criminalidade. Aprender um ofício afastaria esses jovens da ociosidade e da possível marginalidade. A instrução desses moços era feita em espaços escolares permeados pela discriminação de cor e status social, onde, por exemplo, a cobrança de taxas de matrícula ou excluía as camadas mais pobres do acesso à educação, ou instituía a prática do “apadrinhamento”, o que reforçava a ordem social marcada por privilégios.
Através desses três artigos, pode-se perceber que estudar no Brasil dependia da condição social das famílias e que os estabelecimentos destinados a aprendizes pobres sofriam com um menor auxílio e aparato do governo.
Humberto Miranda fecha a terceira parte dessa coletânea pensando o cotidiano dos meninos confinados em instituições supostamente correcionais de Recife entre 1927 e 1937. Entre os abusos e transgressões cometidas pelos agentes penitenciários da Casa de Detenção e a modernização desse espaço no início do século XX com a criação, em 1932, do Instituto Profissional 5 de Julho, posteriormente chamado de Abrigo de Menores, buscou-se ressocializar e mesmo curar tais crianças através dos mesmos mecanismos vistos nos demais artigos dessa parte: estudos profissionalizantes, que seriam para o governo a resposta para a inserção social desse grupo marginal.
Há uma triste conclusão histórica ao final dessa leitura: a pobreza sofre duplamente, tanto pela sua condição cotidiana quanto pelo tratamento preconceituoso dispensado pelas autoridades encarregadas em lidar com as estratégias que deveriam diminuir e mesmo sanar essa questão social.
É preciso ressaltar que toda publicação possui as limitações da materialidade. O livro não inclui, por exemplo, questões sobre as representações da maternidade – fundamentais nas discussões de gênero e infância -, pois, se o fizesse, certamente o volume de páginas acabaria por inviabilizar sua publicação. A árdua tarefa de edição não pode prescindir de cortes e moldes. Cabe escolher e esculpir a obra com sentido e sentimento. Não obstante, apresentando ao público leitor a consistência e seriedade das pesquisas desenvolvidas pelo GEHISC, as organizadoras tranquilizam-no com a promessa de “gestação” de mais frutos dessa seara. E assim o primogênito desse grupo, Cultura, gênero e infância…, nasceu sob o prisma das interrelações entre cidades, representações femininas e masculinas e o mundo infantil.
Alcileide Cabral do Nascimento e Maria Ângela de Faria Grillo, organizadoras do livro, desejam que “o leitor se perca e se encontre nos labirintos da história e da beleza de compreender os duplos de si” (p. 9). Esse livro permite que os duplos se transformem em múltiplos significados nas possibilidades de compreensão de falas e silêncios, cujas marcas são sensíveis às narrativas das pesquisas contidas na obra.
Notas
1 SARAMAGO, 2002.
2 SENNET, 2001.
3 BENJAMIN, 1975.
Referências
BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. [ Links ]
SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das letras, 2002. [ Links ]
SENNET, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2001. [ Links ]
Ana Carolina Eiras Coelho Soares – Universidade Federal de Goiás.
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Urbanismo e preservação em Triunfo, Pernambuco – SOUTO MAIOR (CA)
SOUTO MAIOR, Paulo M. Urbanismo e preservação em Triunfo, Pernambuco. Recife: Editora da UFPE, 2007. 129p. Resenha de: BARBOSA, Bartira Ferraz. Clio Arqueológica, Recife, n.22, p.249-250, 2007.
Bartira Ferraz Barbosa
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[IF]
Paranambuco. Poder e herança indígena. Nordeste – Séculos XVI e XVII – BARBOSA (CA)
BARBOSA, Bartira Ferraz. Paranambuco. Poder e herança indígena. Nordeste – Séculos XVI e XVII. Recife: Editora da UFPE, 2007, 220p. Resenha de: MARTIN, Gabriela. Clio Arqueológica, Recife, n.22, p.251-252, 2007.
Gabriela Martin
[IF]Pré-História do Nordeste do Brasil – MARTÍN (RHAA)
MARTÍN, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil. 2ed. Recife: Editora da UFPE, 1997. Resenha de: ALLEN, Scott Joseph. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.4, p.131-132, ago., 2000.
Scott Joseph Allen – Universidade Federal de Alagoas. E-mail: sja@fapeal.br.
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[IF]
Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850 – CARVALHO (RBH)
CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Recife, Editora Universitária da UFPE, 1998, 353 p. Resenha de: RICCI, Magda. Revista Brasileira de História, São Paulo: v.20 n.39, 2000.
De repente um gemido. Certamente era de dor, certamente era fruto de uma execrada instituição que infelizmente governava o Brasil de 1831. Gritos escravos permeados pelo som do açoite. Eles constituíam a prova de que o castigo e a submissão grassavam o mundo Imperial, explicitando uma certa continuidade da exploração colonial. Restava aos negros crioulos e, especialmente aos africanos, a saída pela rebeldia pré-política. Restava-lhes o suicídio e a fuga para quilombos. Estas interpretações foram, durante muito tempo, temas prediletos dos pesquisadores da escravidão no Brasil. O outro lado desta história estava por ser pesquisado: a liberdade e seus muitos significados.
Aqueles gemidos acima referidos foram ouvidos no Recife de 1831 por Charles Darwin. Eles serviram de epígrafe ao livro de Marcus Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Distanciando-se das interpretações mais corriqueiras, o ousado estudo de Carvalho, interpreta-os de uma outra forma, demonstrando uma clara afinidade com aquilo que de mais interessante vem sendo produzido pela atual historiografia sobre escravidão no Brasil.
A liberdade é um tema difícil, tanto quanto maravilhoso. Para estudá-la, de imediato, surgem alguns entraves. Primeiramente, o problema do foco central de análise. Até recentemente, estudos sobre liberdade no século XIX só faziam sentido dentro do mundo da escravidão e da relação bipolar entre senhores e escravos. Por este raciocínio, estudar a escravidão significava analisar um eterno conflito dentro de um sistema ou modo de produção a ser definido minuciosamente. No entanto, hoje esta abordagem pode, no mínimo, gerar “polêmica”1. No lugar das certezas do escravismo (ou escravismos) surgiram múltiplas abordagens da escravidão e da liberdade.
Desde a época ao redor do centenário da abolição, em 1988, nossos livros sobre os tempos do cativeiro têm trazido a público alguns inusitados escravos. Eles vêm saindo do universo quase auto-suficiente do trabalho nas fazendas de cana e café. Vêm entrando em outros espaços, criando complexas e fascinantes situações a seus senhores e a nós, historiadores e leitores do século XX. Ganharam as ruas das cidades2, invadindo as cabeças e fazendo ressurgir, sobre outros olhares, a prática dos abolicionistas e/ou imigrantistas da segunda metade do século XIX3. Deixando seus donos pasmos, foram à justiça, atrás de justiça e uma dada noção de cidadania. Por outro lado, fizeram eclodir rebeliões dentro e fora das senzalas. Aqui, porém, seus quilombos revigoraram-se sob outra perspectiva, que não a do isolamento. Quase sempre, estes fugitivos mantinham relações comerciais e culturais com o mundo senhorial4.
Certamente os nossos escravos mudaram muito nos livros de história dos últimos dez anos. No entanto, mesmo assim, continuaram escravos. Por mais que alguns estudiosos denunciem a benevolência e o paternalismo historiográfico dos pesquisadores dos anos oitenta para com a escravidão dos séculos XVIII e XIX no Brasil, creio que, na maioria absoluta dos trabalhos, a dimensão do sofrimento e da dor escrava nunca foi esquecida5. Se a liberdade era uma bandeira poderosa, a escravidão era seu contraponto. O mundo do escravo transitava entre o sonho da liberdade e o cotidiano da luta dentro da escravidão. É neste ponto que o livro de Marcus Carvalho pode ser exemplarmente ressaltado.
Seguindo o rico percurso traçado por trabalhos pioneiros como os de João José Reis, Leila Algranti ou Sidney Chalhoub6 e, ao mesmo tempo, centrado em uma documentação das mais valiosas, o autor dá um passo adiante, revelando indícios de interessantes rumos historiográficos que se anunciam. Carvalho busca a liberdade dentro de um contexto de rupturas e rotinas da escravidão, ou como inapropriadamente insiste em chamar, do escravismo. Para o autor, a liberdade escrava situava-se, muitas vezes, longe do universo do trabalho nas fazendas. Por outro lado, o autor realçou enormente a dimensão do esforço cotidiano de luta, da árdua rotina constitutiva da vida de homens e mulheres expostos e surrados em praça pública e traficados quase como um material inerte.
É preciso lembrar que nos anos oitenta e início dos noventa a historiografia da escravidão no Brasil, ou parte significativa dela, buscava um escravo com ações autonômicas7. Era a partir deste campo de análise que, quase todos, recriavam uma vivência escrava rumo à liberdade que assumia ares de explícita, porém complexa, luta de classes. Os quilombolas analisados por Flávio Gomes, por exemplo, deixaram de ser fugitivos de um sistema escravista para tornarem-se combatentes de um outro tipo de liberdade. Surgiram dali homens com histórias de vida próprias e memórias de lutas coletivas. Como bem notou Silvia Lara, a influência thompsoniana neste tipo de estudo tornou-se evidente. Ela unia a história da escravidão àquela referente aos estudos sobre as relações e processo de trabalho livre no Brasil8. Para esta historiografia, os escravos e quilombolas eram indivíduos com personalidade e problemas pessoais, mas também faziam-se classe em diferentes contextos, especialmente quando imbuídos de um espírito de luta herdado e partilhado por experiências vindas de um presente ou de um passado em comum.
Por seu turno, o estudo de Carvalho, seguindo uma atual tendência, percebe a ação escrava dentro de relações que são sociais, étnicas e culturais. Sem abandonar a “economia moral” thompsoniana, as lutas pela liberdade ganharam outros ares, ampliando-se dentro de um universo em que muitos escravos desejavam ser ou tornar-se livres, vivendo sobre si e tendo quem os servissem. Ser livre era, em suma, ter propriedades, fossem elas um terreno ou um escravo. A liberdade estava contida, portanto, seja nas rebeliões e fugas escravas, seja na solidariedade de classe e/ou étnico-religiosa, que extrapolava, em muito, as fronteiras da relação senhor-escravo. Estava na cabeça de escravos, tanto quanto na dos homens livres ricos e pobres. Situava-se na cidade do Recife, mas também em seus muitos engenhos e roças. Nas casas dos ricos proprietários e em suas senzalas, bem como na casa do Conselho de Governo Provincial e nas inúmeras disputas partidárias em prol da emancipação brasileira durante as décadas de 1820 até 1850.
Em suma, o que de mais interessante apresenta o estudo de Carvalho é uma simbiose muito apropriada entre o universo da política imperial para os anos de 1822-1850 e o valioso contexto de lutas escravas e não escravas pela liberdade nos arredores de Recife. Juntando estudos que tradicionalmente caminhavam em paralelo, Carvalho percebeu a importância de associar temáticas dentro e fora dos debates historiográficos da escravidão. Se Pernambuco era a terra das Revoluções de 1817, de 1824 ou de outras como a Praieira, este local também tinha uma complexa tradição de revoltas escravas. Por outro lado, era o espaço da rotina escravista, da dor e do sofrimento de africanos e crioulos.
Entender este locus é uma tarefa árdua, que, quando bem empreendida, surte um resultado profícuo. Talvez Carvalho pudesse ir um pouco adiante, relacionando mais densamente alguns tempos históricos que se entrecruzavam no Recife da primeira metade do século XIX. É importante notar, por exemplo, que o calendário religioso, assim como o parlamentar e o da colheita e plantação da cana-de-açúcar estavam imbricados em um mundo repleto de credos e razões absolutas, que se contrapunha às novas liberdades constitucionais recém alcançadas. Certamente no Recife de frei Caneca e de outros tantos clérigos havia uma junção muito generosa entre a Igreja e o Estado, surgindo daí outras formas de se compreender os significados múltiplos da liberdade escrava e não escrava dentro deste universo.
Ressalva à parte, o livro de Carvalho deve ser lido pelo que se propõe efetuar. São três partes que o compõe: uma primeira dedicada à explicação espacial e social da cidade do Recife, de seus moradores e de suas tradições de luta. Uma segunda que estuda o tráfico e sua lógica de comércio e alianças sociais e políticas dentro do Recife. E uma terceira que se centra nos caminhos da liberdade (política e social) nos melindrosos cenários rebeldes da primeira metade do século XIX. Como ressalta Carvalho, para bem se entender os “vários passos que podiam, ou não, ser dados em direção à ‘liberdade'”, é preciso buscar outras “possibilidades humanas na história da escravidão”. É preciso estudar “outras tantas situações intermediárias” dentro do restritivo campo tradicionalmente traçado por senhores e escravos.
Robert Slenes, em recente estudo, chamou a atenção para estudos que valorizassem as relações entre senhores e subalternos, contrariando a tradicional dicotomia entre senhores e escravos. Sidney Chalhoub, por sua vez, desvencilha-se dos escravos, debruçando-se sobre a análise de um Rio de Janeiro pluri-étnico e culturalmente febril. João José Reis percebe em um movimento, como a cemiterada de Salvador, algo mais do que homens e mulheres ultrapassados e escravocratas, lutando contra a modernidade. Em A morte é um festa, desvenda um precioso viver no século XIX, que caminha muito próximo da diversidade cultural que ele possuia9.
Neste mesmo sentido segue o estudo de Carvalho que aqui apresento e recomendo. Estuda o escravismo, ou melhor, a escravidão, sem que as relações de trabalho tornem-se hegemônicas e quase auto-evidentes na explicação histórica. Analisa a liberdade, sem ficar restrito à dicotomia senhores versus escravos. Por fim, estuda a cidade do Recife, sem fazer regionalismos, ou uma história local e desinteressante ao público em geral.
A cidade do Recife descrita por Carvalho é específica e única, com ruas, bairros e pessoas muito próprias. No entanto, ela pode ser a síntese de tantas outras cidades e pessoas. Longe da Corte, estava, entretanto, tão próxima ao centro em muitas ocasiões. Todavia, em vários instantes, os moradores do Recife e de Pernambuco pleiteavam tomar o lugar dos cariocas. A cada levante social, a cada escravo que disputava espaço para bem viver o seu dia a dia, a cada traficante que contabilizava lucros e perdas sociais e políticas, a cidade do Recife e seus moradores livres e escravos se uniam a tantos outros habitantes de locais como Belém, Salvador ou São Paulo. Todos olhavam para a Corte, vendo imagens e semelhanças, tanto quanto diferenças e conflitos. Em resumo, o livro de Carvalho especifica muito bem o que seria o Brasil de então. Sem o exagero ufanista e nacionalista, tratava-se de um Brasil por se fazer. Um país ainda escravocrata em muitos sentidos, mas também cheio de liberdades. Um Brasil de leis novas, mas repleto de rotinas tradicionais como as do trabalho e as do tráfico. Um local de longas tradições religiosas e culturais, mas de rupturas sociais e políticas tão bruscas, quanto temerárias e deslumbrantes.
Notas
1 Para alguns autores como Suely Robles Reis de Queiróz o atual debate historiográfico sobre a escravidão no Brasil seguiu um percurso, no mínimo, equivocado, e assim, ainda hoje, seria “uma questão que continua polêmica”. Ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. “Escravidão negra em debate”. In FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo, Cantexto/USF, 1998, p. 117. Para uma contraposição a esta autora, ver, especialmente: MACHADO, Maria Helena P. T. “História e historiografia da escravidão e da abolição em São Paulo”. In Antonio Celso Ferreira et. al. (orgs.). Encontros com a história: percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo, UNESP, 1999, pp. 61-70.
2 Sobre escravidão urbana, ver, entre outros, os trabalhos de: ALGRANTI, Leila M. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-1822. Petrópolis, Vozes, 1988.
3 Ver, especialmente: AZEVEDO, Célia M. M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro/São Paulo: UFRJ/EDUSP, 1994.
4 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudoeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre. A lei de locação de serviços de 1879. Campinas, Papirus, 1988; REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência escrava no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1989; GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995; REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996.
5 A crítica e a denúncia vieram, principalmente de Jacob Gorender. Ver: GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo, Ática, 1990.
6 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, Brasiliense, 1986; ALGRANTI, Leila M. op. cit.; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Cia das Letras, 1990.
7 Para uma boa análise deste debate historiográfico, ver: LARA, Silvia Hunold. “Conversas com a bibliografia”. In Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, pp. 97-113.
8 LARA, Silvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto história: revista do Departamento de pós-graduação da PUC-SP. São Paulo, EDUC, no 16, 1997, pp. 25-38.
9 SLENES, Robert. “Senhores e subalternos no Oeste Paulista”. In NOVAIS, Fernando & ALENCASTRO, Luiz Felipe de (orgs.). História da vida privada no Brasil. Império, a Corte e a modernidade nacional. São Paulo, vol. 02, Cia das Letras, 1997, pp. 233-290. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Cia das Letras, 1996 e REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo, Cia das Letras, 1991.
Magda Ricci – Universidade Federal do Pará.
[IF]Pré-História do Nordeste do Brasil 2ed – MARTIN (CA)
MARTIN, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil. Recife: Editora da UFPE, 1996. P.395. Resenha de: SCHMITZ, Pedro Ignácio. Clio Arqueológica, Recife, n.12, p.215-217, 1997.
Pedro Ignácio Schmitz – Professor do Programa de Pó-Graduação em História – UNISINOS e Diretor do Instituto Anchietano de Pesquisas – UNISINOS. Doutor em Geografia e História pela Pontofícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
[IF]Pré-História do Nordeste do Brasil – MARTIN (CA)
MARTIN, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil. 2ed. Recife: Editora da UFPE, 1997. p.450. Resenha de: TEIXEIRA, Ivana; OLIVEIRA, Luciane Monteiro; SILVA, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da. Clio Arqueológica, Recife, n.12, p.219-221, 1997.
Ivana Teixeira, Luciane Monteiro Oliveira, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva – Alunos do Mestrado em Arqueologia da Universidade de São Paulo.
Acesso apenas pelo link original
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