Uma vida humana – COSTA (RFMC)

COSTA, Uriel da. Uma vida humana. Tradução, posfácio e notas de João Alberto da Costa Pinto. Goiânia: Editora da Universidade de Goiás, 2015. Resenha de: RUFINONI, Priscila Rossinetti. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.3, p. 171-175, n.2, 2015.

Entre dois anjos: Gabriel-Uriel da Costa

O pequeno livro que a UFG dá a público, na tradução de João Alberto da Costa Pinto, em edição do selo Todo Tipo, é um documento estranho da história da filosofia. Escrito provavelmente em 1640, em latim, com o título Exemplar humanae vitae, trata-se não apenas de um opúsculo de debate teológico, ou canônico, mas da suposta carta de um suicida que, após o desenlace fatal, foi reproduzida por cultores e detratores do judaísmo. Não temos, portanto, o texto pela mão de Uriel, mas citado por outrem. Na encruzilhada de um opúsculo confessional, embora apócrifo, o texto quer dar forma a uma vida, concedendo-lhe, não necessariamente essência, mas o sentido natural de uma conclusão honrada. Assim, não é exatamente a carta de um suicida. Aliás, como bem atenta Cecília Michaëlis de Vasconcelos, o vocábulo “suicida”, de origem francesa e posterior ao acontecido, não se aplica aqui tão certamente quanto o próprio latino homicidium sui, ou o grego eutanásia (VASCONCELOS, 1922: 56).

Que não se espere, entretanto, texto apressado, escrito no calor da hora, ou composição retórica confessional. Apesar de sabermos, por comentadores e pelo próprio Uriel da Costa, que este conhecia e compunha bem em latim, ou seja, que era versado na arte da escrita, não se trata de uma peça de retórica confessional, composta sob essas regras (cf MORDOCH, 2011: 23). Bem composto, claro e conciso nos detalhes narrativos, o opúsculo é antes uma exposição de ideias, um testamento intelectual. A tradução da UFG, ao apostar nesse sentido, concede ao texto uma espécie de ardor desapaixonado, cujo contraste com a tradução da edição de Braga, por exemplo, nos leva a aquilatar as escolhas do tradutor. Compare-se os dois trechos finais. Na edição de Braga, em tradução de Castelo Branco Chaves, com acento mais quente, pelo uso de fórmulas como “vão espetáculo”, “que vosso coração pese na balança” e “demônios”:

Tal é a verídica narração da minha vida. A personagem que representei no vão espetáculo do mundo, durante esta pobre vida, expu-la aos vossos olhos. E agora, filhos dos homens, que vossa justiça julgue, sem que vosso coração pese na balança. Acima de tudo, pronunciai uma sentença livre e conforme a verdade. É isso que incumbe aos homens dignos de tal nome. Se a narração da minha vida vos oferece alguma coisa que mereça a vossa comiseração, reconhecei a miséria da condição humana e chorai, lembrando-vos que vós próprios dela participai. E para que tudo fique dito, revelarei que em Portugal, como cristão, me chamava Gabriel da Costa, e entre judeus (e que demónios me conduziu para eles?), Uriel. (COSTA, 1995: 584)

E o mesmo parágrafo final, na presente edição brasileira, contida no uso dos termos e metáforas:

Aqui tendes a verdadeira história da minha vida e a personagem que no teatro do mundo tem interpretado ao longo de uma honesta e sempre insegura vida está aqui apresentado diante de vós. Julgai-me agora corretamente, filhos dos homens e sem emoção alguma, emitam então uma sentença verdadeira, isto é um julgamento particularmente digno dos homens que realmente merecem esse nome. E, se alguma coisa encontrardes que vos arraste á comiseração, e deplorai a miserável condição humana da qual também sois participantes. E para que nada falte nesse julgamento, meu nome, o nome cristão que tive em Portugal era Gabriel da Costa. Entre judeus, oxalá nunca os tivesse encontrado, foi ligeiramente modificado, fui chamado Uriel. (COSTA, 2015: 33)

O texto traz a narrativa dessa vida exemplar, tornada destino pela eutanásia, um todo fechado que se abre ao juízo do leitor. Narra-se a vida de Gabriel da Costa, nascido no Porto, de pai cristão novo. Faz questão de frisar, este narrador Gabriel, que o pai era bom cristão. Também o narrador, criado nos evangelhos, era cristão devoto, não seguia o rito apenas pela necessidade formal de todo converso, necessidade provavelmente comum entre a comunidade de comerciantes judeus a que a família dos Costas pertencia, ditos em Portugal “gente da nação” ou “homens de negócio”. Gabriel estudou direito canônico, foi jurista, como bem explica Cecília Michaëlis, não necessariamente uma advogado formado, mas estudante de direito, especialmente direito canônico, com idas e vindas pela Universidade de Coimbra, atestando, talvez, já as indecisões e dúvidas que o moveriam durante sua vida. Cecília Michaëlis, em sua biografia, prefere então chamá-lo “canonista”, ou seja, estudioso das leis religiosas. O próprio Uriel, por sua vez, em seu texto Exame das tradições farisaicas, se diz “jurista hebreu”. Nesse contexto antes de tudo acadêmico, é a comparação racional entre os evangelhos, com suas minúcias intrincadas, e a clareza da lei mosaica original, que leva o cristão à reconversão ao judaísmo. Ou seja, a volta ao judaísmo original não se dá, pelo menos segundo a carta, por qualquer atavismo ou por resquícios da antiga prática religiosa arraigada à vida familiar. Segundo o texto, não eram os Costas, como se diria à época, judaizantes, acusação que levaria à condenação, anos depois, de outro famoso escritor judeu de língua portuguesa, o dramaturgo brasileiro Antônio José da Silva, dito “o judeu”.

Não se descartam, evidentemente, outras hipóteses, não contempladas pelo racionalismo piedoso desse Uriel narrador: os irmãos também o seguem na reconversão ao judaísmo, movidos quem sabe pelas facilidades da vida religiosa e do comércio na comunidade judaica livre de Amsterdã. Sabe-se das dificuldades dos judeus conversos na Península ibérica, exilar-se e reconverter-se não deve ter sido incomum na Europa do século XVII (cf MORDOCH, 2011: 14). O fato é que no texto de Uriel, não se elencam problemas pessoais ou de negócios, sabemos por este apenas que emigrou com a mãe, seus irmãos e irmã, após a morte de seu pai que lhe fez então chefe da família. Das intenções dos irmãos, das dificuldades, dos debates familiares, das relações cotidianas com as tradições judaizantes (ou não), quase nenhuma menção. Não há nem mesmo menção ao desfecho da vida de sua mãe, Branca Dinis da Costa ou Sara da Costa, também excomungada por segui-lo. Não há pois muito de uma confissão pessoal, de biografia no sentido lato, da narrativa dos atos de uma pessoa e de seus haveres com a fortuna. Assim que chegou a Amsterdã com a família, só nos dá notícia de que continuou seu trabalho canônico de pesquisar e estudar a fundo as leis divinas.

Mas, a religião judaica, após anos de cismas e êxodos, também havia se tornado outra, permeada de apêndices à lei mosaica, de leis convencionais de tradição oral, de hierarquias e mesmo preconceitos quanto às origens dos judeus. Na sua breve apresentação de Espinosa, Marilena Chauí nos dá um fino relato das divergências histórico/canônicas em voga na Amsterdã do século XVII. Dividiam-se em classes sefarditas de sangue ibérico e os demais judeus não ibéricos, dividiam-se marranos e não-marranos, divisões que davam cor político-social às querelas religiosas entre racionalistas e materialistas, cultores da lei mosaica original, e os fariseus, ligados à lei oral e rabínica:

Dividia-se por fim, religiosa e teologicamente, entre fundamentalistas tradicionais e deístas racionais, e entre talmudistas e cabalistas místicos. A divisão religiosa recobria e dominava as divergência socais e políticas, dadas as peculiaridades de uma comunidade que não possuía autonomia política, e não constituía propriamente um Estado e cujos costumes eram regulados pela religião e por tradições teocráticas. (CHAUÍ, 1995: 16)

No livro ora comentado, o tradutor, João Alberto da Costa Pinto, professor de História da UFG, também expõe em perspectiva histórica os vários cismas, as sinagogas, enfim o lugar no qual aportou esse Gabriel-Uriel cristão novo ex-converso. O posfácio e as notas de João Alberto da Costa Pinto, esclarecedores, têm ainda o mérito de facultar ao leitor uma bibliografia acessível, no mais das vezes de viés histórico. Talvez por essa escolha histórica não conste da publicação remissão à também acessível apresentação de Espinosa, aqui citada. Entre as lembranças dignas de nota, o tradutor remete ao livro da escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís, Um Bicho da terra, biografia romanceada do nosso escritor. 1 Apenas um senão quanto à remissão às demais obras de Uriel da Costa: é difícil saber, pelo posfácio ou pelas notas, se há outras obras que escaparam, como esta, da perseguição e da fogueira2 , e a menção ao livro no qual estão compilados capítulos das obras de Uriel, de Samuel da Silva, não consta da bibliografia final. Há um texto que vem referido como Costa, 1995, na página 39, mas tal referência também não se encontra listada na bibliografia. Acreditamos tratar-se do volume publicado em Braga que citamos. Outra questão sobre as obras de que sentimos falta seria uma discussão sobre o estatuto apócrifo do Exemplar (c f MORDOCH, 2011). Apenas detalhes fáceis de se corrigirem numa próxima edição, como uma e outra gralha tipográfica.

Mas voltemos ao embate entre Uriel e os fariseus seus contemporâneos, tal como aparece no texto. Logo o autor percebe que as leis farisaicas, contras as quais escreve, muito se afastaram da original lei mosaica, sendo portanto leis históricas e humanas, como aquelas dos evangelhos que havia renegado em Portugal; e, no seu estudo incansável, mesmo os livros sagrados, as leis originais, se lhe afiguram eivados de contradições, humanas, demasiado humanas. A única lei a que podemos conceder divindade é a lei natural. O autor do testamento o diz com todas as letras. Não é difícil trazer à memória as preocupações de Espinosa com a historicidade muitas vezes imagética da Bíblia e da própria língua sagrada, o hebraico, premida entre a possibilidade de uma exposição geométrica e a experiência dialetal do falante (SANTIAGO, 2013).

O resto da história, muito já se comentou. Uriel é condenado várias vezes, em Hamburgo, Veneza e Amsterdã, – fatos aos quais o narrador também não acrescenta detalhe em sua Vitae – é separado da comunidade, apartado dos irmãos, impedido de contrair um segundo casamento e constituir uma família. Em 1640, diante da sinagoga, e talvez dos olhos de um menino chamado Bento Espinosa, todos o dizem, o homem se retrata, lê a infame confissão que para ele escreveram, é açoitado, pisoteado. Em seguida, apesar de reaproximado da comunidade, prefere tirar a própria vida. Por que teria aceitado tal humilhação, se na confissão final não há a mais mínima sombra quanto a suas convicções? Por atavismos lusitanos, como sugerem uns, por covardia, como querem outros? Seria, por outro lado, o texto apócrifo eivado de apêndices posteriores, estranhos à pena do Uriel histórico? 3

Não é o caso de se condenar ainda outras vezes o autor. Longe do homem, fiquemos com a letra. Quando Uriel aceita, ao fim de longos 7 anos, depois de uma condenação anterior de mais 15 anos, passar pela humilhação da confissão na sinagoga, talvez o tenha feito em nome de suas convicções, conforme a confissão deixa entrever. Em nome daquela lei divina, natural, que une em laços afetivos pai e filhos, irmãos, amigos e amantes, uma lei simples, para a qual nenhum deus poderia solicitar o absurdo do sacrifício de Abraão; supremo sacrifício ao qual condenaram o próprio Uriel por anos, o de ser espicaçado pelos irmãos e amigos. Uma lei de afetos, forte, firme, lei de bicho da terra, lei sem Bem e Mal, que não condenaria nem mesmo o ódio que alguns creditam a Uriel contra seu denunciante4. Esses afetos tornariam uma sociedade coesa, feliz; essa lei faria viver livre o cidadão, mais que qualquer fariseu ou cristão, ao permitir “proclamar-se simplesmente homem”. Nas palavras do próprio narrador:

Afirmo que essa lei é comum e inata para todo os homens, pelo fato mesmo de serem todos humanos. Ela liga todos entre si com mútuo amor impedindo divisões que é a causa original de todo ódio e dos maiores males. Ela é a mestra do bem viver porque distingue o justo do injusto, o abominável do belo.(COSTA, 2015: 26)

O comentário de João Alberto da Costa Pinto, no livro da UFG, aponta por fim para a filiação materialista dessa lei vislumbrada por Uriel. Ideias que serão, ao cabo de alguns anos, o fermento para renovadores como Espinosa, para as ideias de um deísmo ético, que frutificariam ainda nos séculos seguintes. Sejam ou não totalmente autorais, as ideias do Exemplar ainda assim refazem o fundo movediço das mudanças em curso. A edição da UFG é bem-vinda ao reapresentar ao público brasileiro esse documento estranho, cruel, signo vivo tanto do racionalismo cristalino do século XVII, como da turva intolerância, capaz de sobreviver mesmo nas sociedades mais livres.

Notas

1 Não deixa de ser notável, como escreve Mordoch, que Uriel da Costa tenha mais vida na ficção que no debate filosófico. São dignos de nota, além do romance de Agustina Bessa-Luís, a peça de Karl Gutzkow, Uriel Akosta, de 1846, e o interesse de Goethe pelo Exemplar.

2 Sabemos que se encontrou em Copenhague um exemplar único do Exames das tradições farisaicas, e que alguns capítulos de outra obra, destruída ou não publicada, principalmente a parte sobre a imortalidade da alma, foram compilados, com função de crítica, por Samuel da Silva. Assim, há apenas um texto que podemos creditar totalmente a da Costa: o exemplar de Copenhague, escrito em português

3 Neste sentido, escreve Mordoch: “Mas foi o famoso Exemplar Humanae Vitae o grande impulsionador dos estudos sobre Uriel da Costa. A já mencionada problemática quanto ao caráter semi-apócrifo dessa obra não impediu que a pesquisa o atribuísse a da Costa e, de fato, a leitura do Exame das tradições aponta coincidências que corroboram a autoria do Exemplar atribuída a da Costa. Alguns trechos específicos despertaram a desconfiança de que o Exemplar recebeu enxertos apócrifos, entre eles a descrição da cerimônia do erem (excomunhão) ou, de maneira geral, o modo como a narrativa tenta representar Uriel da Costa quase como um Cristo moderno”. (MORDOCH, 2011:8)

4 Cecília Michaëlis comenta os rumores de que Uriel teria atentado contra o primo que o denunciara e só então se suicidado, num ato de furor. Para a autora, os documentos nos quais assentam tal denuncia são espúrios e servem mais para abrandar o papel da sinagoga no desfecho da vida de Uriel

Referências

CHAUÍ, Marilena. Espinosa, uma filosofia da liberdade. São Paulo: Ática, 1995.

COSTA, Uriel da. Exame das tradições farisaicas, acrescido com Samuel da Silva, Tratado imortalidade da alma. Introdução, notas e carta genealógica por H. P. Salomon e I.S. D. Sassoon. Braga: Edições APPACDM, Distrital Braga, 1995.

MORDOCH, Gabriel. A Língua e o discurso do Exame das tradições phariseas de Uriel da Costa. Dissertação de mestrado. Universidade de Jerusalém, 2011.

SANTIAGO, Homero. “O Compêndio de gramática hebraica de Espinosa”. In: Trans/form/ação. Marília, nº 36, vol 2, 2013, p. 26-44.

VASCONCELOS, Cecília Michaëlis. Uriel da Costa. Notas relativas à sua vida e às suas obras. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922 (Separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. VIII, nº 144).

Priscila Rossinetti Rufinoni – Professora adjunta – UnB.

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A invenção da cidade: leitura e leitores – MELO (HP)

MELO, Orlinda. C. A invenção da cidade: leitura e leitores. Goiânia: Editora da UFG, 2007. 245 p. Resenha de: COSTA, Keila Matilda de Melo. A reconstrução da cidade: história de leitores, lugares de leituras. História & Perspectivas, Uberlândia, v.33, n.42 – Jan./Jun. 2010.

A invenção da cidade: leitura e leitores, livro de Orlinda Carrijo Melo1, tem como tema as práticas e as representações de leitura numa cidade planejada — Goiânia —, de acordo com os preceitos da modernidade, do progresso e da cultura urbana. Nesta obra, a autora apresenta a transferência da Cidade de Goiás para Goiânia a partir do imaginário social de diferentes leitores. Construção que evidencia não apenas histórias de leitores, lugares de leituras, mas também lutas econômicas e políticas que envolveram a região de Goiás no período em estudo. Dividida em seis partes, abrange a reconstrução das práticas, dos modos e das representações de leitura na cidade inventada a partir de sua fundação, em 1933, até o ano de 1959.

A trajetória profissional da autora, O começo de tudo…, introduz a obra. No contato com alunos, ela retoma discursos sobre leituras e leitores que, desde a época colonial, persistem em justificar a “carência cultural brasileira”. Em busca da sistematização desses discursos, com o objetivo de compreendê-los em um contexto real e idealizado, justificativa do título da obra, a autora se propõe não somente a investigar as práticas de leitura, mas também identificar os modos como elas se constituem na vida dos leitores dessa cidade planejada e civilizada. A explicitação desses modos tem como pressuposto “a reconstrução das diferentes maneiras como os leitores se apropriaram dos textos nos espaços que os constituíram historicamente”.

De História e histórias: o espaço dos interlocutores, Orlinda apresenta o percurso teórico e metodológico de seu trabalho. A interlocução possível é a História Cultural. Por meio do diálogo com essa fundamentação teórica são reconstruídos “os lugares praticados de leitura por operações de sujeitos sócio-históricos, nos tempos construídos pelo improviso, pelo descontínuo, pela falha, pelo lacunar”. Reconstrução feita a partir da narrativa de 16 protagonistas, incluindo uma empregada doméstica e benzedeira. Todos compõem a elite cultural de uma época marcada pelo analfabetismo.

Impasses, cotejo de fontes, indícios e diálogos contribuem para que as histórias dos leitores se entrelaçassem com a história de leitura da cidade construída. Memória individual, coletiva, afetiva, traída e recriada florescem, buscando em fontes variadas o respaldo para os fatos narrados.

A destruição criativada cidade do passado : a teia dos discursos, segundo capítulo da obra, aponta o processo de mudança: para a construção de Goiânia, a descontrução da Cidade de Goiás, do sertão goiano atrasado e inculto. Os preceitos de modernidade e de progresso atingem o interior do Brasil por meio da Marcha para o Oeste. Entre o velho e o novo, entre a tradição e a modernidade, a cidade decadente dá lugar à cidade planejada.

Motivações políticas, sociais, econômicas, sanitaristas, criação de mitos e heróis impulsionaram esta mudança. Na “contramão” do discurso, a Cidade de Goiás surge como um espaço de intensa efervescência cultural e intelectual. Efervescência que dá sustentação à riqueza cultural que irá caracterizar Goiânia. Modernidade e cultura urbana são afinal os paradigmas dos novos tempos.

A cidade inventada: o progresso chegando apresenta esse prenúncio. Neste capítulo são construídas as representações e as imagens da cidade planejada como uma cidade moderna. O progresso se evidencia a partir da dicotomia “sertão civilizado” e “sertão inculto”. Os intelectuais foram os promulgadores dessa construção, uma vez que, antes de se tornar um lugar habitável, Goiânia foi constituída através de narrativas. Do cenário internacional ao brasileiro, profissionais foram chamados para definir esse novo espaço, o art-déco caracterizou-lhe o projeto urbanístico. O nome Goiânia foi escolhido enquanto continuidade à “Nova Goiaz”, prolongamento do passado que se estendeu também pelas práticas culturais. Documentos e depoimentos apontaram a expansão dos espaços de leitura. Espaços formais e informais que contribuíram para a construção das práticas e representações de leituras e de leitores no imaginário da época.

Em Lugares da modernidade : o espaço da leitura instituições diversas foram lembradas. Das instituições de leitura públicas e formais, a autora resgata a história da Biblioteca Pública Municipal de Goiânia, da Escola Normal Oficial e do Grupo Escolar Modelo. Instituições que se situam como “centros culturais e literários de igual valor aos eixos Rio-São Paulo”. Das Instituições de leituras particulares e formais, os “lugares praticados de leitura” estiveram associados ao Colégio Santa Clara, aos vendedores ambulantes, a livrarias, a bancas de revistas etc. Práticas que alcançaram espaços informais como : bibliotecas particulares, bares, farmácias, casas de famílias. A leitura se irrompe para lugares inusitados, revelando leitores que buscam a modernidade em impressos variados, por exemplo em revistas e jornais. Instituições culturais são também lembradas. O “Batismo Cultural de Goiânia” é o evento que dá origem à Associação Brasileira de Escritores – Seção Goiás e à Bolsa Hugo Carvalho. A constituição do imaginário social da cidade planejada foi assim se solidificando com os aspectos da riqueza cultural e da formação intelectual dos goianos.

Leitores: valores e representações, quinto capítulo do livro, evidencia histórias de leitores e suas práticas de leituras — valores e representações atribuídos à leitura pelos moradores da cidade inventada. “Jogos de imagens da cidade e de si mesmos”, reproduzem a nova ordem mundial centrada no progresso e na modernidade. Na leitura herdada de família “não há rito de passagem para a escola”. A leitura se consolida nas relações dos grupos que praticam as formas dominantes de cultura. A posse do livro representa o acesso a essa cultura. A partir desse objeto, outros ícones de leitura marcam essas histórias. Paralelo à leitura familiar, encontra-se a leitura herdada da escola. Ambas reproduzindo valores burgueses. Escola e família se fazem presentes nas representações da cidade que se pretende culta e civilizada.

Espaços reconstruídos aparentemente sem contradições, mas que, em determinados momentos, “memórias traídas” revelam as leituras de vida dupla. Leituras cruzadas entre permissões e censuras a partir do papel do selecionador. No entanto, a “memória coletiva” resiste e conserva viva as leituras consideradas menores.

Por meio do ato de ler, o indivíduo também “se forma e se informa”. É a leitura, ilustração técnica para o trabalho que carrega consigo estigmas do discurso liberal e define postos de trabalho.

Nesse universo de representações e imagens de leitura ganham contornos ainda a leitura feminina e a leitura masculina.

Para as mulheres, leitura de evasão, de sonhos, ocultando conflitos — limitações de leitura. Para o homem, leituras sérias pressupondo tomadas de decisões e escolhas para adentrar o campo competitivo da cidade moderna — acesso ilimitado ao impresso.

Acesso possibilitado pela ampliação de materiais escritos. Daí, a leitura, consumo da modernidade. Práticas modernas e estrangeiras são rapidamente absorvidas. A crônica social, os cartazes, os folhetos, os anúncios e os jornais propagam os eventos culturais.

Cinema, rádio, teatro, fotografia e televisão são representações motivadoras de leitura. “Leituras modernas que sugerem felicidade, conforto e sucesso”. Retrato de uma realidade que não esconde a outra margem da leitura, ou da leitura sem leitores.

Nas lembranças evocadas: analfabetismo, fracasso dos programas escolares, exclusão da maioria da população “pela negação do acesso à escola e pelas práticas de leitura pobres e estereotipadas que engrossam as estatísticas da evasão escolar”. Revelação de um cenário de leitura não autorizado, reservando a milhares de leitores um espaço à margem da ordem social.

A desinvenção da cidade: memória traída é o capítulo que finaliza esta obra. Nele, a autora retoma as cartas escolhidas pelos participantes da pesquisa para a reconstrução do passado. Na montagem desse cenário, mito e realidade permeiam as “memórias seletivas” e revelam as contradições do discurso por meio das “memórias traídas”. A face oculta da cidade inventada se evidencia e duas cidades surgem: uma harmoniosa, que fervilha em leituras; e, outra, com restrições inúmeras. Da memória traída o que resta é a possibilidade de ruptura e do dizer a mais. Da memória seletiva, o anivelamento do discurso e a definição do espaço ocupado nas práticas de leitura da cidade planejada. No entanto, “o caminho sugere vários lugares […]”.

Das inúmeras narrativas de constituem esta pesquisa, mãos experientes sustentam esta história reconstruída pelo discurso de uma “ouvinte-narradora”que, segundo Valéry, faz tornar visível o que está dentro das coisas, o que está submerso nas palavras. A capacidade de ir além do que é revelado, percorrendo diferentes fontes, de apreender a realidade a partir da “metáfora do olhar, que não se deixa levar pelas primeiras aparências”, como dizia Veiga Neto, são as características que definem um pouco da riqueza desta obra. Um livro que vale a pena ser lido não apenas pelos aspectos históricos que o constitui, mas, e sobretudo, pelas inúmeras narrativas as quais caracterizam histórias de leitores, lugares de leituras.

Keila Matida de Melo Costa – Doutoranda em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Bolsista da Capes. k_mcosta@hotmail.com 1 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp – SP. Professora de graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Autora do livro Alfabetização e trabalhadores : o contraponto do discurso oficial.

América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí | Eugênio R. Carvalho

CARVALHO, Eugênio Rezende de. América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí. UFG, 2003. Resenha de: SANTANA, Marcio Antonio. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.4, n.8, jan./jun. 2004. Arquivo indisponível na publicação original. [IF].

Caminhos de Goiás: da construção da “decadência” aos limites da “modernidade” | Nasr Nagib Fayad Chaul

Resenhista

José Carlos Sebe Bom Meihy – Professor livre-docente do Departamento de História da USP.

Referências desta Resenha

CHAUL, Nasr Nagib Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da “decadência” aos limites da “modernidade”. Goiânia: Editora da UFG; Editora da UCG, 1997. Resenha de: MEIHY, José Carlos Sebe Bom. História Revista. Goiânia, v.3, n.1-2, p.127-130, jan./dez.1998. Acesso apenas pelo link original [DR]

História de Goiás em documentos I. Colônia | Luis Palacín, Ledonias Franco Garcia e Janaína Amado

Resenhista

Dulce Amarante Oliveira Santos

Referências desta Resenha

PALACÍN, Luis; GARCIA, Ledonias Franco; AMADO, Janaína. História de Goiás em documentos I. Colônia. Goiânia: Editora da UFG, 1995. Documentos Goiano, 29. Resenha de: SANTOS, Dulce Amarante Oliveira. História Revista. Goiânia, v.1, n.1, p.145-146, jan./jun.1996. Acesso apenas pelo link original [DR]