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Roubos e Salteadores na Bahia no tempo da abolição (Recôncavo, década de 1880) | Eliseu Silva
O processo de abolição é uma das áreas de estudo com maior vitalidade nas últimas décadas, notadamente, por investir no diálogo com a historiografia internacional, por incorporar novos procedimentos de análise e por tratar das experiências de escravizados e ex-escravizados.
É a partir desse cenário que o historiador Eliseu Silva circunscreve sua pesquisa. O livro é resultado da dissertação defendida na UFBA em 2016 e, posteriormente publicada pela EDUFBA em 2019. A investigação tratou dos roubos, furtos e de gente identificada como fora da lei, temática bastante visitada nas Ciências Sociais. Com um trabalho da área de História, o autor procurou analisar as complexas dinâmicas sociais em torno dos furtos e dos roubos em um recorte espacial e temporal delimitado. A pesquisa está concentrada no termo de Cachoeira, no Recôncavo baiano, na década de 1880.
Eliseu Silva produziu um trabalho de qualidade pautado nas regras do campo da história acadêmica, acessando farta bibliografia para diferentes frentes de sua investigação, com destaque para o diálogo refinado travado com intelectuais latino- americanos sobre o banditismo. Essa historiografia contribuiu para Silva não reduzir os homens em conflito com a lei em agentes que invalidavam injustiças sociais. As leituras teóricas e conceituais se fizeram presentes, com predominância dos historiadores sociais que dão o tom do debate realizado ao longo da obra que procurou reconstituir redes sociais ao rés do chão. A historiografia baiana, rica e diversa, mobilizada pelo autor, permitiu refletir sobre os diferentes aspectos que marcaram a desigualdade e a exclusão experimentada por gente empobrecida, em parte, oriunda do universo do cativeiro.
O historiador cruzou uma diversidade de fontes como jornais, processos criminais, correspondências policiais, relatórios dos presidentes de província e atas do legislativo. Ao analisar esse variado conjunto documental, apresenta-se ao leitor ações e vínculos estabelecidos por gente considerada criminosa nos influxos do processo de dominação e desmonte das relações escravistas.
Maria Helena Machado (1987) lembra que roubos e furtos podiam ser interpretados como “suplementação da economia independente” e como subversão. O autor, seguindo essa interpretação, indicou ser a maior parte dos delitos arrolados enquadrados no crime contra a propriedade, envolvendo animais, dinheiro e objetos de pequeno valor oriundos de fazendas e casas de comércio. Os objetos surrupiados carregavam simbologias de prestígio e poder próprios do universo branco e senhorial. As ações dos ditos ladrões podem ser lidas, por vezes, como imbuídas do interesse de recompensar danos infligidos e desavenças pessoais. Sendo assim, os delitos não necessariamente ocorriam para conter a fome ou a carência material. De um lado, a pesquisa buscou não dicotomizar as identidades de criminoso e de trabalhador, por outro lado, o autor não quis romantizar as experiências desses indivíduos tomando-as como expressão absoluta da luta contra a opressão e as injustiças sociais. Muitos adentravam no mundo do crime premidos pelas péssimas condições de vida. Já outros, apesar da preferência pelos endinheirados, também roubavam gente pobre e, por isso, não podem ser considerados bandidos sociais segundo a concepção de Hobsbawm (2010). Dessa feita, Silva procurou apresentar as experiências desses homens sob uma perspectiva mais equilibrada, sem superestimar suas ações e, para isso, faz uso do conceito de roubo social. Segundo Eliseu Silva, roubo social consiste na possibilidade dos menos favorecidos economicamente adquirirem recursos materiais distantes de sua realidade. O autor, a partir das análises empíricas, observou como o banditismo à época estava associado ao processo de desmonte das relações escravistas. A repressão aos supostos furtos e roubos tinha também a intenção de criminalizar as iniciativas e os projetos de futuro que ganhavam espaço com as lutas pelo fim do cativeiro.
O livro está dividido em três capítulos bem estruturados que dialogam com diferentes fontes documentais, procedimentos metodológicos e com especialistas nas temáticas abordadas. No primeiro capítulo é caracterizado o Recôncavo baiano na década de 1880, assim como as questões que permearam esse período. Discutiu-se acerca da abolição do cativeiro, da regulamentação do trabalho livre e da implementação de normativas que auxiliaram na coerção e na interferência do cotidiano da população recém-liberta.
No segundo capítulo são narradas as desventuras sucedidas em meio a roubos e furtos ocorridos no termo de Cachoeira. Segundo o autor, algumas dessas ações podem ser interpretadas como respostas a práticas consideradas injustas. Entre os escravizados, parece ter sido difundido o entendimento do direito ao usufruto de bens e recursos pertencentes ao senhor ou ex-senhor, pois as riquezas obtidas eram resultado do suor do seu trabalho, como uma espécie de um acerto de contas. Esse é um ponto importante da análise, tendo em vista que, na década de 1880, estava em derrocada a ideia de que o direito de propriedade incluía a posse de uma pessoa por outra, resultando em conflitos acerca da propriedade do que era produzido nas fazendas. A legitimidade da posse de terras, segundo Mariana Dias Paes (2018), por exemplo, também estava em disputa nesse período e era marcada pelo contexto da escravidão. Os debates em torno do tema da emancipação gradual fizeram com que o registro de terras tivesse a matrícula de escravos como referência. Segundo a autora, a partir de 1880 a legitimação da posse de escravos ou de terras estava centrada nas provas de domínio e, para isso, foram criadas tanto categorias jurídicas como documentos que garantissem sucesso nos litígios judiciais envolvendo tais propriedades. Avançava nas últimas décadas do século XIX o reconhecimento da propriedade de coisas, ao mesmo tempo em que amainava a legitimidade do domínio de pessoas.
Ainda no segundo capítulo, conhecemos quem eram os indiciados nos crimes de arrombamento, furto de animais e roubo, como também se estabelece uma aproximação aos seus hábitos, motivações, redes de sociabilidades e as redes de comércio ilícito. A partir dos dados arrolados, ficamos sabendo que parte significativa dos envolvidos com a ladroagem era formada por indivíduos não-brancos, tendo entre eles cativos. A maior parte dos indiciados era gente livre, os quais gozavam de certa liberdade de locomoção, facilitando as incursões criminosas. Nota-se a presença marcante de homens jovens, solteiros e trabalhadores braçais do universo urbano e rural. Alguns desses indivíduos foram localizados pelo nome, etnia e ofício, como o israelita José Morgan, a crioula Thomazia Maria e o fogueteiro Procópio Barbosa.
Entre os objetos subtraídos destacam-se joias, dinheiro, tecidos, roupas, fumo e animais que eram levados para vender ou para consumir. Os espaços que ofereciam esses produtos em profusão eram as fazendas, lojas de secos e molhados, fábricas de tecido ou fumo, casas de joias, todos esses estabelecimentos pertencentes às elites econômicas e políticas do entorno de Cachoeira. O roubo das posses da elite proprietária era visto como uma afronta à honra e à autoridade dos mais abastados e, por isso, tais delitos eram duramente perseguidos. Já a recepção dos objetos, em grande parte, deu-se entre pequenos comerciantes e mulheres. Segundo o autor, os primeiros se convertiam em receptadores por objetivarem ganhos pelos preços mais baixos dos produtos comercializados e, as últimas, no imaginário da época seriam acusadas com maior facilidade, pois os ladrões não sofreriam represálias.
No terceiro capítulo, somos melhor apresentados aos protagonistas da investigação. Nesse ponto é destacada a trajetória do grupo de salteadores de Basílio Ganhador, suas ações e quais os mecanismos e sujeitos compunham o bando. As mulheres, por exemplo, eram personagens importantes na rede de ajuda e favores, pois apesar de não serem integrantes efetivas da malta, atuavam na troca de notas mais altas de dinheiro no comércio e vendendo produtos roubados. As façanhas do grupo circularam na imprensa e nas correspondências de autoridades policiais, juízes e presidentes de província. O autor relata ainda que, na “companhia” de Basílio Ganhador, eram aceitos cativos fugidos, o que aumentava a repulsa ao bando por parte da classe proprietária.
Os codinomes dos personagens chamam a atenção e mereceriam uma análise mais acurada. Em várias passagens são apresentadas o envolvimento em delitos de indivíduos com as alcunhas de “Pé de rodo”, “Boca de boi”, “José das Preás”, “Joaquim Belas cousas” e “Marinheiro”. A reflexão sobre os codinomes poderia reforçar a discussão realizada quanto às ocupações e habilidades dos sujeitos que recorriam à ladroagem, ora como forma de subsistência, ora como modo de vida. Tal consideração poderia corroborar o argumento inicial de não dicotomizar as experiências desses sujeitos entre os universos do trabalho e do crime.
O livro de Eliseu Silva é uma leitura importante para os pesquisadores com trabalhos voltados à história social da escravidão e do processo de abolição. A discussão realizada na obra tem o potencial de atrair também o público não acadêmico que tenha interesse na história dos grupos minorizados, nas estratégias para impor sua subalternização e nos chamados foras da lei do século XIX.
Referências
DIAS PAES, Mariana Armound. Escravos e terras entre posses e títulos: A construção social do direito de propriedade de propriedade no Brasil (1835-1889). Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. [ Links ]
HOBSBAWM, Eric. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2010. [ Links ]MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987. [ Links ]
Maria Emilia Vasconcelos dos Santos – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de História, Rua Dom Manuel de Medeiros, s/n, 52171-900, Recife, PE, Brasil. mariaemiliavas@hotmail.com.
SILVA, Eliseu. Roubos e Salteadores na Bahia no tempo da abolição (Recôncavo, década de 1880). Salvador: Editora da UFBA, 2019. 216p. Resenha de: SANTOS, Acessar publicação original [IF].
Varia Historia. Belo Horizonte, v.37 n.73, Jan./Apr. 2021.
Encontros e desencontros de lá e de cá do Atlântico: mulheres Africanas e Afro-brasileiras em perspectiva de gênero / Patrícia G. Gomes e Claudio A. Furtado
Patrícia Godinho Gomes / Foto: Elaine Schmitt – UFSC Notícias /
Em um breve ensaio na introdução é apresentada a ideia de modernidade, acentuada no desenvolvimento do capitalismo e na industrialização. Esta faz com que transformações socioculturais e de categorias como as de gênero e raça derivem de fundamentos sociais euro-peus, influenciando em desigualdades e estratificações sociais. Destaca-se uma cronologia dos estudos e temas publicados sobre mulheres e relações de gênero, representando seus impasses, como a predominância de textos escritos por homens e a partir de seus olhares, mas também o crescimento significativo da produção literária sobre mulheres africanas e a partir de suas perspectivas. Quanto ao Brasil, mostra-se dados em relação ao período da escravidão e o peso da visão machista e eurocêntrica sobre eles, como o ideal do colonizador sobre o colonizado. Por isso, a importância de uma literatura produzida sobre as lutas das mulheres negras no Bra-sil, fazendo com que conceitos de raça e gênero sejam considerados intrínsecos, “insepará-veis”.
No primeiro capítulo, “De emancipadas a invisíveis: as mulheres guineenses na produ-ção intelectual do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas”, a autora Patrícia Godinho Go-mes apresenta um breve excursus teórico de Houtondji e Oyèwùmi e a questão dos estudos sobre mulheres e gênero, no qual destaca a origem da produção deste conhecimento e seus principais destinatários. No processo de independência de Guiné-Bissau, em 1973, a partici-pação das mulheres constituiu-se em um elemento-chave para seu desenvolvimento do pro-cesso, tanto externo como interno. Porém, a importância das mesmas é inviabilizada nos dis-cursos, como discutido no diálogo apresentado entre dois intelectuais guineenses- Carlos Lo-pes e Diana Lima Handem, que debatem temas como patriarcado, subalternização e relações de gênero e mercado de trabalho. É abordada a ausência de mulheres na produção intelectual do INEP, juntamente com a de temas sobre as mesmas, dando destaque às atitudes de alguns órgãos como A União Democrática das Mulheres Guineenses (Udemu) em relação a isto. Leia Mais
Planos de Saúde e Dominância Financeira – SESTELO (TES)
SESTELO, José A. F.. Planos de Saúde e Dominância Financeira. Salvador: EDUFBA, 2018. 397p. Resenha de: ANDRIETTA, Lucas Salvador. Planos de saúde: protagonistas da acumulação de capital na saúde brasileira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.18, n.1, Rio de Janeiro, 2020.
As lacunas que se pode apontar no livro de Sestelo são consequência de seus próprios méritos: a ambição de seus objetivos e o rigor de sua execução. Trata-se de um trabalho inconcluso, em muitos sentidos, embora não menos interessante.
Fruto de uma abordagem exploratória, o livro acrescenta peças importantes a discussões em andamento. Não hesita em enfrentar debates teóricos controversos e não ignora que trata de uma matéria em movimento. Ao fazê-lo, contribui enormemente para colocar algumas questões em outro patamar. Nesse sentido, as perguntas que deixa em aberto são mais valiosas que suas conclusões.
Como resultado, o autor nos oferece um extenso mosaico, tanto teórico quanto empírico, embora sua obra deixe suspensa no leitor a expectativa por uma síntese.
Sestelo nos apresenta uma tese bastante atual. Dedica-se a compreender como os traços mais marcantes do capitalismo contemporâneo se expressam na atuação das empresas de planos de saúde no Brasil. Suas conclusões são inequívocas: os aspectos fundamentais daquilo que se convencionou chamar de financeirização se manifestam cada vez mais intensamente na saúde brasileira.
O livro vem somar-se à tradição de trabalhos que buscaram problematizar e compreender a convivência incômoda entre a lógica sanitária e a lógica empresarial. Esta herança está evidenciada ao longo de todo o texto, seja no diálogo crítico que faz com essa literatura, seja de forma implícita nas inquietações que perpassam o trabalho.
Contudo, não se restringe ao tributo monótono às referências do passado. Embora mostre como o empresariamento da saúde é um processo com décadas de continuidade, Sestelo enfatiza a todo momento a importância de compreendermos suas novidades históricas. Nesse sentido, contribui para um esforço atual – e coletivo – de abordar o papel de grandes grupos econômicos dentro do sistema de saúde brasileiro.
Para isso, explora a trajetória de seu objeto, os planos de saúde, revelando seus contrastes e transformações. Recupera o passado de arranjos comerciais incipientes, empresas familiares de pequeno alcance e esquemas que, mesmo quando atingiam maior escala, permaneciam geridos de forma simplória.
Mas não o faz senão para evidenciar as características das empresas que hoje dominam o setor. Entes que atuam em escalas muito mais elevadas, em mercados de concorrência mais acirrada; que profissionalizam sua gestão; que despertam o interesse do capital nacional e estrangeiro, promovendo operações financeiras de grande magnitude; e que transitam por diversas atividades econômicas, – não apenas na saúde.
Algumas escolhas teóricas e metodológicas feitas pelo autor merecem a atenção especial da comunidade acadêmica que se situa na fronteira entre a Saúde Coletiva e as Humanidades. O livro aponta para algumas questões comuns a todos nós. Ainda que sem resolvê-las todas, tem o mérito de limpar o terreno de pistas falsas e concepções equivocadas que tanto influenciam o senso comum e, também, o trabalho de especialistas. Destacamos algumas dessas escolhas.
Em primeiro lugar, o autor rejeita a visão do mercado de planos de saúde no Brasil como algo ‘natural’, ou seja, uma necessidade inexorável induzida pela demanda espontânea da população. Nesse sentido, resgata a tradição da Economia Política ao buscar compreender o real papel das operadoras dentro do sistema, sobretudo o esforço permanente que realizam para criar, recriar e ampliar seus espaços de atuação e suas condições de acumulação de capital.
Em segundo lugar, o autor se afasta de interpretações binárias e estanques sobre as noções de ‘público’ e ‘privado’ que permeiam o sistema de saúde (cap. 1). Nesse sentido, enfrenta um problema crucial: como apreender corretamente as inúmeras articulações, sobreposições, contradições e fluxos entre os distintos componentes do sistema de saúde? Como fazê-lo sem perder uma perspectiva sistêmica? Sem restringir-se à mera apreciação de mixes público-privados, como um enólogo que comenta uma carta de vinhos?
Em terceiro lugar, o autor demonstra cuidado no tratamento do conceito de financeirização, que tantas acepções distintas recebe na literatura (cap. 2). Sem entrar aqui nos pormenores relacionados ao termo ‘dominância financeira’, o trabalho acerta ao enquadrar sua análise empírica das empresas como entidades integrantes do padrão de acumulação que caracteriza o capitalismo contemporâneo.
Para isso, apoia-se numa definição de ‘capital financeiro’ que nos parece a mais apropriada. O autor se distancia daqueles que insistem em separar o que é inseparável. Que insistem em tratar como diferentes e antagônicos os interesses do ‘capital produtivo’ e do ‘capital rentista’. Pelo contrário, encara o capital financeiro precisamente como a fusão das formas parciais do capital. Como nos lembra Eleutério Prado: “ambos têm de ser compreendidos como momentos da totalidade social constituída pelo próprio capital” (Prado, 2014, p. 21).
Dessa forma, Sestelo consegue escapar de armadilhas recorrentes e enquadrar melhor seu objeto. O leitor não encontrará em seu trabalho uma ‘esfera das finanças’ descolada e independente da ‘economia real’. Não encontrará também empresas não financeiras passivas diante de um processo que lhes subverte as ‘virtudes’.
O que o leitor encontrará é um esforço de compreender como as empresas de planos de saúde expressam a lógica geral do sistema e a ela se integram. Em outras palavras, como esta lógica se difunde de forma cada vez mais intensa sobre domínios como a intermediação assistencial.
No caso específico da saúde, não se trata de dizer que os esquemas de comércio de planos e seguros são uma novidade recente. Mas sim de mostrar como o processo vivido pelo setor, sobretudo nas últimas duas décadas, aprofunda tendências que antes eram incipientes. Especialmente, como algumas empresas relativamente irrelevantes se transformaram em grandes grupos econômicos multissetoriais, multifuncionais e transnacionais, capazes de impor sua agenda sobre inúmeros assuntos de interesse público no campo da saúde.
Além do esforço de articular diferentes temas num referencial teórico consistente, o livro recorre a uma extensa pesquisa documental (cap. 3). O resultado é um quadro rico de informações sobre a trajetória das maiores empresas de planos de saúde brasileiras.
Mais que o mero interesse nas transformações e pormenores do mundo corporativo, Sestelo sugere, durante todo o texto, possíveis desdobramentos de seus achados e reflexões, deixando em aberto uma agenda de pesquisa ampla.
Sobressai a conclusão de que as empresas de plano de saúde ocupam, cada vez mais, um papel central dentro do ‘complexo econômico-industrial da saúde’:
Não há dúvida de que o esquema de intermediação assistencial ocupa um lugar estratégico nessa constelação. O lugar da intermediação permite múltiplas interfaces de relacionamento comercial e fundamentalmente detém o poder discricionário de gestão financeira sobre os valores pagos a título de contraprestação pecuniária pelos trabalhadores/clientes, seja na forma de pré-pagamento ou pós-pagamento (p. 360).
Esta constatação se desdobra em muitas questões atuais, algumas delas enunciadas pelo próprio autor.
Contribui, por exemplo, para elucidar a grande capacidade dos planos de saúde de manterem seu desempenho durante as oscilações econômicas que afetaram a economia brasileira nos últimos anos. Não apenas pelo seu poder de mercado diante de clientes, fornecedores e prestadores, mas também pela facilidade com que obtêm benesses do setor público, seja do ponto de vista tributário, seja da regulação de suas práticas. Este tema excede a problemática específica das empresas, sobretudo num país com grandes desigualdades em saúde, que essas tendências parecem estar aprofundando.
Outros campos de pesquisas recentes podem se beneficiar do trabalho de Sestelo, embora não façam parte do escopo da obra. Vale a pena mencionar dois deles.
Primeiro, o papel que os planos e seguros ocupam hoje no sistema de saúde faz com que sejam protagonistas nas transformações observadas no mundo do trabalho dos profissionais de saúde. As novas formas de contratação, as mudanças nas condições de trabalho, as relações de trabalho que fogem à legislação ou que foram remodeladas pela recente reforma trabalhista.
Igualmente, é preciso sempre lembrar que o mercado de planos de saúde brasileiro é constituído por uma grande maioria de planos coletivos empresariais vinculados a contratos formais de trabalho. Tem, portanto, uma relação íntima com a dinâmica do mercado de trabalho em geral. E os planos de saúde, embora de forma ainda indefinida, terão de reagir às tendências futuras do mundo do trabalho brasileiro.
Segundo, o livro corretamente menciona o Sistema Único de Saúde (SUS) no sentido de explicar como as acepções sobre a articulação público/privada abriram espaço para a conformação de um mercado hipertrofiado de saúde suplementar no Brasil. Contudo, o trabalho não aprofunda a discussão sobre o espaço que o SUS e o orçamento da saúde ocupam nas estratégias atuais dos planos de saúde. Este passo adicional contribuiria muito, empiricamente, para as pesquisas dedicadas a entender os processos de mercantilização e privatização que afetam as políticas públicas, não apenas na saúde.
Esses caminhos abertos por Sestelo ajudam a alargar uma agenda de investigações sobre as empresas que atuam na saúde brasileira. Seus apontamentos deixam claro que essas pesquisas não ficam limitadas aos fenômenos que interessam aos clientes de planos privados – cerca de 1/4 da população brasileira –, mas interferem nas questões relativas a todo o sistema de saúde.
Pelas razões expostas acima, o livro Planos de saúde e dominância financeira é muito bem-vindo ao acervo da Saúde Coletiva, assim como despertará o interesse daquelas pessoas situadas nas suas fronteiras com outras áreas do conhecimento.
Referências
PRADO , Eleutério . Exame Crítico da Financeirização . Crítica Marxista , n. 39 , p. 13 – 34 , 2014 . [ Links ]
Lucas Salvador Andrietta – Universidade de São Paulo , Faculdade de Medicina e Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde . Campinas , SP , Brasil . E-mail: lucasandrietta@gmail.com
(P)
Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto – SILVA (RTA)
SILVA, Joana Angélica Flores. Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto. Salvador: Edufba, 2017. Resenha de: SANTIAGO, Fernanda Lucas. Narrativas sobre mulheres negras: diálogos entre a História e a Museologia. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.5, p.509-514, jul./set., 2018.
Nós, historiadoras/es, partilhamos com nossas/os colegas museólogas/os alguns dilemas próprios do nosso ofício, como a responsabilidade com a narrativa que construímos, os desafios da análise crítica à fonte documental e o risco da fetichização e folclorização dos documentos. Para além disso, a função social de ambas as profissões, está intimamente ligada com a desconstrução de estereótipos e a necessidade constante de rever métodos e atualizar abordagens discursivas, entre outros aspectos. Desse modo, tanto na História como na Museologia, e em outras ciências humanas, a análise das fontes é o ponto-chave na construção da narrativa em que não se pode esperar que a fonte fale por si. Anterior à análise da fonte é necessário ter em vista o que pode ser considerado fonte. Quais sujeitos essa, ou aquela fonte nos permite acessar? Apesar dessas discussões não serem novidade na área da História, ainda determinados sujeitos ficam à margem das narrativas especialmente quanto à interseccionalidade de gênero, raça e classe. Qual o lugar destinado à mulher negra nas narrativas históricas? Qual o lugar destinado às mulheres negras nas exposições museológicas? Nesse sentido, Joana Flores Silva critica a “romantização da escravidão” nos museus de Salvador e o “não lugar” da mulher negra nos museus e em nossa sociedade. Foram essas questões, que motivaram a Museóloga a aprofundar sua análise e escrever sua dissertação de Mestrado em Museologia (2015) pela UFBA. Essa resenha refere-se ao texto de sua dissertação, cujo lançamento em formato de livro deu-se no dia 21 de julho de 2017 no Solar Ferrão1, Pelourinho, Salvador – BA. A pesquisadora possui profunda experiência na área da Museologia, assumiu diversos cargos de gestão e coordenação de museus em instituições governamentais, sendo responsável por diversos projetos com a finalidade de criar políticas públicas para atender a demanda social com relação às questões de acessibilidade, identidade e pertencimento do público soteropolitano. Sua militância segue lado a lado com sua sólida trajetória profissional. Atualmente, é museóloga da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Branco e Preto” é um marco na Museologia brasileira, pois inaugura2 a discussão de gênero e raça, além de ser um ato político extremamente simbólico a presença de uma museóloga negra discutindo racismo; representatividade; o lugar da população negra na narrativa oficial; acessibilidade aos museus; no mesmo lugar em que, há pouco mais de um século, pessoas negras estavam sendo vendidos em praça pública.
A pesquisadora analisou sete museus de tipologia histórica de Salvador contidos no Guia Brasileiro de Museus, buscando entender como são representadas as mulheres em exposições de longa duração, e o tratamento diferenciado dado às representações de mulheres negras e mulheres brancas. Para entender a composição dos cenários dos museus analisados, a museóloga considerou duas etapas do projeto expográfico: a primeira refere-se à preservação dos objetos, ou seja, o que é valorizado como documento digno de preservação? O que compõe uma coleção? E a segunda etapa refere-se à exibição. O que merece ser exibido ao público? Quem são os sujeitos representados nos lugares de maior ou menor destaque dentro dos museus? Como resultado da análise, a museóloga percebe que os acervos são pouco explorados e/ou distorcidos, no que tange a representação da mulher negra; há pouca ou ausência de referência sobre objetos que são atribuídos às mulheres negras. Caso parecido ocorre na História, quanto à invisibilidade das mulheres negras nas narrativas históricas. É necessário pensar qual a importância desse sujeito histórico (mulher negra) naquele contexto, e as experiências das mulheres negras na atualidade, e assim, questionar a intencionalidade de ligar o corpo negro ao passado de escravidão, promovendo seu silenciamento.
A museóloga explica que os recursos de luz e cor, conteúdo das legendas, a escolha dos objetos e espaços de maior ou menor destaque nos museus, evidenciam a intencionalidade expográfica de cristalizar hierarquias sociais. Assim como na narrativa histórica, escolhe-se apenas o que se deseja lembrar e o restante é esquecido, não há espaço para a pluralidade de experiências. A memória da mulher branca e pobre é Disponível em: <https://g1.globo.com/bahia/noticia/livro-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-e-lancado-no-solar-ferrao-nesta-sexta-feira.ghtml>. Acesso em: 30 abr. 2018. 2 Disponível em: <https://dimusbahia.wordpress.com/2017/07/25/lancamento-do-livro-de-joana-flores-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-lota-o-museu-abelardo-rodrigues/>. Acesso em: 30 abr. 2018. apagada, assim como a memória de mulheres negras livres e com poder de influência são esquecidas. Cristalizar a imagem da mulher negra como escravizada impede-nos de perceber a história da mulher negra para além dessa imagem, invisibiliza suas ações enquanto sujeito histórico ativo na construção socioeconômica do país e sua atuação como líderes comunitárias, em clubes, coletivos e outros movimentos sociais. Segundo a museóloga, a memória da mulher branca da elite nos museus de Salvador é sustentada através da memória da mulher negra escravizada, ou seja, a memória de um grupo é reforçada pela subalternização da memória de um outro grupo .
Joana Silva faz um apelo no sentido de que as teorias e práticas museológicas devem ir além de pensar no acesso ao museu, mas devem repensar as formas de representar os sujeitos que não frequentam museus, por não se reconhecerem nos discursos ultrapassados exibidos nessas instituições. É necessário dar um tratamento digno aos objetos que pertenceram às mulheres negras e contextualizar os usos dos objetos, que são parte da história esquecida pela historiografia oficial. Trazer legendas com referências mais precisas sobre os objetos e sujeito que os possuíam, ou os utilizavam. Tornar visível a herança cultural desde tempos remotos dos grupos excluídos, para resgatar o sentimento de pertencimento e identidade racial e social dos sujeitos históricos no presente. A autora indica como possibilidade contrapor historiografia oficial com as produções artísticas que valorizam a mulher negra.
A pesquisadora apresenta alguns marcos de reflexões sobre a função social do museu que está na pauta da Museologia internacional dos últimos 40 anos: a Mesa Redonda de Santiago no Chile em 1972, segundo Silva (2017, p.51) “o desenvolvimento e o papel dos museus no mundo contemporâneo”; a Declaração de Caracas, de 1992, de acordo com Silva (2017, p. 51) “compreende os museus como um dos principais agentes de desenvolvimento integral”. O Código de ética do ICOM (Conselho Internacional de Museus) que assegura a autonomia dos museus no tratamento de suas coleções mas, atenta para o compromisso em tornar acessível e representativo para os diversos grupos sociais. Mesmo após esses avanços, a autora constata que a maioria dos museus de Salvador ainda não se alinharam a essas determinações internacionais. A museóloga também apresentou marcos nacionais de maior relevância para a renovação da museologia, como a Constituição de 1988, que instituiu o Plano Nacional de Cultura. As conquistas do movimento negro através das Políticas de Ações Afirmativas, como a criação da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção à Igualdade Racial) e SEPROMI (Secretaria de Promoção à Igualdade Racial), o Estatuto da Igualdade Racial. Esses marcos de Políticas Públicas sinalizam, de maneira geral, o respeito à diversidade cultural, a atualização da narrativa de maneira que promova a valorização dos sujeitos e grupos excluídos, resgatando o sentimento de pertença e identidade cultural.
A autora apresenta um breve histórico abordando a fundação de três instituições: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1838, o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro em 1922 e o Instituto Feminino da Bahia fundado em 1923. Segundo a autora, essas três instituições foram responsáveis por construir os símbolos de identidade nacional, progresso, modernidade, o modelo de mulher burguesa e por cristalizar o continuísmo do espaço marginal destinado à população negra e indígena no estado da Bahia.
A narrativa oficial da História inseriu a mulher negra no papel de escravizada e da mesma forma operou o discurso Museológico durante anos. Tanto a historiografia quanto a museologia são beneficiadas quando as/os pesquisadoras/res consideram em suas abordagens o recorte racial, e suas interseccionalidades com gênero e classe. Faz-se urgente a difusão de trabalhos como de Silva (2017) para o combate ao racismo, machismo e sexismo. Esse trabalho de análise da museóloga deve servir de exemplo as/aos pesquisadoras/res brasileiros, assim como em todo mundo afro-diaspórico. Não se trata de tentar esconder o passado de escravidão mas, trata-se de evidenciar que a população afro-diaspórica tem uma história rica e plural em experiências, não sendo aceitável a reificação da imagem do escravizado. Silva (2017) traz nas últimas páginas de seu texto uma lista emblemática referenciando diversas mulheres negras que merecem ser lembradas por seu trabalho e atuação política, como Maria Beatriz Nascimento, Karol com K, Jovelina Pérola Negra, Olga de Alaketu, Tia Ciata, Djamila Ribeiro entre outras.
Entre as funções sociais do museu também podemos considerar a função didático-pedagógica, para que os museus possam servir aos propósitos da Lei 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira no Ensino Básico, desde que os objetos representados dialoguem com o público visitante numa perspectiva de desconstruir estereótipos; dessa forma, os museus podem ser aliados na construção de uma Educação Intercultural.
Referências SILVA, Joana Angélica Flores. Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto. Salvador: Edufba, 2017.
Escritora Joana Flores lança livro ‘Mulheres Negras e Museus de Salvador’ no Solar Ferrão. G1 Bahia. Disponível em: <https://g1.globo.com/bahia/noticia/livro-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-e-lancado-no-solar-ferrao-nesta-sexta-feira.ghtml> Acesso em: 30 abr. 2018.
Lançamento do livro de Joana Flores ‘Mulheres Negras e Museus de Salvador’ lota o Museu Abelardo Rodrigues. Dimus Bahia. Disponível em: <https://dimusbahia.wordpress.com/2017/07/25/lancamento-do-livro-de-joana-flores-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-lota-o-museu-abelardo-rodrigues/> Acesso em: 30 de abr. 2018.
Fernanda Lucas Santiago Mestranda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópólis – SC – Brasil. E-mail: flucasantiago@gmail.com.
O professor e a educação inclusiva: formação, práticas e lugares – MIRANDA; GALVÃO FILHO (REi)
MIRANDA, Theresinha Guimarães; GALVÃO FILHO, Teófilo Alves (Orgs.). O professor e a educação inclusiva: formação, práticas e lugares. Salvador: EDUFBA, Salvador, 2012. Resenha de: BORDAS, Miguel Asngel Garcia: Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 1, p. 221-223, jan./jun. 2015.
A presente coletânea tem como questão central problematizar os sentidos, significados e intencionalidades que vêm se materializando na relação entre o professor e a relação inclusiva, enfocando três aspectos dessa complexa realidade: a formação do professor, que hoje supõe transcender antigas e superadas seguranças e paradigmas; a sua prática, que deve possibilitar a interação crítica e criativa entre pessoas singulares, cada vez mais presentes nas salas de aula, e os lugares que, com frequência nos dias de hoje, rompem os muros e paredes da escola tradicional, para abarcarem novos e mais profícuos espaços e tecnologias para aprendizagem, visando a construção de uma sociedade e escola inclusivas.
O conjunto dos artigos desta obra contempla múltiplas questões que entrecruzam o campo da educação inclusiva, tendo como referência o professor, em diálogo polifônico de saberes. O trabalhos apresentados reúnem ideias, resultados de pesquisas e relatos de experiências, que suscitam questionamentos e posicionamentos distintos em relação aos temas abordados, possibilitando o aprofundamento do debate sobre ações educacionais, voltadas para uma educação escolar de qualidade, que possa promover formas de inclusão.
A questão proposta é analisada sob a ótica de diversas experiências construídas durante o desempenho da trajetória profissional de seus autores. Contudo, o leitor poderá observar que os autores mantiveram uma importante relação pedagógica e política entre o social e o educacional, na busca de aprofundar as reflexões referentes a educação inclusiva, principalmente em relação a formação docente, suas práticas e lugares de atuação, para uma educação especial na perspectiva do novo paradigma inclusivo.
Os artigos apresentados nesta coletânea estão agrupados em três blocos, de acordo com os tópicos discutidos no evento. No primeiro bloco estão os que tratam da Formação Docente e dele constam, os trabalhos relativos a : resultados de pesquisas sobre formação docente ( Jesus e Effgen, Martins e Pimentel); princípios teóricos e fundamentos para a formação docente (Crochík, Díaz e Costa) e caminhos percorridos por grupos de pesquisa na formação profissional e produção do conhecimento ( Silva e Miranda ).
O segundo bloco aborda questões relativas às práticas pedagógicas para a educação inclusiva, suas possibilidades e tensões.
Ele é composto de nove artigos, dentre eles cinco analisam o uso da Tecnologia Assistiva (TA) como recurso para favorecer a o desenvolvimento da pessoa com deficiência. Oliveira e colaboradores, Passerino discutem o uso da comunicação alternativa. Silva descreve a áudio descrição (AD), criada com objetivo de tradução intersemiótica criada com objetivo de tornar materiais como filmes, peças de teatro, espetáculos de dança, programas de TV em diferentes realidades é analisada por Galvão Filho, Miranda e por Castro e colaboradores. Os demais textos deste bloco referem-se a pesquisas sobre a prática de inclusão: o uso de jogos com crianças hospitalizadas (Barros e colaboradores); o ensino da ortografia para crianças cegas ( Martinez); a comunicação e o aluno com surdo cegueira ( Galvão ) e práticas municipais de inclusão ( Oliveira).
O Terceiro bloco denominado Lugares, refere-se aos espaços em que ocorrem as práticas pedagógicas, destinadas às crianças e aos jovens com deficiência. Tradicionalmente, essas pessoas eram segregadas em instituições especializadas e escolas especiais ou ficavam isoladas no seio familiar e sua escolaridade limitava-se as séries iniciais do ensino fundamental, pois a sociedade não lhes garantia condições para progressão escolar e inclusão social. Com o avanço das ciências e a promulgação de dispositivos legais, é assegurada a educação da pessoa com deficiência, que vem alcançando níveis elevados de escolaridade, atingindo a universidade, alcançando o mercado de trabalho. Nessa importante perspectiva estão os artigos de Anjos, Barbosa Santos, Carneiro Santos; e Souza e Santos que pesquisam a inclusão no ensino superior, a partir da realidade das Universidades que foram estudadas. Pereira, Passerino e Del Masso discutem a relação da pessoa com deficiência e o trabalho.
Ainda nessa reflexão sobre os lugares da educação inclusiva, Mendes e Malheiro questionam o atendimento educacional especializado, proposto na atual política educacional para ser realizada em salas de recursos multifuncionais, como modelo único de apoio a inclusão escolar do aluno com deficiência, em contraponto destaca- -se o texto intitulado O letramento de surdos em escolas especiais em Salvador, de autoria de Teixeira e Marinho. Esse ponto escola regular X escola especial é polêmico e não há consenso e, desta forma temos o entendimento de que estes textos, assim como o conjunto de todos os trabalhos aqui apresentados poderão servir, sem sombra de dúvida, para ampliar as reflexões de forma crítica com fecundidade e profícua fertilidade.
Miguel Asngel Garcia Bordas – Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Educação. E-mail: miguel@ufba.br
Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas – SANTANA et. al (RHH)
SANTANA, Bianca; ROSSINI, Carolina; PRETTO, Nelson de Luca (Org.). Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas. Salvador: Ed. UFBA; São Paulo: Casa da Cultura Digital, 2012. 246p. Resenha de: LEITE, Danilo Meira; LATAZA, José Amilton. Repensando a práxis educacional: breve olhar sobre os recursos educacionais abertos. Revista História Hoje, v. 3, nº 5, p. 323-327 – 2014.
Onze artigos curtos e cinco entrevistas de autores das mais variadas frentes e formações compõem o livro Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas, que se apresenta como uma espécie de manual para o uso de recursos educacionais abertos (REA) em uma educação básica de qualidade. A publicação está dividida em três partes – reflexões teóricas, experiências, e depoimentos e entrevistas – e está disponível online no link: www.livrorea.net.br/livro/home.html. Organizado por Bianca Santana, Carolina Rossini e Nelson de Luca Pretto, o livro parte do pressuposto de que o ensino básico, tanto quanto o superior, necessita de reformas. Essas reformas devem ultrapassar as concepções pedagógicas “tradicionais”, ou seja, devem promover uma reflexão aberta e integradora, atualizando a prática docente em conformidade com uma sociedade pós-moderna, em que as tecnologias modificam a interação entre as pessoas no tempo e no espaço e, consequentemente, o modus operandi do aprendizado. A educação aberta constitui elemento central da obra e se apresenta como um exercício de compreensão da liberdade da práxis educacional, como uma educação escolar para além dos muros e grades, na qual o consumidor-aluno se torne um produtor-cidadão.
Tel Amiel, no princípio de seu artigo “Educação aberta: configurando ambientes, práticas e recursos educacionais” – o primeiro do livro –, questiona (p.18): “o acesso à escola está crescendo, mas podemos dizer o mesmo do acesso à educação?”. Para Amiel, a configuração estrutural da escola não permite uma prática livre de ensino, o que o autor define como: Fomentar (ou ter à disposição) por meio de práticas, recursos e ambientes abertos, variadas configurações de ensino e aprendizagem, mesmo quando essas aparentam redundância, reconhecendo a pluralidade de contextos e as possibilidades educacionais para o aprendizado ao longo da vida. (p.18-19) Para Amiel (p.21), com as tecnologias de informação e comunicação (TIC), a relação ensino-aprendizagem poderia ocorrer de forma muito mais livre e ampla, pois há grande crescimento de oportunidades de aprendizado, o que não implica “sepultar as instituições que existem”, mas sim buscar a (des) construção e o acesso de maneira mais ampla possível a uma educação de qualidade para todos.
Carolina Rossini e Cristiana Gonzalez, coautoras do segundo artigo, intitulado “REA: o debate em política pública e as oportunidades para o mercado”, fazem uma breve apresentação de suas formas de olhar os REA, discutem as iniciativas e financiamentos governamentais, comparam o Brasil com outros países e introduzem o debate sobre modelos de negócios abertos em REA, como, por exemplo, os mercados editoriais. Segundo as autoras, o “centro do negócio das editoras é … o controle sobre o direito autoral dos livros” (p.46).
Esse controle ocorre por meio de contratos de cessão de direitos autorais, que não raramente lesam o direito dos autores (p.52). O caminho legal em prol da desarticulação desse monopólio é o tema do artigo.
No artigo intitulado “Educação aberta: histórico, práticas e o contexto dos recursos educacionais abertos”, Andreia Inamorato dos Santos parte do conceito de educação aberta, discutindo as definições desse conceito e o seu respectivo desenvolvimento e popularização na universidade (p.71). Destarte, a terminologia da área é seu tema e uma “webografia”, um dos elementos distintivos do artigo.
O quarto artigo do livro, “Professores-autores em rede”, escrito por Nelson de Luca Pretto, consiste num ensaio acerca do tipo de produção docente no Brasil e seu modus operandi a partir do advento das TIC. Nesse intuito, Pretto tece uma breve história do livro didático, estabelecendo um paralelo entre os livros didáticos tradicionais, os meios de comunicação e o uso dos REA voltados à prática educativa. Para o autor, a produção de conhecimentos deve partir de uma perspectiva multiculturalista que abarque com um olhar de alteridade o “outro” em rede.
O livro ainda traz uma seção especial, denominada “depoimento e experiência”. Nela, Bianca Santana inicia seu texto (p.133) com a questão da inserção dos materiais digitais (lousa digital e tablets, entre outros) em colégios da capital do estado de São Paulo, da rede privada e pública de ensino, no ano de 2012. Para a autora, o uso desses recursos é intrínseco à licença que esses materiais detêm, pois, se estão “sob a frase ‘todos os direitos reservados’, não podem ser utilizados para qualquer finalidade, nem gerar novos usos, ou ser remixados em novos produtos, ou ser distribuídos para ter seu acesso ampliado” (p.140).
Priscila Gonsales, no artigo “Aberturas e rupturas na formação dos professores”, defende a formação continuada dos professores da rede pública e privada de ensino no uso das TIC e assinala que a experiência de trabalhar por 10 anos no projeto Educared1 (2001-2010) foi muito importante para uma conscientização sobre o tema (p.143-144). Esse trabalho proporcionou a criação de outro projeto, voltado igualmente para a área educacional, o Educadigital, 2 que visa a capacitação dos educadores em REA, “pois são eles/as quem detêm o poder de transformação da sua prática em REA” (p.149).
Outro autor da coletânea de artigos, Rafael Reinehr, defende a educação enquanto autônoma, e o cidadão como um produtor de REA. Para o ativista político na área da cultura livre, cujo artigo é intitulado “Recursos educacionais abertos na aprendizagem informal e no autodidatismo”, a busca pelo conhecimento por vias não formais, “desescolarizadas”, libera o discente do sufocamento da criatividade que ocorre dentro dos muros da escola. Reinehr indica também repositórios digitais para busca e pesquisa de conteúdos e saberes, além de sites e demais veículos de informação disponíveis para o aprendizado de forma ampla e aberta (p.158-172). Conclui, com base em Eduardo Galeano, que as utopias são semelhantes às formulações REA, pois não devemos parar de sonhar em busca da educação cada vez melhor e de qualidade (p.175).
O artigo “Wikimedia Brasil e recursos educacionais abertos” apresenta a opinião de Heloisa Pait, Everton Z. Alvarenga e Raul C. Nascimento no intuito de difundir uma visão colaborativa e inclusiva de conhecimentos no Brasil (p.177). Pait (p.180) relembra sua experiência com a ferramenta Moodle, criada pelo australiano Martin Dougiamas, como uma forma de expansão do ensino.
Alvarenga propõe uma reflexão acerca da rede social Stoa, que envolve estudantes, professores, funcionários e ex-alunos da Universidade de São Paulo (USP), com o fim de promover a produção de REA e a cultura colaborativa.
Raul Nascimento busca, por meio da Wikimedia, aproximar o conhecimento daqueles que não detêm poder aquisitivo para compra de livros a fim de se enriquecer intelectualmente.
Como se pode notar, mais do que teóricos, os autores do trabalho atuam como ativistas da causa de uma educação mais aberta, bem como de uma internet (se não uma cultura) mais livre. O livro, que foi publicado em 2012, está disponível em formato aberto na rede. Desde seu lançamento, passa por mudanças constantes, implementadas à medida que seus leitores enviam recomendações aos autores por meio do site. Nesse espírito, o autor Tel Amiel, quando inquirido sobre a atualidade do tema e a posição do Brasil em relação aos demais países quanto à produção de REA, destaca: Eu não saberia comparar REA, porque o desenvolvimento tem sido rápido no mundo todo e é difícil saber o que acontece em todo lugar; o que eu diria é que, no Brasil, estamos começando a ter mais consciência do que é REA, e precisamos ainda, muito, de sensibilização sobre o tema. Recentemente finalizamos uma fase 1 de um mapa de iniciativas REA no ensino básico na América Latina (www.
mira.org.br). O que identificamos é que há ainda muito pouco que se enquadraria numa definição formal de REA. Precisamos construir mais espaços e recursos para o ensino básico, em português. No entanto, o que temos visto é que, quando apresentadas ao conceito, pessoas de todos os tipos de engajamento se interessam por algum aspecto de REA. Ao mesmo tempo é preciso continuar trabalhando na construção de esquemas de incentivo e políticas institucionais que valorizem REA (na ciência aberta, na produção de recursos abertos, nas chamadas de editais de agências de fomento etc.).3 Nesse ensejo, não será demais assinalar que a educação, assim como os poemas de Manoel de Barros, é feita de ideações.
Notas
1 Projeto de produção de conteúdo e troca de práticas educativas fomentado pela Fundação Telefônica: www.educared.org/global/educared/queeseducared_br.
2 “O IED é uma organização de direito privado sem fins lucrativos que tem como foco promover a integração da cultura digital aos diferentes espaços e ambientes educativos de caráter público, de forma a gerar novas oportunidades de aprendizagem para o desenvolvimento pleno do ser humano.” http://educadigital.org.br/site/?page_id=10.
3 E-mail em resposta aos autores da resenha, 10 maio 2014.
Danilo Meira Leite – *Graduando em História, Universidade Estadual de Londrina (UEL), bolsista Pibic-CNPq. E-mail: danilomeira7@yahoo.com.br.
José Amilton Latanza – Graduado em História, Universidade Estadual de Londrina (UEL), bolsista PDE/Paraná. jalcom@ seed.pr.br.
Cinematógrafo: um olhar sobre a história | Jorge Nóvoa e Soleni Biscouto Fressato
O cinema é a arte da luz, da imagem e do movimento, é a arte da expressão audiovisual. Geertz nos ensina que é difícil falar de arte, pois, “a arte parece existir em um mundo próprio, que o discurso não pode alcançar” [1] e este preceito é válido para o cinema, conhecido como a sétima arte. Analisar uma arte que envolve imagem e movimento é uma tarefa complexa, pois “aquilo que vimos, ou que imaginamos ter visto, parece ser tão maior e tão mais importante que o que logramos expressar com nossa balbucia, que nossas palavras soam vazias, cheias de ar, até falsas.” [2] A imagem é captada e projetada por meio de um processo mecânico, através do olhar e do veículo condutor da câmera. A mensagem audiovisual é composta dentro de determinados parâmetros e preceitos da construção cinematográfica, na maioria das vezes de forma narrativa. Como observa Bertoni e Montagnoli:
Elementos que trabalham com a expressividade da câmera, com os detalhes, com as mudanças de planos, os enquadramentos, o som, a possibilidade de sugestão daquilo que está dentro e fora do quadro; mas também com o corte que direciona a visão do espectador, com a articulação da montagem, a característica minimal do cinema, com a irrealidade construída. Enfim, todo esse conjunto de elementos e de procedimentos, traça a característica de construção fundamental da linguagem e da estética do cinema.[3] Leia Mais
Cinematógrafo: um olhar sobre a história | Jorge Nóvoa, Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson
O cinema é a arte da luz, da imagem e do movimento, é a arte da expressão audiovisual. Geertz nos ensina que é difícil falar de arte, pois, “a arte parece existir em um mundo próprio, que o discurso não pode alcançar” [1] e este preceito é válido para o cinema, conhecido como a sétima arte. Analisar uma arte que envolve imagem e movimento é uma tarefa complexa, pois “aquilo que vimos, ou que imaginamos ter visto, parece ser tão maior e tão mais importante que o que logramos expressar com nossa balbucia, que nossas palavras soam vazias, cheias de ar, até falsas.” [2] A imagem é captada e projetada por meio de um processo mecânico, através do olhar e do veículo condutor da câmera. A mensagem audiovisual é composta dentro de determinados parâmetros e preceitos da construção cinematográfica, na maioria das vezes de forma narrativa. Como observa Bertoni e Montagnoli:
Elementos que trabalham com a expressividade da câmera, com os detalhes, com as mudanças de planos, os enquadramentos, o som, a possibilidade de sugestão daquilo que está dentro e fora do quadro; mas também com o corte que direciona a visão do espectador, com a articulação da montagem, a característica minimal do cinema, com a irrealidade construída. Enfim, todo esse conjunto de elementos e de procedimentos, traça a característica de construção fundamental da linguagem e da estética do cinema.[3] Leia Mais
Um rigor outro: sobre a questão da qualidade na pesquisa qualitativa – MACEDO et al. (RF)
MACEDO, Roberto Sidnei; GALEFFI, Dante; PIMENTEL, Álamo. Um rigor outro: sobre a questão da qualidade na pesquisa qualitativa. Salvador: EDUFBA, 2009.Resenha de: BITENCOURT, Laís Andrade; SOUZA Mírian Loiola. Revista FACED, Salvador, n.17, p.133-138, jan./jun. 2010.
Credenciais dos autores
Roberto Sidnei Macedo possui graduação em Psicologia, é Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Paris Saint-Denis, com Pós-Doutorado em Currículo e Formação na Universidade de Fribourg-Suíça. Pesquisador líder do Grupo de Pesquisa em Currículo e Formação (FORMACCE), do PPGE e do DMMDC FACED/UFBA. Vice-Coordenador do GT de Currículo da ANPED. Em sua trajetória acadêmica foi professor de algumas universidades públicas e particulares. Atualmente, como professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, orienta teses e dissertações, nas áreas de currículo e formação de professores. Dante Galeffi possui graduação em Arquitetura, é Doutor em Educação pela FACED/UFBA. Pesquisador do campo de Filosofia da Educação do PPGE e do DMMDC FACED/UFBA. Atualmente é professor permanente do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação e do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC), ambos na UFBA. É o atual coordenador do DMMDC. Lidera o Grupo de Pesquisa Epistemologia do Educar e Práxis Pedagógica, desenvolvendo pesquisas nas áreas de epistemologia da complexidade, transdisciplinaridade e epistemologia do educar transdisciplinar.
Álamo Pimentel possui graduação em Pedagogia, é Doutor em Educação pela Universidade do Rio Grande do Sul. Pesquisador do campo de Antropologia da Educação do PPGE/FACED/UFBA. Pró- Reitor de Assuntos Estudantis da UFBA. Atualmente é professor Adjunto II da Universidade Federal da Bahia e professor colaborador de Programa de Pós-Graduação em Educação FACED/UFBA. Atua, principalmente nas áreas de antropologia educacional, convivência e educação.
Resumo da obra
Nesse trabalho, os autores Macedo, Galeffi e Pimentel discutem acerca do desenvolvimento de pesquisas qualitativas, e para isso, ancoram-se em vivências possíveis ao pesquisador ao longo destas experiências. A obra é dividida em três capítulos, sendo cada um deles escrito por um dos autores. Os textos trazem uma clara preocupação dos escritores em situar o leitor a respeito das escolhas teóricas e epistemológicas que sustentam esta abordagem de pesquisa, ressaltando os elementos que constituem e conceituam o rigor necessário a um trabalho de pesquisa sério e de qualidade.
No primeiro capítulo, O rigor nas pesquisas qualitativas: uma abordagem fenomenológica em chave transdisciplinar”, Galeffi, em pouco mais de 70 páginas, trabalha de forma provocativa, principalmente os conceitos de pesquisa qualitativa, rigor, abordagem transdisciplinar, a interferência da política, da economia e da ética nesse tipo de abordagem.
Começa sua discussão fazendo dois questionamentos importantes. Um diz respeito aos fundamentos epistemológicos norteadores da pesquisa qualitativa e o outro aos métodos empregados neste tipo de pesquisa. Ambos questionamentos nortearam suas reflexões ao longo do primeiro capítulo. No decorrer do texto o autor descreve conceitos básicos que, a seu ver, orientarão os estudos da pesquisa qualitativa de natureza fenomenológica, entendendo a fenomenologia “como o esforço do pensamento humano em conectar-se com a totalidade do vivido e do vivente, tendo-se em vista a autocondução responsável e consequente da vida de relação presente”.( p. 15 )
Galeffi não perde de vista o fato de que a qualidade na pesquisa qualitativa é configurada a partir das experiências humanas, refletidas e apropriadas. Compreende a ética como investigação filosófica relativa ao agir, deixando claro a importância da criticidade nas pesquisas qualitativas, contudo chamando a atenção para a crítica justa, moderada, criteriosa, cuidadosa, dedicada e rigorosa.
Rigor e qualidade são duas expressões usadas pelos autores durante toda a obra. Consciente da necessidade de ampliar as compreensões do leitor sobre o que seja o rigor e a qualidade na pesquisa, Galeffi retoma, em várias sessões de seu capítulo, o seu próprio entendimento sobre o rigor e a qualidade. Nessa explanação busca diferenciar os parâmetros norteadores das pesquisasquantitativa e qualitativa e, nesta direção, não nega a importância dos números em trabalhos de pesquisa, mas entende que esses não são os meios mais potentes ou os únicos a garantirem a qualidade da mesma. A sua compreensão de rigor extrapola a praticidade de resultados que possam ser mensurados ou apresentados de forma objetiva. Discute o rigor como atitude de comportamento e compromisso com aquilo que promove a potência, aquilo que nos faz bem. Afirma ainda que o rigor nada tem a ver com a exteriorização metodológica de passos e regras que julguem ser o meio para se conduzir uma investigação científica consistente. Para ele o rigor é um ato livre e implicado com a vida ambundante.
Desse modo, Dante critica o fato das qualidades nas pesquisas serem medidas por critérios previamente estabelecidos. Para ele, é coerente considerar uma pesquisa qualitativa, aquela em que o pesquisador se torna aprendiz de si mesmo, na medida em que a pesquisa alcança sentido como práxis qualificadora, implicando em uma produção de si-mesmo-outro-mundo.
No segundo capítulo, Outras luzes: um rigor intercrítico para uma etnopesquisa política, Macedo desenvolve sua reflexão partido do pressuposto de que a busca do rigor nas pesquisas qualitativas significa a busca da qualidade epistemológica, metodológica, ética e política, socialmente referenciadas.
Critica o fato dos muitos trabalhos científicos nas universidades terem se distanciado dos “valores epistemológicos, metodológicos, comunitária e publicamente construídos como valorosos, e que possibilitam as pesquisas a inserção na responsabilização/ legitimação qualitativa da instituição universitária”. (p. 79)
Na busca de elucidar o que caracteriza o rigor na pesquisa qualitativa, vê a necessidade de diferenciá-lo da rigidez, afirmando o rigor como uma ética de qualidade constituído na intercompreensão, na intercrítica dialogicizada e dialeticizada, levando em consideração os conhecimentos produzidos, também, a partir de situações culturais nãoacadêmicas. O autor defende que não é possível fazer pesquisa sem explicitar o meio cultural em que os atores sociais estão inseridos, nem tampouco sem reconhecer a participação dos mesmos no desenvolvimento do trabalho. Neste sentido, apresenta a etnometodologia como sendo a base teórica que sustenta a etnopesquisa, sobretudo porque não trata os atores sociais como “idiotas culturais”, ao contrário, afirma que os mesmos possuem etnométodos, ou seja, modos, jeitos, maneiras de compreender o mundo e resolver os impasses da vida.
Aponta para a necessidade de entender o qualitativo para além da divisão quantidade/qualidade. Assinalando a existência de momentos delicados que tratam do rigor nas pesquisas qualitativas desde a coleta de dados até a interpretação dos mesmos, concluindo que a interpretação se dá em todo o processo de pesquisa. Vale ressaltar ainda, que o autor faz o levantamento de algumas questões que podem levar à desqualificação da pesquisa qualitativa como: insuficiência de fontes de “dados”; ausência de evidências apoiada sobre os “dados” obtidos de fontes variadas; erro de interpretação, entre outros.
Macedo descreve e reflete sobre a importância da crítica, da autocrítica e da intercrítica na constituição de um rigor outro. Deixando à escolha do pesquisador a construção do seu caminho, a sua autorização diante do seu objeto de estudo e do seu caminhar, desde, é claro, que o mesmo não perca de vista o rigor como na perspectiva de aprofundamento, de relacionamento e de conexão.
No terceiro e último momento do livro Considerações sobre a autoridade e o rigor nas etnografias da educação, Pimentel faz reflexões sobre o papel do pesquisador na pesquisa qualitativa. Pauta sua discussão entre a ambígua relação teorias e práticas investigativas e a abordagem da antropologia, nesse âmbito de pesquisa.
Conta experiências vividas em campo com algumas pesquisas realizadas, principalmente de cunho etnográfico onde pôde desenvolver seu trabalho com rigor e não rigidez a partir do trabalho de campo e do contexto social.
Explica que seu interesse na etnografia como prática de produção do conhecimento sobre a cultura corresponde ao desejo de encontrar na antropologia e na educação um campo interdisciplinar de construção teórico-metodológica capaz de inovar concepções de ensino e aprendizagem.
Para o autor, a etnografia tem cumprido um papel importante para a formação de intelectuais ocupados com a interpretação das culturas na construção dos cenários sociais contemporâneos. Tendo como resultados, principalmente, reivindicações de novos paradigmas de pensamento no campo das ciências humanas; transformações de posturas investigativas; abordagem do cotidiano como dimensão instituinte da vida comum, bem como consubstanciação da cultura como dinâmica de formação.
O olhar, a escuta, a conversação e a autorização nas pesquisas são preocupações que norteiam o ensaio do autor, buscando sempre a compreensão da escrita etnográfica como tomada de posição nas relações eu-outro das configurações culturais em que os indivíduos se apresentam em seus contextos vivenciais.
Pimentel toma o educar e o conversar como interfaces de um processo de ensino-aprendizagem. Para ele, o entrelaçamento no linguajar e no se emocionar com o outro cria situações em que o sujeito da pesquisa (o ator social) e o pesquisador incorporam, afetiva e cognitivamente, características posturais e saberes fundamentais para a aproximação com o outro.
Não nega, em momento algum do texto, a importância do quantitativo nas pesquisas qualitativas, contudo conclui sua reflexão afirmando que a autoridade será apenas construída quando superarmos a necessidade do controle do mundo através das nossas certezas estatísticas e nos aventurarmos na vertiginosa busca das significações que dão rumo e sentido ao estranho e ao familiar mundo que também habitamos com os outros.
Conclusão e crítica das resenhistas
Ao dialogar com as reflexões dos três autores, torna-se preemente buscar compreender o que nos faz escolher determinada abordagem de pesquisa dentre as diversas possibilidades existentes. Os textos nos fizeram pensar sobre a necessidade de realizar pesquisas mais abrangentes e densas, pesquisas bem articuladas entre a ambiguidade, quantidade e qualidade.
Os autores apresentaram, de forma crítica e com certa leveza, o papel e a importância do rigor nas pesquisas humanas, como também nos fez refletir sobre a diferença entre o conceito de rigor que figura entre as pesquisas quantitativas e as qualitativas. É válido se pensar hoje sobre quantas pesquisas são comparadas entre si, sobre como se compara esse ou aquele método avaliativo, esse ou aquele modelo de ensino, essa ou aquela cultura, entretanto, ainda não se pratica uma comparação reflexiva que esteja atrelada ao contexto social. Ainda não se faz comparação/reflexão/ação sobre o papel do próprio pesquisador nas suas pesquisas e o impacto destas sobre os atores sociais, sobre quem pesquisa e sobre a comunidade pesquisada.
Macedo, Galeffi e Pimentel nos trazem uma obra pertinente, reflexiva e provocativa sobre a complexidade de se desenvolver pesquisas qualitativas e o quanto essa abordagem exige do pesquisador atenção, escuta e cuidado. Nesta perspectiva, o compromisso ético que figura nas relações estabelecidas entre pesquisador, sujeitos sociais e contexto cultural foi responsavelmente destacada no decorrer dos textos dos autores.
Para nós, essa obra figurou como um saboroso convite a experimentar a aventura da pesquisa e nela descobrirmos talentos, formas, encontros sem desconsiderar as antíteses de tudo isso, pois as desconstruções fazem parte do processo de aprendizagem. E nesse diálogo, entre o que sabemos e o novo apresentado, podemos ampliar a nossa própria visão e compreensões do mundo, enriquecendo assim as nossas futuras produções.
Laís Andrade Bitencourt– laiscarolineabit@gmail.com
Mírian Loiola Souza – E-mail: mmloi@hotmail.com