Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira – FRIGOTTO (TES)

FRIGOTTO, Gaudêncio (Orgs.). Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017. 144p. Resenha de: HANDFAS, Anita. Por uma escola pública, democrática, reflexiva e plena de conhecimentos. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18 n.2,  2020.

Resistência ao autoritarismo; gênese e significado; educação; redes políticas; criminalização do trabalho pedagógico; avanço do irracionalismo; democracia; reestruturação curricular – esses são apenas alguns dos aspectos do proclamado movimento Escola sem Partido, tematizado ao longo da coletânea organizada por Gaudêncio Frigotto. Fruto de investigações minuciosas realizadas por dezenove pesquisadores, seu objetivo é mapear os principais aspectos do Escola sem Partido, cujas primeiras manifestações surgiram em 2004, ganhando fôlego desde então e deixando rastros cada vez mais marcantes no contexto atual de avanço do obscurantismo no Brasil.

O livro é uma obra de compreensão sociológica acerca das conexões entre educação e autoritarismo. A coletânea é composta por nove capítulos. O eixo condutor que atravessa o livro é traçado pelos princípios da escola pública, democrática e laica, em diálogo crítico com os preceitos do Escola sem Partido, como já aponta o subtítulo. Ou seja, nesse livro há um terreno comum por onde percorrem os autores, em defesa de uma escola que promova o conhecimento científico, a reflexão e o debate, princípios a partir dos quais, os capítulos buscam oferecer ao leitor um diagnóstico rigoroso do referido movimento.

Nessa direção, o livro demonstra com clareza de dados e informações que, a despeito da propalada liberdade, o Escola sem Partido constrange o professor, sufoca o trabalho pedagógico e encoraja práticas de denuncismo entre os sujeitos que convivem no espaço escolar.

Para dar conta da diversidade de olhares contemplados na coletânea, o organizador mobilizou um conjunto de temas tratados nos capítulos que lograram, por um lado, focar em características específicas do movimento e, por outro, constituir um todo do fenômeno investigado, elucidando as questões centrais sobre o que vem a ser esse movimento, assim como os impactos sobre a educação, a escola e o trabalho docente.

O livro inicia com uma apresentação de Maria Ciavatta que nos convida à reflexão, mostrando que, ao buscar a gênese do Escola sem Partido, os autores da coletânea chamam à organização e à ação todos aqueles que lutam por uma sociedade democrática e por uma educação emancipadora.

No primeiro capítulo, Gaudêncio Frigotto nos chama a atenção para a ameaça que representa o Escola sem Partido. Ao evocar a metáfora da “esfinge” e do “ovo da serpente”, adverte para os perigos da propagação da ideologia desse movimento, cujo alvo é o esvaziamento da função social da escola pública. Abrindo caminho para os capítulos seguintes, Frigotto traça um amplo panorama sobre a gênese do movimento, mostrando que a ideologia tão propalada por ele funciona, em última instância, como um mecanismo para encobrir seus interesses políticos e econômicos, tendo em vista a posição atual ocupada pelo Brasil no interior das contradições do capitalismo.

No capítulo seguinte, é a vez de Fernando Penna analisar o discurso do Escola sem Partido. O autor mostra que por detrás daquilo que muitos professores entendiam por absurdo, deboche e mesmo improvável, o movimento alcançou êxito em suas posições na escola e na sociedade, ao partir de uma estratégia discursiva simples e próxima ao senso comum que desqualifica o professor e coloca pais e responsáveis pelos alunos numa posição inquisidora. O autor destaca e analisa quatro aspectos do discurso do movimento: (1) a concepção de escolarização; (2) a desqualificação do professor; (3) a acusação da escola como espaço de ideologização, e dos docentes como militantes travestidos de professores.

O terceiro capítulo foi escrito por Betty Solano Espinosa e Felipe Campanuci Queiroz. Nele, os autores adotam a perspectiva analítica das redes sociais, para quantificar e qualificar os agentes e as ideias que formam o Escola sem Partido, buscando identificar suas interações com atores de variados espectros sociais. Ao mapear a teia de articulação existente, Bety e Felipe concluem que os membros que compõe o movimento estão vinculados a partidos políticos, instituições religiosas e grupos empresariais poderosos.

No quarto capítulo, Eveline Algebaile traça um quadro geral “do que é”, “como age” e “para que serve” o Escola sem Partido. Ao esquadrinhar a plataforma principal do movimento, um sítio virtual da internet, a autora mostra que, ao contrário do que pode parecer, o Escola sem Partido não se constitui enquanto um movimento, no sentido de agir e organizar seus adeptos orgânica e fisicamente, mas tem todas as suas ações veiculadas por meio de uma plataforma virtual, espaço onde são difundidas suas ideias e divulgadas as orientações para denúncias contra supostas práticas de doutrinação ideológica por parte dos professores.

O capítulo seguinte foi escrito por Marise Ramos e se dedica a analisar os impactos das ideias difundidas pelo Escola sem Partido sobre o trabalho pedagógico dos professores. Para tal, a autora desmonta a suposta neutralidade do ato educativo aventada pelo movimento, asseverando que as contradições e disputas por concepções de mundo presentes no espaço escolar nada mais são do que manifestações salutares inerentes ao ato de educar. Para a autora, sem isso, a escola se torna amorfa e cativa da ideologia das classes dominantes.

O sexto capítulo, escrito por Mattos et al, lembra que o debate em torno do caráter secular e democrático da educação pública vem de longa data e a atuação de grupos religiosos contra a laicidade é uma marca na história da educação brasileira. Na atualidade, segundo os autores, essas posições se revestem em ataques aos conteúdos veiculados na escola e nos livros didáticos, sob o pretexto do Escola sem Partido, de que somente aos responsáveis dos alunos caberia velar pelos valores morais, religiosos e sexuais de seus filhos.

Em seguida, o capítulo de Isabel Santa Barbara, Fabiana Lopes da Cunha e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho parte do entendimento de que historicamente a escola tem sido uma instituição normalizadora e disciplinadora da classe trabalhadora. No entanto, os autores argumentam que quando a escola passa a representar uma oportunidade real de ascensão social das camadas populares, setores conservadores interessados em preservar a hierarquia social e os valores das classes dominantes passam a atacar a escola e os professores. É neste cenário que o Escola sem Partido ganha terreno para operar por meio de mecanismos de “governamento”, no sentido de impor novas condutas e subjetividades no espaço escolar.

O oitavo capítulo, escrito por Rafael de Freitas e Souza e Tiago de Oliveira propõe uma reflexão filosófica sobre o Escola sem Partido. Partindo dos conceitos de doxa (opinião ou crença comum) e logos (razão), os autores mostram como o obscurantismo que atravessa o discurso do movimento fere os princípios da razão e do conhecimento científico na escola, garantidos inclusive pela legislação nacional, para dar lugar à opinião, ao senso comum, fortalecendo assim as crenças e convicções religiosas, como mais uma forma de atacar o conhecimento e o trabalho pedagógico realizado de forma competente pelo professor.

Fechando a coletânea, o capítulo de Paulino José Orso é propositivo de uma alternativa pedagógica e curricular que possa fazer frente ao desmonte da escola, do conhecimento e do trabalho pedagógico do professor. Nessa direção, o autor defende um currículo que contemple uma sólida formação teórica, possibilitando ao aluno uma visão crítica sobre o passado histórico e a compreensão da sociedade atual.

Com a apresentação sintética dos capítulos que compõe a coletânea Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira, fica claro que se trata de um livro da maior importância, sobretudo no contexto atual de avanço do obscurantismo do governo Bolsonaro que ataca a ciência e o conhecimento científico porque quer supor que tudo não passa de construções. A ideologia do Escola sem Partido quer fazer crer que a opinião é tão importante quanto o conhecimento, visão que nos empurra para o relativismo, tão contrário ao esforço investigativo e ao conhecimento, tão necessários para a construção de uma escola libertária. Em tempos sombrios como os que estamos enfrentando atualmente, parece ser mais uma vez oportuna a advertência feita por Saviani (2018) de que a luta pela escola democrática passa por sua articulação com a luta pela democratização da sociedade.

Nesse sentido, a coletânea em pauta é a um só tempo, um livro de denúncia e combate e por isso deve ser lido por todos aqueles que defendem uma educação pública, gratuita, laica e que contemple todas as dimensões da vida humana.

Referências

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia, 43. ed. Campinas: Autores Associados, (2018). [ Links ]

Anita Handfas – Universidade Federal do Rio de Janeiro , Faculdade de Educação , Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes , Rio de Janeiro , RJ , Brasil. E-mail: anitahandfas@gmail.com

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(P)

Historiografia e nação no Brasil: 1838-1857 / Manoel L. S. Guimarães

Luís César Castrillon Mendes – Universidade Federal de Mato Grosso.

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2011. 284p. Resenha de: MENDES, Luís César Castrillon. História histórias. Brasília, v.3, n.5, p.223-226, 2015. Acesso apenas pelo link original. [IF]

 

Ensaio de história das ciências no Brasil: das Luzes à nação independente – KURY; GESTEIRA (RHR)

KURY, L.; GESTEIRA, H. (orgs.) Ensaio de história das ciências no Brasil: das Luzes à nação independente. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012. 328p. Resenha de: MOSCATO, Daniela Casoni. Revista de História Regional v.18, n.1, p. 262-266, 2013.

Em dezembro de 2012, a Revista História da Historiografia1 dedicou seu 10° número ao dossiê Diálogos Historiográficos: Brasil e Portugal. Com apresentação da brasileira Iris Kantor e do português Thiago C.P. Dos Reis Miranda, o dossiê confirmou novas reflexões históricas acerca da clássica relação Brasil/Portugal ou, nas palavras dos apresentadores, “novos espaços de interação acadêmica luso-brasileira”.2 O livro Ensaios de História das Ciências no Brasil: das Luzes à nação independente, da EdUERJ, publicado em 2012, ao trazer também essa característica, reafirma o avanço dos estudos dedicados às históricas relações luso-brasileiras. A cuidadosa edição é abundante em belas ilustrações/desenhos de naturalistas, mapas e pinturas, que dão início às cinco partes da obra. Alguns dos artigos trazem cartas geográficas, plantas baixas e imagens em perspectiva, em elegante impressão, o que, certamente, colabora para a apreciação da leitura.

A obra, que compreende vinte artigos, discorre sobre a época pombalina, de 1750 a 1777, período em que o Marquês de Pombal exerceu o cargo de primeiro ministro português, e sobre o reinado joanino, iniciado em 1808 e se estendeu até a Independência do Brasil. Desta forma, textos sobre o Iluminismo português, a transferência da corte para a América e as relações que envolveram a Independência estão permeados de reflexões acerca de temas caros à história das ciências no Brasil.

Resenhar vinte artigos de vinte e dois autores é um trabalho laborioso. No caso dessa obra, cada autor, com suas particularidades, ofereceu uma leitura prazerosa de textos fundamentados em diversas fontes históricas, mas com o propósito de produzir uma obra comum. Assim, apresentar cada parte deste livro foi a solução encontrada para ser fi el ao objetivo de um Ensaio: reunir estudiosos e suas reflexões acerca das ciências e suas técnicas no Brasil oitocentista.

A primeira parte, intitulada A arte de curar no Brasil: entre novos e velhos saberes, de autoria de Cristina Deckmann Fleck, expõe as práticas curativas jesuíticas nos séculos XVII-XVIII. A análise destaca as proibições médicas na ordem jesuítica, o largo emprego de uma terapêutica mágica de cunho cristão e outras situações de cura baseadas em tradições guaranis, um misto de mística e razão que acabaria “por conferir incontestável originalidade __ pela inegável capacidade de síntese entre a tradição e inovação __ à Companhia de Jesus nos séculos XVII e XVIII” (p.29). Este estudo prepara o leitor para o artigo seguinte: Rumo ao Brasil: a transferência da corte e as novas trilhas do pensamento médico. Nele, Márcia Moisés Ribeiro, ao apontar os avanços médicos nos séculos XVII e XVIII, mostra como a modernização do Império português possibilitou “o fomento de atividades práticas de indivíduos ligados ao mundo das ciências por meio de estímulos às viagens exploratórias, como também a publicação de obras de autores luso-brasileiros e a tradução de estrangeiros” (p. 34). A transferência da corte para a colônia americana intensificou a circulação de conhecimentos médicos e trouxe teorias em voga na Europa, como algumas modificações nas práticas curativas. As mudanças nas práticas de cura e as especificidades de um estudo histórico dedicado às ciências podem ser identificadas na análise da própria concepção de História das ciências apresentada no artigo Os dilemas da História social das ciências no Brasil: as artes de curar no início do século XIX, de Betânia Gonçalves Figueiredo e Graciela de Souza Oliver.

A parte A ciência e a arte no Rio de Janeiro traz temas ambientados na cidade brasileira da corte portuguesa e, posteriormente, capital do Império. O primeiro artigo traça um panorama da medicina nas primeiras décadas do século XIX, e Tânia Salgado Pimenta discorre acerca dos caminhos percorridos para a oficialização das artes de curar, no texto As artes de curar e a Fiscatura-Mor na época de D. João VI. Os dois textos seguintes demonstram, em suas particularidades, como as modifi cações da paisagem, no Rio de Janeiro, estavam estritamente relacionadas aos discursos médicos vigentes na época. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as paisagens da Corte, de Ana Rosa de Oliveira, analisa essa premissa com base no Jardim Botânico e as representações que o envolveram. Lorelay Kury, em Rio de Janeiro Joanino: entre o mar e o mangue, aborda os debates acerca da organização urbana da cidade e as modificações realizadas e, desse modo, alcança o que se propôs nos primeiros parágrafos do texto: “Minha abordagem aqui pretende ser diferente. Acredito que a noção de ‘necessidade’ deve ser historicamente pensada[…]. Ou seja, as soluções para os problemas só aparecem quando os problemas são colocados como tal” (p. 86).

A terceira parte da obra, Inventários e utilização da natureza, apresenta, nos três primeiros textos, aspectos que envolveram as viagens científi cas portuguesas nos séculos XVIII e XIX. Em Instructio Peregrinatoris. Algumas questões referentes aos manuais portugueses sobre métodos de observação filosófica e preparação de produtos naturais da segunda metade do século XVIII, Maguns Roberto de Mello Pereira e Ana Lúcia Rocha Barbalho Cruz exploram como eram idealizados e realizados os manuais de instrução para viagens científi – cas destinadas a naturalistas do império português, inclusive, luso-brasileiros.

A elaboração e o uso desses manuais confi rmam o entusiasmo científico pelo qual passava o setecentos, basta lembrarmos o papel que a Universidade de Coimbra desempenhou no crescimento das ciências no reino luso.

Um dos refl exos dessa ebulição da ciência foi a internacionalização das relações científicas. João Carlos Brigola, em O colecionismo científico em Portugal nos fi nais do Antigo Regime (1768-1808), atesta como as instituições portuguesas mantinham um imenso intercâmbio científico com instituições como: Real Jardim Botânico de Madri; Jardim Real de Kew e Royal Society, em Londres; Universidade de Amsterdã; Universidade e Jardim Botânico de Copenhague e tantas outras (p.137). A fabricação da pólvora e trabalhos sobre o salitre: Portugal e Brasil de fi nais do século XVIII às primeiras décadas do século XIX é o título do estudo apresentado por Márcia Helena Mendes Ferraz, que, valendo-se de documentação impressa e de manuscritos, analisa o debate acerca dos métodos utilizados para a obtenção e purificação do salitre, assim como, o avanço e a circulação das práticas e das análises científi cas. Neil Safi er, com o texto Instruções e impressões transimperiais: Hipólito da Costa, Conceição Veloso e a ciência joanina, demonstra como a circulação de ideias científi cas se deu por “(…) canais menos institucionais de circulação do conhecimento em relação ao mundo natural” (p. 169). Igualmente, em Naturalista e homem público: a trajetória do ilustrado Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1796-1823), Alex Gonçalves Varela apresenta um lado pouco estudado desse político que também foi grande naturalista.

Os quatro primeiros textos agrupados na parte seguinte, As ciências e a construção do território do Brasil, concentram-se em apresentar, minuciosamente, como se deu a elaboração dos espaços científicos brasileiros. Os artigos de Beatriz Piccoloto Siqueira Bueno, Heloisa Gesteira, Nelson Sanjad e Iris Kantor demonstram como a construção do território português, na América, se fez, também, pela relação entre ciência e política. Nessa perspectiva, os autores identificam elementos importantes: a herança iluminista portuguesa, a necessidade de construção do território ultramarino, a circulação de diferentes profissionais da ciência e a americanização do Império português. Já, Ângela Domingues, em Viagens e viajantes europeus e descrição do Brasil: correspondência de Leopoldina e o paradisíaco Brasil, atesta, pelo olhar da jovem Imperatriz, algumas representações acerca do processo de construção territorial que permeavam o XIX: Tal como outros viajantes anteriores a ela, como Spix e Martius, John Luccock ou Johann Emanuel Pohl, Leopoldina desenvolveu, logo após sua chegada ao Brasil, uma admiração genuína e sincera pelas belezas naturais e pelas potencialidades econômicas contidas na natureza de seu Brasil (p. 257).

A última parte, Instituições e Letras, apresenta artigos dedicados à circulação dos saberes científicos entre Portugal e no Brasil. Portugal- Brasil, 1808. Trânsito de saberes, de Maria de Fátima Nunes, aborda a relação transimperial dos saberes científicos acumulados até 1808 e sua continuidade após a mudança da família real portuguesa: […] a ida da corte para o Rio de Janeiro com o embarque de um patrimônio científico e cultural extremamente valioso: bibliotecas (individuais, institucionais e públicas) e instrumentos científicos para a colônia Brasil (…) Desse embarque nasceram os (futuros) espaço de ciências e das bibliotecas coloniais emergiram as bibliotecas da (futura) nação do Império brasileiro (p. 268).

No artigo, Natureza, ciência e política no mundo luso-brasileiro de inícios do século XIX, Guilherme Pereira das Neves argumenta como o Iluminismo português engessou-se pela forte tradição social e cultural do mundo luso- -brasileiro: […] parece-me muito difícil deixar de considerar o lugar limitado ocupado pelas Luzes no mundo luso-brasileiro (…). No entanto, se elas, as Luzes, não deixaram de desempenhar um papel instrumental no que diz respeito ao conhecimento da natureza, em termos de política, em seu sentido mais amplo, o fi zeram no ‘interior das estruturas mentais que [as] dominam e enquadram’, em vez de se mostrarem […] (p. 289) A institucionalização das práticas científi cas na corte do Rio de Janeiro, de Maria Rachel Fróes da Fonseca, apresenta como os espaços institucionais, em especial, no Rio de Janeiro, expressavam os interesses pelas diversas áreas científicas, como a medicina. Finalizando o livro, o artigo, A gênese moderna do artigo de fundo e da campanha de imprensa: o Correio Braziliense ou Armazem, de José Augusto de Santos Alves, evidencia a importância desse periódico para o nascimento da imprensa moderna em Portugal e no Brasil.

Os artigos aqui resenhados apresentam a história luso-brasleira pautada na relação transimperial que se estabeleceu a partir do momento que os navegantes lusos aqui atracaram. Entretanto, os textos orientam que tal relação não se limita à comparação entre locais de um mesmo Império, mas abrange o compartilhamento de elementos comuns, ou seja, os aspectos das ciências e suas práticas não foram somente apropriados e reproduzidos, mas se tornaram parte de saberes contínuos do Império Português. Ao aprofundar essas questões, alguns textos trazem a história de intelectuais e de instituições, num debate necessário e urgente para a apreensão da história das ciências e da história de Portugal e do Brasil. Esse “retorno” a estudos acerca de intelectuais e instituições é também a indicação de que as reflexões sobre determinadas práticas são importantes para a construção do saber científico e das ciências, entre elas, da própria História.

Notas

1 Diálogos Historiográfi cos: Brasil e Portugal. In: Revista de História e Historiografi a vol. 10. Disponível em<http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/issue/current>. Acesso em:15 mar. 2013

2 KANTOR, I.; MIRANDA, C.P.D.C.R. Apresentação. In: Revista de História e Historiografia vol. 10. Disponível em<http://www.ichs.ufop.br/rhh/index.php/revista/issue/current>. Acesso em:15 mar. 2013.

Daniela Casoni Moscato – Doutoranda em História pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: historiar7@gmail.com.

Livros e impressos: retratos do Setecentos e do Oitocentos – NEVES (HH)

NEVES, Lúcia Maria P. das (org.). Livros e impressos: retratos do Setecentos e do Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, 333 p. Resenha de: Resenha de: CAMPOS, Adriana Pereira. Crítica e opinião na imprensa brasileira dos Setecentos e Oitocentos. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p. p.350-356, nov./dez. 2011.

Com o fenômeno da expansão das pós-graduações no Brasil, as coletâneas registraram crescimento conjunto. Essa feliz combinação permite que hoje se produzam no país livros temáticos em diversos campos de pesquisa, com enriquecedora contribuição de distintos autores. Esse é o caso da obra Livros e impressos, organizada pela historiadora carioca Lúcia Maria Pereira das Neves, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. O objeto central de análise do livro compreende a constituição histórica da imprensa e do mercado editorial no país, abordados a partir da visão particular dos autores-colaboradores.

A diversidade de abordagens reunidas no volume em questão, contudo, só fez realçar a unidade temática que uma obra do gênero deve perseguir, deixando ao largo o risco, sempre presente, de o empreendimento não ultrapassar os limites de uma simples compilação. Os leitores poderão observar, assim, a recorrente preocupação dos autores em examinar a construção de uma esfera pública de crítica, bem como a constituição da opinião pública no Brasil na passagem do Setecentos para o Oitocentos. A imprensa e o mercado editorial convertem-se em objeto das inquietações dos autores, assim como, a formação da cultura política nacional. Não se estranha, portanto, que dos dez capítulos da coletânea, seis façam referência explícita a Jürgen Habermas (1984), formulador do conceito de esfera pública, foco de análise do livro. Outra preocupação recorrente da obra consiste na constituição dos espaços de formulação das linguagens políticas. Com efeito, o leitor confronta-se com o fato de a imprensa possuir papel fundamental na formação do Estado brasileiro, enquanto lugar da crítica e da autonomia. O livro dedica-se, portanto, ao ambicioso projeto que inclui objeto e instrumental teórico da história cultural para decifrar problemas da história intelectual (do livro e dos impressos) e da história política.

A coletânea examina também algumas noções fundamentais para a compreensão do surgimento da imprensa no Brasil. Mais precisamente, como a formação da esfera pública no país se processou por meio da transição entre periódicos mais típicos do Antigo Regime, submetidos ao escrutínio do monarca, para outros de conteúdo mais crítico e de opinião. Os primeiros compreendiam as gazetas e, os segundos, os jornais. Essa delimitação fica mais claramente demarcada na Parte I da coletânea intitulada Imprensa, livros e representações.

No capítulo de abertura desta parte, Maria Beatriz Nizza da Silva elabora um quadro dos primeiros anos de desenvolvimento da imprensa no Brasil, quando se criou a Impressão Régia em 13 de maio de 1808. A autora explora a Gazeta do Rio de Janeiro e a Idade d’ouro do Brasil (Bahia), que seguiam rigidamente o modelo das gazetas, cujo objetivo resumia-se a divulgar notícias recolhidas das grandes metrópoles europeias. De igual modo, houve a tentativa de reproduzir no Rio de Janeiro e na Bahia o sistema dos almanaques, periódico de divulgação de informações dos calendários solar, lunar, religioso, histórico etc. A iniciativa não logrou êxito, talvez porque os brasileiros já dispusessem de notícias da Corte no Rio do Janeiro por meio do Almanaque de Lisboa, que circulava amplamente no Brasil. O experimento mais crítico da época constituir-se-ia nos jornais literários, que versavam sobre história, literatura, mineralogia, entre outros assuntos, e pretendiam despertar o interesse do leitor nas artes, na literatura e na ciência. Além disso, durante a década de 1820, começavam a circular no Brasil os primeiros periódicos de divulgação do saber político, tais como o Seminário cívico, O bem da ordem, O amigo do rei e da nação e o Conciliador do Reino Unido. Obedecendo ao formato dos jornais, essas folhas já revelam a necessidade de liberdade da imprensa e a recusa em obedecer às limitações do rígido modelo das gazetas.

No segundo capítulo da primeira parte, Neil Safier discute a contribuição de um editor em particular à formação da opinião pública emancipacionista no Brasil. O autor examina a adesão de Hipólito da Costa à causa da emancipação dos escravos e da erradicação do tráfico por meio de seus artigos publicados no Correio braziliense. Debate ainda, amplamente, a posição de Hipólito da Costa em relação a sua defesa da extinção gradual da escravidão, que previa como fase preliminar a abolição do comércio de escravos, após o que se perseguiria, prudentemente, a extinção total da escravatura. Neil Safier julga a posição de Hipólito da Costa como ambivalente e ambígua, desconsiderando, porém, ser essa a posição de diversos defensores da emancipação dos escravos prevalecente no exterior. O juízo parece mais uma cobrança anacrônica do que uma apreciação balanceada do posicionamento político do editor, que escrevia do exílio na Inglaterra. Hipólito, cumpre notar também, reproduzia a ideia predominante à época na Europa, justamente a de emancipação gradual, o que não era pouco ao se considerar tratar-se de um membro da elite brasileira. À parte essa ressalva pontual, a contribuição de Neil Safier é importante por colocar Hipólito como editor e formador de certa opinião pública no país, propugnando teses emancipacionistas em pleno alvorecer do século XIX.

Empalmando a polêmica da emancipação escrava, o jornal de opinião editado por Hipólito inaugurava a sua trajetória preocupado com a divulgação de ideias novas no Brasil, reverberando as noções de liberdade numa terra marcada pelo cativeiro.

Lúcia Maria Bastos encerra a parte primeira do livro com a discussão da imprensa como espaço de crítica e de consagração servindo-se das resenhas de livros publicadas em folhas científicas e literárias no Oitocentos. A divulgação das obras convertia-se, segundo a autora, em ponto de interesse comum para uma elite intelectual em formação à época. As livrarias e as tipografias transformavam-se em espaços de socialização dos integrantes dessa elite, despertando em tais indivíduos o interesse por novidades políticas veiculadas nas obras debatidas. A historiadora, ademais, conclui que as reuniões conferiam prestígio aos participantes que, assim, alcançavam destaque na boa sociedade do Rio de Janeiro.

Na segunda parte do livro, constituída de quatro capítulos, verifica-se clara preocupação com a análise do papel dos impressos nas práticas políticas do período. No primeiro capítulo, Roger Chatier introduz a discussão conceitual a respeito da revolução da leitura operada no século XVIII. Do inventário de suas pesquisas, Roger Chatier afirma que essa transformação no século do Iluminismo foi apenas uma das revoluções da leitura, pois outras a precederam “ligadas à invenção do códex, às conquistas da leitura silenciosa, à passagem do modelo monástico da escrita para o escolástico da leitura” (NEVES 2009, p. 101). Outras ainda a sucederiam no século XIX, como “a democratização do público do impresso, e, hoje, com o aparecimento do texto eletrônico” (NEVES 2009, p. 102). Ele discorda das teorias que opõem uma leitura tradicional (intensiva) a uma leitura moderna (extensiva), esta última como a característica revolucionária única no século XVIII. Na primeira, o leitor encontrar-se-ia limitado a um corpus tradicional de textos lidos, relidos e memorizados. Na segunda, consumiria avidamente impressos novos e efêmeros, submetendo-os à crítica. O autor alerta, porém, que os romances e a literatura de cordel eram lidos, relidos e memorizados em pleno Setecentos. Subsistia, portanto, nessas novas formas de impressos, certa leitura intensiva. Desse fato, conclui Chartier ter havido, sim, certa multiplicidade das leituras à época. Com efeito, a variedade da produção impressa e a criação de novos tipos de jornais contribuíram não apenas para a formação de uma esfera pública de opinião, mas também para o estabelecimento dos pilares de uma sociabilidade política que colocou os negócios do Estado sob o escrutínio da crítica. A revolução ocorrida no século XVIII residiu, por conseguinte, na capacidade de multiplicar a leitura dos impressos.

Ainda na segunda parte do livro, José Augusto dos Santos Alves destaca a oralidade como um dos elementos constitutivos da opinião pública na passagem do século XVIII para o XIX. O autor evidencia a associação entre a oralidade e a escrita na divulgação da notícia e da informação, bem como na constituição do sujeito político e da opinião pública. A ocorrência do espaço público liberal firma- -se não apenas no encontro de leitores cultivados, esclarece o autor, como também no de leitores populares, tanto alfabetizados quanto iletrados, instaurando o debate mais amplo dos acontecimentos, anteriormente restrito aos grupos dominantes. As notícias transmitidas em voz alta, a leitura em círculos e outros encontros de divulgação oral das informações escritas configuram o transbordamento da crítica para grupos mais extensos, convertendo a palavra em “coisa pública” (NEVES 2009, p. 10).

Marco Morel, de sua parte, aborda a mudança no modelo de imprensa regular do Oitocentos, quando as chamadas gazetas, periódicos tradicionais das monarquias cederam lugar aos jornais, que se pretendiam formadores de povos e nações. A imprensa do Antigo Regime, como as gazetas, experimentou mudanças importantes e assimiladas posteriormente. Marco Morel expõe as transformações na Gazeta do Rio de Janeiro, órgão oficioso da Corte recém- -chegada à América portuguesa. Atribui a ampliação no tamanho das folhas do periódico à afluência de notícias e à liberdade de imprensa após a adesão de D.

João ao moderno constitucionalismo. Incluíam-se em suas páginas, por solicitação da própria gazeta, cartas dos leitores interessados em divulgar as luzes. Introduziam-se, paulatinamente, comentários do editor aos textos e documentos transcritos, assim como se noticiavam proclamações políticas de diversas localidades do Brasil. O movimento de autonomia do país provocaria a ampliação das opiniões e a redução das transcrições, demarcando a transição da Gazeta para um jornal, que se consolidaria em maio de 1824 com a nova denominação de Diário fluminense. Semelhante trajetória, como mostra Marco Morel, percorreu a Gazeta pernambucana, cuja conversão operou-se entre os anos de 1822 e 1824. Da trajetória descrita, portanto, observa-se que a mudança de um periódico do tipo do Antigo Regime para um mais crítico e de opinião pode ter se operado ainda no interior mesmo das gazetas, cujos redatores transformavam sua intervenção “na busca de se formular um ideário que se tornasse hegemônico, das tentativas de imposição de determinadas linhas políticas e de campos de interesse” (NEVES 2009, p. 179).

O último capítulo da segunda parte, de autoria de Marcello Basile, trata da questão federalista, cuja faceta ficou mais conhecida na historiografia como a descentralização promovida pela reforma constitucional concretizada pelo Ato Adicional. Segundo o autor, o assunto adentrou o Parlamento a partir da emergência do grupo de liberais exaltados que, por meio da imprensa e de suas associações, tiveram amplo êxito na repercussão do tema junto à sociedade.

Desse capítulo, depreende-se a importância da imprensa na mobilização política durante o período, que impunha certa pauta de assuntos no legislativo do Império. Verifica-se, igualmente, aquilo que Marco Morel e outros autores da coletânea chamam de imprensa de opinião, pois se nota os jornais dos liberais exaltados propalando a federação como princípio de participação política, enquanto a imprensa moderada e, sobretudo, áulica, rejeitava a ideia. O autor explora a imprensa como fonte, pois em sua narrativa a respeito das inúmeras votações da matéria, ele se deparou com diversos intervalos temporais sem registro nos anais. A solução empregada foi o recurso a jornais como o Aurora fluminense e o Jornal do commercio, solucionando, assim, tais omissões e resgatando importantes pronunciamentos que forneceram a sucessão quase diária das votações da questão federal no parlamento brasileiro.

A terceira parte do livro, intitulada “Livros, cultura e poder”, adentra os meandros da produção e da mercantilização dos livros. O primeiro capítulo, de lavra de Luiz Carlos Villalta, discute a vigilância do Antigo Regime sobre os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal. Essa interessante investigação desvenda os caminhos, ou melhor, os descaminhos dos livros interditos e os expedientes empregados pelos livreiros para satisfazer o mercado.

O autor utiliza os documentos da Intendência Geral de Polícia e da Inquisição, responsáveis pela censura literária em fins do Setecentos e inícios do Oitocentos. De tais fontes, o autor identificou, por exemplo, as artimanhas dos importadores em encomendar os livros em folhas, deixando para encaderná-los em Portugal.

Outro recurso para contornar os censores consistia na alteração dos títulos para o correspondente em latim, despistando o conteúdo interdito dos livros.

Um estratagema adicional residia no envio de listas truncadas aos fiscais, omitindo-se, convenientemente, autores das obras ou mencionando-se vagamente o seu título. Eventualmente, recorria-se à autorização expressa de algumas pessoas poderem receber livros defesos como professores e membros do clero. A vigilância, no entanto, recaía sobre a troca desses livros com pessoas não autorizadas. Certos livreiros, assim, obtinham licenciamento para realizar o comércio de obras proibidas, mas os censores se incomodavam com os desvios que esse comércio autorizado assumia depois do ingresso das obras em Portugal.

Inclusive, os próprios comerciantes participavam dos esquemas para o contrabando dos títulos cujo destino deveria ser estrito às pessoas autorizadas pelo governo português. Outro ponto que o capítulo colabora para a reflexão geral da coletânea é a formação de certo ambiente de discussão e crítica, de onde germinaria uma esfera pública, conforme definição de Habermas. As livrarias convertiam-se em espaços de acesso à leitura de livros defesos e, amiúde, cediam lugar a discussões sobre o próprio conteúdo apreendido. Os indivíduos podiam dar voz à razão pública por meio do debate e da reflexão coletiva das obras lidas. O autor sugere em suas conclusões que as obras que ultrapassaram o bloqueio da censura contribuíram, de certa forma, para minar as representações e a fidelidade ao soberano, na medida em que seus leitores terminaram por instaurar um ambiente de crítica e de recepção de novas ideias.

O penúltimo capítulo do livro (segundo da terceira parte), de Ana Carolina Galante Delmas, recorre também a uma abordagem criativa e cuja interpretação parece muito sugestiva dos modos particulares de as pessoas lidarem com o poder. As dedicatórias às autoridades constantes nos impressos, para a autora, não revelam simplesmente um gesto de subserviência ao poder. Em sua opinião, significam importante expressão textual da interdependência na política. Mais uma vez, neste capítulo, verifica-se a preocupação com a formação da esfera pública pelo debate que se veiculava nos periódicos e livros em circulação. No início do Oitocentos, no entanto, a impressão constituía-se em privilégio concedido ao livreiro que se dispunha a ingressar na tarefa de editoração. As obras, por consequência, possuíam significado semelhante, uma vez que as bibliotecas tornavam-se a personificação de prestígio, avaliadas pela qualidade e raridade de seus volumes. A biblioteca real, portanto, deveria corresponder ao prestígio do soberano. Por outro lado, a obra que constasse nas prateleiras da realeza ganhava em prestígio e a homenagem postada no livro podia garantir o ingresso nesse templo dignitário. O autor, ao dedicar seus escritos ao monarca, por exemplo, podia garantir sua exclusão no rol dos defesos, o que representava grande vantagem. Além disso, a dedicatória poderia contribuir para o estreitamento dos laços com o rei e denotar, por outro lado, como bem observou Ana Carolina, os impulsos políticos de uma época. No Brasil, por exemplo, as homenagens postadas nos livros demarcaram, nos anos iniciais do Oitocentos, o desejo de permanência de D. João, o desejo de melhorar a sorte do Brasil com a presença da Corte nos trópicos. O levantamento das obras, elevadas à posição de reverência às autoridades, mostra que circulavam no período colonial, inclusive nos dois lados do Atlântico, volumes portadores de ideias ilustradas, em parte porque seus respectivos autores logravam alcançar a graça real por meio do galanteio registrado nas páginas iniciais.

Tania Maria Bessone encerra a coletânea com a história do rico e numeroso acervo da biblioteca de Rui Barbosa, conservado por toda a família após a morte de seu proprietário. Mantida na íntegra, fato raro na história das bibliotecas particulares, o conjunto desses livros demonstra, consoante a autora, a ambição consciente de Rui Barbosa em causar impacto com suas aquisições. Mais uma vez o livro, ou melhor, a sua coleção, conferia marca distintiva de prestígio a um cidadão. Tânia Bessoni evidencia em seu texto que poucas bibliotecas com essa natureza sobreviveram aos seus donos e isso, talvez, constitua-se numa das características mais preciosas da Biblioteca de Rui Barbosa. Nela é possível não apenas encontrar valioso acervo, mas também contabilizar obras que podiam granjear distinção ao colecionador. A preservação do mobiliário, bem como da organização dos livros, demonstra a dedicação de homens como Rui Barbosa para com suas bibliotecas. Ademais, trata-se da prova como os impressos adquiriram prestígio no Brasil e passaram a ocupar lugar de destaque na residência dos homens cultos do país.

Como última palavra, é mister louvar a iniciativa de Lúcia Maria Pereira Neves, que com o livro em tela não apenas nos remonta à história dos impressos e dos livros no Brasil, como também esclarece ao leitor os meandros da formação da opinião pública no Brasil imperial. Os diferentes textos, ao cobrirem o fenômeno da construção da imprensa e do mercado editorial, bem como da formação da opinião pública no país, revelam, em suas diferentes abordagens e temas, aspectos essenciais da política na passagem dos Setecentos para o Oitocentos, além de apontar aos interessados fecundas linhas de investigação futura.

Referências

 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

NEVES, Lúcia Maria P. das (org.). Livros e impressos: retratos do Setecentos e do Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

Adriana Pereira Campos – Professora associada Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: acampos.vix@gmail.com Avenida Fernando Ferrari, 514 29075-910 – Vitória – ES Brasil.

Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa – GONÇALVES (HH)

GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço: biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, 348 p. Biografia e historiografia brasileira. Resenha de: TOLENTINO, Thiago Lenine Tito. Biografia e historiografia brasileira. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.199-203, março 2011.

Apesar de, historicamente, preencher espaços volumosos nas estantes de bibliotecas e nos catálogos editoriais, o gênero biográfico brasileiro é objeto de poucos estudos no âmbito da história da historiografia brasileira. Desde a criação do IHGB, em 1838, até meados do século XX, o fazer biográfico esteve, não sem sofrer mudanças significativas nos modos da escrita e das concepções acerca do gênero, sempre no horizonte da atividade do historiador brasileiro. O livro de Marcia de Almeida Gonçalves, fruto de sua tese de doutorado defendida em 2003 na FFLCH/USP, contribui, nesse sentido, de forma primordial aos estudos acerca do gênero biográfico brasileiro. A obra revela a riqueza de um debate, hoje esquecido, que, já nos anos 1920, pautava-se em torno de questões como as das relações da biografia com a história e com a literatura, assim como, no reconhecimento do gênero biográfico como perspectiva capaz de contemplar a importância da compreensão do indivíduo durante o pós-guerra, em diálogo com as descobertas psicanalíticas e com a consolidação da sociedade burguesa.

Na construção de uma análise historiográfica acerca do gênero biográfico, a autora optou por ter um personagem como ponto de partida: Octávio Tarquínio de Sousa. A escolha é bastante acertada. Tarquínio de Sousa (1889-1959), historiador/biógrafo relativamente desconhecido, foi o autor de uma série de biografias que, em 1958, foram reunidas sob o título de História dos Fundadores do Império do Brasil (1958). Vinte anos, porém, separam a História dos Fundadores da publicação da primeira biografia escrita pelo autor: Bernardo Pereira de Vasconcelos e seu tempo (1937). Durante todos esses anos, as reflexões de Octávio Tarquínio acerca do gênero biográfico ganharam variados contornos relacionados às diferentes influências intelectuais com as quais teve contato.

O livro de Gonçalves é particularmente fértil, justamente, na recomposição das perspectivas desenvolvidas acerca da biografia desde os anos 1920 até a década de 1950. Tais perspectivas tiveram ressonâncias distintas no interior da obra de Tarquínio de Sousa.

A produção biográfica de Tarquínio de Sousa desenvolveu-se em uma época que foi tida pelos escritores contemporâneos como um período de uma “epidemia biográfica”. Essa constatação pode ser verificada no fato de o gênero biográfico figurar, nos anos 1930/40, entre os cinco mais publicados pelas grandes editoras da época, como, por exemplo, a Cia Editora Nacional, a José Olympio, a Editora Globo e a Editora Irmãos Pongetti. A expressão “epidemia biográfica” foi cunhada pelo crítico literário e líder católico Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima). Segundo Tristão, o fenômeno seria motivado pela emergência de um “estado de espírito”, na sociedade daquela época, que estaria desenvolvendo uma “grande tendência à realidade”. A ideia de uma sedução realista que compeliu a intelectualidade a desenvolver um esforço cognitivo para decifrar e para apreender a realidade, principalmente, a realidade nacional, encontra ressonâncias em, praticamente, toda produção dos anos 1930 subscrita no topos “Estudos Brasileiros”.

O fazer biográfico, porém, era mobilizado segundo diferentes perspectivas e foi, justamente, em relação a este “anseio realista” que as biografias revelaram-se ora fugidias à exigência realista do conhecimento historiográfico, devido a suas relações com o literário e o ficcional; ora como, fundamentalmente, apropriadas à construção do saber histórico, justamente, por sua capacidade de humanização dos processos passados ao revelar suas conexões mais intrínsecas. Uma das concepções acerca da biografia que mais teria gerado debates na intelectualidade brasileira, durante os anos 1930/40, foi a “biografia moderna”.

A autora retrata a trajetória da “biografia moderna” desde seus criadores europeus – André Maurois, na França, Emil Ludwig, na Alemanha, e Lytton Strachey, na Inglaterra – até sua recepção pela intelectualidade brasileira.

Identificada com o contexto posterior à primeira guerra mundial, a “biografia moderna” estava inserida em um contexto de revolta antipositivista “revolta antipositivista”, no qual emerge uma nova concepção de natureza humana mediada pelo conceito de inconsciente, pela valorização do meio histórico e cultural na compreensão das possibilidades e limites da ação dos indivíduos no mundo, pela junção, em escalas diferenciadas, do intuitivo e do racional nos métodos cognitivos (GONÇALVES, 2009, p. 154-155).

A recepção da “biografia moderna” em terras brasileiras rapidamente assumiu um sentido de identificação entre o fazer biográfico e a criação literária.

Em 1929, o crítico literário Humberto de Campos comemorava o fato de, a partir do surgimento da “biografia moderna”, ficar reservado ao Instituto Histórico a “missão soturna e benemérita de arquivar certidões de batismo, de coligir testemunhos de contemporâneos, de colecionar citações de historiadores eminentes” (CAMPOS apud GONÇALVES, 2009, p. 110). As biografias, porém, seriam agora escritas por “homens de pensamento – pelos romancistas, pelos poetas, pelos críticos literários –, porque ela deixará de ser história, isto é, ciência, para tornar-se arte em uma de suas expressões mais puras e legítimas” (CAMPOS apud GONÇALVES, 2009, p. 110). A “biografia moderna” passou, então, a ser sinônimo de biografia romanceada, contrapondo-se às biografias históricas.

Autores como Sérgio Buarque de Hollanda, Alceu Amoroso Lima, Lúcia Miguel Pereira, Sylvio Elia, Nelson Werneck Sodré e Luiz Viana Filho iriam, nos anos 1930/40, compor o debate intelectual em torno da biografia, ora defendendo seu caráter histórico, ora promovendo sua relação com a ficção.

Na maior parte dos casos, procurava-se uma conciliação entre as duas perspectivas.

Octávio Tarquínio de Sousa, fio condutor da obra de Gonçalves, percebia o sentido daquela epidemia biográfica como um sintoma de uma época que seria caracterizada pela “inumana anulação do indivíduo” (SOUSA apud GONÇALVES, 2009, p. 207) e que, por “reação inevitável” (SOUSA apud GONÇALVES, 2009, p. 207), era ávida por livros em que os “homens apareçam de alma nua, homens particulares, homens diferentes uns dos outros, homens como a vida modela e destrói […] a vida, toda a vida em suas mais opostas e diversas faces” (SOUSA apud GONÇALVES, 2009, p. 207).

E foi a partir de um teórico reconhecido por seu destaque à importância do conceito de ‘vivência’ [Erlebnis] para a compreensão nas ciências humanas que Octávio Tarquínio sintetizou suas perspectivas acerca do fazer biográfico.

De fato, segundo o biógrafo brasileiro, “sua tarefa biográfica inspirou-se em boa parte das lições de Dilthey” (SOUSA apud GONÇALVES, 2009, p. 296).

Nota-se, portanto, que Octávio Tarquínio de Sousa percebia no gênero biográfico um viés valioso para a compreensão das realidades passadas. Reconhecia o valor historiográfico inestimável de biografias clássicas como Estadista no Império (1897-1898), de Joaquim Nabuco, e Dom João VI no Brasil 1808-1821 (1908), de Oliveira Lima. Ao mesmo tempo, Octávio Tarquínio considerava como fundamentais as inovações trazidas ao gênero biográfico por meio do surgimento da “biografia moderna”. Não obstante, foi com base no teórico alemão Wilhem Dilthey (1833-1911) que Tarquínio de Sousa conseguiu sistematizar o valor do gênero biográfico para a compreensão da história.

Tratava-se de se perceber a “conexão estrutural de uma época ou período” não em que o indivíduo e o mundo histórico tornam-se distintos, porém, infinitamente, relacionados: assim como os homens não podem ser compreendidos se extraídos de sua época histórica, seria impossível compreender os processos históricos sem a atuação dos indivíduos.

Nesse sentido, observa-se, em Octávio Tarquínio, a possibilidade de indivíduos tornarem-se representativos de determinadas épocas, pois os sujeitos seriam um “ponto de cruzamento” de nexos efetivos e estruturais expressivos de comunidades e de sistemas culturais históricos. As trajetórias individuais trazem como que marcada, em seus corpos e em suas mentes, todo um mundo histórico que assume sentidos singulares através de cada experiência individual. Ao mesmo tempo, considera-se a existência de “sujeitos supraindividuais” como o direito, a arte, a religião e a nação. Eles seriam “um sujeito especial, preso a uma unidade que envolveria muitos sistemas particulares” (GONÇALVES, 2009, p. 306). A compreensão em ciências humanas e, especificamente, na historiografia, teria, portanto, um caráter hermenêutico marcado pela compreensão e pela revivência e sempre associado ao reenvio constante dos feitos individuais aos traços mais gerais de um mundo histórico.

A perspectiva historista trazia em seu bojo o caráter irrepetível do passado, a sua desvinculação de qualquer sentido teleológico (providência, progresso, liberdade) e a impossibilidade de redução da vivência histórica a uma explicação que a esgotasse.

Conforme demonstra a autora, Octávio Tarquínio de Sousa foi seletivo na apropriação tanto do pensamento de Dilthey, quanto das demais perspectivas com as quais teve contato. De fato, em sua busca pela renovação e, mesmo, pela validação do gênero biográfico como viés epistemologicamente legítimo à produção do conhecimento historiográfico, Octávio Tarquínio de Sousa sistematizava uma série de referências na composição da narrativa biográfica: Documentos de época, como cartas, jornais e atas oficiais, eram relacionados tanto com a historiografia mais antiga sobre a história do Brasil, como Southey e Armitage, quanto com autores renovadores do saber histórico brasileiro, como Gilberto Freyre. O gênero biográfico traduziria tanto uma inovação, fruto da demanda contemporânea por uma interpretação das realidades passadas segundo significados que remetessem à “compreensão” e à “vivência”, quanto um esforço revisionista, que objetivava reavaliar e reestruturar o saber histórico constituído.

O livro de Gonçalves traz, portanto, uma inestimável contribuição à história da historiografia nacional, justamente, por abordar discussões acerca de gêneros pouco, ou quase nunca, observados pelos especialistas da disciplina. De fato, o que a renovação dos estudos em história da historiografia brasileira deve revelar é a complexidade de temáticas e de perspectivas nas quais os historiadores brasileiros debruçavam-se, principalmente, entre o fim do século XIX e a metade do século XX. As relações da história com a literatura, da história com a época na qual é produzida, as possibilidades da história na constituição das identidades regionais e nacional, os conflitos em torno do passado mais legítimo e verdadeiro e, portanto, os sentidos políticos inerentes à produção historiográfica constituíram temáticas centrais nas discussões historiográficas brasileiras do período citado. Trata-se, portanto, de revisitar autores e obras que, por muito tempo, foram considerados como, justificadamente, esquecidos, e tantos outros sequer lembrados, em função de seu atraso segundo uma concepção evolucionista da “ciência” histórica. Em tempos de problematização acerca do sentido evolucionista da “ciência histórica”, o diálogo com aquela produção passada torna-se, cada vez mais, inescapável à reflexão historiográfica contemporânea.

Referências

NABUCO, Joaquim. Estadista no Império. Rio de Janeiro: H Garnier, 1897- 1898. 3 vols.

LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil 1808-1821. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1908.

SOUSA, Octávio Tarquínio de. Fundadores do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958. 10 vols.

SOUSA, Octávio Tarquínio de. Bernardo Pereira de Vasconcelos e seu tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937. Coleção Documentos Brasileiros.

Thiago Lenine Tito Tolentino – Doutorando Universidade Federal de Minas Gerais thiago_lenine@yahoo.com.br Rua Henrique José Ribeiro, n 30, Trevo 31545010 – Belo Horizonte – MG Brasil.

O jogo de Deus, do homem e do bicho – GOMES (RHR)

GOMES, Frederico (Org.). O jogo de Deus, do homem e do bicho. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/Léo Christiano Editorial, 2011. Resenha de: BENATTE, Antonio Paulo. 300 Revista de História Regionalv.16, n.1, p.298-303, 2011.

Acaba de vir a lume um pequeno e precioso livro intitulado O jogo de Deus, do homem e do bicho. Além de textos de Léo Christiano, Alexei Bueno, Italo Moriconi, Cássio Loredano, Leonardo Filipo e Frederico Gomes, a obra traz uma amostragem da poesia e da iconografia do jogo do bicho na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e inícios do XX. A cuidadosa impressão em papel couchê, com design e projeto gráfico de Mary Paz Guillén, valoriza as estampas coloridas de um artista anônimo, garimpadas no acervo dos colecionadores Carlos Augusto Ribeiro de Camargo e Julio Diniz Andrade Pinheiro.

As imagens representam animais humanizados e colocados em situações antagônicas – como nas fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine – e remetem a variadas situações do cotidiano carioca e brasileiro: a falta de ética na política, as relações desiguais de poder, as conjunturas econômicas que penalizam os mais pobres, os dramas das relações amorosas, etc. Os poemas, curtos e ao gosto popular, são invariavelmente acompanhados por um palpite para uma “fezinha” (“veja o n. 8”, “veja o n. 14”) e também aludem com humor a situações do dia-a-dia. Ambos, poemas e imagens, vinham de brinde nos maços de cigarros Veado, produzidos e comercializados pela Companhia Manufactora de Fumos, situada numa cidade que não existe mais (muito embora alguns personagens e situações persistam até os dias de hoje). Eis, por exemplo, “O elefante e o camelo”:

O câmbio, senhor Camelo, Não passa duma alcatéia De lobos que nos rodeia.

É o nosso pesadelo! Para o baixar, ou mantê-lo, Dos espertos à feição, Roda, gira, corcoveia Mente, engana, trapaceia, Uma enorme multidão Desde o banqueiro ao zangão! Adivinha, ó Zé Pacato Onde diabo está o gato! (Veja o n. 8) Ou este outro, “O cachorro e o gato”: Só política ou dinheiro Podem entre gato e cão Formar a concentração E ser o casamenteiro.

Passeiam de braço dado Os figadais inimigos Parecem velhos amigos, Ou um casal bem casado.

Com eles ninguém se estrompe Quem não conhecer que os compre. (Veja o n. 14)

O livro é muito bem vindo. Primeiro porque, como dizia o poeta Murilo Mendes, o homem é o único animal que joga no bicho (o bicho, portanto, fala do que é humano e social); segundo, porque é apresentado como o primeiro de uma coleção, a Memória iconográfica do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Quando nos damos conta de que muitos dos grandes ilustradores cariocas e brasileiros – como Angelo Agostini, J. Carlos e outros – empunharam penas e pincéis para Antonio Paulo Benatte representarem o universo lúdico, onírico e mágico do dito jogo, podemos esperar outras publicações de importância não apenas estética como histórica. Tratam-se, em suma, de fontes importantes para a compreensão de um dos fenômenos socioculturais mais complexos do Brasil moderno e contemporâneo. Terceiro porque, simplesmente, não se pode compreender o Brasil dos últimos 120 anos, sua cultura e instituições, sem compreender o denso imaginário associado ao jogo do bicho. E não vai aqui nenhum exagero, que este resenhista não joga, nem é cambista ou bicheiro.

Apesar de combatido e de ter perdido quase que completamente sua aura “romântica”, o bicho faz parte da realidade brasileira desde a década de 1890, acompanhando de perto todos os percalços de nossa atribulada história republicana.

Esse jogo – a maior contribuição do homo brasiliensis ao patrimônio lúdico e contravencional da humanidade – é um fato social total, enraizado profundamente em nossa cultura; ele faz rizoma com uma ampla camada de real e de imaginário, de concreto e de simbólico, de prosaico e de poético, de patético e de onírico; inextirpável, é uma verdadeira instituição tupiniquim, articulada a muitas outras instituições, como o carnaval, o futebol, a música popular, a política, a religião, a economia, a polícia, a malandragem, a bandidagem e por aí vai.

Cedo os observadores chamaram a atenção para a complexidade de um fenômeno que, no começo do século passado, já se espalhara por todo o país. Em 1935, o folclorista Oswaldo Cabral aludia a uma prática já solidamente estruturada: O jogo é feito por toda a parte, quando as autoridades policiais não se encontram nas fases agudas das perseguições…

Há cambistas, agentes, book-makers, “bicheiros”, como se diz na linguagem popular, pelas ruas, praças, nos cafés, em casas lotéricas, em cigarrarias e engraxatarias, nos mercados, nos negócios, nas “vendas” e “verduras”, em toda a parte, afi nal […]1

O jogo de Deus, do homem e do bicho Alguns observadores associaram o jogo à alma do brasileiro, um de seus traços de caráter e signos de identidade.

Em Brasil, país do futuro (1941), o escritor austríaco Stefan Zweig admirou-se do “quão profundamente [a] paixão pelo azar corresponde ao caráter sonhador deste povo”. Ele se refere de modo geral às loterias e particularmente ao bicho: Esse jogo, talvez precisamente por ser proibido, invadiu todos os círculos sociais: toda criança no Rio, mal havia aprendido na escola a contar, já sabia que número correspondia a cada bicho e sabia dizer toda a série de bichos melhor do que o alfabeto.2 O sociólogo francês Roger Caillois, no fi nal dos anos 1950, reelaborou uma ideia tornada então verdade científica: Jogar é renunciar ao trabalho, à persistência, à poupança e aguardar a jogada feliz, que, num ápice, proporciona aquilo que uma extenuante vida de labor e privação não concede, se não se tiver sorte ou não se recorrer à especulação, que, por sua vez, depende da sorte.

Caillois considera que “O jogo brasileiro tem a vantagem de mostrar claramente as relações entre a alea e a superstição”; e, referindo-se à sociedade brasileira, conclui: A paciência e o esforço, que proporcionam um lucro pequeno, mas seguro, são substituídos pela miragem de uma fortuna instantânea, a possibilidade súbita do ócio, da riqueza e do luxo. Para a multidão que trabalha penosamente sem acrescentar algo de visível a um bem-estar muito relativo, a oportunidade do grande prêmio aparece como a única forma de um dia poder sair de uma condição humilhante e miserável.

O jogo escarnece do trabalho e representa uma solicitação rival que, pelo menos nalguns casos, assume importância bastante para determinar em parte o estilo de vida de uma sociedade.3

Poder-se-ia multiplicar os exemplos da problematização do jogo no pensamento social brasileiro, de Gilberto Freyre a Roberto DaMatta, de Afonso Arinos de Melo Franco a Vianna Moog, sem que se esgotem as possibilidades de análise. A historiografia, como de praxe, chegou atrasada (não era um tema academicamente digno, nem à direita nem à esquerda, no tempo em que essas palavras ainda significavam alguma coerência ideológica); felizmente, alguns historiadores mais livres de preconceitos vêm se detendo sobre a trajetória do bicho, cientes de que é impossível compreender as práticas e representações em torno do jogo sem apreender- lhe a dinâmica cultural específica: não se trata, é óbvio, de apenas mais um caso de polícia, repressão e resistência.

Por isso, a publicação de textos e imagens como os resgatados nessa obra é importante, pois evidencia a presença do jogo na cultura por um viés muito diferente dos discursos jurídico-policiais, da imprensa “burguesa” ou dos moralistas que trataram da questão da jogatina desde o final do século XIX.

Os discursos mais cientificistas não deixaram de associar a invenção do Barão de Drummond a “elementos psicológicos” das raças “primitivas” que compuseram, junto com o branco europeu, o substrato étnico e cultural da população brasileira. A crença na sorte, atitude mental essencial na prática dos “jogos de azar” ou de alea (e o bicho é essencialmente uma loteria ou um “jogo de azar”), foi vista como incompatível com uma mentalidade esclarecida e com uma atitude racional perante a vida e o mundo, a começar pelo mundo do trabalho.

Para as elites modernizadoras e os sacerdotes da nova religião do progresso, a crença na sorte – a ideia mesma de “salvação pelo acaso” – foi interpretada como uma forma de persistência residual de um modo de pensar tradicional, espécie de “mentalidade pré-lógica” que obstava o progresso do país e a sua inclusão no concerto das nações modernas, industrializadas e civilizadas. Nas práticas lúdicas populares, esses “pedagogos da prosperidade” (como diria Sérgio Buarque de Holanda) liam um sintoma do atraso psicológico e cultural que separava o povo brasileiro do homo oeconomicus capitalista, representado como modelo virtuoso do trabalhador ideal, produtivo e econômico. Nesse sentido, o fim da religião do progresso, a crise dos grandes modelos explicativos e a falência dos valores, ideários e imaginários da modernidade têm propiciado uma melhor compreensão do que anteriormente só se nos aparecia como um obstáculo à mudança ou um signo do arcaísmo das massas ignaras.

Muitas explicações têm sido dadas sobre o complexo do bicho; não é o lugar aqui para ensaiar uma própria. Mas, sem querer endossar nenhuma metafísica, é possível afirmar que a crença na sorte é uma dessas atitudes profundas, uma constante antropológica de longuíssima duração na história, e para as quais chamaram a atenção os historiadores das mentalidades; atitudes inseridas em quadros mentais resistentes aos movimentos da sociedade, e que se transformam mais lentamente que as conjunturas econômicas e os acontecimentos políticos.

Seja como for, o livro O jogo de Deus, do homem e do bicho é uma contribuição de relevo para os leitores curiosos de nossas coisas, boas ou ruins, e principalmente para os eruditos estudiosos de nossa zoologia cultural. Em tempo: a obra é também uma comemoração dos 60 anos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o que por si só justificaria sua publicação.

Antonio Paulo Benatte – Pós-Doutor em História pela UNICAMP; pesquisador-colaborador da mesma instituição. Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: apbenatte@uepg.br.

Discursos, tecnologias, educação – BARRETO (ES)

BARRETO, Raquel Goulart. Discursos, tecnologias, educação. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2009. 186p. Resenha de: SCHAPPER, Ilka. Por entre discursos, tecnologias e educação. Educação & Sociedade, Campinas, v.31 no.110 jan./mar. 2010.

No livro intitulado discursos, tecnologias e educação, Raquel Goulart Barreto, logo na primeira linha da Apresentação, demarca o território em que a obra transita: “é um livro teórico-metodológico”. Este binômio já prepara o leitor para um texto circunscrito na fronteira do trabalho de pesquisa. Seus diálogos, nos dez capítulos, são tecidos a partir de cursos, percursos e discursos inscritos no grupo de pesquisa “Educação e Comunicação”, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Tendo como eixo a educação, a obra trata da análise crítica dos discursos (ACD) sobre as apropriações das tecnologias da informação e da comunicação (TIC).

O discurso pedagógico contemporâneo é o elemento que articula a tríade do título. Fundamentada em Norman Fairclough, Barreto estabelece significativa interface com autores como Mikhail Bakhtin e Eni Orlandi, que possibilitam ampliar o debate dos diferentes aspectos dos recortes selecionados.

Os capítulos estão organizados em três partes, que trazem o movimento entre fundamentação teórica e sua aplicação em “exercícios analíticos”. Na primeira parte, três capítulos traçam o horizonte teórico-metodológico da obra. Em “Para começo de conversa: texto, discurso(s), intertextualidade”, o leitor tem notícia das trilhas percorridas no livro: dimensiona o discurso como conceito teórico-metodológico, nas acepções discutidas por Fairclough. Essa discussão toma corpo no segundo texto, “Análise crítica do discurso (ACD): realismo crítico, performatividade e ideologia”, em que Barreto aborda as relações dialéticas entre elementos semióticos (“discurso”, no sentido mais amplo) e as outras práticas sociais, demarcando, em oposição ao idealismo, o realismo crítico na objetivação da linguagem. No terceiro texto, a autora, trazendo também Felinto e Mattelart, discute a tese de que as TIC têm sido fetichizadas no imaginário tecnológico, no enredo dos discursos nodais da globalização e da “sociedade do conhecimento”.

Na segunda parte do livro, o leitor tem um interessante encontro que é um interregno entre o primeiro e o terceiro momento da obra. No texto “O discurso da inclusão”, Barreto, em coautoria com Leher, discute os sentidos atribuídos ao termo, com base no materialismo histórico-dialético. Em “Cenários enunciativos no Admirável Mundo Novo“, em parceria com Ramos, há uma aproximação entre Bakhtin e Fairclough, a partir do recorte de cenas enunciativas do livro de Huxley.

Na terceira parte da obra, temos os exercícios analíticos em que podemos encontrar interessantes pesquisas que retomam a tríade do título. Em “Não só palavras: dos textos multimidiáticos à ressignificação das práticas escolares”, Barreto e Guimarães discutem a configuração multimidiática dos textos contemporâneos, focalizando, no conjunto das tendências discursivas transnacionais, as linguagens articuladas na produção, circulação e legitimação dos sentidos.

O debate se aprofunda no texto “Formação de professores: entre o discurso da falta e propostas de substituição tecnológica”, em que Barreto analisa a tendência a desqualificar a formação e o trabalho docente, no movimento de produzir alternativas centradas apenas nas TIC. O encaminhamento parte do conceito de recontextualização e assume como parâmetros as ressignificações de ensino e aprendizagem.

Os capítulos seguintes tratam de aplicações do referencial teórico-metodológico. Em “Dualidade escolar: os sentidos das TIC”, Barreto e Magalhães trazem o conceito gramsciano para a discussão dos sentidos atribuídos às TIC nas vozes de coordenadores, professores e alunos de dois contextos escolares caracterizados pelo atendimento a classes sociais desiguais. Em “Discursos de professores do ensino público noturno: entre o cotidiano e o imaginário”, Barreto e Fernandes abordam possibilidades de acesso ao imaginário tecnológico de professores, procurando detectar reflexão-refração do sentido hegemônico atribuído às TIC, nos territórios demarcados pelo título. Em ambos, a ACD é desenvolvida a partir de pontos de entrada que remetem a Fairclough: pressupostos, modalidade e escolhas lexicais.

No último capítulo do livro, a autora traz como título uma pergunta: “Ponto final?”. Barreto destaca que o que cabe no desfecho “deste desmonte das tramas constitutivas da ideologia como hegemonia de sentido, na objetivação das relações entre as TIC e a educação, é a aposta na produção de possibilidades outras” (p. 177). Uma aposta que traz as marcas de outra interrogação: o que fazer com tudo isso? E, na tentativa de responder à questão, mais uma vez, a autora presenteia o leitor com uma importante reflexão: pensar um projeto “que aponte para o redimensionamento da formação de professores a partir de alternativas de formação-trabalho docente que estão sendo forjadas nas universidades e nas escolas” (idem). Nas produções do grupo de pesquisa “Educação e Comunicação”, a autora desenvolve, junto com os demais pesquisadores, estudos que buscam compreender essas tensões e trazer possibilidades outras para o encaminhamento de questões que atravessam a relação entre os discursos presentes na díade tecnologias/educação.

No entremeio das discussões sobre discursos, tecnologias e educação, Barreto traz importantes contribuições para o debate das TIC no cenário educacional. Trata-se de uma obra de densidade teórico-metodológica que instiga a importantes reflexões e, por isso, a pergunta no último capítulo: Ponto final? A dúvida procede, já que, da maneira como a autora dialoga e instiga o leitor a novas construções, não há ponto final na obra, mas uma vírgula, materializada como reticências, uma pausa em um diálogo que continua com você, leitor.

Ilka Schapper – Doutoranda em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP) e professora adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: ilkaschapper@gmail.com

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A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII – FERNANDES (RIHGB)

FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2000. Resenha de: CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.163, n.414, p.241-244, jan./mar., 2002.

Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha – Sócia emérita do IHGB.

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