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Mímesis e a reflexão contemporânea – COSTA LIMA (HH)
COSTA LIMA, Luiz (org.). Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, 260 p. Resenha de: ARAÚJO, Nabil. Teorizar a mímesis contemporaneamente. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.204-212, março 2011.
Tomado como aquilo que mais imediatamente se propõe a ser – uma coletânea de textos contemporâneos sobre a mímesis –, o livro Mímesis e a reflexão contemporânea, ou, antes, os quatro textos de autores diversos que compõem o volume deveriam ser avaliados no que concerne (a) seja à sua conformação ao objeto de reflexão então em foco: o fenômeno ou a problemática da mímesis, (b) seja à “contemporaneidade” da abordagem que empreendem de um tal objeto (a menos, é claro, que se tome por contemporânea simplesmente toda e qualquer abordagem temporalmente próxima a nós).
Isso posto, seria preciso reconhecer que, se os três primeiros textos da coletânea – “Nascimento de imagens” (1979), de Jean-Pierre Vernant; “‘Imitação da natureza’: contribuição à pré-história da ideia do homem criador” (1957/ 1981), de Hans Blumenberg; “Mímesis em Aristóteles e nos comentários da Poética no Renascimento: da mudança do pensamento sobre a imitação da natureza no começo dos tempos modernos” (1998), de Arbogast Schmitt – colocam, inequivocamente, a problemática da mímesis no centro de suas preocupações, o fazem não de uma perspectiva eminentemente teórica (isto é, de alguém que buscasse, se não erigir uma nova teoria, ao menos formular um posicionamento teórico próprio e, nesse sentido, contemporâneo da problemática da mímesis), mas de uma perspectiva muito próxima à da tradicional história das ideias (isto é, com a objetividade e o distanciamento típicos do pesquisador que pretende reconstituir fidedignamente um certo pensamento ou percurso conceitual) – ainda que, nos três casos, com uma admirável competência filológica aliada a um consistente background filosófico.
Por sua vez, o quarto e último texto – “O processo de dissimulação: ‘O silêncio das sereias’, de Kafka” (1993), de David Wellbery – apenas tangencia a problemática da mímesis ao enunciar, no âmbito da leitura que empreende do texto de Kafka, a formulação de uma “mímesis apotropaica da diferença, no texto inscrita” (WELLBERY 2010, p. 211). Por outro lado, em nenhum dos textos da coletânea mais do que nesse a contemporaneidade da abordagem se faz sentir, sobretudo no modo como o autor, na articulação de sua leitura do texto kafkiano, mobiliza um certo vocabulário teórico-crítico – “autorreferência”, “indeterminabilidade”, “paradoxo”, “figura paradoxal do texto”, “indecidibilidade”, “diferença”, etc. – facilmente identificável ao que se convencionou chamar, a partir dos anos 1980, nos EUA, de crítica “desconstrucionista”. Descontado, portanto, o texto de Wellbery em função de sua especificidade, a relevância da coletânea residiria no amplo painel histórico por ela oferecido do desenvolvimento da teoria mimética no mundo ocidental, de sua emergência, na Grécia clássica, ao limiar de sua suplantação, na modernidade.
No primeiro texto da coletânea, Vernant deixa-se guiar pela seguinte questão de fundo histórico-psicológico: “Em que medida os gregos antigos conheceram uma ordem de realidade correspondente ao que chamamos de imagem, imaginação, mundo do imaginário?” (VERNANT 2010, p. 51). Em seu esforço de elucidação, Vernant elege a obra de Platão como corpus privilegiado de investigação, vendo nela um ponto de inflexão decisivo na cultura grega antiga, posto ser Platão o autor que, pela primeira vez, reúne “em um mesmo grupo os mais diversos tipos de produções imagéticas para apresentar uma teoria geral unificada, organizando-os em conjunto no quadro de uma mesma categoria de fenômenos, aqueles que se vinculam, quaisquer que sejam suas diferenças, à mímesis, à imitação” (VERNANT 2010, p. 52) A conclusão a que chegará Vernant é a de que, por mais que a obra de Platão, signo maior do “momento em que o mundo das aparências toma corpo”, parecesse abrir caminho para o “desenvolvimento psicológico da imagem”, seria preciso esperar por um autor como Flávio Filóstrato (século II d. C.) para a identificação da phantasía como “uma imaginação não mais dependente da mímesis, mas oposta e superior a ela por conta de sua sophía” (VERNANT 2010, p. 86). O percurso investigativo ganha corpo, no texto de Vernant, por meio de uma leitura cerrada de textos-chave de Platão para a problemática da mímesis como República e Sofista, na qual competência filológica, background filosófico e sensibilidade historiográfica convergem no tratamento de certas questões essenciais quer para o filósofo, quer para o crítico ou teórico da literatura, quer para o historiador das ideias.[1] No centro delas, a questão da célebre distinção platônica entre a “boa” e a “má” imitação, em vista da qual o “nascimento de imagens” de que nos fala Vernant, isto é, o estabelecimento, com Platão, de uma teoria geral unificada das produções imagéticas (e de uma hierarquia epistemológica entre elas), acabaria por se confundir com o nascimento do próprio discurso filosófico ocidental.
“Retomada por Aristóteles”, lembra-nos Vernant (2010, p. 63), “a concepção platônica da mímesis, mais ou menos reinterpretada, exercerá, a partir do Renascimento, a influência que todos conhecemos sobre o desenvolvimento e a orientação da arte ocidental”. A expressão “que todos conhecemos” aponta para a existência de um senso comum a respeito da longue durée aí delineada, aquela que faz o predomínio da teoria mimética da arte e da literatura estender-se de sua emergência com Platão e Aristóteles à sua vigência hegemônica na Europa pós-renascentista (até sua derrocada com o colapso do regime neoclássico a partir de fins do século XVIII).
Os dois textos seguintes da coletânea incidem exatamente sobre esse senso comum. O primeiro o endossa e procura rastrear, ao longo do percurso aí descrito, o delineamento de certos posicionamentos que de alguma forma preparariam ou anunciariam a superação da teoria mimética ocidental por um referencial teórico-crítico francamente antimimético, dito moderno. O segundo o questiona e se esforça por mostrar que, na dita “reinterpretação” da concepção platônico-aristotélica da mímesis pelos comentadores renascentistas da Poética, a modificação terá sido tão drástica que melhor seria falar em duas concepções distintas, evitando o erro de subsumir retrospectivamente a concepção clássica (grega) na neoclássica (pós-renascentista).
Comentando a resposta aristotélica à pergunta “sobre o que o homem poderia produzir no mundo e do mundo, por sua força e destreza”: a formulação de que a “arte é imitação da natureza”, Blumenberg (2010, p. 87) observa que o termo grego para “arte” – tékhne – sintetiza “todas as habilidades humanas de operar e configurar […]: tanto o ‘artificial’ como o ‘artístico’”. Ele explica que, nessa perspectiva, natureza e “arte” são estruturalmente equivalentes, os traços imanentes de uma podendo ser conferidos na outra, e conclui que “assim está positivamente fundado que a tradição sintetize a definição aristotélica na fórmula ‘ars imitatur naturam’, como o próprio Aristóteles já o fizera” (BLUMENBERG 2010, p. 88). Blumenberg o afirma para, logo na sequência, constatar o fosso que separa da fórmula aristotélica o horizonte da modernidade, orientado que é pela “medição do espaço livre da liberdade artística”, pela “descoberta da ilimitação do possível contra a finitude do fático”, pela “dissolução da referência à natureza pela autoconcretização histórica do processo artístico, dentro do qual a arte é sempre gerada na e a partir da arte” (BLUMENBERG 2010, p. 89). Perguntando-se por que a “invenção” se torna “o ato significativo no mundo moderno”, por que ela “emerge imageticamente” nas obras de arte da modernidade, Blumenberg observa que a pergunta não pode ser respondida “se não se considera contra que o conceito moderno de homem foi levado a cabo”, e sinaliza: “O páthos veemente com que se atribuiu o caráter de criador ao sujeito foi mobilizado para enfrentar o axioma da ‘imitação da natureza’” (BLUMENBERG 2010, p. 91); ou ainda: “o páthos moderno da autêntica produção humana na arte e na técnica provoca a resistência contra a tradição metafísica da identidade entre ser e natureza, de que a determinação da obra humana como ‘imitação da natureza’ era a exata consequência” (BLUMENBERG 2010, p. 98). Diante dessa tese, torna-se indispensável, diz-nos Blumenberg (2010, p. 98), “uma pesquisa fundamentada da base histórica”; é o que ele buscará oferecer ao longo do texto, determinando, assim, “de modo mais preciso o espaço histórico em que essa oposição ocorre” (BLUMENBERG 2010, p. 91).
Procurando delimitar a concepção platônico-aristotélica da mímesis em sua ênfase na correspondência entre possibilidade e realidade, Blumenberg (2010, p. 105) afirma que ela “não admite que o homem possa atuar mentalmente de maneira originária. Ontologicamente, isso quer dizer: o existente não pode ser ‘enriquecido’ pela obra humana. […] na obra humana, nada essencialmente sucede”. O autor passa, então, em revista diversos momentos da história do pensamento ocidental em busca de modificações ou deslocamentos significativos que apontariam para uma saída desse estado de coisas, rumo a uma visão renovada da arte e de sua relação com o “real” e o “possível”: o helenismo, o estoicismo, o pensamento cristão medieval (Agostinho, Pedro Damian, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Boaventura, Guilherme de Ockham, Nicolau de Cusa), desembocando no horizonte da modernidade com Descartes e Leibniz. Com Descartes, afirma Blumenberg (2010, p. 129), “a filosofia se converte na sistemática do possível; a realidade do ser torna-se agora compreendida a partir da possibilidade do ser”. “O homem ‘escolhe’ seu mundo, como Deus escolheu, a partir do possível, o mundo a criar” (BLUMENBERG 2010, p. 130). Blumenberg observa que Leibniz tentará condensar harmonicamente esses mundos possíveis, equilibrando a pressão das possibilidades infinitas. Quando, entretanto, em meados do século XVIII, o otimismo metafísico leibniziano desmorona, resta o horizonte da infinidade dos mundos possíveis, posto em contato com a representação do poeta criador apenas em 1740, por J. J. Breitinger (Critische Dichtkunst) e J. J. Bodmer (Critischen Abhandlung von dem Wunderbaren in der Poesie). Com o aguçamento, no século XIX, de seu caráter factual, a natureza acabará por figurar como “a encarnação dos produtos possíveis da técnica”, e, assim, como a própria antípoda da arte-como-criação, tornando-se odiosa aos olhos do artista moderno. “Só agora se pode apreciar a significação positiva propiciada pela dissolução da identidade entre ser e natureza”, sentencia, com efeito, Blumenberg (2010, p. 134), na conclusão de sua “contribuição à pré-história da ideia do homem criador”.
Arbogast Schmitt abre seu ensaio com um longo trecho do texto de Blumenberg. Ao comentá-lo, critica o autor por reiterar “uma communis opinio, cada vez mais extensa, que vê formar-se, entre Aristóteles e o século XVIII, uma ampla conexão no entendimento da arte e da poesia, contra a qual a modernidade se levantou, pelo desdobramento do conceito de uma subjetividade criadora” (SCHMITT 2010, p. 139) Esse senso comum seria criticável por ignorar a especificidade da teoria poética platônico-aristotélica frente à sua interpretação (deturpação?) renascentista. Reconhece-se, assim, que “a formulação de Aristóteles por Blumenberg deva ao menos deformar algo para que fundamente a tese de que, para Aristóteles, a arte é basicamente imitação da natureza” (SCHMITT 2010, p. 139). Schmitt se esforçará, então, para refutar o referido senso comum, procurando restituir a integridade da concepção aristotélica da mímesis em contraste com a concepção renascentista de imitação poética.
Partindo da análise das “opiniões filosóficas básicas” (SCHMITT 2010, p. 152) subjacentes a cada uma das concepções em questão, Schmitt definirá, nos seguintes termos, a diferença essencial entre ambas no que concerne à problemática da representação e da verossimilhança: O pensamento de Aristóteles é consideravelmente mais universal: o poeta deve apresentar o que, por atos e palavras, decorre de uma certa condição de um homem, com verossimilhança e necessidade; ou melhor, que condição interna de um indivíduo se manifesta quando ele diz ou faz algo. O poeta deve apresentar qual é o universal de um homem, o que subjaz à quantidade imprevisível de suas ações como uma disposição interna dele característica e a ele cabível. A distinção quanto aos “tipos” da poética normativa está em que tais tipos são extraídos da empiria, são articulações típicas de um traço de caráter de uma certa espécie de indivíduo, ao passo que Aristóteles não subordina o poeta a uma “tipificação”. Isso leva a que o número de “tipos” não aumente indefinidamente, enquanto o universal do poeta, para Aristóteles […], sempre pode ter uma nova formulação (SCHMITT 2010, p. 168).
Assim sendo, a excitação contra a frase “a arte imita a natureza” não se dirigiria a Aristóteles, “mas à recepção renascentista do filósofo grego” (SCHMITT 2010, p. 188). Schmitt conclui enfatizando que o objetivo de sua pesquisa foi o de “tornar plausível que a restrição da poesia pelo que está dado não é o resultado da história de dois mil anos do pensamento da imitação, senão que o produto de uma mudança específica do conceito de imitação no início dos tempos modernos” – o que levaria a que o princípio da imitação ainda compreendesse “outras possibilidades muito diversas” (SCHMITT 2010, p. 189).
*** Do texto introdutório a um livro dessa natureza não se esperaria muito mais do que uma apresentação sumária dos autores então contemplados (sobretudo por se tratar de nomes estrangeiros, em sua maioria pouco difundidos no Brasil) e algum tipo de resumo do conteúdo dos textos, a funcionar como convite à leitura dos mesmos. Isso, é claro, se o organizador do livro e autor de sua “Introdução geral” não fosse ninguém menos do que Luiz Costa Lima, nome maior da teoria da literatura no Brasil, conhecido sobretudo por seu esforço pessoal de repensar a mímesis como fenômeno constitutivo da experiência estética, empreendimento que se estende já por três décadas de pesquisa, ensino e publicações. Costa Lima não deixa de fornecer, é certo, uma justificativa plausível para seu projeto de uma coletânea sobre a mímesis nem uma apresentação mínima dos autores e dos textos por ele então editados (todos, aliás, com exceção de um, traduzidos pelo próprio Costa Lima); mas o grande diferencial da introdução que nos oferece é o modo como ela logra reconfigurar a coletânea em função da maior ou menor relevância de cada um dos textos em vista do empreendimento teórico do próprio Costa Lima. Nesse sentido, autores ausentes, que deveriam ter sido incluídos na coletânea mas não foram – caso de Theodor Adorno e de Jacques Derrida –, acabam mesmo por adquirir um peso maior do que autores efetivamente incluídos na coletânea, como Vernant ou Wellbery. A parte da introdução referente a Vernant (COSTA LIMA 2010, p. 11-12) sequer é do próprio Costa Lima (mas do professor José Otávio Nogueira Guimarães, tradutor de “Nascimento de imagens”); ao ensaio de Wellbery sobre Kafka, Costa Lima reserva apenas o último parágrafo da longa introdução, remetendo o leitor interessado ao capítulo de um livro seu em que se ocupa criticamente do referido ensaio. O texto de A. Schimitt justificarse- ia por preencher a “lacuna de, entre nós, quase se desconhecer a poetologia renascentista” (COSTA LIMA 2010, p. 23). Blumenberg, por sua vez, é o autor em que recai o maior interesse de Costa Lima. A Adorno e a Derrida, “os autores que havíamos pensado em incluir nesta coletânea e dela terminaram excluídos”, autores de cujas contribuições “uma reflexão sobre a questão da mímesis no pensamento contemporâneo não poderia prescindir” (COSTA LIMA, 2010, p. 23), Costa Lima dedica uma “síntese introdutória” de vinte páginas, que ocupa metade de toda a introdução.
Atendo-se à declarada finalidade maior do texto de Costa Lima, a saber: “assinalar como a questão da mímesis adere ao próprio questionamento epistemológico contemporâneo” (COSTA LIMA 2010, p. 10-11), pode-se divisar aí o delineamento de uma dicotomia entre posicionamentos diametralmente opostos, epitomados, no caso, em Blumenberg, o primeiro, e em Derrida, o segundo (com Adorno ocupando uma posição intermediária entre os dois, ainda que, ao lado da de Derrida, igualmente insatisfatória para Costa Lima). Um ponto de contato possível entre Blumenberg e Derrida, e aquilo mesmo que pareceria opô-los radicalmente, é o interesse pela questão da metáfora: “em Derrida, a metaforicidade incessante, provocadora do privilégio da experiência estética, por ser ela a única que não escamoteia a différance – isto é, o postergar incessante da conclusão de um enunciado qualquer –, não se confunde com a posição de Blumenberg” (COSTA LIMA 2010, p. 21). E ainda: Se este propõe uma metaforologia, que, de fato, rompe com a sinonímia entre razão e conceito e, daí, com a epistemologia piramidal dos tempos modernos, tendo a ciência em seu ápice, por outro lado, […] se interessava pela questão da mímesis enquanto parte de uma área desprezada pela especulação clássica grega, a área da tékhne. […] ao passo que Derrida permanece filiado a uma espistemologia piramidal, a que desconstrói sem a perda de sua forma geométrica – a pirâmide deixa de ter como cume o conceito, o enunciado unívoco, para que tenha a disseminação incessante de um metafórico interminável –, temos em Blumenberg uma reflexão sobre as diferentes formas de linguagem, em que se reconhece a igual legitimidade de funções diferentes cumpridas pelos mais diferentes discursos. A crítica da posição oferecida ao conceito não significa que seu lugar venha a ser ocupado por seu oposto (COSTA LIMA 2010, p. 21-22).
Como se vê, na dicotomia postulada por Costa Lima, o posicionamento blumenberguiano de ruptura com a “epistemologia piramidal dos tempos modernos”, de reconhecimento da legitimidade das diferentes formas de linguagem e das diferentes funções por elas desempenhadas – encontrandose, nesse sentido, o discurso mimético lado a lado (e não abaixo ou acima) do discurso conceitual – seria claramente preferível ao suposto posicionamento derridiano de mera inversão da hierarquia piramidal moderna, pela qual o cume deixa de ser ocupado pelo conceito, ora rebaixado, para ser ocupado pela metáfora (ou pela “metaforicidade incessante”), outrora rebaixada. Essa alegada inversão hierárquica em Derrida, a metaforicidade passando a vigorar sobre a conceitualidade, não deixaria de implicar a própria dissolução da diferença entre os discursos, ou, para citar Costa Lima (2010, p. 41): “a desconstrução da concepção clássica de metáfora provoca a quebra da separação entre o filosófico e o poético”.2 Costa Lima se contrapõe, em suma, “à identificação derridiana 2 Adorno ocuparia, nesse sentido, uma posição intermediária, em que o privilégio concedido ao “artístico” como portador de uma dimensão crítica frente ao “ideológico” não exclui, antes demanda, o trabalho interpretativo da filosofia, com o qual, contudo, não se confunde.
entre as funções filosófica e poética do uso da palavra”, declarando “a impropriedade de se igualarem uso filosófico e uso poético, pois pertencentes a formas discursivas distintas […]” (COSTA LIMA 2010, p. 40).
Costa Lima não terá sido o primeiro, é certo, a imputar a Derrida uma suposta inversão da hierarquia entre conceitualidade e metaforicidade – ou entre lógica e retórica –, cujo corolário principal seria a dissolução da diferença entre discursos, a equiparação entre filosofia e poesia. O que já não parece mais admissível, sob o risco de uma reencenação involuntária de equívocos passados, é ignorar o corpus considerável de declarações do próprio Derrida em sentido contrário àquilo que se lhe quer então atribuir, sobretudo a partir de sua célebre polêmica com Habermas na década de 1980, motivada justamente pela acusação habermasiana a Derrida de “nivelamento da diferença de gênero entre filosofia e literatura”.
Para retomar a imagem da pirâmide epistemológica moderna empregada por Costa Lima, seria preciso reconhecer, em função de uma visão de conjunto do vasto corpus textual que nos legou Derrida, de suas deliberadas manifestações de repúdio à acusação de “nivelamento” das diferenças discursivas, que o empreendimento desconstrutivo, longe de meramente inverter hierarquias epistemológicas, incidiria, antes, justamente sobre o que se poderia chamar a “lógica piramidal” em seu funcionamento. Se, de fato, é ainda no interior da pirâmide que o trabalho da desconstrução tem lugar (e não foi, aliás, esse trabalho, mais do que qualquer outro em nosso tempo, o que nos ensinou a desconfiar de toda declarada “ruptura”, de toda declarada “superação” do que quer que seja?), um tal trabalho não pressupõe muito menos procura promover nenhum tipo de estabilidade piramidal, seja a que um certo status quo filosófico procuraria resguardar em vista da manutenção de sua hegemonia epistemológica e institucional, seja a vislumbrada por alguma suposta tentativa de inversão hierárquica a destituir o discurso dito conceitual de sua posição hegemônica; um tal trabalho procurará revelar, na verdade, a dinâmica intrínseca à própria disputa pelo topo da hierarquia piramidal, pela hegemonia epistemológica e institucional. Não há, em suma, hierarquia piramidal sem conflito hierárquico, ainda que latente. Em vista da aparente estabilidade piramidal, a desconstrução se pergunta pela escalada da pirâmide, pelo que teria permitido, enfim, àquela configuração hierárquica que se quer fazer passar por natural instituir-se em sua pretensa naturalidade. Por mais monolítica que pareça uma pirâmide, a hierarquia piramidal tem sempre uma história, e é pela historicidade da hierarquia epistemológica que se pergunta sempre a descontrução, o acontecimento desconstrutivo confundindo-se mesmo com um tal questionamento.
A bem da verdade, não há saída simples da pirâmide: é preciso aprender a se deslocar dentro dela, deslocando-a. Não se pode, pois, simplesmente reconhecer “a igual legitimidade de funções diferentes cumpridas pelos mais diferentes discursos”, como se, por um ato de vontade filosófica, o regime moderno de hierarquização epistemológica se visse definitivamente superado: não se superam as hierarquias simplesmente ignorando sua existência, simplesmente postulando a ruptura com a “epistemologia piramidal dos tempos modernos”. E o próprio gesto de atribuir legitimidade ao que quer que seja não pareceria pressupor, ele mesmo, algum tipo de hierarquia epistemológica? (A quem cabe, afinal, legitimar as “formas de linguagem”, as “funções discursivas”, e por quê? De que instância de legitimação se trata?) Uma teoria da mímesis, qualquer que seja ela, mesmo que venha a postular um regime discursivo-epistemológico “pós-piramidal” no qual os diferentes discursos e funções discursivas conviveriam lado a lado, não pode deixar de estar submetida, ela própria, como gesto teórico, ao tipo de disputa ou de conflito hierárquico para o qual aponta a desconstrução. Isso posto, não pareceria equivocado tomar como indicador principal da contemporaneidade de uma reflexão teórica o seu maior ou menor esforço em refletir, em si mesma, suas próprias condições (conflituais) de possibilidade.
Referências
BLUMENBERG, H. “Imitação da natureza”: contribuição à pré-história da ideia do homem criador. In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 87-135.
COSTA LIMA, L. Introdução geral. In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 7-49.
SCHMITT, A. Mímesis em Aristóteles e nos comentários da Poética no Renascimento: da mudança do pensamento sobre a imitação da natureza no começo dos tempos modernos. In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 137- 189.
VERNANT, J. P. Nascimento das imagens. In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 51-86.
WELLBERY, D. O processo de dissimulação: “O silêncio das sereias”, de Kafka.
In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 191-215.
[1] Sobre o modo como a formação acadêmica e as relações intelectuais de Vernant teriam influenciado o tipo de tratamento por ele dispensado a seus objetos de investigação, confira-se a esclarecedora entrevista com o autor realizada pelo professor José Otávio Nogueira Guimarães e que se encontra no final da coletânea, na qual Vernant se manifesta sobre sua relação com três de seus colegas no Collège de France: Dumézil, Lévi-Strauss e Foucault.
Nabil Araújo – Doutorando Universidade Federal de Minas Gerais nabil.araujo@gmail.com Rua Curvelo, 58/15 – Floresta 31015-172 – Belo Horizonte – MG Brasil.