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Lições de História: caminho da ciência no longo século XIX- MALERBA (Topoi)
MALERBA, Jurandir. Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: FGV Editora, Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010. 492pp. MALERBA, Jurandir. Lições de História: da história científica à crítica da razão metódica no limiar do século XX, Rio de Janeiro: FGV Editora, Porto Alegre: EdiPUCRS, 2013. 539pp. Resenha de: FREIXO, Andre de Lemos. Legados da disciplina histórica: experiências na fronteira entre consensos e horizontes. Topoi v.16 n.31 Rio de Janeiro July./Dec. 2015.
Em Lições dos mestres, George Steiner nos apresentou um ensaio sobre relações entre mestres e discípulos, professores e alunos, todos eles “clássicos”, por assim dizer: Sócrates e Platão, Jesus e seus apóstolos, Confúcio e os budistas, Virgílio e Dante, Husserl e Heidegger, entre muitos outros. No cerne de sua reflexão está o problema da educação. E ele indaga sobre essa questão a partir do significado da ideia de “transmissão” e de para quem seria legítimo transmitir saberes, bem como sobre as relações (de continuidade e descontinuidade) entre traditio – “aquilo que se transmite” – e o que os gregos chamavam paradidomena – “aquilo que se transmite agora“.1 Em suma, o que significa passar adiante o patrimônio cultural acumulado e herdado? E como fazê-lo? Em escala mais restrita, pode-se dizer que a coleção Lições de História se coloca na esteira dessas reflexões, mesmo que não as tematize ou confronte diretamente.
A coleção tem dois volumes e foi organizada por Jurandir Malerba, titular livre de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Seguindo o modelo clássico das antologias, o resultado final é uma obra de história intelectual cujo “público-alvo” parece ser o de estudantes de história e jovens professores em busca de material de qualidade a respeito dos autores que, segundo o organizador, “deixaram um legado monumental para o pensamento moderno” (I, p. 7),2 em especial para a historiografia.
Deste modo, pode-se pensar em uma questão de educação e transmissão aqui também. Ou, pelo menos, de uma “herança” ou perspectivas nesse sentido, enfeixadas num enredo mais ou menos já conhecido: contar uma parte considerada muito importante da história da formação do campo disciplinar da história. Seja como for, ela precisa ser lida e pensada como uma história possível da história. Como uma leitura para sua formação disciplinar. O que provavelmente é realizado sob as lentes de quem se considera parte constituinte do processo. Que hoje reconhece nesses pioneiros algo do que fazemos (embora não façamos mais da mesma maneira) quando escrevemos história. Nesse sentido, digo que elas seguem um enredo “já conhecido”, ilustrando um relativo consenso.
Evidentemente, toda seleção implica o descarte de outras referências que poderiam igualmente ser consideradas (pelas mesmas razões propostas pela coleção) tão relevantes quanto as elencadas. No entanto, os autores que figuram nos volumes abarcam um recorte longo, que se estende, aproximadamente, entre 1785 até a década de 1930. Assim, cabe ressaltar o mérito em ultrapassar alguns limites do já referido acordo consensual. Isso enriquece nosso quadro não apenas de autores conhecidos (ou apresentados), mas ajuda a complexificar o entendimento, por vezes simplista, esquemático e teleológico, do processo de configuração do campo disciplinar da História, suas idas e vindas, desafios e dilemas. Traduções de textos de Voltaire, Pierre Daunou, Georg G. Gervinus, Thomas B. Macaulay, Louis Bordeau, Ernst Troeltsch, Karl Lamprecht, Wilhelm Windelband, Friedrich Meinecke, Heinrich Rickert, Benedetto Croce, Robin G. Collingwood, Charles Beard, Carl Becker, James Harvey Robinson, entre outros, ampliam o rol de referências e tradições intelectuais disponíveis aos jovens estudiosos brasileiros de História.
Eleito pela Revista Brasileira de História e Ciências Sociais o “Livro do Ano” (2011), o primeiro volume da coleção apresenta, além dos textos dos mestres modernos, introduções às obras desses autores realizadas por quinze profissionais brasileiros de latitudes geográficas bastante distintas. A introdução do volume ficou a cargo de François Dosse. Seu texto é sintético e procura dar tom e diapasão àquele conjunto de referências, que tem por objetivo (re)traçar o caminho da história oitocentista “rumo à ciência”. Caminhos bastante diferentes, como observa Malerba (I, p .8), mas que na introdução de Dosse não se evidenciam em toda sua extensão, uma vez que este prioriza as contribuições francesas para esse desenvolvimento. Os esforços para constituir disciplinarmente qualquer saber necessitam de um relativo consenso sobre quais as referências que devem figurar como incontornáveis para o desenvolvimento da “nova” disciplina. Isso não significa desconsiderar as tensões envolvidas no processo. Erudito e competente, embora por vezes excessivamente simplista, o texto de Dosse destoa um pouco da proposta mais alargada que a coleção promete, mantendo-se fiel ao consenso francês. Seu conceito de historicismo, assim, torna-se restrito, referindo-se quase exclusivamente a uma “história ligada ao particular” que teria “nascido” apenas com Wilhelm von Humboldt (I, p. 25) no seu texto “Sobre a tarefa dos historiadores” (1821).3 Além disso, como se poderá ver nos textos introdutórios assinados por Julio Bentivoglio, Sérgio da Mata, Sérgio Duarte, Arthur Alfaix Assis, entre outros, a historiografia oitocentista alemã formulou propostas inovadoras e originais, amparada em sólida erudição e profunda sensibilidade epistemológica, cujas preocupações envolviam reflexões sobre método, crítica documental, ética, valores, o papel e função social dos historiadores, a problemática da escrita histórica, entre outras. O recurso a comparações entre as historiografias francesa e alemã também figura como fator mais problemático do que propriamente problematizado por Dosse. Com algum exagero, assevera, por exemplo, que a Introduction aux études historiques (1898), de Langlois e Seignobos, seria capaz de concorrer com o Grundriss der Historik (1857-1858) de Johann Gustav Droysen (I, p. 28).4 Tratam-se de textos de naturezas muito diversas. Inclusive, o compêndio de Droysen (outro autor decisivo, porém não contemplado nesta coleção) sintetiza as reflexões de natureza teórica e metodológica que pouco se assemelham à definição das etapas da pesquisa à escrita histórica e à deontologia científica dos historiadores proposta no manual dos franceses.5 Evidentemente, não se trata de criar ou sustentar competições inócuas, mas evidenciar que a historiografia oitocentista e os historicismos foram muito mais ricos e multifacetados do que a já bastante datada dicotomia do “velho” e do “novo” permitem perceber. Na economia do texto introdutório de Dosse, portanto, o conceito de historicismo termina por funcionar como a preparação ideal para a triunfal emergência da Sociologia (durkheimiana) para colocar ordem na “casa de Clio” (I, p. 30). Não há nada de errado nisso, mas apenas conserva-se o já conhecido e tradicionalíssimo consenso historiográfico francês a este respeito.
Quanto aos textos escolhidos para tradução, o primeiro volume nos apresenta belos testemunhos de épocas passadas. Suas perspectivas e sociedades são reveladoras de muitos e distintos aspectos das relações entre tempo e história, passado e presente. Muitos dos autores podem ser caracterizados como filósofos, no sentido pleno da expressão (por sua capacidade de análise conceitual e abstrata), pois refletem sobre história a partir do que julgavam ser o seu caráter, se literatura ou ciência.
Não caberia aqui debater todas essas leituras em filigrana, a maioria delas é composta por traduções de textos inéditos em língua portuguesa. Mas são dignas de nota as palavras de Voltaire em suas meditações sobre história, ou melhor, histórias. Isso pode deixar o leitor contemporâneo relativamente surpreso diante dos muitos sentidos que ele definia o conceito de história, já grafado no singular, mas que podia ser “sagrada ou profana”, “filosófica” ou “pragmática”, com suas certezas possíveis e algumas incertezas também, de utilidades como a ilustração moral dos homens de Estado pela via da exemplaridade e da comparação entre culturas, e suas finalidades universais, assim como dotada de algumas “desvantagens” – como as histórias “satíricas”: que apesar de dever ser sempre verdadeira e nunca omitir-se, não deveria revelar aspectos particulares que afrontam ao bem maior (dos Estados), sendo portanto avessas ao espírito que defendia. O texto ajuda o leitor brasileiro a elucidar alguns pontos relativamente enigmáticos, por exemplo, da dissertação de Carl F. Ph. Von Martius, sem dúvida leitor de Voltaire, acerca do como deveria ser escrita a História do Brasil (1843). Seus comentários sobre método e estilo na escrita, uma arte rara, diziam ambos, que envolvia beleza, elaboração, eloquência, gravidade, acuidade e erudição, sempre tomando por base mestres antigos como Tito Lívio, Tácito e Políbio. No mesmo espírito universal do filósofo da história Voltaire, Pierre Daunou, catedrático de História e Moral no Collège de France, republicano francês de primeira hora (1789) e opositor ferrenho de Robespierre e do Terror, relacionava o valor da história a sua utilidade de ilustrar os homens. Em sua preleção de posse à cátedra citada (em 1819), a história e a instrução da prudência contemporânea assumem lugar central. “Cabe à história começar o que acaba o hábito dos negócios, lançar nos espíritos atentos os primeiros elementos do conhecimento dos homens e os germes dessa verdadeira sabedoria que se compõe de prudência e de probidade {…}” (I, p. 80).
As inspiradoras palavras de Lord Acton, aos “companheiros estudantes”, sobre o poder das ideias de movimento e mudança presentes na perspectiva dos historiadores modernos sobre a chave da “Lei da Estabilidade”, que compele os homens “a compartilhar da existência de sociedades mais amplas que as nossas próximas, a sermos familiares com tipos diferentes e exóticos {…}” (I, p. 265). Ou ainda as instigantes reflexões de Louis Bordeau sobre a necessidade lógico-existencial do progresso para a vida humana: a “lei de um contínuo crescimento, de um porvir sem final previsto” (I, p. 304-305). Isto é, a necessidade da história de educar, de transmitir e de estimular o desenvolvimento da capacidade de aprimoramento humana no seu processo de civilizar-se, ou seja, de aumentar sua capacidade para o bem-estar de todos. As prudentes observações de Ernst Troeltsch sobre a “crise da ciência histórica” (1922) igualmente têm interesse bastante atual. À sua época, e em sua leitura, a crise se inseria entre os muitos rescaldos dos acontecimentos da Guerra Mundial (1914-1918). Nesse sentido, o “gigantesco alimento” espiritual (cultura histórica) produzido pela ciência histórica vigorosa, organizada, especializada e profissional paulatinamente afugentava interesses mais espontâneos da juventude na qual sua geração depositava as esperanças por um futuro melhor. A ciência histórica tornou-se impessoal demais, rígida demais, curiosamente se aproximando daquilo que as ciências naturais faziam há tempos. A juventude, agora acusada de a-histórica, espantava-se diante do monumento de erudição exigido pela ciência da história. Eis o problema: “A opção pela barbárie, que para muitos hoje nos ronda como espectro ameaçador ou como salvação sedutora, é onde se instala a consequência de amplas transformações mundiais, e não a resolução de uma juventude afogada em livros” (I, p. 451). Em uma palavra, a crise dos fundamentos filosóficos gerais, das concepções dos valores históricos e dos elementos constitutivos do pensamento histórico diante dos rumos da humanidade, das necessidades da vida, dos dilemas do presente, que clamam por respostas novas. Fundamentos formulados em tempos “de paz” já não dariam mais conta de embasar uma ciência humana diante das experiências e eventos terríveis como a guerra de trincheiras, por exemplo.
Neste espírito, o segundo volume segue a forma do anterior, igualmente refletindo sobre a natureza da história. Com o texto introdutório a cargo de Allan Megill, tem-se um autor em maior sintonia com o volume que ele apresenta e com o espírito da coleção. A seleção de autores segue a mesma linha analisada anteriormente, porém, prioriza as críticas ao historicismo – ou à “razão metódica” – que emergiram num contexto em que as certezas do progresso e da civilização do mundo liberal burguês europeu do fin-de-siècle: um “em tempo de crise existencial” (II, p. 11). Megill conduz sua introdução seguindo o fio das formulações da “teoria da história”, ou de um “segundo tempo” de teóricos da história que julga decisivo para a reestruturação do lugar e do papel da história como saber científico (moderno) no mundo ocidental.
Primeiramente, cabe destacar que Megill emprega um conceito específico de teoria da história, cuja afinidade maior repousa sobre o grande projeto de Jörn Rüsen, evidentemente ao lado de outros historiadores vinculados ao que se poderia chamar de “Droysen Renaissance“. Assim, teoria da história é aqui compreendida como elaboração de uma reflexão do sujeito do conhecimento sobre si mesmo e sua operação enquanto produção de conhecimento científico. Assim, a teoria da história acontece como autorreflexão incessante do pensamento histórico: que antecede (torna possível), ultrapassa (é intersubjetivo) e, necessariamente, atravessa de uma ponta a outra o trabalho histórico.6 Em uma palavra, para Megill, teoria da história não é mero adereço (ou apêndice) ao trabalho empírico, mas o próprio âmbito reflexivo que constitui e torna exequível e reconhecível a pesquisa e a escrita como sendo históricas a partir da reflexão sobre princípios, conceitos, procedimentos, estratégias e funções daquilo que fazem os historiadores quando fazem história buscando, com isso, compreender criticamente tudo o que está envolvido em tal operação.
É neste sentido que Megill enreda os autores selecionados para o segundo volume a partir do conceito de teoria da história. Ou seja, compreender e distinguir a história de outras ciências ou saberes seria o objetivo ideal que confere coesão a esse grupo. Diante do desafio positivista de formular “a” ciência de uma vez por todas, rejeitando quaisquer outras formas de história como a-científicas, a própria exploração teórica dos projetos historiográficos tornou-se parte do fazer histórico. Nesta análise, a questão fundamental é: “Qual a natureza da disciplina histórica?” (II, p. 19-20). De muitas formas ela é atravessada por antinomias, como a diferenciação entre ciências do espírito (Geisteswissenschaften) das ciências da natureza (Naturwissenschaften). Sob essa luz pode-se entender, por exemplo, a questão do particular e do geral de W. Windelband (II, p. 152-169), K. Lamprecht (II, p. 137-146) e F. Meinecke (II, p. 263-271); a diferenciação entre ciências nomotéticas e idiográficas, presentes no idealismo neokantiano de H. Rickert (II, p. 185-199) e W. Dilthey (II, p.1 24-129); ou ainda as duas éticas de M. Weber (II, p. 226-230), a “ética de convicção” (vida pessoal) e a “ética de responsabilidade” (vida política). Essas últimas figuram como parte da solução weberiana para o crítico debate sobre qual seria o procedimento mais indicado para a produção de conhecimento sobre as coisas humanas. A aliança entre história e sociologia, ambas compreensivas, na proposta de Weber, em que a primeira estaria irremediavelmente atada aos desenvolvimentos conceituais (formulações oriundas de reflexões empíricas de um inventário das diferenças) da segunda, para pensar casos individuais de modo comparativo. Há outras alternativas, é claro.
O nome de um filósofo como Nietzsche não poderia, no entanto, ser facilmente integrado a este conjunto. E se autores como Weber, Collingwood ou Croce podem figurar ali, para Megill a presença do Solitário de Sils Maria entre os eminentes historiadores e teóricos resulta em incômodo. Os primeiros teriam conseguido, como “verdadeiros” teóricos da história, “redefinir a objetividade histórica”, de modo a preservar “sua utilidade como, no mínimo, uma ideia reguladora” (II, p.35). De modo que, se por um lado ele reconheceu o mérito de Nietzsche ter afirmado que tudo passa, “não há fatos eternos” (II, p. 18), por outro, pesa-o como um crítico assaz feroz da cultura moderna e de seu projeto crítico. Não posso deixar de notar em sua crítica o peso de seu posicionamento epistêmico (pró-objetividade, rigor e verdade). Isto é, sua artilharia se volta mais às alternativas teóricas inspiradas no pensamento de Nietzsche, como a meta-história de Hayden White, por exemplo, do que ao filólogo propriamente. Porém, não deixa de estigmatizar como o “santo padroeiro do ataque contra as noções impregnadas de progresso” (II, p. 26) como uma personalidade que “os historiadores poderiam facilmente desprezar – afinal de contas, era um extremista, um louco e um filósofo” (II, p. 27).
Ora, apesar de a coleção ser “de história, sobre historiadores e feito por historiadores”, como esclarece o organizador (I, p. 7), há também espaço para a sempre bem-vinda interdisciplinaridade. Isso prevalece no primeiro volume, com as contribuições da antropóloga Lilia Moritz Schwartz, do filósofo e educador Leandro Konder (1936-2014), da socióloga e cientista política Teresa Cristina Kirschner e da tradutora, mestre e doutora em Letras Daniela Kern. Evidentemente, os historiadores de ofício (Teresa Malatian, Julio Bentivoglio, Sérgio Campos Gonçalves, Marco Antonio Lopes, Temístocles Cezar, Helenice Rodrigues da Silva, Raimundo Barroso Cordeiro Júnior, José Carlos Reis e Sérgio da Mata, além, é claro, de Dosse e do próprio organizador da antologia) prevalecem em número e, sem dúvida, parte decisiva da atividade profissional deles envolve pesquisas sérias em história intelectual, das ideias e/ou da historiografia. O segundo volume é praticamente todo composto por contribuições introdutórias de historiadores profissionais (Cássio Fernandes, Oswaldo Giacoia Jr., José Carlos Reis, Sérgio Duarte, Carlos Oiti Berbert Jr., Sérgio da Mata, René Gertz, Pedro Caldas, Arthur A. Assis, Núncia Santoro de Constantino, Cristiano Arrais, Sérgio Campos Gonçalves, Edgar e Mauro de Decca, Carlos Aguirre Rojas, Raimundo Barroso Cordeiro Jr., além de Allan Megill e Jurandir Malerba). Talvez o recorte disciplinar privilegiado no segundo volume tenha por meta evidenciar a importância e a necessidade do campo histórico como sendo parte de um conjunto de reflexões racionais, mais e mais especializadas, de um projeto crítico do qual o “segundo tempo de teóricos da história” faz parte e ainda poderia ensinar muito, no qual a história se tornou o que de melhor poderia se esperar: uma ciência – como, ao final do volume poderá ser identificada nas palavras de Lucien Febvre (II, p. 488). Ou ainda, como sustenta Megill, que as tarefas do historiador consistiriam somente em conduzir pesquisas históricas, ensinar história e produzir relatos da história – levando em conta os dilemas e desafios da contemporaneidade. Aliás, a questão da contemporaneidade da história pode ser analisada de modo excepcional nas obras daqueles que versaram sobre a relação da história com o presente, como Benedetto Croce, Robin George Collingwood, ou ainda de autores como Charles Beard, James Harvey Robinson e Marc Bloch e Lucien Febvre.
Seria injusto destacar méritos individuais aqui, uma vez que todos os ensaios introdutórios cumprem com sua função de relacionar aspectos importantes da vida e obra do autor apresentado ao texto inédito deste que se segue, tendo os artigos sido realizados por um grupo de profissionais de reconhecida experiência e competência. Alguns desses textos são mais concisos. Outros, contudo, ultrapassam bastante as expectativas, sendo tão analíticos e pormenorizados que, por vezes, ultrapassam os limites dos textos que deveriam apresentar. É o caso, por exemplo, da introdução de “Fado e história”,7 de Nietzsche, de Oswaldo Giacoia Junior. Seu texto aprofunda passo a passo as meditações sobre a utilidade e desvantagens da história (Historie) para a Vida, escrita por Nietzsche quase vinte anos depois de “Fado e história” (1874), assim como seus desenvolvimentos em sua Genealogia da moral e Para além do bem e do mal. Mais do que isso, apresenta claramente ser um leitor de Nietzsche na esteira de Martin Heidegger, para o qual o historicismo, como perspectiva de consideração da história, perderia de vista o essencial:
{…} que o sentido histórico, é antes de tudo, o vetor que se abre no sentido da historicidade da condição humana, cuja natureza essencial se determina em relação ao tempo, à passagem do tempo, nas dimensões do passado, do presente e do futuro, e, portanto, em relação às experiências fundamentais do ser humano com a finitude, o sofrimento e a morte, cujo sentido somente se descerra no horizonte existencial do tempo. (II, p. 93)
Assim, ao terminar a leitura, não posso deixar de lamentar que a coleção se encerre apenas nestes dois volumes. Retomando um pouco a referência ao texto de George Steiner, com a qual escolhi abrir esta resenha, e a diferença entre traditio e paradidomena, é de se lamentar que tenha ficado de fora do projeto todo o debate contemporâneo (de 1945 até os dias de hoje), com autores importantes e questões decisivas da historiografia que, ainda hoje, suscitam debates. Isto renderia alguns volumes interessantíssimos e enormemente enriquecedores nos quais poderiam ser abordadas as reflexões sobre duração (Braudel); a importante História dos Conceitos (Begriffsgeschichte) e as reflexões sobre o tempo histórico (Reinhart Koselleck); a micro-história italiana (Carlo Ginzburg e Giovanni Levi); a problemática da operação historiográfica na sociologia do conhecimento histórico de Michel de Certeau; as contribuições da epistemologia histórica de Michel Foucault, que reconstrói estruturas de regimes discursivos e propõe uma arqueologia do saber (por períodos epistêmicos) na fronteira entre linguagem, economia e vida; o projeto teórico de Jörn Rüsen; as relações entre história e psicanálise (Jan Assmann e Peter Gay); entre história e trauma (Dominick LaCapra, Saul Friedlander); a retomada do debate sobre as relações entre história e literatura (Stephen Greenblatt); o debate sobre ética e poética em historiografia desde o Metahistory de Hayden White (seguido por autores tão diferentes quanto Keith Jenkins, Frank Ankersmit, Herman Paul e outros); as questões e problemas suscitados pelo linguistic turn; a viragem para o tratamento da historicidade na fenomenologia ontológica de Martin Heidegger; a filosofia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer; as reflexões de Paul Ricoeur sobre as problemáticas relações entre memória, história e esquecimento (e perdão); a defesa do niilismo (ativo) de Gianni Vattimo; as recentes e promissoras reflexões entre história e filosofia da presença (Hans Ulrich Gumbrecht e Ethan Kleinberg); o giro ético-político, o deslocamento do pensamento de matriz metafísica pela ética e pelo engajamento no mundo (Jacques Derrida); entre tantos outros autores/temas. Tais obras fariam uma enorme diferença no panorama apresentado, pois daria sequência a importantes diálogos presentes nos dois volumes que constituem a coleção.
Inclusive, o aumento exponencial de referências e debates auxiliaria a desfazer o panorama em que o formato “histórico-sociológico-científico” da história (o projeto crítico moderno) – profundamente enraizado no paradigma historicista -, apesar de toda sua autocrítica, autorreflexão e erudição, parece ainda constituir o “sentido” (ou o “fim”) de um desenvolvimento linear e progressivo da disciplina. Avanço retilíneo no qual o tempo dos historiadores (configurado em suas narrativas) se confunde com o tempo “em si” e com a própria história. Ora, está em questão aqui um desejo por transmissão; uma herança captada que se quer patrimônio. Portanto, que reflete algo para o presente. Se este é um dos caminhos possíveis, é desejável supor que outras direções possam se desenhar nos horizontes dos historiadores se e quando o esforço de investigação dos autores e tradições intelectuais, filosóficas e historiográficas for impulsionado por uma força analítica que retire seu vigor de algo além da curiosidade (genealógica), ou da propriedade, de uma “história da história” disciplinar. Exercício que, embora crítico e quase sempre muitíssimo bem feito, muitas vezes termina por restringir nossas perspectivas teóricas e historiográficas no (e ao) presente, em vez de alargá-las. A história da historiografia, hoje talvez mais do que a história intelectual e a das ideias, pode oferecer meios para abrir ainda mais o nosso campo de possibilidades.
Finalmente, a publicação da coleção evidencia o crescimento e o fortalecimento qualitativo do campo de Teoria da História e História da Historiografia nos últimos anos no Brasil. Pode-se perceber isso entre os professores convidados para ambos os volumes, muitos deles figuras de atuação e destaque no campo. Reflete-se aqui o aumento do espaço que as revistas especializadas dedicaram a esse enfoque,8 elevando o rigor analítico e de pesquisa. Isso também é mensurável nas propostas de simpósios temáticos e minicursos oferecidos nos disputadíssimos encontros nacionais e regionais da ANPUH, além de outros eventos, tanto os de caráter local quanto nacional, que se consolidam como parte permanente da agenda dos especialistas desta comunidade.9 Todo professor de história que trabalhe com história da historiografia, história intelectual, história das ideias e teoria da história, ciente de que não se tratam da mesma coisa, sabe das dificuldades de encontrar bom material sobre alguns desses “mestres” e debates do (e no) passado. Temos aqui uma contribuição valiosa à bibliografia sobre história e historiadores modernos. A coleção, sem dúvida, ajuda a dirimir algumas das muitas lacunas nesse sentido, especialmente em língua portuguesa.
Referências
ASSIS, Arthur A. What Is History For? Johann Gustav Droysen and the Functions of Historiography. Nova York: Berghahn Books, 2014. [ Links ]
CALDAS, Pedro S. Que significa pensar historicamente: uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav Droysen. Tese (Doutorado) – Departamento de História da PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2004. [ Links ]
DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. [ Links ]
MARTINS, Estevão de Rezende. Historicismo: o útil e o desagradável. In: ARAUJO, Valdei Lopes de… {et al.} (Orgs.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. [ Links ]
MATA, Sérgio da. Elogio do historicismo. In: ARAUJO, Valdei Lopes de… {et al.} (Orgs.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. [ Links ]
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos sobre história. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005, p. 59-65. [ Links ]
RÜSEN, Jörn. Razão histórica I. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2001. [ Links ]
STEINER, George. Lições dos mestres. Rio de Janeiro: Record, 2005. [ Links ]
1STEINER, George. Lições dos mestres. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 12-13.
2Para economia do texto, citarei apenas “(I, p. x)”, em referência ao primeiro volume, e “(II, p. x)” ao segundo da coleção.
3Como nos ensina Estevão Rezende Martins, o termo “historicismo” deriva de uma tradução de “segunda mão”: Historicism (no inglês) que verteu Historismus, termo inicialmente empregado por Friedrich Schlegel ainda em fins do século XVIII. Ver: MARTINS, Estevão de Rezende. Historicismo: o útil e o desagradável. In: ARAUJO, Valdei Lopes de… {et al.} (Orgs.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008, p. 15-48. Ou ainda, Sérgio da Mata, na esteira de A. Wehling, analisou que o historicismo pode também ser definido como uma atitude (espiritual) diante da realidade, da vida e da cultura, mas que emergiu entre fins do XVIII e inícios do século XIX. Pode-se dizer que nesta definição consta um pouco da visão de Herder, lamentavelmente ausente na coletânea, além, sem dúvida, das perspectivas de Ernst Troeltsch e Friedrich Meinecke. Ver: MATA, Sérgio da. Elogio do historicismo. In: ARAUJO, Valdei Lopes de… {et al.} (Orgs.). A dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna, op. cit., p. 49-62. Esses dois últimos autores (como poderá ser conferido nas suas respectivas sessões da coletânea) definiram para o impulso historicista alemão em direção à realidade, cada um a sua maneira, a dinâmica da mudança no tempo (desenvolvimento) além, é claro, do caráter irrepetível dos fenômenos humanos, como bem salientou Dosse.
4No Brasil, a obra de Droysen foi lançada sob o título Manual de teoria da história, com tradução de Sara Baldus e Júlio Bentivoglio. Este último contribuiu para a coleção, assinando pelos textos de dois autores seminais do pensamento histórico oitocentista, Leopold von Ranke e G. G. Gervinus, ambos no primeiro volume da Coleção. DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
5Sobre Droysen e o monumental projeto de sua Teoria da História (Historik), ver: CALDAS, Pedro S. Que significa pensar historicamente: uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav Droysen. Tese (Doutorado) – Departamento de História da PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2004. Ver também: ASSIS, Arthur A. What Is History For? Johann Gustav Droysen and the Functions of Historiography. Nova York: Berghahn Books, 2014.
6Para Rüsen, a teoria da história apreende os fatores determinantes do conhecimento histórico, aqueles que delimitam o campo inteiro da pesquisa histórica e da historiografia. Identificá-los todos e demonstrar sua interdependência sistemática é o que seu projeto almeja. Esse sistema é dinâmico e o autor assevera que o historiador deve saber articular tais reflexões a uma “matriz disciplinar”, que se caracteriza pelo envolvimento circular de cinco elementos fundamentais: ideias, métodos, formas, funções e interesses. Segundo ele, essa matriz é uma formulação conceitual (teórica), mas subjaz à racionalidade que ele diz estar na base de toda instituição de sentido histórico. Ver: RÜSEN, Jörn. Razão histórica I. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2001.
7A tradução do alemão aqui é inédita, embora este texto não seja inteiramente desconhecido do público brasileiro. Foi traduzido, a partir da versão espanhola, como “Fatum e história” In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos sobre história. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005, p. 59-65.
8O Brasil hoje conta com a História da Historiografia, revista Qualis A1 (de excelência, segundo a Capes) exclusivamente dedicada aos grandes temas e subtemas da Teoria da História e da História da Historiografia.
9Entre outros, pode-se destacar também o Simpósio Brasileiro de História da Historiografia (SNHH), realizado anualmente na cidade de Mariana (MG) desde 2006 pelo Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade baseado no Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto (NEHM/ICHS/UFOP), e berço fundador da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH), em 2009.
Andre de Lemos Freixo – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Ouro Preto, MG, Brasil. E-mail: andredelemos@gmail.com.
Nobrezas do novo mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII – RAMINELLI (Tempo)
RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do novo mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 200pp. Resenha de: FURTADO, Júnia Ferreira. A nobreza em movimento. Tempo v.21 no.38 Niterói jul./dez. 2015.
Em 1982, Desclassificados do Ouro, de Laura de Mello e Souza, renovou os estudos sobre a colônia ao trazer, para a cena histórica, “a pobreza mineira no século XVIII”, com seus marginalizados sociais, que surgiam na esteira do processo de centralização do estado moderno (Souza, 1982). Se a década de 1980 se caracterizou, no Brasil, pelo alargamento do campo histórico de análise, para incluir esses grupos “de baixo”, as camadas populares,2 o século XXI, na vertente oposta, assistiu ao renascimento do interesse pelo estudo das elites,3 nesse caso centrando-se no estudo da nobreza que emerge no contexto do período colonial. Esse movimento nasceu conjuntamente com um diálogo mais estreito que os historiadores brasileiros passaram a encetar com a historiografia portuguesa, destacando-se, nesta última, os estudos de António Manuel Hespanha (1997;2007), Nuno Gonçalo Monteiro (1993;2003), Mafalda Soares da Cunha (1990;2000), Diogo Ramada Curto (1988), Fernanda Olival (2001) e Pedro Cardim (1998),4 entre outros, que, então,se debruçavam sobre as elites, a aristocracia e a nobreza portuguesas,em um contexto de Antigo Regime.
Arriscaria apontar que, nessa vertente, no Brasil, o despertar pelo tema das formas, dos critérios e dos dilemas que as elites do Novo Mundo encontraram para se inserir no seio da nobreza lusitana foi inaugurado com o livro de Evaldo Cabral de Mello, O Nome e o Sangue (1989),5 no qual o historiador pernambucano “conta a história de uma manipulação genealógica destinada a esconder, no Pernambuco da segunda metade do século XVII e ao longo do século XVIII, o costado sefardita de uma importante família local” (Mello, 1989, p.11). Esse estudo se centra “num momento específico da vida de Filipe Pais Barreto, descendente de importante família da oligarquia açucareira de Pernambuco, que, em 1700, recebeu do rei de Portugal a honra de ostentar o título de cavaleiro da Ordem de Cristo” e que esperava, com tal mercê, assegurar “doravante o destino que lhe era reservado pelo nascimento: ‘viver na nobreza, servindo-se de bestas e criados’, como era o costume no nordeste açucareiro entre a elite da terra – os senhores de engenho e seus descendentes”, imitando a nobreza reinol (Furtado, 2008, p.58-61). A partir desse caso, o autor analisa “o conceito de nobreza, a hierarquia e os privilégios de sangue [que] faziam com que a linhagem e a genealogia ocupassem papéis importantes na manutenção e na transmissão do status quo” (Mello, 1989, p.67).
Entre esse livro de Cabral de Mello, hoje um clássico, e o recente de Ronald Raminelli, passaram-se pouco mais de 25 anos. Esse último estudo revela que foi tempo mais do que suficiente para aprofundar e refinaras análises sobre o que configurava ser nobre no Brasil colonial. A conjugação entre fontes (muitas inéditas ou pouco ou nada trabalhadas) e a extensa bibliografia sobre a nobreza no espaço ibérico, isto é, Portugal, Espanha e América luso-hispânica, de que este autor pôde se beneficiar permitem a produção de um estudo instigante sobre o tema, propondo,em muitos aspectos, interpretações inéditas e inovadoras, que revelam um pesquisador maduro e afinado com as novas metodologias do trabalho histórico.
Em primeiro lugar, é imperativo voltar a esse ponto para chamara atenção para a massiva variedade de livros, capítulos de livros e artigos com que Raminelli dialoga para embasar muitas das assertivas que faz ou que, por vezes, são alvo de sua crítica. Ademais, essa bibliografia torna-se essencial para que se possa estabelecer uma comparação com o mundo espanhol e, dessa maneira, aproximar ou identificar diferenças entre o que acontece nos diversos espaços dominados pelas duas coroas ibéricas, no além e no aquém mar. Essa se constitui uma das grandes virtudes e inovações desse estudo, o que requer erudição e contínua atualização bibliográfica, permitindo que a análise não se atenha apenas ao mundo luso-brasileiro, como acontece, de modo mais recorrente, com a maioria dos estudos
O pleno domínio e a ampla capacidade de estabelecer um diálogo crítico com a bibliografia atingem o ponto máximo no último capítulo, “Cores, raças e qualidades”, no qual são abordadas as questões do racismo e do preconceito racial, tornando-se esse texto, doravante, de leitura incontornável para os futuros estudos sobre esses temas. Nesse caso, não se trata apenas da historiografia luso-espanhola, mas também de autores franceses, italianos, ingleses, alemães e norte-americanos, que abordam essa questão para diversos espaços no contexto da expansão colonial europeia moderna.
No entanto, a armadilha nesse tipo de opção metodológica é que, como esse diálogo não se estrutura também a partir de pesquisas de fontes primárias, que não puderam ser realizadas para o lado espanhol, em razão da tarefa hercúlea que tal procedimento exigiria, muitas vezes, o leitor não consegue estabelecer uma relação crítica com a bibliografia hispânica selecionada. Um exemplo limite dessa dificuldade aparece quando o autor aponta, em nota (Raminelli, 2015, p.112), que um artigo de Langue (1999) contraria a afirmação de Lira Montt (1981) de que “na Espanha os nobres titulados gozavam de senhorios territoriais e vassalos perpétuos, benefícios inexistentes nas Índias”. Em que se baseia essa discordância? Novas pesquisas documentais? Quais? Que elementos permitem que eu, leitor,me posicione a favor de uma ou de outra interpretação e adote a mesma posição de Raminelli em favor da interpretação de Lira Montt?
Ainda que o centro da análise, como se explicita no subtítulo do livro, situe-se entre os séculos XVII e XVIII, o autor também aborda, quando se faz necessário, o XVI e o alvorecer do XIX, de modo a apreender as transformações ocorridas, muitas delas perceptíveis apenas na longa duração. O objetivo é compreender o que se define como nobreza, como se constitui, se estrutura e se identifica; os mecanismos de acesso, comparando tanto o espaço reinol como o americano, no que diz respeito aos impérios português e o espanhol, este tomado como base de comparação.
Nesse aspecto, o conceito adotado sobre o que é ser nobre é o institucional, que divide a nobreza entre a de linhagem e a de serviço, essa última alcançada por concessão régia. Nas sociedades de Antigo Regime, como era o caso de Portugal na era moderna, o lugar que cada indivíduo ocupava se baseava no nascimento. Era um mundo no qual a ordem social hierarquizada distinguia uns em detrimento de outros, buscando demarcar e separar, nitidamente, os estratos mais altos – aqueles a quem se conferia nobreza – dos mais baixos ou vis – os plebeus. Ser nobre, portanto, era estar entre os principais, a diferença constituindo o cerne desse mundo.
No capítulo um, o que se busca compreender é o que se configura como nobreza, investigando as normas legais exaradas para tanto. Por outro lado, o que se coloca como o grande tema de investigação, questão que perpassa os capítulos dois a cinco, é a possibilidade de ascensão de indivíduos cuja nobreza é alcançada não pelo nascimento, mas pela riqueza ou pelos préstimos/serviços realizados em prol do império e quem atinge, de maneira adquirida, tais patamares nas duas regiões – Ibéria e América hispânica. É essa nobreza de mérito – concedida pelo rei aos súditos da América portuguesa – e, na sua contramão, a quem tal honra não era concedida, ainda que seu pretendente preenchesse os critérios normativos para alcançá-la, que interessam, de modo central, ao autor. A ampla pesquisa de fontes busca encontrar as respostas para essas questões e para os paradoxos resultantes dessas possibilidades ou impossibilidades de alcançar nobreza em terras do além-mar. Quem se beneficiava desse mecanismo e, no sentido oposto, quem era excluído? Como a norma respondeu a essa demanda de ascensão nobiliárquica de estratos não nobres? Para responder a essas e a outras tantas perguntas, Raminelli, de maneira inovadora, associa o interesse que a historiografia devotou, tanto aos marginalizados quanto às elites (sem, no entanto, utilizar esse termo como conceito),5 porque, afinal, grande parte dos pretendentes era formada por negros, índios e mulatos, ou seja, constituíam o outro em relação à elite branca europeia.
Para compreender o processo ou as dificuldades de nobilitação, mas recusando o conceito de nobreza da terra muito em voga em trabalhos mais recentes (Fragoso et al, 2001; Fragoso, 2003, p.11-36), o livro se debruça sobre os diferentes mecanismos utilizados por esses estratos em ascensão, como os serviços camarários, realizados pelos homens bons, (capítulo dois), a riqueza e o mérito (capítulo três) e as guerras brasílicas, nas quais se alistaram índios e negros (capítulos quatro e cinco).
A parte mais instigante se localiza exatamente no capítulo quatro, quando Raminelli examina as tentativas de nobilitação da nobreza indígena, as maneiras como eles “se inseriam na hierarquia social do Antigo Regime” e, finalmente, questiona “se as insígnias das Ordens Militares portuguesas teriam o mesmo significado para portugueses e índios” (Raminelli, 2015, p.135). Nessa parte, o autor manipula, com maestria, as fontes primárias – os pedidos de mercês indígenas protocolados em troca dos serviços militares realizados nas guerras contra os invasores estrangeiros, holandeses e franceses – para o Brasil. Ainda que afirme (Raminelli, 2015, p.136) que “para [esses] questionamentos ainda não obtive dados conclusivos”, o autor propõe uma conclusão totalmente inovadora. Segundo ele,como “tradicionalmente entre os tupis, as lideranças eram efêmeras, [e] raramente o poder de comando passava ao filho”, o recurso aos mecanismos de nobilitação dos portugueses foi “tática indispensável para perpetuar a liderança, o controle político de [uma] família [ao longo de diversas gerações] sobre as comunidades indígenas” (Raminelli, 2015, p.172).
Tal parece não ter ocorrido na América espanhola, onde, de um lado, à coroa nunca interessou conceder às lideranças indígenas tais títulos (Raminelli, 2015, p.18), visto que o que se buscava era, efetivamente, solapar-lhes o poder e, de outro, aos líderes nativos não era necessário recorrer às formas de nobilitação europeia para conservarem seu poder sobre suas comunidades, pois esse já estava consolidado no seio das estruturas políticas pré-hispânicas. Ora, para mim, essa distinção mereceria, por si só, um livro em separado, no qual o método comparativo buscasse, a partir de pesquisa de fontes também para a área espanhola, confirmar, ou não, as diferenças entre as estratégias indígenas no que concerne à nobilitação das lideranças nativas e as reações a elas por parte das duas coroas hispânicas.
Ao trazer para a cena as populações negras, índias e mestiças, tornou-se imperativo para o autor discutir os impasses e os paradoxos decorrentes do fato de que populações com outro sangue, modo de vida, moral e religião buscassem nobreza, ameaçando os critérios pelos quais os nobres reinóis, de ascendência branca, europeia e cristã, até então se constituíam e se distinguiam dos estratos sociais inferiores. No capítulo seis, que fecha o livro, Raminelli reflete sobre a viabilidade, ou não, do uso dos conceitos de raça e de racismo para analisar os mecanismos para a exclusão de parte das populações do novo mundo que buscava lugar no seio da nobreza imperial. O autor não cai na armadilha do uso a-histórico desses dois conceitos, visto que “são baseados no determinismo biológico oitocentista”, ou na sua recusa total, já que “não são adequados para pensar as relações sociais entre os séculos XVII e XVIII” (Raminelli, 2015, p.209). Nesse sentido,defende que, se o critério de raça, tal como seria empregado mais tarde, não era o acionado para impedir que essas populações (incluindo os cristãos-novos) tivessem acesso à nobreza, o conceito de racismo seria operacionalmente útil para compreender esses processos de exclusão.
Para tanto, discutindo com rara perspicácia com a historiografia mais recente, inclusive a brasileira,6 Raminelli resgata os termos que emergem da documentação de época, como o sangue, a qualidade, a cor e a condição (nesse caso a escrava), por meio dos quais se constituíam os impedimentos para se enobrecer. Dessa maneira, transforma a linguagem coeva em conceitos, o que lhe permite historicizar os mecanismos sociais de exclusão das populações nativas (índios, negros e mulatos) do Novo Mundo. Tal procedimento é próprio de pesquisador da melhor estirpe, afinado com os métodos mais recentes de análise historiográfica.
Referências
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2No que diz respeito a essa renovação, no panorama internacional, cabe destacar, entre os inúmeros estudos que exerceram impacto no Brasil, o de Hill (1987).
3Entre os trabalhos precursores dessa vertente, destaco Burke (1991) e Goff (1991).
4Ver também Cardim; Monteiro e Cunha (2005).
5Análise sobre o livro pode ser vista em Furtado (2008, p.57-85).
6Nesse sentido, como alerta, no Prefácio, Ronaldo Vainfas, “o livro se afasta da tendência da historiografia brasileira, mais ou menos recente, de ‘sociologizar’ o conceito de nobreza, assimilando-o ao conceito de elite”. In: Raminelli (2015, p.11).
7Como Lara (2007); Viana (2007); Krause (2012). Uma ausência que merece destaque é Rodrigues (2011).
Júnia Ferreira Furtado – Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte (MG) – Brasil. E-mail: juniaf@fafich.ufmg.br.
Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros – ENDERS (VH)
ENDERS, Armelle. Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. 392 p. CEZAR, Temístocles. Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 55, Jan./Abr. 2015.
Imaginemos Plutarco no Brasil. Parece ser mais fácil imaginar um Plutarco Brasileiro. Foi o que fez João Manuel Pereira da Silva em 1847 ao publicar O Plutarco brasileiro, pela editora Laemmert. Armelle Enders imaginou as duas situações: em 2000, a historiadora francesa publica, na revista Estudos Históricos, o artigo ‘O Plutarco Brasileiro’. A produção dos Vultos Nacionais no Segundo Reinado (http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2114); em 2012, a versão de sua tese de habilitação, defendida na Sorbonne em 2004, intitulada Plutarque au Brésil: passé, héros et politique, 1822-1922 – pela editora Les Indes Savantes, de Paris – que aparece agora em português sob o título Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Plutarco é uma espécie de fantasma que atravessa constantemente as paredes deste panteão de papel que os letrados brasileiros esforçaram-se por erigir. Nesse sentido, tanto para Pereira da Silva quanto para Enders, Plutarco é, simultaneamente, um instrumento heurístico e uma hipótese de trabalho.
Quem foram, quem são, nossos grandes homens, nossos homens ilustres, nossos heróis? Tiradentes, José Bonifácio ou Getúlio Vargas encarnam no plano nacional este papel de varão de Plutarco. A colocação da questão nestes termos não dissimula um problema de ordem historiográfica. Afinal, são personagens cuja importância simbólica depende da conjuntura política e do regime de historicidade no qual adquirem fisionomia. É nas disputas pela memória entre a independência de 1822 e sua comemoração um século depois que Enders analisa tais tensões. Nessa duração média seria instalada uma espécie de fábrica historiográfica e pedagógica, na qual heróis ganhariam vida – passada e/ou presente.
Em sete equilibrados capítulos, uma introdução densa e uma conclusão que abre novas possibilidades de pesquisa, Enders apresenta um século que não cabe em si. Ele é pleno de projetos, alguns abortados em sua gênese, outros abandonados pelo caminho, outros ainda que permanecem e se convertem em políticas e em instituições públicas, cujos efeitos lançam-se como luz ou sombra para a ulterior história do Brasil.
No primeiro capítulo, “Os Tácitos no senado”, nota-se também a presença dos antigos como instrumento de inteligibilidade tanto para a fonte que dele se serve quanto para a análise de Enders. Assim, Joaquim Manuel de Macedo explica que estes Tácitos não escreveram a história da independência posto que estavam ocupados fazendo a independência. Pedro I e José Bonifácio são figuras incontornáveis desta conjuntura.
De Pedro II à Republica ou “o império da história”, ou de “Como se deve escrever a história do Brasil”, ao “Plutarco Brasileiro” e à “Fábrica de benfeitores” no qual é ressaltado a atuação dos positivistas, respectivamente, segundo, terceiro, quarto e quinto capítulos, Enders examina com detalhes os fundamentos institucionais e os enunciadores desta prática discursiva responsável pela fabricação dos heróis nacionais.
“Porque me ufano do meu país”, título do polêmico livro de Afonso Celso de 1900, é apropriado por Enders no sexto capítulo com o objetivo de investigar a releitura do passado (por exemplo, a figura de Tiradentes, o centenário de 1808 ou a reavaliação dos bandeirantes) e do presente (por exemplo, Santos Dumond, o Barão do Rio Branco) empreendida pelos homens da Primeira República.
O sétimo capitulo é dedicado à resposta a seguinte questão: “1822-1922: um século para nada?”. 1922 teria sido um ano difícil para a sociedade brasileira. Para o povo como sempre, mas também para os intelectuais, artistas e políticos. Enders fala mesmo de um clima indutor de certa “introspecção nacional”. Uma efeméride “eloquente”, muitas obras, certa tristeza no ar e a abertura para um futuro que logo escapará de seus contemporâneos.
Notável exercício de história da historiografia, o erudito trabalho de Armelle Enders torna-se imediatamente uma referência incontornável para os estudiosos do período e do tema. Ressalta-se a competente tradução de Luiz Alberto Monjardim de Calazans Barradas e a edição cuidadosa da Editora FGV. A historiadora é uma arguta observadora da realidade nacional (eu pensei em escrever da “nossa” realidade, como se Enders fosse uma pesquisadora de “olhar distante”, mas seria injusto pois Armelle não é uma brasilianista, ela não escreve desde um ponto de vista francês ou europeu, mas desde uma compreensão inequívoca da história brasileira em a que a cultura historiográfica não se divide em nós e eles). Não é sem razão que na conclusão não lhe escapam as figurações modernas dos heróis nacionais, entre os quais Zumbi, elevado a tal condição por pressões dos movimentos sociais acatadas pelo então presidente da República, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que inclusive decreta o 20 de novembro como “Dia da consciência negra”.
Porém, gostaria de concluir esta pequena resenha, retomando o “modelo” Plutarco. Um herói de verdade deveria subjugar as injunções entre o político e o histórico, deveria estar acima das querelas, deveria aliar mito e história. Ele não poderia mais ser um homem do século XIX, nem do período colonial, mas do final do século XX. Alguém que conseguisse despertar paixões coletivas. Logo, o “herói completo” não poderia mais ser um mártir social ou um homem político, mas uma celebridade, um star, que, se possível, ultrapassasse as fronteiras da nação. Ayrton Senna seria, para Enders, um bom exemplo deste tipo-ideal de herói requerido pelo mundo contemporâneo. Portador de traços aristocráticos, característica dos heróis anteriores ao Estado-Nação, mestre na arte de pilotar carros de corrida sofisticados, esporte ligado ao que há de mais moderno na atualidade, o habilidoso piloto, em cujo capacete exibia para quem quisesse ver as “cores do Brasil”, tinha por seu país um “patriotismo quase místico” (p. 12) que arrebatava multidões. Para completar morreu cedo, fazendo o que mais sabia e o que mais gostava. Como Aquiles.
A fábrica de homens ilustres, de grandes homens, de celebridades e de heróis do momento, ora comemorados, ora esquecidos, é, como demonstra Enders, uma instância intelectual da sociedade capaz de gerar e de apagar memória(s) e de constituir e de desestabilizar identidade(s).
Temístocles Cezar – Departamento de História Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Bento Gonçalves, 9.500. Prédio 43.311, s. 116 Porto Alegre, RS, 91.509-900, Brasil t.cezar@ufrgs.br.
Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil – FREIRE (EH)
FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2009, 264 p. il. Resenha: COSTA, Suely. O paradoxo da diferença: “verdadeiro, falso e fictício”. Estudos Históricos, v.23 n.45 Rio de Janeiro Jan./June 2010.
Originalmente tese de doutorado, premiada em 2008, Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil, ao tratar do ideário da “maternidade científica” nas duas primeiras décadas do século XX, traz importantes contribuições para se pensar os movimentos de mulheres no país.
Duas revistas femininas ilustradas, consultadas ao longo dos anos 20 – Revista Feminina , que circulou entre 1914 e 1936, e Vida doméstica , entre 1920 e 1963 – e outras três publicações constituem suas fontes principais de pesquisa. A autora tem como objetivo central “analisar como se conformou a afinidade eletiva entre mulheres das classes média e alta urbanas e os médicos dedicados à higiene infantil, em torno da valorização da maternidade”. Para ela, teria resultado daí uma “relação de aliança e parceria de consequencias transformadoras para ambos”. Isso e muito mais expõe o projeto de modernidade da Primeira República. Ilustrações, bibliografia de apoio e encadeamento de tópicos compõem um envolvente estilo narrativo.
Inicio a leitura valendo-me da última frase de Angela de Castro Gomes, autora do Prefácio: “(…) é bom dizer que uma mulher, mãe e médica não poderia ter se saído melhor dessa empreitada desafiadora”. Ao dedicar o livro aos filhos e filhas e, em especial, à neta, a autora remete-me à saga feminina “da dor e da doçura de ser mãe” associada, no caso, ao seu ofício de cuidados de crianças e mulheres. Sua trajetória pessoal e acadêmica leva-a a transitar pela matéria política de que se ocupa: examina o passado no futuro da uma experiência por ela vivido no presente. Nada mais importante para o conhecimento histórico que produz!
Transporto-me para a “semântica dos tempos históricos”, no sentido empregado por Koselleck.1 Lembro-me, ainda, de Carlo Ginzburg, ao advertir seus leitores para aquilo que une os capítulos de um de seus textos e que constrói “a relação entre o fio – o fio do relato que ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade – e os rastros”, no desafio de distinguir o que pode ser “verdadeiro, falso e fictício”.2 Maria Martha situa dilemas cruciais do fazer historiográfico, dispensando usuais alongamentos de debates sobre eles; nada disso lhe faz falta. As práticas e representações que examina, próprias a esse maternalismo, entre tantos, estão entre nós e na vida da autora, atualizadas sob circunstâncias próprias à história contemporânea das mulheres e da medicina, algo que ela conhece por dentro e que expressa com notável sensibilidade.
À “moda “koselleckiana”, ocupa-se da história de conceitos, daqueles que pensa como expressões dos feminismos desse tempo. Faz isso num momento de aquecidas polêmicas conceituais sobre a história das mulheres. Daí a oportuna recomendação de leitura na “orelha” do livro, expressa por Luiz Otávio Ferreira para “os que se interessam em entender o significado moderno da maternidade e sua importância na configuração atual das relações de gênero”. Em conjunto, o livro emite um instigante chamado para crítica e atualizações conceituais da história das mulheres no Brasil, presentes em linhas de pesquisa que, desde o início dos anos 90, entre muitas, dedicam-se à tarefa de distinguir, com liberdade, o verdadeiro, o falso e o fictício nessa história. Aquelas sobre maternalismos, como a de Maria Martha, sob preciso foco, são partes dessa tarefa.
Lido seu primeiro tópico, “As múltiplas faces da mulher moderna”, avalio o quanto há de fictício nas referências analíticas que, mesmo hoje, conceituam essa conjuntura como parte de uma “república velha”. Depois, outra contribuição preciosa decorre da busca da produção de sentidos dos discursos que examina. Sintetiza-os em dois conceitos associados entre si, lidos nas fontes selecionadas: um, o de “feminismo liberal”, referido às práticas sociais, e outro, o de “maternalismo científico”, que remete às representações sobre ser mulher e mãe, nessa experiência política partilhada por mulheres e médicos. Não perde de vista, porém, variações e contradições entre esses sujeitos. Recorta a matéria e a situa no campo político, numa fértil aproximação com a história dos/das intelectuais. O clima em que essas práticas e esse discurso se propagam e se efetivam ilumina a dimensão política de um candente problema a solucionar: o de conciliar atividades das mulheres fora de casa “sem ameaçar sua mais ‘nobre’ missão – a maternidade”, quando os chamados para o exercício de funções associadas a um projeto de modernidade da república se intensificam. Trata-se de uma regularidade de longa duração da história das mulheres.
No discurso maternalista em foco, a autora distingue duas mensagens principais, largamente disseminadas pelos periódicos femininos e publicações médicas: as que afirmam a oposição entre o antigo e o novo e entre o tradicional e o moderno, sem deixar de reforçar, por essa via, uma “tradição de família, de infância e de mãe ‘moderna'”, elemento fundamental para “a construção de um ideal de nação orientada pelos princípios políticos do ‘progresso'” na Primeira República. Maria Martha chega a uma síntese sobre a produção de sentidos dessas mensagens, associadas ao projeto de modernidade em causa: eles são construídos na oposição do antigo/ novo e na de tradição/modernidade. Isso permite imaginar sentimentos (e ressentimentos) contraditórios na formação da energia destinada a processar rupturas de vínculos com o passado e a impulsionar prescrições e ações desse maternalismo científico em direção ao futuro.3 Angela de Castro Gomes vê esse movimento como a projeção de um dado “horizonte de expectativas”, como diria Koselleck. De fato, o projeto republicano de modernidade é pensado como modo de superação do “quadro sombrio” do mundo pós-escravista, de muitas precariedades a eliminar e de olho no futuro. Volta-se, enfaticamente para os cuidados da criança, ali onde a mortalidade infantil, ontem, como hoje, persiste como indicador de ameaça às expectativas de modernidade.
“Maternidade: aliança entre mulheres e médicos”, segundo tópico do livro, examina o processo de aprendizado que a aliança de mulheres e médicos produz. Formas de intervenção social, em conjunto, podem ser percebidas como mais uma pedagogia feminista, entre tantas, também verificáveis em feminismos de outras conjunturas.4 Nessa, modos de aproximação e de domínio de técnicas propagadas e ensinadas tornam, agora, o “ser mãe” uma “profissão sanitária”. No exame da aliança de mulheres e médicos, em sintonia com o desejado projeto de modernidade da Primeira República, uma vez mais, Maria Martha converge para a crítica de análises assentadas na resistente matriz de dominação/subordinação de mulheres por homens. Cita a historiadora Rima Aple, no estudo sobre maternidade científica nos Estados Unidos para destacar aquilo a observar no exame dessa experiência: “a complexa interação entre ciência, medicina, economia e política” e, ainda, o questionamento de “uma corrente de pesquisas históricas que magnificam o potencial normatizador das instituições médicas e do Estado e reduzem as mulheres à posição passiva e/ou submissa(…)”. O livro se alinha a essa perspectiva.
Os dois tópicos seguintes aprofundam a análise da produção de sentidos de diferentes práticas de cuidados que organizam a maternidade científica, nessa aliança de mulheres, mães e médicos. Em “Higienizando corpos, mentes e lares”, analisa as prescrições que se estendem dos corpos para as mentes das crianças, essas nunca antes registradas. Em “Robustos e sadios: a alimentação dos filhos”, examina os discursos dos puericultores, que também experimentavam, então, uma valorização crescente. Versam eles sobre muitas coisas referidas aos cuidados e fazem prescrições de certo e errado, seja na “arte e técnica da amamentação”, seja no uso de diversos produtos industriais, centrais para as mudanças de hábitos de longa duração histórica. Estabelecem, ainda, novas referências de controle da saúde, como as de valorização do peso, tornado um indicador confiável de saúde, e as da escolha de alimentos associados ao crescimento. Incidem sobre práticas de cuidados de mulheres e crianças e valorizam a maternidade nessas formas de intervenção social. Prescrições, muitas prescrições ganham um papel central no modo de pensar rumos civilizadores do projeto modernizador em tela. Como conclusão, o tópico “Do instinto maternal à maternidade cientifica” assinala que os princípios científicos da puericultura ressignificam os cuidados com corpos e mentes, por artes das mulheres em aliança com os médicos e, assim, tornam-se parte da modernidade em construção: a maternidade assume aí sua função social e política.
A leitura que fiz do livro privilegia preocupações teóricas sobre a história das mulheres às quais também me associo. Por isso mesmo, situo as contribuições da autora ao lado de tantas outras que se inclinam em direção às culturas políticas e extraem daí referências novas, num esforço de revisão de muitas coisas ditas e escritas sobre as mulheres e que tornam falsa a dura oposição masculino X feminino, quando engendra a inexorável posição de passividade das mulheres. Ouso, assim, situar em muitas notas, contrariando o estilo apropriado a uma resenha, a relevância do livro num conjunto de idéias-chaves a que se associa. O conceito de “feminismo liberal” confirma, por exemplo, entre nós, o de “paradoxo da diferença”, estudado por Joan W. Scott. No livro – original e simbolicamente intitulado Only Paradoxes to Offer: French feminists and the rights of man, e traduzido, entre nós, como A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem –, Scott, com a visão alargada por pesquisas de muitas experiências feministas, sublinha: as mulheres têm “apenas paradoxos para oferecer”, uma vez que a “necessidade de a um só tempo aceitar e recusar a ‘diferença sexual’ permeou o feminismo como movimento político por toda a sua longa história”.5
Essa regularidade histórica está nos maternalismos, em muitas evidências. O maternalismo científico, chave para abrir significados ocultos de vários feminismos do passado e em marcha, engendra para as mulheres, sob muitas contradições, ganhos políticos (e também perdas). Quando emerge, nos “efervescentes anos de 1920, mulheres das classes médias e alta urbanas estavam sendo convocadas para assumir múltiplos e diversificados papéis” e respondem ao chamado, afirmando-se como mães, cunhadas com essa marca, de muitos significados políticos. Isso redefine, mostra a autora, a inexorável matriz de dominação/subordinação de mulheres aos homens. As mulheres, sob intensa valorização dos médicos, movem-se, afirmam-se como mulheres e mães e, asseguram-se, por ideais e ações com eles compartilhados, de incessantes deslocamentos para funções públicas, até então por elas pouco frequentadas. Sensibilidades femininas serão tocadas por essa valorização e, por isso, as mulheres são estimuladas a agir e agem. As fontes selecionadas por Maria Martha são mais que generosas em expor o paradoxo da diferença. Sem perder a condição de mães, mulheres chegam a novos lugares e, neles, permanecem, ainda que instadas a conservar “a fina graça feminina da carícia, a brandura do consolo e o gesto sagrado da maternidade”, segundo registro do texto “Eva de hoje” (Revista Feminina, n.166, mar 1928).
Embora vivida desigualmente por mulheres muito diferentes entre si, a maternidade científica assegura ganhos no âmbito político quando transforma práticas da esfera privada numa questão pública, valorizadas como necessárias ao projeto de modernidade desses tempos. O paradoxo da diferença reside nesse feminismo que afirma o “instinto maternal” como algo “natural” e, ao mesmo tempo, confere à maternidade valor político, se exercido cientificamente; entenda-se isso, como sinônimo de moderno, sublinha a autora. A noção de patriarcado, aqui e ali, se imiscui em alguns registros do texto, mas seu emprego, nem prejudica, nem oculta nada do que interessa à história em foco. Isso porque, quando empregada, é sinônimo de “sociedade tradicional”. Esse paradigma, hoje, sob muitas críticas, tem servido, em geral, a uma renitente afirmação de noções que generalizam a predestinação e a prevalência da “dominação masculina” na história de mulheres.6 A despeito desse uso conceitual, a autora, de olho nas fontes examinadas e com base em sua própria experiência, inova ao distinguir essas mulheres como partícipes de tarefas políticas de seu tempo. Portanto, elas não são, nunca, passivas, e isso as define como sujeitos da história. Como tal, agem e não apenas reagem, lembrando-me algumas referências de Sideny Chalhoub sobre os escravos brasileiros.
O paradoxo da diferença, entre os séculos XIX e XX, estará na ideologia das esferas separadas e formulará políticas diferencialistas, “próprias” às mulheres, esmaecendo as de cunho universalista e, portanto, igualitário. Nesse mesmo tempo, são muitos os sinais da marcha que sublinha o ideal da equidade em geral e dos gêneros, em especial, essa última, hoje, mais viva que nunca entre nós.7 Nem sempre, porém, isso afeta as tradições, como no caso da usual transferência de encargos da maternidade por parte de mulheres das camadas médias e altas para outras, da família e de grupos de convívio e de mesma posição social, ou para mulheres pobres, criadas e/ou empregadas, um legado do escravismo.8 Sob as referências do feminismo liberal, é de se admitir, todavia, que mesmo essas antigas práticas sociais ganhem novos sentidos, considerando, sobretudo, o recrudescimento e mudanças de práticas filantrópicas, operadas sob condução de mulheres dessas mesmas camadas sociais médias e altas, como expressão, diria eu, de novos processos de tomada consciência. Assim, sob o paradoxo da diferença, há muito por conhecer das relações sociais presentes na montagem das democracias liberais contemporâneas, considerando o crescente “peso político” das mulheres na esfera política e na formulação de discursos e práticas associados a concepções de cidadania.
As observações de Maria Martha confirmam, aqui, o conceito de Michelle Perrot sobre o processo de tomada da “consciência de gênero”, gestado nas “saídas” das mulheres para o espaço público.9 “Profissões femininas” em geral, pensadas como meras extensões da maternidade, já nessa conjuntura, estarão envolvidas com iniciativas de sinal político. Educadoras sanitárias, filantropas, professoras e enfermeiras e, depois, assistentes sociais, nutricionistas e tantas mais marcam sua presença nos espaços públicos e, aí, processam mais e muitas transições. É de se destacar a fina observação da autora sobre os novos significados da filantropia. Muitas análises, quando despem as práticas filantrópicas de seus sinais políticos, os reduzem a ações mitigatórias de sofrimentos humanos de pouco alcance, daí sua representação de “tradicionais” e/ou “conservadoras”, outra ficção. Mostra, a autora, porém, que essas ações produzem, em larga escala, muitos trânsitos de experiências (e consciência) que, logo à frente, estarão imersas em lutas voltadas para o alcance de direitos de cidadania. Para isso, as contribuições de Laqueur sobre as tradições do discurso humanitário do século XVIII – cabe associá-lo aos da filantropia – extraídas de textos literários e outros da medicina legal e da pesquisa social, as releva como parte da experiência humana que “desnaturaliza” os sofrimentos humanos e prescreve todo um conjunto de ações cujos sentidos são os de atenuar e mesmo de eliminar esses sofrimentos.10 Elas estão nas leis de proteção social no Brasil, sobretudo ao trabalho, antes e já nos anos 30.
Mais circunstâncias favorecem os deslocamentos femininos para os espaços públicos, como consumidoras em potencial de novos bens e serviços, em decorrência da marcha do processo urbano-industrial. A entrada de bens industriais no mundo doméstico e a criação e proliferação de serviços mudam ritmos e sequências de tradicionais programações do tempo feminino.11 Longas e exaustivas práticas diárias são simplificadas, gerando economias de tempo. Com isso, permitem às mulheres o exercício de atividades na esfera pública, algo próprio ao desenvolvimento das sociedades industriais. Os benefícios daí decorrentes, a autora reconhece, são desigualmente partilhados e estão em conexão com a tardia montagem dos sistemas de proteção social de iniciativa pública: do espaço privado dependem muitas ações protecionistas de crianças, velhos doentes que, mais à frente seriam reconhecidas como públicas. Também as muitas e variadas “artes de fazer” para o “bem viver” não são incorporadas de pronto, mesmo porque a monetização do meio em que circulam tantos artigos é restrita a algumas camadas sociais, observa Maria Martha.
Penso, ainda, nas transgressões à ordem médica e familiar, essas nem sempre evidentes. Chegam-me à memória as interferências da minha avó paterna, com seus muitos chás, substitutos das orientações médicas de meu pai, sempre impaciente para com elas, ainda nos anos 60 do século XX. Lembro-me, também, de resistências femininas à tecnologia e a prescrições cientificas no âmbito dos cuidados e dos fazeres femininos, lugares de sedução por reconhecimentos de prendas domésticas no século XIX, sentimentos que se estendem ao século XX. De todo o modo, o maternalismo científico segue seu curso e se transforma, descortinando mais e novas tarefas políticas, como parte da consciência possível de cada tempo, diria Goldmann.12
O livro, em seu conjunto, desmonta muito do falso e do fictício que ainda impregnam uma certa história das mulheres e contribui para que se veja “com novos olhos velhos problemas”, como diria E. P. Thompson.13 A tese fala, enfim, de cultura e de política, ou na acepção de Foucault, da biopolítica, essa que se tece no cotidiano, em processos sociais, quase sempre, imperceptíveis.14
Notas
1 Refiro-me a KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006.
2 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d’ Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras , 2007, p. 7.
3 Sobre sentimentos, ver PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades, Colóquio Nuevo Mundo, Mundos Nuevos, n. 4 – 2004, mis en ligne le 4 février 2005,référence du 8 février 2008, disponible sur: http://nuevomundo.revues.org/document229.html Ver ainda, BRESCIANI, Stella e NAXARA, Márcia. (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campina: Unicamp, 2004, p. 9-13.
4 COSTA, Suely Gomes. Culturas políticas e sensibilidades: pedagogias feministas. Rio de Janeiro, anos 1970-80. In: SOIHET, Rachel et al. Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 351-372.
5 SCOTT, Joan W. Only Paradoxes to Offer. French feminists and the rights of man. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996; _____. A cidadã paradoxal. As feministas francesas e os direitos do homem. Tradução de Élvio A. Funk. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2002, p. 26-27.
6 Ver a respeito: COSTA, Suely Gomes, Movimentos feministas, feminismos, Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004, vol. 12, n. especial, p. 23-36; RAGO, Margareth. Feminismo e subjetividade em tempos pós-modernos. In: COSTA, Claudia de L. & SCHMIDT, Simone P. Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Mulheres, 2004, p. 31-42; PISCITELLI, Adriana, Reflexões em torno do feminismo, ____ Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Mulheres, 2004, p. 43-65.
7 SCOTT, Joan W. A mulher trabalhadora. In: FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente. O século XIX. Tradução de Maria Helena da C. Coelho, Irene M. Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermina Mota. Porto: Afrontamento/ São Paulo: EBRADIL, 1994, vol. 4, p. 443-475; ______ . Parité! L’universel et la différence des sexes. Traduit de l’anglais par Claude Rivière. Paris: Albin Michel, 2005.
8 COSTA, Suely Gomes. Proteção social, maternidade transferida e lutas pela saúde reprodutiva. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, vol. 10, n. 2/2002, p. 301-324.
9 PERROT, Michelle. Sair. In: FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente. O século XIX. Trad. de Maria Helena da C. Coelho, Irene M. Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermina Mota. Porto: Afrontamento; São Paulo: EBRADIL, 1994, vol. 4, p. 502-539.
10 LAQUEUR, Thomas Walter. Corpos, detalhes e narrativa humanitária. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 239-277.
11 COSTA, Suely Gomes. Metáforas do tempo e do espaço doméstico. Rio de Janeiro, século XIX. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1996.
12 GOLDMANN, Lucien. Importância do conceito de consciência possível para a informação. In: Colóquios filosóficos de Royamont. O conceito de informação na ciência contemporânea. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
13 Cf. DESAN, Suzanne. Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo Martins Fontes, 1992, p. 27.
14 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Curso dado no Collège de France (1978-1979). Edição estabelecida por Michel Senellar, sob direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Eduardo Brandão; Revisão de tradução de Claúdia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Suely Gomes Costa – Professora dos Programas de Pós-Graduação em Política Social e em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil (suelygom@oi.com.br).
Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966) FONTES (EH)
FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo. Trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: FGV, 2008, 346 p. Resenha de: LOPES, José Sérgio. São Miguel apresenta os Nordestinos a São Paulo. Estudos Históricos, v.22 n.43 Rio de Janeiro Jan./June 2009.
Um Nordeste em São Paulo traz contribuições originais ao estudo dos processos migratórios no país, o maior dos quais tendo se dirigido no pós-guerra para a cidade de São Paulo, que se tornaria a maior área metropolitana do país. A partir de estudos anteriores relativos à imigração internacional no período pós-escravista (em particular a imigração italiana), nos quais a relação com a industrialização nas primeiras décadas do século XX é analisada, Paulo Fontes pôde estender essa linha de investigação (em que Michael Hall, seu orientador, é um dos autores mais importantes) ao caso da grande migração interna do pós-guerra, a migração rural-urbana concentrada no eixo Nordeste-São Paulo.1
Uma das grandes forças deste livro é a de conseguir iluminar processos sociais de amplitude nacional através do uso da escala local, prática em que o autor já tem um conhecimento acumulado desde a sua pesquisa para a dissertação de mestrado, que se tornou seu livro de estreia.2 A possibilidade de desvendar esse processo macrossocial em um distrito inicialmente pouco povoado da cidade de São Paulo – onde a forte ação do foco de recrutamento de mão de obra inicial, que é a Fábrica Nitro Química, ali instalada no final dos anos 1930, e que de certa forma exerce um domínio sobre o distrito como governo local de fato ostensivo ou nos bastidores até meados dos anos 1960 – é fruto dessa escolha de objeto e de um procedimento histórico-etnográfico, dando ao leitor do livro uma narrativa de densa dramaticidade. Nas décadas seguintes a localidade torna-se (e é vista como) um lugar de forte concentração de trabalhadores nordestinos.3
O fato de ser uma grande fábrica privada, de forte capital político junto ao governo federal,4 que veio a ser um dos fatores iniciais da imigração nordestina para São Paulo, e mais ainda na localidade – fábrica esta que tem uma influência preponderante na economia e na vida social do bairro – dá à observação micro, focalizada em tal distrito, um poder explicativo heurístico para a compreensão daquela grande migração dirigida à capital paulista.5
O paralelismo entre a naturalidade civil do principal proprietário da Nitro, José Ermírio de Moraes, e a origem nordestina de maior parte da mão de obra selecionada pela empresa não escapa nem aos trabalhadores e moradores locais nem ao autor. Pode-se em todo caso aprofundar, em pesquisas futuras, a presença nacional precoce de empresários nordestinos na indústria do Rio de Janeiro e de São Paulo,6 entre os quais o grupo Ermírio de Moraes ocupa um lugar singular. Ao invés de uma acumulação prévia em estabelecimento industrial e/ou comercial inicial em sua área de origem, como é o caso de outros empresários do Norte (como se dizia na época), José Ermírio entrou de forma precoce e direta num grande grupo industrial têxtil de São Paulo, a Votorantim, em Sorocaba, do industrial português Pereira Inácio, e assim passou a pertencer, desde muito jovem, à burguesia industrial que veio a ser, anos depois, o centro mesmo do poder econômico do país.7
No capítulo 2 (p. 101-102), Paulo Fontes menciona a prática, durante a década de 1940, do agenciamento direto de trabalhadores pela Nitro Química, transportados de caminhão de Minas Gerais e do Nordeste (onde o grupo Votorantim tinha implantação com fábricas de cimento, como a Fábrica Poty, em Paulista, PE, assim como usinas de açúcar).8 Nos anos 1950 o fluxo migratório se dava de forma não diretamente produzida pela fábrica, mas já era fruto seja da articulação das famílias de trabalhadores da Nitro com seus parentes provenientes de suas áreas de origem, seja da procura por parte de famílias recém-imigradas por áreas de moradia, nos loteamentos a baixos preços oferecidos a trabalhadores naquele distrito.9 Aquilo que antes se fazia em escala intrarregional (por exemplo, no interior do Nordeste, o agenciamento de famílias camponesas em estados vizinhos através de agentes pagos por fábricas têxteis por família recrutada, entre os anos 1930 e 40), agora era feito em escala inter-regional de longa distância, Nordeste-Sudeste por via terrestre (agenciamento anteriormente feito de forma internacional por via marítima de longa distância entre Europa e Sul-Sudeste do país).
O livro segue uma ordem cronológica, mas que também tem a lógica de um plano temático de exposição: começa pela análise do processo de migração Nordeste/São Paulo (condições de saída, condições de chegada) em sua dimensão geral, dando conta do mote do título principal; e passa pelas redes de chegada e estabelecimento na cidade (e em particular no bairro) de uma perspectiva étnico-regional, mostrando como pouco a pouco o que é procura por trabalho passa a ter uma dimensão étnica (um novo grupo migrante na cidade, que chega numeroso, passa a ser percebido como tal pelos próprios nordestinos em seus locais de residência, assim como pelos estabelecidos de São Paulo e a sua mídia). Assim, na passagem do primeiro para o segundo capítulo, a perspectiva maior sobre São Paulo passa a focalizar-se em São Miguel, sem, no entanto, perder a precisão na passagem do geral para o particular (no capítulo1), assim como na passagem ao geral em pontos específicos da narrativa localizada que predomina nos demais capítulos. Por outro lado, a análise do termo genérico e estigmatizante de “baiano”,10 que passa a caracterizar a interação entre os estabelecidos e os novos chegados, se localiza no fechamento do capítulo inicial “Mala de papelão e matuá nas costas”, enquanto que o seguinte, “Terra de nordestinos”, é fortemente correlacionado ao domínio do trabalho e, portanto, da presença da fábrica no bairro, que parece dar um matiz especial à localidade. Assim, o terceiro capítulo, que trata da vida cotidiana no bairro, mostrando a construção de diversidades e identidades – através do acesso às residências (da pensão ao mutirão da casa própria), da vida social do bairro no tempo livre dos trabalhadores (futebol, cinema, bares, clubes sociais e bailes), onde pode se manifestar a diferenciação no bairro entre “a elite” e a “mistura”, das carências urbanas e de transporte de São Miguel Paulista – se dá de forma thompsoniana sob a rubrica sintética de uma “comunidade operária”. Segue-se a parte propriamente política do livro, nos capítulos 4 e 5; o primeiro sobre os partidos e lideranças políticas em São Miguel Paulista, denominado “Direito de fazer política”, direito este que se estende no último capítulo aos movimentos sociais de bairro e de autonomia política municipal.11
No capítulo 4, Paulo Fontes ressalta a importância da atuação do PCB no bairro, que chegou a ter em São Miguel Paulista, nos anos de 1945 a 1947, sua maior organização de base em São Paulo (com mais de mil trabalhadores filiados) sendo então lugar proletário preferencial para aquele partido mostrar sua força (com a admiração de Jorge Amado e as visitas frequentes de Prestes). Tendo tido como ponto de partida de pesquisa o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Química de São Paulo, e, em particular, seu grêmio de aposentados, o autor teve acesso aos relatos e à experiência política daqueles trabalhadores, formados no interior ou no entorno do trabalho sindical daquele partido. Esses depoimentos dão um fio condutor não somente à política no período, mas a informações e representações sobre a vida na fábrica e no bairro. O acesso ao arquivo da polícia política organizado nos anos 1990 no Arquivo Público de São Paulo permite completar e precisar, de forma cruzada, essas informações.
Diferentemente da perspectiva de autores que produziram seus trabalhos no fim dos anos 1970 sobre a classe trabalhadora de São Paulo (como os importantes trabalhos de Francisco Weffort e José Álvaro Moisés), posicionados no interior de um debate histórico polarizado pela nova redemocratização então em curso no país, Paulo Fontes está menos impregnado pelo ímpeto incontrolado do julgamento, e mais pela intenção de compreender, a partir de uma base direta e maior de informações dos próprios trabalhadores do período (assim como do aparelho repressivo do Estado), indisponíveis aos analistas dos anos 1970. Tal perspectiva ultrapassa a capa de princípios e de práticas políticas das direções partidárias, para entender os efeitos menos intencionais que aquela ação política tem sobre a associatividade dos trabalhadores. Isso se estende à compreensão do fenômeno da chamada política “populista” nos bairros de trabalhadores, menos pela etiqueta da anomia ou do desvio político (em relação a uma política transparente de representação de interesses de classe tida implicitamente como norma), mas por uma antropologia da política efetivamente praticada nas relações de reciprocidade (desigual) entre políticos e representados (com as visitas dos políticos e suas esposas à casa dos trabalhadores, com as particularidades dos seus comícios etc.). Também nesse caso, a escolha da análise histórico-etnográfica a partir do caso, um bairro estratégico (e não do fenômeno geral, mais abstrato), tem a sua importância, fazendo o livro contribuir para uma melhor compreensão da dinâmica do ademarismo e do janismo nos bairros de trabalhadores em São Paulo (assim como suas relações com quadros egressos do partido comunista clandestino).
O capítulo final, “Trabalhadores e o bairro” é ao mesmo tempo um capítulo de clímax dos movimentos sociais e um capítulo de síntese de múltiplas determinações, que reincorpora os diversos elementos analisados em capítulos precedentes para dar conta do desfecho na metade dos anos 1960. Aqui o autor analisa o movimento das Sociedades de Amigos do Bairro, assim como três tentativas de autonomização do distrito em novo município, independente de São Paulo. A empresa Nitro aparece novamente, seu poder político sobre o bairro sendo alvo dos movimentos de autonomização (autonomia não só em relação a São Paulo, mas em oposição à Nitro). Isso se completa com a análise do que precede localmente o golpe de 1964, da crise da Nitro Química e das demissões de 1966, abalando definitivamente o caráter monoindustrial do bairro.12
Um Nordeste em São Paulo é assim um livro síntese de um novo padrão de análise, no sentido de que contém em si próprio as contribuições de gerações anteriores apropriadas e transformadas, e ao mesmo tempo o ímpeto das novas gerações de historiadores e cientistas sociais investindo no desvendamento da história social e cultural das classes trabalhadoras ou das relações que entretêm com outras classes e grupos sociais, não só nos grandes eventos, mas também no seu cotidiano.13 O livro traz assim novas contribuições para a história social das classes populares, com o trabalho perspicaz sobre fontes as mais diversas, colocando em novos termos os temas cruciais de décadas passadas sobre os operários de origem rural e sobre a grande migração de nordestinos para São Paulo.
José Sérgio Leite Lopes – Professor associado 2 do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (jsergiollopes@gmail.com).