Antigas sociedades da África Negra | José Rivair Macedo

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José Rivair Macedo | Imagem: UFRGS

A obra Antigas sociedades da África Negra, de José Rivair Macedo, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi publicada no ano de 2021 pela Editora Contexto e já é considerada um clássico e uma leitura recomendada para todos que se interessam pelos estudos africanos, sejam estrangeiros, brasileiros, professores do ensino básico ou superior e público em geral.

Embora Rivair mencione o fato de o texto não possuir uma linguagem didática, mas uma proposta acadêmica com ampla pesquisa bibliográfica e documental, as salas de aula brasileiras, especialmente as localizadas nas periferias, com a maior parte do seu alunado afro-brasileiro, estão prontas para receber esse tipo de trabalho, obviamente quando intermediado pelo docente de educação básica. Os saberes ancestrais, as histórias dos negros na cultura brasileira, como quer o prefácio da obra – que traz inclusive uma canção de Eugênio Alencar, sambista gaúcho e conhecedor das tradições africanas (Rivair, 2021, p. 10) -, estão nesses lugares em que as comunidades afro-brasileiras habitam e aos quais a ciência costuma não olhar. Leia Mais

Práticas de pesquisa em História | Tania Regina de Luca

Práticas de Pesquisa em História (2020), escrito pela Profª. Drª Tania Regina de Luca (UNESP), finaliza a coleção História na Universidade (2020), da Editora Contexto, que teve, em seu conselho, De Luca, Prof. Dr. Paulo Miceli (UNICAMP) e Profª. Drª. Raquel Glezer (USP). Mestre e Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, professora de cursos de graduação e do programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Assis, e, pela Contexto, “[…] é organizadora dos livros História da imprensa no Brasil e O historiador e suas fontes e coautora dos livros Nova História das mulheres no Brasil, Fontes históricas e História da cidadania” (DE LUCA, 2020, Orelha do livro), nesta obra, à convite da editora, De Luca busca responder: por onde começar uma nova pesquisa em História?

Voltada ao público de graduação, sem pretensão de ser, ou tornar-se, um receituário de História, a obra convida o leitor a

[…] percorrer um amplo panorama que tem por finalidade apresentar, de forma didática, procedimentos e métodos que distinguem a produção do conhecimento historiográfico e, desse modo, incentivá-lo a participar ativamente desse instigante desafio que é escrever História, elaborando e executando seu próprio projeto de pesquisa (DE LUCA, 2020, p. 11). Leia Mais

América Latina x Estados Unidos. Uma relação turbulenta | Joseph S. Tulchin

O livro do historiador estadunidense Joseph Tulchin, recentemente lançado no Brasil, traz um panorama das relações entre América Latina e Estados Unidos desde o processo das independências até o presente, com foco na política externa adotada nos diferentes períodos históricos pelos Estados Unidos e pelos diversos países da América Latina, bem como das diferentes iniciativas de integração hemisférica desde o século XIX, após as independências, até os dias atuais. Tratando-se de uma narrativa factual bem escrita, com poucas notas e de fácil assimilação pelo leitor médio, a publicação tem o formato de um manual básico para estudantes de História e de Relações Internacionais, ora tratando diretamente das relações entre Estados Unidos e América Latina, ora trazendo uma história comparativa dos processos políticos no hemisfério. A maior parte das referências utilizadas pelo autor é de autores norte-americanos, havendo pouca interação com a produção historiográfica latino-americana sobre os diversos temas históricos tratados na obra.

Joseph Tulchin é PhD em História pela Universidade Harvard com especialização em América Latina, tendo sido professor das Universidades de Yale e Carolina do Norte; além de ter dirigido o tradicional Programa Latino-americano do Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington. O trabalho de pesquisa mais relevante de sua carreira se concentra na história argentina do século XX e suas relações com os Estados Unidos (TULCHIN 1990). Leia Mais

Conversas com um jovem professor – KARNAL (LH)

KARNAL, Leandro. Conversas com um jovem professor. São Paulo: Editora Contexto, 2012. Resenha de: VOGT, Débora Regina. Revista do LHISTE, Porto Alegre, v.1, n.1, p.187-191, jul./dez., 2014.

Poucas experiências na graduação para não dizer quase nenhuma antecipam o primeiro dia de um professor em sala de aula. As aulas de psicologia da educação, da sociologia do ensino, os grandes debates sobre métodos de aprendizagem ou as discussões infindáveis sobre as linhas historiográficas tornam-se tímidas, quase inúteis, quando “enfrentamos” nossa primeira aula. E esse é o verbo que o professor Leandro Karnal utiliza: enfrentar. Em nosso mundo ideal todos esperam ansiosamente pela nossa presença e pelo conhecimento iluminista que inicialmente acreditamos ter. A realidade, sabemos, não é bem assim. No entanto, entre o mundo irreal e idealizado e o pessimismo abismal há um meio termo e nele podemos encaixar o livro de Karnal.

Segundo o autor, a obra não tem como objetivo discutir teorias ou novas concepções de ensino. Ele dialoga com elas, mas seu alvo é outro: é ensinar a fazer o cimento da construção, não seu desenho arquitetônico, em outras palavras: como é, na prática, ser professor. São 30 anos de experiência em que, em suas palavras, passaram centenas de colegas, dezenas de lugares e milhares de alunos. Entretanto, Karnal relata com simplicidade das alegrias e tristezas de ser professor, dos desafios da profissão, do cotidiano escolar e tem a humildade de relatar também seus fracassos, demonstrando que ser professor é, antes de tudo, um eterno aprendizado.

Como o próprio nome diz, seu alvo é o jovem professor, que talvez ainda não tenha concluído os estágios obrigatórios e que precisa encontrar seu lugar na sala de aula, no cotidiano escolar e na vida dos alunos. No entanto, ouso dizer que ele atinge também outro público, que já está no magistério, mas sabe que tem muito a aprender e está disposto a ouvir. Karnal procura fazer um livro simples e prático, sem ser simplificado e banal. Dessa forma, ele aborda praticamente todos os pontos da aula: o professor, o ambiente, o aluno, o conteúdo entre outros. Escreve sobre a coordenação, os colegas, os pais e o próprio governo ou da mantenedora para atingir tanto aquele que se dedica ao setor público, como aquele que trabalha em instituição privada.

Quando aborda a sala de aula o historiador discute as várias circunstâncias que estão dentro de uma aula. Uma noite mal dormida, uma conta não paga ou uma simples dor de cabeça podem, sim, ter como resultado uma péssima aula. Somos humanos e temos limitações e elas são também físicas. Ter noção de como está se sentindo, antes de entrar numa aula, ajuda a encarar seus limites e a lidar melhor com a situação. Além do professor há o conteúdo que deve ser trabalhado, estudado e planejado antes da entrada em sala. Ele dá um conselho sadio: planos gigantescos são muitas vezes inúteis e podem nos fazer crer que são desnecessários. Não são, mas devem ser os mais práticos possíveis, tendo claro sempre aonde se quer chegar.

O aluno é o ponto central e ele chama atenção: ele não pode ser nosso problema. Tal como o médico não pode ver o paciente como problema, mas sua doença, nós não podemos acreditar que nosso aluno é um problema, seu comportamento até pode ser, ele não. O olhar de educandos, de acordo com ele, é um ótimo parâmetro, mas não deve ser o ponto de chegada, sim um diagnóstico e um ponto de partida. Karnal compara a aula com um trabalho artesanal, é meticuloso, sensível e não há nada que garanta sua segurança absoluta.

O livro deixa claro que boa parte da seriedade de nosso trabalho vem de nossa concepção sobre o nosso fazer. Se nós agirmos de forma que demonstre que os alunos podem ouvir ou não e nada muda, desvalorizamos nosso trabalho diante daquele que é a nossa plateia. A visão que temos de nós mesmos e da importância do que fazemos demonstra a seriedade com nossa profissão. Segundo Karnal, uma aula mal dada pode não destruir vidas como um erro médico ou uma ponte mal construída por um engenheiro, no entanto, é bem possível que esses erros tenham como resultado aulas ruins.

Karnal dedica um capítulo inteiro para falar da criatividade e outro sobre as tecnologias. Como uma caixa de milagres, as duas são apontadas como soluções para a falta de interesse dos alunos e o desânimo que os alunos têm pela escola. O autor desmitifica a criatividade vista, muitas vezes, como quase uma revelação divina. Mostra que ela é fruto de muito esforço, mostra também o quanto uma aula criativa dá trabalho em relação a uma aula tradicional e que, por isso, não pode ser feita todos os dias. Uma aula expositiva pode cumprir bem seu papel e na maioria das vezes o faz. Uma aula criativa, no entanto, mexe com emoções e nossa memória trabalha através dela e por isso somos capazes de lembrar o que nos marcou emocionalmente.

Quando aborda as tecnologias Karnal chama a atenção para um erro crasso: acreditar que uma aula torna-se melhor pelo simples uso de tecnologias. Elas são ferramentas didáticas, mas não produzem por si mesmas uma boa aula. Ao usar um ‘power point’, por exemplo, se o professor somente ilustra o que fala, sem analisar imagens, sua subjetividade como são montadas e feitas perde-se muito da capacidade exploratória. Há turmas diversas e diferentes tipos de alunos, alguns são atingidos por uma técnica, outros por outra. Variar no uso das tecnologias e da criatividade nos possibilita caminhar com uma turma de forma mais orgânica possível na construção do aprendizado.

Sendo o aluno o alvo de nosso trabalho é de imaginar que o cotidiano do profissional é a convivência com pessoas. Entretanto, além dos alunos há no mínimo mais quatro grupos de pessoas que perpassam o trabalho docente: os pais, os diretores, a coordenação e os colegas. Há muito a aprender com eles, mas há os que simplesmente podem estar ali para atrapalhar nosso caminho. Encarar os pais pela primeira vez após o aluno ter tirado uma nota ruim, ou a coordenação que pensa ter a solução mágica para suas aulas, mas que não fica 15 minutos controlando uma turma, é um desafio tratado com um ar quase fraternal por Karnal, como um pai que aconselha seu filho antes de seu primeiro dia de trabalho. Ele fala de hierarquias, aconselha a falar menos na sala dos professores antes de conhecer os colegas, a perceber que há diferentes tipos de pais etc. O mérito de seus conselhos é a saída das soluções mágicas, ele não demonstra que tudo é fácil ou que não há soluções, mas que há sempre um meio termo sem abrir mão do bom senso e da ética profissional.

A avaliação, desafio para iniciantes, mas também para professores com maior trajetória é refletida e analisada por Karnal. Há um perigo que ronda boa parte dos professores: a vingança na hora da avaliação. Muitas vezes vista como um jogo narcisista em que chega a hora de mostrar quem realmente manda, de demonstrar que o trabalho é sério e que, sim, ele pode ser cruel. Quem já transitou como profissional numa escola já viu nos colegas e em si mesmo o sorriso vingativo na hora de aplicar uma avaliação. É dia de nossa tranquilidade e passividade diante do nervosismo de nossos alunos. O autor é franco: muitas vezes inventamos desculpas – como os desafios da vida ou a necessidade de avaliar seriamente – para o que pode ser uma demonstração de nosso ego. Por outro lado, é um trabalho que deve ser levado a sério e feito com dedicação. A prova como sabemos não avalia somente o aprendizado dos alunos, mas a atuação do profissional. Segundo ele, a prova deve ser operatória. Recorrer à memorização pode ser exaustivo e inútil na maioria dos casos. É necessário ter claro aonde se quer chegar e quem são seus alunos, na hora de produzir uma boa avaliação.

Há um capítulo escrito por sua irmã, Rose Karnal, que diferente dele deu aula para diversos níveis e hoje se volta mais para a graduação, pós-graduação e formação de professores, dedicou-se à vida toda ao ensino básico. É formada em letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e é educadora há 32 anos. Acredito que por ela estar no ensino básico onde os problemas sobre disciplina são mais recorrentes é que Leandro a convida para escrever esse capítulo específico.

Disciplina é em si um tema espinhoso. Diante de casos de violência dentro das escolas com registros que se espalham no país, falar dela é um desafio e pode intimidar. De acordo com ela, a disciplina é um conquista diária e também uma repetição de ações que proporcionem um clima de aprendizagem. Há uma diferença entre autoridade e autoritarismo e não há aprendizado sem ordem e respeito. No entanto, não há segredos ou “toque mágico” para resolver os problemas disciplinares, a prática funciona muito mais que a teoria e há coisas que funcionam com um aluno e são desastrosas com outro. Rose salienta pontos fundamentais que também são apontados por Leandro em seu texto: organização do ambiente, atenção na aula, não conivência com a violência e mais importante que tudo, lembrar que é o professor o adulto na sala de aula.

Um dos capítulos mais instigantes e talvez um dos mais estimulantes em ‘conversas com um jovem professor’ é a narrativa dos erros cometidos, que Karnal intitula “Pedras da nossa estrada”. Ele narra as situações em que foi irônico e quando se sentiu vitorioso ao soltar um comentário ácido para um aluno que o incomodava em uma manhã, por estar com conjuntivite, ou que fez caretas e comentários ao ler o nome de um aluno. Todos nós já fizemos ou sentimos vontade de fazer isso: soltar um comentário demolidor para um aluno que consegue nos incomodar. Sabemos que como professores, temos esse poder e por vezes é grande a tentação de fazer isso e se sentir vitorioso diante da turma.

No entanto, ao ler o relato franco e honesto desse professor com mais de 30 anos de experiência podemos ter certeza que não seremos os primeiros, nem os últimos a ter vontade de nos vingar naqueles que deveriam ser o alvo de nosso trabalho: os alunos. Karnal lembra-nos, contudo, que é preciso lembrar sempre quem é o adulto e quem é a criança ou o adolescente. O docente não é um aluno mais adiantado, ele é o professor, que se não necessariamente amar com todo coração determinada turma, deve antes de tudo, agir como profissional da melhor forma possível. Afinal, não seria ideal para um médico fazer uma cirurgia ruim porque um paciente incomodou muito nas consultas.

Ao final de cada capítulo, o professor Karnal cita filmes que são um conjunto de inspirações a parte. Ele foge dos modelos de professor salvacionista, mas apresenta filmes cujos professores têm um trabalho difícil e que por vezes podem fracassar. No entanto, a pequena transformação que se tem é a mudança na vida de uma pessoa, a percepção de que realmente conseguiu ensinar, fazer o trabalho valer a pena.

O livro do professor Leandro Karnal é leve, bem humorado e serve ao que se propõe que é dialogar com o docente iniciante. No entanto, ele também ultrapassa isso, já que compara nosso trabalho com outras profissões, sai do muro das lamentações, mas também demonstra que nem tudo são sorrisos e alegrias. É um texto de um professor sério e comprometido com o que faz. Creio que só essa característica deveria nos levar a ouvi-lo atentamente. Prestar atenção em quem permanece como docente apreciando e valorizando o que faz é um bom começo para quem dá seus primeiros passos no magistério.

Débora Regina Vogt – Licenciada, Mestra e Doutoranda em História pela UFRGS. E-mail: vogt.deboraregina@gmail.com

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História da África – MACEDO (RL)

MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo, Editora Contexto. 2014. Resenha de: FATURI, Fábio; CANTO, Rafael. Revista do LHISTE, Porto Alegre, v.1, n.1, p.181-186, jul./dez., 2014.

Passada mais de uma década de promulgação da lei 10.639/03 que obriga o ensino de história da África e dos africanos nas escolas brasileiras, ainda se encontram barreiras no processo de sua efetiva implantação. Uma destas barreiras é o ainda pequeno número de materiais para embasar os profissionais da educação, sejam eles do nível fundamental ou do médio – ou mesmo universitário – acerca das realidades históricas das sociedades do continente africano. Nesse contexto, o livro História da África do professor e pesquisador José Rivair Macedo, publicado em 2014, entra no círculo de obras obrigatórias para aqueles professores que buscam conhecer as sociedades africanas a partir de um viés que tem por objetivo encontrar uma África sujeito e não uma África objeto.

A obra, que está dividida em sete capítulos, não segue uma perspectiva linear, cronológica respeitando, desta forma, a evolução própria daquele continente. Ela busca dar um panorama geral dos grandes grupos sociais existentes no continente, suas diversas relações com a Europa, a Ásia e dentro do próprio continente, além de tratar da questão da escravidão. Isto sem aprisionar a história tão vasta do continente apenas na questão do tráfico transatlântico de escravos, tema abordado com a devida profundidade no capítulo cinco.

Seria uma pretensão pensar que em um livro de menos de duzentas páginas seja possível resumir a longa história do continente africano, desde o início do processo de hominização até os movimentos de descolonização que marcaram, atualmente, de forma profunda as nascentes nações africanas. Basta pensar na obra monumental da UNESCO, História Geral da África, produzida nos anos 1970 e 1980, mas que só recebeu tradução para a língua Portuguesa em 2010, a mesma possui oito volumes e quase 20.000 páginas e cuja análise possui um recorte temporal semelhante. A capacidade e a qualidade da síntese são, neste sentido, qualidades destacáveis do livro resenhado neste espaço.

História da África serve como um ótimo guia para professores que buscam conhecer as diversas formas de sociedades africanas ao longo da história de uma forma bastante atualizada em se tratando de pesquisas históricas. Apesar da obra não possuir notas de rodapé, que permitam ao leitor buscar o caminho reverso do texto, ao final de cada capítulo o autor buscou referenciar os livros mais indicados para pesquisas futuras. Além de elencar uma grande variedade de filmes, sites e diversas outras formas que permitam ao leitor não só reconstituir a pesquisa em que o livro se embasou como também iniciar sua própria pesquisa.

Uma característica importante da obra é a presença, no corpo do texto, de pequenos trechos das diversas fontes pesquisadas pelo autor. São relatos de viagens e excertos de textos clássicos sobre o tema que se configuram como de leitura obrigatória para os professores que buscam, em sala de aula, apresentar uma “nova” África a seus alunos.

O primeiro capítulo da obra intitulado Pré-história Africana parte de uma sucinta descrição do ambiente natural daquele continente (condições geológicas, climáticas, etc.) que servem para demonstrar a diversidade de ambientes e as dificuldades impostas às populações, que sejam africanas, quer sejam exploradores de outros continentes. Estes elementos são fundamentais para compor as respostas as perguntas: por que o homem surgiu na África? E, por que estes grupos saíram da África?

A exposição desenvolvida pelo autor recupera elementos para demonstrar que mais do que o lugar do surgimento do homem, a África foi o espaço onde a humanidade se desenvolveu e assumiu características transmitidas e compartilhadas por todos os seres humanos do planeta. A análise desenvolvida neste capítulo se estende até a adoção, por parte dos grupos que habitavam aquele continente, da agricultura, da pecuária, substituindo a caça e a coleta. Mudanças que propiciaram o desenvolvimento de inovações tecnológicas, econômicas e sociais e abriram o caminho para subsequentes transformações, como a invenção da cerâmica e da metalurgia. O desenvolvimento destes domínios técnicos que explica o florescimento das primeiras civilizações africanas que serão analisadas nos capítulos posteriores.

No capítulo da obra Os povos da Núbia e do Índico, o autor apresenta as maneiras pelas quais os povos do nordeste e do litoral oriental da África organizaram-se em torno dos grandes rios e oceanos. São sociedades, portanto, em constante interação com povos de diversos espaços geoculturais, contatos e trocas constantes entre o cristianismo e o islamismo. Inicialmente são abordadas as civilizações egípcias e a meroítica, esta última que é, aliás, “a mais antiga civilização negra da África” (p. 25), onde já se fazem presente diversos traços originais das antigas sociedades africanas como, por exemplo, o papel diferencial da mulher na sociedade.

Ainda neste espaço, analisa-se a emergência do estado de Axum e da Etiópia que adotaram o cristianismo e a difusão do islamismo na África, sobretudo na região do Sudão Oriental e nas cidades Suaíli. As últimas linhas do capítulo ocupam-se do Grande Zimbábue, complexo arquitetônico localizado onde atualmente situam-se Moçambique e Zimbábue, que se destaca “por sua dimensão, ostentação e complexidade” (p. 37) e concluindo, a presença europeia na região.

No terceiro capítulo, O eixo transaariano, o autor ocupa-se de analisar as sociedades africanas que se organizaram para se adaptar ao deserto e à savana. Acompanhando, portanto, a evolução histórica destas populações que necessitaram tirar o máximo dos recursos disponíveis nestes ambientes que lhe ofereciam poucas condições para sobrevivência. De forma geral “esses grupos ocuparam deste a faixa litorânea do mar Mediterrâneo até os limites da floresta tropical” (p. 45-46).

A análise parte da islamização do Magreb, percorrendo o desenvolvimento das sociedades no eixo das rotas do Saara, destacando a atuação dos tuaregues. O estado de Gana, “o mais antigo estado negro organizado com ampla área de dominação política e econômica” (p. 52), do antigo Mali, o Império Songai e os estados Hauçá são analisados, sintetizando a diversidade e a riqueza deste cenário histórico da África Subsaariana.

No capítulo O mundo atlântico o autor recupera a experiência histórica deste espaço entre os séculos XVI e XIX, atentando para as mudanças estruturais e as transformações na organização social nas populações localizadas nas regiões banhadas pelo oceano Atlântico. Especialmente, a partir do contato destes povos africanos com mercadores e companhias comerciais da Europa. Contatos que são fundamentais, como demonstra o autor neste espaço, para compreender o processo de dominação europeia do continente.

Destaca-se a exposição do autor a respeito da Confederação Achanti desenvolvida por ele neste capítulo. Um estado que se desenvolveu, onde atualmente localizam-se as repúblicas de Ghana e Togo, as quais se tornariam essencialmente militaristas. Assumiriam a organização administrativa em torno dos amans (estados “confederados”), cuja economia baseava-se na extração de ouro e no lucro advindo do tráfico de escravo que “eram negociados nos fortes do litoral e com os mercadores do Sudão oriental” (p. 79).

Dentre os assuntos mais pertinentes em relação a história do continente africano encontra-se a questão da escravidão, sendo este o eixo para o desenvolvimento do quinto capítulo da obra, O tráfico de escravos. Citada como a maior causa da pobreza atual do continente por diversos autores, o tráfico internacional de escravos é tratado na obra em questão a partir de um ponto de vista que traça uma linha divisória bem determinada entre a escravidão endógena no continente africano e o tráfico internacional de escravos. A partir de análises de autores importantes acerca da escravidão africana como John Thornton ou Paul Lovejoy o autor apresenta as formas de como dava a redução ao cativeiro nas sociedades ancestrais africanas. Além disso, apresenta a forma como os cativos eram alocados nas sociedades africanas, onde apesar de sua condição nunca perdiam a identidade humana, o que irá ocorrer com o tráfico internacional. Essa diferenciação torna-se imprescindível no sentido de entender que não é correto afirmar que os africanos escravizavam africanos para vendê-los como escravos, pois não existia uma identidade coletiva continental. As identidades não ultrapassavam os limites da aldeia ou mesmo da linhagem.

A partir dessa diferenciação o autor mergulha na realidade do tráfico internacional de escravos e seus diversos pontos de análise. As rotas de longo curso, desde as caravanas de mercadores árabe-muçulmanos e afro-muçulmanos que cruzavam o deserto levando cativos, até as embarcações que cruzavam o Atlântico trazendo ao novo mundo os quase 10 milhões de escravizados. É nesse contexto onde os escravos tornam-se “peças” e deixam de ser humanos. “Tornando-se uma categoria social privada de todos os seus direitos e constituindo-se como a base do sistema de exploração econômica” (p.105). O autor analisa também os agentes que participam desse tráfico. Desde os primeiros momentos onde os “lançados” negociavam com as elites ou os principais dos reinos africanos no interior do continente, até o momento onde são constituídas as grandes redes de comércio, conectando diversos atores entre Europa, América e África. Na sequência é possível encontrar as moedas de troca, os valores correspondentes aos diferentes tipos de escravizados e como esse, que era um comércio subsidiário dentro das sociedades africanas, passa a tornar-se o principal meio de entrada de armas de fogo, bebidas alcoólicas desestruturando as pequenas sociedades tribais.

Ao final desse capítulo o autor apresenta ao leitor uma ótima reflexão acerca da diáspora africana, suas diversas faces no novo mundo, seus graves problemas nas sociedades americanas e o rescaldo dessa, que foi a maior emigração da história da humanidade. O autor reflete também sobre a questão da abolição do tráfico de escravos e sua ligação direta com a Revolução industrial.

No sexto capítulo A condição colonial é abordado o período entre os anos 1870 e 1960 onde praticamente todo o continente esteve submetido às nações europeias. Contudo as análises feitas pelo autor procuram salientar os pontos de desenvolvimento e adequação a que as sociedades africanas conseguiram moldar-se para sobreviver ao jugo europeu. Sem, é claro, demonstrar a situação político, econômico e social a que esses povos foram submetidos. Entretanto, essa forma de análise permite que se permita às sociedades africanas tornam-se agentes de seu destino e não apenas meros expectadores dentro do contexto a que foram submetidas. Dentre os pontos importantes analisados nesse capítulo está o da afirmação do Islã dentro das diversas sociedades africanas. Até hoje existe a discussão acerca de que, se foi a África que se Islamizou ou se foi o Islã que se africanizou. O autor apresenta as diversas faces do Islã e sua força dentro do continente. Assunto pouco discutido nas obras que se tem acesso no Brasil. Normalmente a África é vista como um continente de religiões exóticas ou mesmo ligado às religiões afrodescendentes, o que é um grande equívoco, tal é a envergadura do Islamismo nas diversas partes do continente africano. Além desse assunto o autor se propõe a refletir sobre um dos temas mais importantes, em se tratando de estudos africanos na atualidade, o diálogo entre a tradição e a modernidade. Autores como Hampaté Bá, Walter Rodney são utilizados como ferramenta para que se possa repensar a forma como devem ser tratados os estudos africanos. A condição do imperialismo e do colonialismo são temas fundamentais nesse capítulo que traçam um panorama histórico com análises bastante profundas, dada a dimensão da obra. Nessa perspectiva o autor apresenta a situação dos viajantes europeus como Mungo Park ou David Livingstone que adentraram o continente e foram olhos do império, travestidos de naturalistas ou expedicionários. Rivair apresenta os mecanismos de exploração utilizados pelos europeus em suas diferentes formas ao longo desse extenso período. A construção do racismo científico é outro tema explicado pelo autor e que muitas vezes passa despercebido em outras obras dessa magnitude. Por fim, a questão sui generis da África do Sul e seu Apartheid que adentrou o século XX quase o século XXI e mostrou ao mundo já globalizado a face mais violenta da discriminação.

No capítulo que conclui a obra, intitulado Descolonização e o tempo presente, o autor busca apresentar um pouco da situação dos diversos países do continente e sua situação atual traçando uma linha histórica desde o final da segunda guerra mundial até a primavera árabe de 2011. Trabalho extremamente difícil em apenas um capítulo, mas que inicia com as bases do anticolonialismo. Os movimentos messiânicos que buscaram na ancestralidade africana raízes para suas lutas de libertação, a participação dos africanos na guerra junto aos brancos. Nesse contexto o autor apresenta ao leitor nomes importantes na constituição do movimento conhecido como Negritude: Franz Fanon, Aimé Cesaire, Leopold Senghor. A partir daí iniciam-se as análises acerca da descolonização no contexto da Guerra Fria. Nesse momento cada uma das grandes potências busca trazer, da forma que fosse possível, as jovens nações africanas para seu campo de influência. De acordo com o autor, esses estados fragilizados e com pouca estrutura foram cooptados de diversas maneiras e naqueles em que não foi aceito o julgo foram apoiadas ditaduras, que muitas delas viraram o século XXI.

Finalizando o trabalho, o autor ainda propõe uma pequena análise dos estados pós-coloniais ao final do século XX, refletindo acerca das heranças coloniais e da cultura africana. Nesse ponto é possível identificar a importância de utilizar das análises acerca do continente que façam da África sujeito de história e não apenas expectador. Pois aqui é possível ver que apesar de hoje ser o continente mais pobre do planeta suas diversas faces estão encravadas por todos os outros lugares do mundo. Milhares de pequenas Áfricas, como diz o autor, sobrevivem culturalmente ao redor do mundo e através de uma leitura histórica bem aprimorada é possível enxergar uma história do continente africano que fuja dos estereótipos comuns. E que, ao mesmo tempo consegue-se analisar os profundos dilemas a que o continente tem de se deparar no século XXI.

Fábio Faturi – Mestrando em História – PPG História/UFRGS. E-mail: fabio.faturi@hotmail.com

Rafael do Canto – Mestrando em História – PPG História/UFRGS. E-mail: rafael_docanto@hotmail.com

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A temática indígena na escola: subsídios para os professores – FUNARI; PIÑON (RAP)

FUNARI, Pedro Paulo; PIÑON, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Editora Contexto, 2011. Resenha de: CARVALHO, Aline Vieira de; MENEZES, Victor Henrique da Silva. Revista de Arqueologia Pública, Campinas, n. 4, 2011.

Porque seria necessário produzir um livro sobre a temática indígena em sala de aula no Brasil dos dias de hoje? Afinal, a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais1 discutimos exaustivamente em nossas escolas (e em nossos projetos pedagógicos) a questão da cidadania, da pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, da luta contra qualquer forma de discriminação baseada em diferenças culturais (e também diferenças de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais), da pluralidade das memórias, entre outros temas onde, teoricamente, os grupos indígenas que compartilham o território que chamamos de Brasil estariam incluídos nos debates. Ou, mesmo nas Universidades, temas como o multiculturalismo, identidades fluidas e etnicidades estariam em constantes discussões resultando em pesquisas inovadoras sobre a temática indígena no Brasil. Como justificar a relevância de uma obra como essa? Esta é primeira questão que nos colocamos ao nos defrontar com o livro A temática indígena na escola: subsídios para os professores, publicado pela Editora Contexto (2011). A resposta, todavia, salta aos nossos olhos logo nas primeiras páginas.

A obra, arquitetada para ser lida e discutida por um amplo público, e, em especial, professores, destaca o papel ativo do Estado Nacional brasileiro no apagamento das memórias relacionados aos nativos americanos. O foco, entretanto, não fica no passado ou na instituição do Estado. Partindo da premissa de que a leitura do tempo passado é sempre realizada sobre o viés do presente, os autores destacam como as memórias sobre os indígenas são vivenciadas nos dias de hoje e são projetadas para o passado. Por mais surpreendente que possa ser, expressiva parcela dos jovens estudantes brasileiros continuam a perceber “o indígena” como o habitante das florestas distantes e pertencentes aos tempos longínquos (como utopias desencarnadas!). 1essas intuições, os indígenas não existem no presente e, quando existem, estão nas ocas da Amazônia (p. 109).

O completo desconhecimento dos 235 povos indígenas existentes no Brasil atual2 dialoga com visões unipartidárias da nossa própria história. Dos conflitos e negociações entre esses nativos e os europeus que aqui chegaram\ao último ano do século XV, a memória que nos resta é sempre do indígena vencido ou desimportante! No geral, as pessoas não se percebem com possíveis antecessores indígenas e nem concebem as contribuições culturais importantíssimas da convivência destes diferentes grupos culturais: do universo da alimentação (da mandioca à batata, do tomate ao chocolate, algumas das contribuições americanas ao mundo), passando pelo universo dos próprios léxicos (Mogi, Caju, Pindamonhangaba, Anhanguera, entre tantos outros!) até a herança cultural do banho diário, os diálogos culturais entre os nativos e europeus são incomensuráveis e, constantemente, silenciados e esquecidos.

O livro, neste contexto, apresenta-se como fundamental ao Brasil dos dias de hoje. E sua inovação está na característica de mostrar, partindo de uma linguagem acessível e de conhecimentos produzidos em diversas ciências, que nenhum desses esquecimentos e memórias são naturais. Ou seja, o livro tem como premissa que os mecanismos de exclusão não são estáticos, atemporais ou simplesmente dados. Por não terem datas e locais de nascimento, essas artimanhas dos silenciamentos e das exclusões podem, portanto, serem alteradas.

Para a transformação, entretanto, é preciso ter conhecimento sobre esses poderes. O livro almeja suprir uma lacuna: oferecer uma visão plural e acessível sobre a constituição da temática indígena no Brasil. Para isso, os autores conceberam uma obra que se divide em quatro eixos temáticos (“As identidades”, “Os índios”, “A escola” e “A república”), e, em sua base, trabalha com a proposta de que não existem raças, mas apenas a raça humana.

Criticando, dessa forma, a contraposição entre “índios” e “brancos” como categoria de tipo racial, os autores iniciam o livro com a polêmica discussão acerca de quando se principia a História do Brasil. A história do continente americano tem sido narrada a partir de uma perspectiva européia, o que pode ser observado, por exemplo, quando é difundida a ideia de que a nossa história teria iniciado em 1500 com a chegada dos portugueses ou até mesmo em 1140 no momento de formação do Estado de Portugal. Tais abordagens na maioria das vezes acabam por excluir o fato de que bem antes de 1500 essas terras já haviam sido povoadas. Partindo desse pressuposto, Funari e Piñón inserem uma crítica quanto à forma que este tema é trabalhado dentro de uma sala de aula, onde alguns professores – ora devido à falta de informações nas escolas, ora às deficiências das políticas de valorização cultural em voga no país – “esquecem” de levar em consideração a (pré) e/ou história desses povos que aqui habitavam como um dos agentes que contribuem para a formação da história das terras que deram origem ao Brasil, influenciando indiretamente a ideia – presente em muitas pessoas, como mostra a pesquisa feita pelos autores e exposta no livro – de que a parte do continente que constituiria nosso país só passara a ser povoada com a chegada dos europeus.

Após essa breve discussão, nos capítulos que se sucedem, os autores trabalham com a explicação do significado de algumas denominações de povos indígenas, como por exemplo, Tupinambás (os descendestes do ancestral), Tupiniquins (o galho do ancestral), Tupi (ancestral), Guarani (guerreiro), Inca (senhor), entre outros. Discute-se a partir disso, o que é ser índio, combatendo ao mesmo tempo, a ideia de que todos aqueles que habitavam o continente antes de 1492 formavam um único povo. Funari e Piñón salientam que esses povos se autodenominavam “(…) de milhares de maneiras, cada povo a seu modo, com nomes que podiam significar simplesmente “seres humanos”, por oposição a outros grupos” (p. 18), o que demonstraria as suas especificidades culturais.

Os autores tiveram também a preocupação em explicar alguns termos técnicos e conceitos que já foram utilizados, ou ainda são, nos estudos que versam sobre os povos indígenas, como “assimilação” (p.22), “aculturação” (p. 24), “modelo normativo” (p. 24), “etnogênese” (p. 26), “transculturação” (p. 26), “olhar antropológico” (p. 30), “desnaturalização” (p. 30), “abordagens culturalistas” (p. 44), “deculturação” (p. 72), “americanismos” (p. 95) e “invisibilidade do indígena” (p. 110). Essa estratégia de explicação de conceitos básicos nos estudos de determinados campos, tão presente nos demais trabalhos de Funari, mostrou-se completamente eficaz também nesta obra para uma melhor compreensão por parte do leitor de como o tema em questão deve ser estudado, além de auxiliar no entendimento das diferentes maneiras que o índio já foi apresentado a partir de conceitos tão fortes como estes; o que faz com que o leitor acompanhe as críticas relacionadas à abordagem da temática indígena que os autores constroem no decorrer da narrativa.

Há uma valorização das pesquisas arqueológicas, o que não poderia faltar em um livro escrito por arqueólogos que tem uma profunda preocupação  em introduzir em seus trabalhos os estudos realizados com comunidades do passado e do presente através de sua cultura material. Pois, como enfatiza Funari e Piñón, “(…) a Arqueologia é outra grande fonte de informações sobre os índios e que, portanto, vale a pena ver o que descobriram e anotaram os arqueólogos” (p. 34), sendo que “(…) os vestígios arqueológicos podem mostrar como eram as aldeias indígenas, as ocas e a estrutura arquitetônica de importantes centros como as cidades maias ou as estradas incas, nos Andes, as melhores do mundo no século XV” (p. 37).

A trajetória do homem e povoação da América é trabalhada a partir das teorias difundidas pelas arqueólogas Maria Conceição Beltrão e Niède Guidon, e pelo biólogo Walter 1eves. Em relação a visões antes consagradas, como a ideia de que nas sociedades caçadoras e coletoras havia necessariamente uma divisão de tarefas por sexo, ou seja, que o homem era o caçador e a mulher a que fazia a coleta e que, por isso, o homem seria hierarquicamente superior à mulher (p. 46) é fortemente criticada pelos autores que trabalham com a ideia de que “(…) nem todas as sociedades indígenas eram (ou são) patriarcais” (p. 48). Partindo desse pressuposto, é sugerido no decorrer do livro que essas discussões sobre as mulheres sejam levadas à sala de aula, pois o tema do protagonismo social das mulheres, na nossa sociedade atual, é de grande importância. Assim, escrevem Funari e Piñón, caberia comentar sobre a diversidade de sexualidades registrada em tribos indígenas, onde pesquisas têm mostrado a existência de sociedades indígenas que reconheciam mais do que dois sexos (p.49).

Complementando a discussão sobre as relações de gênero dos povos indígenas que deveriam ser inseridas nas salas de aulas, os autores discutem e criticam a forma que a temática indígena foi tratada quando introduzida nos livros didáticos a partir de 1943, em que “(…) os índios eram quase sempre enfocados no passado e apareciam, muitas vezes, como coadjuvantes e não como sujeitos históricos, à sombra da atividade dos colonos europeus” (p. 97), e a “(…) colonização do continente americano pelos indígenas praticamente não era mencionada e os índios eram descritos por meio da negação de traços culturais considerados significativos, como falta de escrita, de governo e de tecnologia” (p. 98). Situação esta que só mudou a partir da segunda metade dos anos 1990 onde buscou-se a universalização da escola fundamental de oito anos e a valorização da diversidade cultural, o que resulta então na produção de novos materiais didáticos no qual passa a ser tratado com maior atenção temas indígenas, apresentando “(…) a povoação do continente como um tema em discussão pelos pesquisadores, com a apresentação de diversas teorias, o que favorece uma visão crítica sobre o conhecimento histórico por parte de estudantes” (p. 100).

Uma observação por parte dos autores que é importante destacar, é que, apesar da maior atenção dada nos livros didáticos e de novas políticas por parte do Ministério da Educação e das Secretarias Estaduais de Educação em relação à temática indígena, é perceptível que entre os estudantes ainda há uma profunda ignorância em relação ao tema. Tal afirmação provém a partir de uma pesquisa feita em escolas do Rio de Janeiro, Niterói, Campinas e Natal, dos sextos aos nonos anos do Ensino Fundamental, e que Funari e Piñón apresentam nos momentos finais do livro, no qual observa-se, por exemplo, que cerca de um terço dos entrevistados não souberam mencionar nenhuma tribo, que 73% consideram que os índios estão no Brasil desde 1500 e que quando questionados sobre a proveniência dos índios, que apenas 16% responderam que vieram da Ásia, única resposta que corresponde aquilo que está nos livros didáticos, que como explicam os autores, “(…) já deveriam ter sido incorporadas pela maioria dos estudantes, mas ainda não foi.” (p. 108), o que demonstra avanços e limites das políticas educacionais dos últimos anos (p. 109).

1os momentos finais do livro, os autores destacam que uma das maiores vitórias que a introdução na escola da temática indígena obteve foi fazer com que os estudantes passassem a se ver como descendentes de índios, algo que no passado não era visto no país, onde tentava-se apagar a nossa memória indígena, e que agora, “(…) o fato de que muitas crianças reconheçam ter parentes indígena mostra como a valorização do indígena, apesar de todos os problemas, avançou no nosso país” (p. 111); concluindo que “(…) a escola, por seu papel de formação da criança, adquire um potencial estratégico capaz de atuar para que os índios passem a ser considerados não apenas um “outro”, a ser observado a distância e com medo, desprezo ou admiração, mas como parte deste nosso maior tesouro: a diversidade.” (p. 116).

Uma obra inovadora, A temática indígena na escola: subsídios para os professores, constitui um riquíssimo trabalho de pesquisa e escrita por parte de Funari e Piñón e que é certo que terá grande aceitação entre os professores das redes públicas e privadas que há muito carecem de um trabalho como este, que é provável que lhes sirva de inspiração e auxílio para que repensem a forma como têm tratado a temática indígena na sala de aula ou até mesmo como eles têm colocado o índio na história quando está dando uma aula de História do Brasil ou da América. Para a próxima edição, sinaliza-se, todavia, a necessidade do maior cuidado editorial em relação às imagens: muitas não possuem legenda, créditos ou autoria.

Independente do cuidado editorial, podemos concluir que está é uma obra de grande relevância para o Brasil atual. E muito de sua relevância está em seu próprioengajamento. E, nestecaso, oengajamentonãosignificaapenasolevantar de uma bandeira, mas, de forma complementar, como definiu a arqueóloga

Solange Schiavetto, o engajamento é um “fazer científico inextricavelmente ligado à sociedade, agindo com e para ela”3 . Assim, o engajamento do livro segue no sentido de contribuir com a construção de meios que permitam a reflexão autônoma, independente e consciente de professores, alunos, pais e interessados na temática. Reflexões que nos permitam compreender como “o Índio” foi se transformando em uma categoria essencializada, discriminada e silenciada ao longo de nossa história.

Notas

1 Para consultar o texto dos Parâmetros       Curriculares Nacionais: http://portal.mec.gov. br/seb/arquivos/pdf/livro051.pdf.

2 Este número foi publicado pelo Programa Povos Indígenas no Brasil e está disponível no site: http:// pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/ populacao-indigena-no-brasil. É preciso destacar, como o próprio Programa sinaliza, que este número que não reflete as diversidades internas de cada um dos grupos indígenas listados.

3 Schiavetto,     Solange     Nunes de  Oliveira.  “A  questão   étnica  no discurso arqueológico: a afirmação de uma identidade indígena minoritária  ou  inserção na identidade nacional?” (p.85). In: Funari, PP.; Orser, C. Jr.; Schiavetto, S. N. de O. (orgs). Identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea. Annablume – Fapesp. São Paulo, 2005.

Aline Vieira de Carvalho – Pesquisadora do NEPAM e coordenadora do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte – NEPAM/Unicamp. E-mail: Contato: alinev81@gmail.com

ictor Henrique da Silva Menezes – Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas – e estagiário do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte – NEPAM/Unicamp. E-mail: henrique.menezes92@gmail.com

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