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O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa
Qual de nós que, em seus dias de ambição, não sonhou o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rimas, tão macia e maleável para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência. É, sobretudo, da frequentação das enormes cidades e do crescimento de suas inumeráveis relações que nasce esse ideal obsessivo
(BAUDELAIRE, 2020, p. 7).
No final de 2020, a Editora 34 lançou O spleen de Paris, que reúne anedotas, reflexões e epifanias (pequenos poemas em prosa) do francês Charles Baudelaire (1821-1866). O volume conta com tradução primorosa de Samuel Titan Junior e texto de apresentação do escritor e cineasta argentino Edgardo Cozarinsky. Esta obra, do poeta maldito, já recebeu mais de dez edições no Brasil ― a primeira em 1937 ― e com certeza outras virão, mas esta tem todo um charme especial, a começar pela capa que traz o autorretrato de Baudelaire. Petits poèmes en prose (Le spleen de Paris) apareceu pela primeira vez, como edição póstuma, no quarto volume das Obras completas (1869) do poeta, organizadas por Théodore de Banville (1823-1891) e Charles Asselineau (1820-874) e editadas pela Gallimard. Leia Mais
O idiota | Fiódor Dostoiévski
“bem vistas as coisas, um arquiduque, um rei, um imperador não são mais do que cornacas montados num elefante”
José Saramago, A viagem do elefante
Fiodor Dostoiévski leva muito tempo para escrever seu magnífico livro O idiota. Ele o concebe em sintonia com as condições sociais que impõem ao povo russo a necessidade histórica de determinação de uma nova civilização. Até primeira metade do século 19, a Rússia é um reino agrário fundado na servidão e governado por imperadores. Coube ao Czar Alexandre II, em 1861, abolir o estatuto da servidão e, desse modo, criar condições ao processo de industrialização do Império russo.
O avanço do capitalismo na Rússia – que leva à extinção da servidão –, se constitui por meio de uma aliança política entre nobres e capitalistas. Os servos repentinamente separados da possibilidade de produzirem sua existência, tal como antes, são compelidos à migração, à busca de trabalho pago fora de suas aldeias e ao assalariamento nas cidades. Nobres também passam a viver nas cidades. Nestas, dedicam-se além do ócio, ao luxo, aos prazeres e devassidões proporcionados por uma riqueza secularmente acumulada. Assim existirão até que sociedade seja subvertida de modo a configurar uma nova ordem de relações humanas. Leia Mais
Como se revoltar? | Patrick Boucheron
Em seu conhecido Sobre o conceito da história2, Walter Benjamin alertava para os riscos de uma percepção teleológica do tempo histórico — para ele, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele foi’” (BENJAMIN, 1987, p. 224). Nesse sentido, o afastamento do tempo presente carrega consigo, em geral, a dificuldade progressiva de exercitar a alteridade — quanto mais nos distanciamos daquilo que nos é familiar, maior é o movimento necessário para amenizar o estranhamento. Pensar a Idade Média, assim, exige um deslocamento por vezes impossível, dado que um imaginário escolar, impreciso e tortuoso, já há tempos coloniza nossas tentativas de aproximação ao Medievo.
A partir disso, num esforço de arejar a relação do contemporâneo com o medieval, o historiador francês Patrick Boucheron3, no ensaio-conferência Como se revoltar?4, publicado em 2016 na França e lançado em 2018 no Brasil, caminha no sentido de romper com esse imaginário — se não falso, ao menos incompleto — da dinâmica social medieval. À quase-abstração necessária para se pensar a Idade Média, Boucheron opõe a universalidade da experiência da juventude, a qual é indissociável, ele diz, da experiência da revolta. Leia Mais
Poética – ARISTÓTELES (RA)
ARISTÓTELES. Poética. Edição bilíngue. Tradução, Introdução e notas de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015. Resenha de: FRANCO, Irley Fernandes. Revista Archai, Brasília, n.18, p. 417-425, set., 2016.
Poética pertence ao grupo dos chamados escritos esotéricos, ou acroamáticos 1 (como eram nomeados pelos primeiros estudiosos de Aristóteles), isto é, escritos ou anotações “do que foi ouvido”ou lido 2. Mais do que isso, a Poética é considerada, por seu caráter incompleto, fragmentário e muitas vezes desconexo, como o exemplo mais perfeito desse gênero aristotélico. Não só não foi escrita para ser publicada, tal os escritos “exotéricos”(ἐξωτερικών συγγράμματα) 3, os diálogos perdidos que o próprio estagirita teria publicado em vida, como é, dentre os “não publicados”, o mais condensado e enigmático. Ela é talvez parte daquele outro gênero, para o qual já havia apontado Cícero, em suas observações acerca dos escritos morais aristotélicos 4: o dos “Comentários”(hoje identificado aos acima citados “esotéricos ou acroamáticos”), gênero que abrange desde os tratados enciclopédicos com argumentação rigorosa e sofisticada, até as anotações mais descuidadas, como, aliás, parece ser aqui o caso. À palavra “comentários”equivale o termo grego ὑπομνήματα, ie, o conjunto de notas que servem para trazer à lembrança determinados temas, possivelmente já tratados (em aulas?) e certamente já publicados.
O próprio Aristóteles jamais usou a terminologia acima citada. na Poética, ele se refere a “escritos publicados”(1454b18: ἐκδεδομένοι λόγοι) justificando o fato de não estar aí explicando os temas que estão sendo tratados, o que fortemente sugere que esta fosse a única classificação dada por ele à sua obra: “publicados”e “não publicados”. na passagem em questão, ele está certamente se referindo ao diálogo Dos poetas (Περὶ ποιητῶν), livro exotérico perdido, mencionado em catálogos antigos e do qual restam-nos apenas fragmentos. neste livro, o filósofo, conhecido e admirado, desde a Idade Média pelo rigor de seus argumentos, teria feito todas as articulações essenciais referentes à matéria esquematicamente apresentada na Poética.
A Poética, ademais, não chegou inteira aos nossos dias. Ela sobreviveu, como os demais escritos acroamáticos, mas, à diferença deles, nunca foi comentada ou revisada durante o período de grande atividade exegética, sobretudo no séc. II com Alexandre de Aphrodisias. Do séc. III ao V, a Poética parece ser totalmente desconhecida. E, conforme o catálogo que nos foi transmitido por Diógenes Laércio (Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres 3 48), ela era composta de dois livros. Um segundo volume teria sido dedicado à comédia e disso sabemos através tanto da própria Poética, onde se lê, no capítulo VI (1449 b21) “da imitação em hexâmetros e da comédia trataremos depois”, quanto de outros tratados de Aristóteles, principalmente a Retórica, que, em dois lugares diferentes, — I, 11, 1372 a 1; III, 18, 1419 b5 —, refere-se ao “γελοῖος”(engraçado, risível) de que já tratara na Poética. a Política, quando menciona que o sentido de catarse será esclarecido ἐν τοἶς περὶ ποιητικῆς (“nos [livros] sobre a poesia”) e tal esclarecimento não aparece no livro I, também nos leva a supor a existência desse segundo livro.
Há ainda o problema peculiar da transmissão do texto da Poética, pois ela descende de quatro manuscritos autônomos: o Parisinus Graecus 1741 (sécs. X-XI), somente descoberto no séc. XVIII, o Ricardianus 46 (séc. XII), a versão latina (Moerbeke, 1278), e o Parisinus Árabe 2376 (c. séc. X) 5, o que agrava bastante a situação já fragmentária do texto acroamático, porque, com a passagem dos séculos, e à medida que os manuscritos foram sendo descobertos, o texto foi também se transformando, sofrendo intercalações, acréscimos, omissões etc. a tradução que ora se comenta usa o texto estabelecido por Rudolf Kassel, edição relativamente recente (1965) e amplamente adotada pelos especialistas em Aristóteles. a versão de Kassel tem a preferência dos scholars porque considera com muita atenção as quatro fontes acima citadas do texto aristotélico. De fato, somente Kassel conseguiu sintetizar de maneira satisfatória esses quatro manuscritos.
Sendo essa, então, a situação em que nos encontramos diante da Poética, considere-se o valor de uma tradução que, além de enfrentar as dificuldades naturais do grego antigo, — língua a que poucos têm acesso — tenha ainda como perspectiva dar a esse texto coerência e unidade. Pois foi essa a tarefa ciclópea a que se entregou Paulo Pinheiro. a fim de dar ao leitor condições de pensar a partir do texto original, pois é essa a finalidade de toda tradução, nosso tradutor não só foi à fonte grega como generosamente a ilustrou com fartas e elucidativas notas, única maneira de garantir que o mais “torturado”dos textos aristotélicos — como o qualificou Eudoro de Souza 6 — ganhasse corpo e clareza. Sem notas, permaneceria ininteligível a maior parte das teses apresentadas na Poética. Tampouco fariam sentido aqueles pontos que nos parecem intransponíveis se não os relacionamos com outras obras do corpus aristotelicum, principalmente com a Ética Nicomaqueia e com a Retórica.
Essa é, pois, a vantagem de termos um tradutor filósofo. E, de fato, em língua pátria, essa é a primeira tradução que tenta dar conta, através de notas explicativas, do vasto material conceitual trazido pela Poética. Termos como μίμεσις, μύθος, κάθαρσις, τύχη, πράξις, ἁρμαρτία etc., alguns hoje caros à teoria da literatura, e cujos sentidos têm sido exaustivamente investigados por estudiosos da Poética, são aí brevemente mencionados, como se fizessem parte de um vocabulário com o qual os leitores já devessem estar familiarizados. Da mesma forma, a maior parte das teses de Aristóteles sobre a poesia é aí lançada sem maiores explicações.
Assim, por exemplo, e em especial, a famosa teoria aristotélica da catarse, cujo sentido aqui somos obrigados a deduzir da definição desesperadoramente lacunar de tragédia, resumida por nosso filósofo em um único parágrafo (cap. VI). as poucas teses aí desenvolvidas, algumas de grande importância para a atual disciplina da Estética, como é o caso do problema da origem da tragédia e da comédia — tema que se tornou caro à filosofia desde O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, de Nietzsche — o são de modo extremamente econômico.
A edição em comento é bilíngue, mas a tradução é perifrástica; sacrifica a forma ao conteúdo. É natural que assim seja, uma vez que o texto parece ser, como já dissemos, um conjunto de anotações descuidadas e que têm por finalidade trazer à memória o que antes já foi ensinado e escrito. o texto é, sem exagero, além de curto (15 páginas, ou 30 colunas) 7, extremamente condensado e tem, no geral, uma estrutura gramatical bastante irregular, sendo seus conteúdos, os mais complexos, tratados inúmeras vezes através de “frases quebradas”. o grego “ao lado”permite-nos constatar a infinidade de anacolutos que nos obrigam a “interpretar”, em lugar de simplesmente “traduzir”.
Nem sempre concordamos com as escolhas do tradutor. algumas vezes, porque destoam de nossas próprias interpretações, tais como a de μύθος por “en- redo”, φόβος por “pavor”, ἁρμαρτία por “erro”, e assim por diante. Já em outros casos, porque consideramos que a escolha do tradutor não reflete todo o conteúdo semântico do termo de origem. Tal é, por exemplo, o caso da tradução de πάθος (1452b 10) por “comoção emocional”. Ora, “comoção emocional”é expressão fraca para significar a violência que se abate sobre o herói trágico e que se dá após o reconheci- mento (άναγνώρισις) e a reviravolta (περιπέτεια), momento tópico, clímax da tragédia complexa. Πάθος é o terceiro elemento da trama (μύθος) e é definido por aristóteles como “uma ação destrutiva ou dolorosa”(1452b 12: πάθος δέ ἐστι πρᾶξις φθαρτιὴ ἢ ὀδυνηρά). o uso da palavra “emocional”sugere uma situação estritamente psicológica, mais presente na mente do que na ação, como se o psicológico estivesse separado e distante da ação. De acordo com a passagem, entre- tanto, o πάθος trágico é uma ação e não uma “emoção”.
Poder-se-ia pensar, por essa razão, que se trata aí de uma tradução que obriga seus leitores a aceitar e seguir suas próprias opções sem lhes dar a possibilidade de reflexão. Mas não é esse o caso, pois nosso tradutor justifica e generosamente explica cada uma de suas escolhas, como o faz justamente em relação ao termo cuja tradução acabamos de criticar: πάθος. Em nota ao termo, Paulo Pinheiro cita diversas traduções já oferecidas na longa história dos estudos da Poética. assim, Eudoro de Souza, traduz por “catástrofe”, Magnien e Hardy, por “événement pathétique”, Dupont-Roc e Lallot por “effet violent”, Else, por “suffering”e, finalmente Halliwell mantém simplesmente “pathos”.
Como observação final, destacamos a importância, muitas vezes negligenciada, da Poética para o pensa- mento e cultura ocidentais. Tomando como exemplo as poesias épica e trágica, Aristóteles, diverge radical- mente de seu mestre Platão, e dá à poesia a dignidade de um domínio próprio, que não mais depende de propostas políticas ou de uma filosofia moral. Pode-se dizer que, pela primeira vez, a mimesis poética é pensada como tendo uma potência própria e que, desde aí, não parou de contar a sua história. os cânones aí introduzidos para a composição da boa tragédia acabaram se tornando paradigmáticos para os demais gêneros literários e, através deles, para outras formas de produção artística, fazendo da Poética um dos livros mais poderosos e influentes da história da literatura ocidental.
Notas
1 ἀκροαματικά, do verbo ἀκροάομαι, “ouvir”, “escutar”, don- de ensinamentos orais.
2 Ao contrário de Platão, que parece desprezar a escrita (vide principalmente Fedro 275a-276a e Carta VII 341a-d), Aristóteles era um grande amante da leitura —Platão o apelidou de “o leitor”(άναγνώστης) na academia – e teria sido o inventor do que hoje chamamos de “biblioteca”. Segundo Estrabão (séc. I a.C), ele « foi o primeiro a colecionar livros e teria ensinado os reis do Egito o modo como organizar uma biblioteca.” Sabemos, além disso, que ele possuía uma coleção particular de livros, a qual, mais tarde, colocou à disposição de seus alunos do Liceu.
3 A expressão aparece em vários autores da antiguidade, por ex., Clemente de Alexandria (c. 250 d.C.), aulo Gélio (séc. I d.C.), Jâmblico (séc. III) e Cícero. Este último refere-se aos escritos “exotéricos”de Aristóteles de modo extremamente elogioso: “flumen orationis aureum fundens “(a cademici Libri 2 119), “dicendi incredibili quadam cum copia tum suavitate “(Topica 1, 3).
4 Cic. Fin. V 5, 12.
5 Em sua Introdução, Paulo Pinheiro comenta brevemente as questões relativas à tradição manuscrita do texto grego. Para uma abordagem ultra detalhada do tema, ver Yebra (1992). Ver também Else (1967) e Eudoro de Sousa (1966). 6 Em sua Introdução à Poética (1966).
7 Comparativamente, a Metafísica tem 114 páginas e a Ética Nicomaqueia 98 páginas. Cf. Whalley (1970, p.77-106).
Referências
ELSE, G. F. (1967). Aristotle Poetics (translated with an introduction and notes). Ann arbor, University of Michigan Press.
RACKHAM, H. H. (1931). Marcus Tullius Cicero. De Finibus Bonorum et Malorum, V 5, 12. Loeb Library. Cambridge, MA.
SOUSA, E. de (1996). Poética de Aristóteles. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndice. Porto Alegre, Globo.
YEBRA, V. García (1992). ΑΡΙΣΤΟΤΕΛΟΥΣ ΠΕΡΙ ΠΟΙΗΤΙΚΗΣ. ARISTOTELIS ARS POETIKA. POÉTICA DE ARISTÓTELES. Edición trilíngue. Madrid, Editorial Gredos.
WHALLEY, G. (1970). On translating aristotle’s Poetics. University of Toronto Quarterly, vol.39, n.2, January, p.77-106.
Irley Fernandes Franco – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: irley.franco@gmail.com
O impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise – SALLUM-(NE-C)
SALLUM JUNIOR, Brasilio. O impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise. São Paulo: Editora 34, 2015. Resenha de: AVRITZER, Leonardo. Entre o conflito de interesses e a nova institucionalidade política. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.103, Nov, 2015.
O livro O impeachment de Fernando Collor é uma obra importante e necessária e que certamente acrescentará ao debate acadêmico nas ciências sociais no país. Desde o impeachment de Collor é pequena a literatura produzida sobre o assunto, e a referência mais importante ainda é um livro publicado por Keith Rosenn e Richard Downes nos Estados Unidos no final dos anos 1990. Poucos trabalhos de fôlego foram realizados no país sobre o tema. O livro de Brasilio Sallum Jr. vem preencher essa lacuna. Ao mesmo tempo, não poderia ser mais oportuno. Existem, neste momento, diversas propostas de impeachment do mandato da presidente Dilma Rousseff tramitando no Congresso Nacional, e o debate sobre o impeachment está sendo travado no Congresso e fora dele sem um conhecimento adequado sobre o assunto. Mais uma vez o livro em tela pode ajudar a preencher essa lacuna.
O livro O impeachment de Fernando Collor tem dois pontos bastante fortes. O primeiro deles é uma tentativa de propor um modelo analítico para o impeachment de Collor que se assenta na literatura de sociologia política. Aliás, o próprio autor destaca no subtítulo a ideia de uma análise a partir da sociologia. O motivo para essa intenção parece bastante claro e está ligado ao fato de o impeachment de Collor, assim como outros momentos decisivos da história do país, envolverem uma ampla coalizão de interesses e ideias. Assim, parece bastante importante analisar quais interesses são esses. O segundo ponto forte é uma análise de atores e coalizões que é um trabalho de natureza fortemente historiográfica com o qual o autor nos permite ver a diferente movimentação dos atores políticos ao longo dos quase três anos de governo Collor. Em conjunto, a sociologia política do autor permite uma complexa análise das movimentações políticas do atores e partidos.
Brasilio Sallum Jr. começa o seu livro mostrando a forte reorientação que o estrangulamento fiscal do Estado brasileiro ocorrido com a crise da dívida externa provocou. Para ele, são as reações à crise da dívida que levaram a um forte reposicionamento no interior da elite empresarial, no sistema de empresas estatais e no interior do sistema político. Esse reposicionamento favoreceu o fim do autoritarismo e permitiu a redemocratização do país. Com a volta da democracia e a Constituinte tivemos um momento de forte rearticulação do desenho institucional brasileiro, que Sallum Jr. sintetiza em alguns pontos: o maior poder concedido a estados e municípios; o aperfeiçoamento dos dispositivos da democracia representativa com a introdução de diversos institutos que propiciaram a participação direta e um conjunto de dispositivos cujo objetivo era diminuir a desigualdade social no país. Mas, junto com essas características, Sallum destaca também o fato de a Constituição ter emprestado uma moldura rígida ligada ao nacional-desenvolvimentismo já afetado pela crise da dívida externa. Por fim, no que diz respeito à arquitetura institucional, o ponto central de Sallum é que a derrota do parlamentarismo teve profundos efeitos. Segundo ele, o balanço geral da Constituição é que ela não foi capaz de superar a crise de hegemonia que perpassava o Estado (p. 38).
Vale a pena analisar o marco proposto por Sallum não só porque ele explica bastante bem as polêmicas que não foram resolvidas pela Assembleia Nacional Constituinte como também porque ele oferece pistas importantes para pesarmos os conflitos em torno do mandato da presidente Dilma que envolvem conflitos semelhantes tanto sobre a configuração do Estado quanto sobre a organização das políticas sociais. Brasilio Sallum Jr. argumenta que houve uma forte inflexão liberal no final dos anos 1980, reforçando agentes econômicos que já haviam se reposicionado a favor do liberalismo no começo da década. Assim, surge com força um projeto de integração competitiva entre esses setores, e é esse projeto que vai polarizar a sociedade brasileira em 1989. Assim, o marco proposto por Sallum é um marco que entende a diferenciação de interesses econômicos causando dilemas societários que por sua vez geram enfrentamentos políticos. Esse é, ao mesmo tempo, o ponto mais forte do livro, mas como mostrarei mais à frente é o seu ponto mais vulnerável também.
A campanha que levou Collor ao poder é descrita com uma grande riqueza de detalhes pelo autor. Ele mostra a importância do complexo midiático, em especial da Rede Globo, cuja influência era muito superior à atual, com a audiência se situando entre 65% e 80%. A construção da imagem de Collor é bem trabalhada, aparecendo frequentemente com os punhos cerrados e os braços erguidos em desafio (p.73), dando a impressão de um super-homem capaz de enfrentar os desafios do país. O autor mostra também a importância do discurso liberal, modernizante e de redução do Estado. Sua vitória eleitoral estabeleceu, desse modo, uma hegemonia do projeto liberal de redução do Estado. No entanto, essa hegemonia não fez com que o debate sobre o próprio Estado e o modelo liberal refluísse. Pelo contrário, Sallum também mostra em detalhes como a clivagem social fez com que o conflito político persistisse durante o governo Collor.
A análise do governo Collor por Sallum opera na tensão entre os interesses econômicos que o apoiaram e as propostas políticas do presidente. Nesse sentido, é como se a articulação entre interesses econômicos e apoio político tivesse trincado já no primeiro momento. Assim, a primeira análise do autor sobre a montagem do ministério já aponta para a vontade do presidente de não colocar um representante de peso da nova agenda liberal no Ministério da Economia. O presidente deixava claro o seu afastamento relativo dos interesses que o elegeram e a sua vontade de ser ele mesmo o gestor da economia. A matriz explicativa para essa tensão que perpassou a formação de todo o ministério é a mesma e se assenta na sociologia política proposta por Sallum, que defende uma forte conexão entre interesses e articulação política. Ainda assim, o argumento do autor é que o campo político amplo da rearticulação liberal, em um primeiro momento, esteve disposto a apoiar o presidente e o seu plano de estabilização econômica. O núcleo do Plano Collor, como é sabido, foi a apropriação e o congelamento de 80% dos ativos financeiros e da moeda em circulação (p. 90). Ao fazê-lo, Collor se posicionou contra a riqueza financeira, como comentaram diversos órgãos de imprensa da época. Assim, em sua primeira ação econômica de peso, Collor propôs um plano entre um certo intervencionismo de esquerda e o reformismo liberal (p.94). Da esquerda, o Plano Collor retirou a ideia de intervir nos direitos associados à moeda indexada, ao passo que do reformismo liberal ele retirou a ideia de intervir profundamente nas estruturas do Estado desenvolvimentista. Junto com o congelamento dos ativos financeiros, ele propôs uma reforma administrativa que mexeu profundamente com a liderança sindical ao anunciar que poria à disposição entre 20% e 25% dos servidores públicos. Desse modo, o que Sallum mostra é que Collor se colocou à margem dos principais interesses representados por ele e se chocou fortemente com os principais interesses representados pelo grupo oposicionista, em especial pelo PT e pela CUT. Nesse sentido, Collor construiu uma imagem voluntarista e autocrática que levaria até o seu impeachment. Sallum mostra como as principais forças dentro do Congresso se posicionaram pela aprovação do Plano Collor: “Os partidos que haviam se comprometido previamente a apoiar o Plano – PRN, PFL, PDS, PTB, PL e PDC – acabaram votando em peso a seu favor […]. O PSDB o PT ou por melhorá-lo e o PMDB – o maior partido, com 159 deputados e 28 senadores – acabou contribuindo decisivamente para a sua aprovação […]”. Assim, a análise de Sallum é que Collor inicia o seu mandato com uma certa disjunção entre interesses e representação política. Ao contrariar os interesses alinhados com uma agenda liberal e tentar atuar por cima deles, ele rompeu com a sua base e passou a depender de uma base no Congresso que lhe dava apoio condicional. Já no final de 1990, Collor é derrotado na votação de diversas medidas provisórias. Assim, Sallum passa a centrar sua análise na arena legislativa e no novo Congresso eleito em 1990.
Os anos 1991 e 1992 foram os anos decisivos para Collor. Brasilio Sallum Jr. começa a descrição desse período com a posse do novo Congresso em 1º de fevereiro de 1991. O dia foi o mesmo em que foi anunciado o Plano Collor II, que mais uma vez congelou os preços e anunciou um tarifaço nos preços da energia elétrica, telefonia e gasolina (p. 121). O segundo Congresso a ser enfrentado por Collor não era muito diferente do primeiro em termos de composição partidária, era um Congresso majoritariamente conservador. Mas era um Congresso mais independente, não apenas porque os seus membros tinham mais quatro anos de mandato, mas principalmente porque ali já se colocava uma agenda de maior autonomia do parlamento em relação ao Poder Executivo. O presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, já falava naquela altura na regulamentação da edição de medidas provisórias. Collor consegue aprovar o Plano Collor II, ainda que com algumas modificações. No entanto, o mais importante naquele momento foi que as modificações não foram mais aprovadas por reedição de medidas provisórias, e sim através de uma negociação com os partidos de centro. Ainda assim, a base política de Collor já aparece arranhada em meados de 1991 devido a diversos conflitos, em especial com o Congresso, com os trabalhadores e com o sindicalismo. Collor, percebendo o esgarçamento da sua base parlamentar, tentou alguns movimentos, entre os quais a substituição da sua ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, por um liberal mais ortodoxo, Marcílio Marques Moreira. Assim, é possível entender a embocadura da análise de Sallum. Para o autor, os arranjos políticos têm que expressar interesses econômicos e quando não o fazem produzem crises. A crise do governo Collor foi provocada por uma disjunção entre representação de interesses e arranjo político. O voluntarismo do presidente tende a afastar dele primeiro a sua base empresarial e em segundo lugar a sua base política. Percebendo tal disjunção, ele muda a condução da economia, em que ainda estava presente uma certa heterodoxia na equipe, mas de alguma forma a recomposição da iniciativa política do presidente não foi possível, já que não houve melhora nem na economia nem na capacidade de negociar com o Congresso Nacional. Começa já em meados de 1991 a pipocar no Congresso um conjunto de iniciativas, todas elas destinadas a reduzir as prerrogativas do presidente. Ao mesmo tempo, começa a se formar uma frente parlamentar que passa a coordenaras ações de PMDB, PT e PSDB. Essa frente, por seu lado, reduziu as possibilidades de um amplo processo de liberalização econômica. Mais uma vez, vemos em operação a ideia de Sallum de sociologia política. Na medida em que o presidente não foi capaz de agregar os interesses econômicos que ele defendia em uma base política sólida, rearticularam-se partidos de centro e esquerda, que então bloquearam a liberalização, mesmo após a mudança do ministério. É essa frente, acrescida da mobilização popular, que será a responsável pelo impeachment.
Oanode1992começoucomumadisputaemtornodoreajustedos aposentados. A partir de uma decisão do Judiciário do Rio de Janeiro sobre esse reajuste, Collor entrou em uma disputa com o Judiciário e o Legislativo que acentuou a crise do seu governo. O presidente do Supremo Tribunal Federal, que tentava naquele momento fazer uso das novas prerrogativas concedidas pela Constituição de 1988 ao Judiciário, se declarou incompetente para sustar um aumento concedido pela justiça aos aposentados do Rio. Collor mais uma vez recorreu ao expediente comum: foi à televisão dizer que não havia recursos para tal e propôs um aumento das contribuições. Imediatamente a Câmara dos Deputados se pronunciou contra tal aumento, criando um impasse em torno do assunto com a assinatura, pelo presidente, de um decreto que retirava poderes do Congresso. Esse impasse azedou de vez a relação do presidente com o Congresso e acentuou a queda da sua popularidade. A popularidade de Collor, que iniciou o seu mandato com mais de 70% de aprovação, vai caindo ao longo dos dois anos e alcança marca próxima a 20% no meio de 1992. Assim, todos os componentes da crise estão no lugar em meados de 1992 e são explicados por Sallum da seguinte forma:“[…] entrou em crise o modo como o presidente da República interpretava o regime democrático por suas palavras e atos de governo, modo distinto em relação ao esperado e propugnado pela maioria das forças políticas presentes no Congresso […]” (p. 184).
Temos assim o início da crise, que se exponencia com as entrevistas do irmão Pedro Collor, que colocam o tema da corrupção no centro da crise política já vivida pelo governo, e que aponta a denúncia na direção do próprio presidente. Collor responde ao irmão no dia 25 de maio, acusando-o de insensato e prometendo processá-lo. Mas a crise prospera no Congresso com a formação, no dia 27 de maio, de uma Frente Parlamentar de Oposição entre PMDB, PT e PSDB, cujo objetivo explícito era a atuação conjunta na CPIM (p. 211). Nesse mesmo contexto, doze organizações se reúnem no dia 29 de maio na sede da OAB e convocam uma mobilização da sociedade civil. Sabemos todo o desenrolar desses eventos. A partir de um desafio tosco à sociedade brasileira, em que um presidente sem apoio pede a manifestação da sociedade a seu favor, o Brasil inteiro se mobiliza, com o apoio da imprensa, a partir de meados de agosto de 1992. Sallum nos dá uma ideia desse ciclo mobilizatório: de quatro a seis eventos por semana ao longo das cinco semanas anteriores a 16 de agosto, passamos a 56 eventos por semana com uma média de participantes de 15 mil pessoas (p. 306). É esse o caldo da mobilização que irá levar, no dia 29 de setembro, ao afastamento de Collor da presidência, seguida da sua renúncia em dezembro.
Um balanço da análise de Sallum encontra alguns pontos fortes decorrentes, como o autor reivindica, da sua sociologia política, mas alguns pontos débeis decorrentes exatamente da sua incapacidade de ir além dela. Os pontos fortes já foram mencionados e estão relacionados à maneira como o autor utiliza a sociologia para tecer uma relação entre o realinhamento dos interesses econômicos nos anos 1980 e uma análise específica de como esses interesses se rearticularam no Congresso. A tese fundamental sobre Collor surge a partir desse marco analítico, e o seu ponto central é que o voluntarismo e o desrespeito a sua base econômica e política criaram os problemas que o presidente enfrentou em 1991 e 1992. Mas os limites da análise de Sallum se encontram justamente aí, porque no primeiro semestre de 1992 Collor muda o seu ministro da Economia e realiza uma reforma ministerial justamente com o objetivo de alinhar o seu governo aos interesses das forças que o elegeram. É esse justamente o momento em que se acentua a mobilização contra Collor. Sallum não tem uma explicação para o fenômeno. O que ele afirma em relação às manifestações é o seguinte:
Durante o governo Collor houve uma crise política importante embora não muito profunda iniciada em 1992 e encerrada com a reforma ministerial de abril. O que diferencia a crise política que se desenvolvia desde o fim de junho […] é que especialmente a partir do domingo negro, ela alterou significativamente a dinâmica do processo político porque a intensificação da mobilização de atores societários não participantes usuais da política nacional rompeu os limites do campo político institucional (p. 308).
Entendo que essa frase expressa os limites da capacidade analítica do autor. O problema que parece lhe escapar é que a democratização brasileira e a Constituição de 1988 ampliaram os limites do campo político institucional, que tem que ser entendido com a presença desses atores e as conexões adequadas entre mobilização, organização da sociedade e dinâmica política institucional. A sociologia de Sallum opera muito bem na interseção entre interesses econômicos e institucionalidade política. Ali ele demonstra os movimentos importantes que as forças sociais realizam no interior das instituições políticas. No entanto, outras categorias mais próprias, como a do institucionalismo político ou da ideia de inovação institucional, faltam no livro, e sua lacuna constitui um problema na sua capacidade explicativa. Sallum aborda de forma muito superficial a nova institucionalidade criada pela Constituição de 1988, que criou inovações que foram muito importantes no governo Collor. Assim, quando o Congresso ou movimentos sociais procuram o Poder Judiciário por meio de ADINs para tentar barrar o decreto sobre as aposentadorias, esse foi um fenômeno absolutamente novo, assim como o foi o ato do presidente do Supremo, de não se posicionar junto com o Executivo na questão das aposentadorias do Rio de Janeiro. Sallum menciona todos esses fatos, mas não lhes atribui a novidade e a importância que tiveram na época e seguem tendo. A análise de Sallum para no voluntarismo e na reação do sistema político ao presidente, utilizando a inovação institucional e a capacidade de mobilização social da oposição como uma variável externa a sua análise. Tenho a impressão de que não é possível entender plenamente o impeachment de Collor sem mostrar uma dimensão que no livro aparece secundarizada: o fio que vai da mobilização da sociedade na direção do papel das novas instituições no campo jurídico (Ministério Público, ADINs e o novo papel da OAB) e alcança o sistema político. O autor mostra muito bem a capacidade de Collor de estabilizar a sua situação no interior do campo político. Mas sua capacidade explicativa parece sucumbir na incapacidade de julgar novos atores e instituições que desde 1988 vêm tendo um papel diferente na política brasileira. Foram elas que influenciaram decisivamente no impeachment de Collor, são elas que têm hoje um papel fundamental em um possível processo de impeachment da atual presidente que está colocado no processo político em curso no Brasil neste ano de 2015. Para entender essas novas instituições não é possível utilizar apenas o marco da sociologia política, como pretende Sallum. É necessário utilizar um marco que atribua às instituições um papel maior que o do abrigo a grupos sociais e políticos com interesses diversos e mostrar como novas instituições produzem novos padrões de relação entre Estado e sociedade. O livro O impeachment de Fernando Collor é uma excelente descrição e análise do evento sob o ponto de vista da articulação política de interesses sociais, mas deixa a desejar sob o ponto de vista de uma análise do impacto das novas instituições nessa mesma institucionalidade. Somente assim seria possível explicar o que falta explicar no livro: por que a ancoragem/blindagem de Collor nos interesses políticos e social-liberais não salvou o seu mandato? Por que os grupos de oposição ao modelo liberal conseguiram se mobilizar muito mais fortemente que os grupos que poderiam sustentá-lo? Por fim, em 1992 como hoje, seria importante explicar o novo marco jurídico das instituições de controle e seu impacto sobre a democracia no Brasil. Em todos os casos, uma sociologia dos interesses nos deixa a meio caminho no processo de explicação desses fenômenos.
Leonardo Avritzer –Professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG.
Sociologia no Espelho. Ensaísticas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970) – BLANCO; JACKSON (PH)
BLANCO, A.; JACKSON, L. C. Sociologia no Espelho. Ensaísticas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2014. Resenha de: TEDESCO, Alexandra Dias Ferraz. Historiadores e sociólogos no espelho. Projeto História, São Paulo, n. 54, pp. 322-330, Set.-Dez. 2015.
A obra de Luiz Carlos Jackson e Alejandro Blanco que comentaremos nesse espaço, Sociologia no Espelho – Ensaístas, cientistas sociais e críticos literários no Brasil e na Argentina (1930-1970), publicada em português pela Editora 34, em 2014, traz, em seu título, algumas das implicações e tensões que constituem o próprio cerne da hipótese do livro. A proposta chama atenção não apenas pelo recorte temporal (datas paradigmáticas nos dois países, que sugerem ainda um período de constantes choques políticos e tensões sociais) mas, principalmente, pela multiplicidade de agentes em análise e em interação, que abre caminho para a hipótese estruturadora da análise dos dois autores: a ideia de que as trajetórias intelectuais operam em relação dinâmica com o contexto de institucionalização das referidas áreas acadêmicas e, ainda, que se pautam – em maior ou menor grau – pelas vicissitudes dos processos sociais que se desenvolvem na esfera não-acadêmica. Assim, embora a proposta do livro aborde, com riqueza de detalhes, algumas oscilações epistemológicas importantes, as questões políticas e sociais não aparecem de forma sorrateira na análise, outrossim, constituem matéria de base para a compreensão da relação entre ensaístas, cientistas sociais e críticos literários nos dois contextos.
Seguindo a proposta dialética da obra, o lugar intelectual de que falam os autores é um dado importante para a compreensão mais ampla da proposta metodológica contida na obra. Alejandro Blanco, graduado em sociologia pela Universidade de Buenos Aires e doutor em História pela mesma universidade, atualmente pesquisador do CONICET, desenvolve uma série de pesquisas no âmbito da História Intelectual, notadamente sobre o processo de institucionalização da sociologia na Argentina.1 Luiz Carlos Jackson, por seu lado, professor de Sociologia da Universidade de São Paulo trabalhou, em sua tese de Livre Docência na mesma Universidade com a perspectiva da Sociologia Comparada.2 Essas breves considerações biográficas ajudam a contextualizar o esforço conjunto do qual resulta Sociologia no Espelho, na medida em que as problematizações buscadas na obra refletem uma importante flexibilidade disciplinar, fundamental, em nosso ponto de vista, para dar corpo a um projeto comparativo que trabalha na fronteira entre a sociologia da cultura, a análise das trajetórias e a história intelectual. É nesse amalgama, inclusive, que o livro ganha centralidade também nas discussões historiográficas, notadamente naquelas que pretendem abrir-se a diálogos transversais, abrindo mão de uma visão laudatória de suas fronteiras epistemológicas. O esforço por operar com um escopo metodológico tão amplo e diversificado dá a tônica, como veremos, da estruturação dos capítulos.
A obra, que conta com prefácio do professor Sergio Miceli, está dividida em três capítulos. São eles, A Batalha dos Gêneros, focado nas relações nem sempre amistosas entre a sociologia e as disciplinas já consolidadas nos campos intelectuais dos dois países – notadamente com o ensaio, Sociologias Comparadas, momento em que os autores aprofundam a reflexão teórica e descortinam as vinculações temáticas dessa sociologia que emerge, nos dois países, a partir das décadas de 1930 e 1940 e, por fim, Terrenos da Crítica, onde a análise se dirige para as relações desse processo de institucionalização da sociologia com o amadurecimento de uma crítica literária profissional nos dois países.
É importante destacar que, ademais da clareza da divisão dos capítulos, há fios condutores evidentes entre eles, quais sejam: a natureza dinâmica do método que evita comparações estanques, procurando lançar uma luz conjunta aos dois contextos, a relação entre o processo de institucionalização da sociologia com os processos político sociais mais amplos e, não menos importante, a articulação das hipóteses a partir da trajetória do que os autores denominam como os “quatro ases” desses processos: Gino Germani e Adolfo Prieto, no caso argentino, e Florestan Fernandes e Antonio Candido, no caso brasileiro. Detenhamo-nos agora, brevemente, aos desdobramentos da hipótese.
O primeiro capítulo parte da ideia de que os embates pelos quais a sociologia procurou se colocar no rol das instâncias de fala acadêmica autorizada foram, nos dois contextos, distintos, sobretudo no grau desses enfrentamentos. No caso argentino, a existência de uma ampla rede de financiamento privado de revistas e circuitos intelectuais operando à margem de uma Universidade que, embora mais antiga que as brasileiras, esteve permanentemente exposta às intervenções do campo político, contribuiu para uma relação de enfrentamento mais branda em relação às tradições consagradas da tradição intelectual argentina, notadamente o ensaio. Além disso, a composição social argentina das décadas de 1930 a 1950 – com a entrada maciça de imigrantes e o aumento de demandas de inserção da classe média – fomentou uma composição mais diversificada para o recrutamento dos universitários na década de 1950. Essa circunstância favoreceu, na análise dos autores, a emergência da sociologia como voz paralela no campo acadêmico, na medida em que a tônica dos ensaios que circulavam na Argentina nas décadas de 1930 e 1940 – e que eram dominados por autores amplamente lastreados por vinculações pessoais e familiares com o mercado privado de instâncias culturais tradicionais, como cafés e salões – não se propunha a reconstituir os nexos históricos e sociais da formação do país, estando muito mais vinculados à chamada “literatura de crise”.3 Comparativamente, o caso brasileiro apresenta um panorama distinto. Nesse caso, o processo de institucionalização dos estudos sociológicos é confrontado com um campo literário consolidado, desde meados do Segundo Império, em torno do romance. Nesse campo já bastante articulado, a relação estreita entre essa tradição romancista e os ensaístas dos “estudos sociais” brasileiros, como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda, promoveu uma configuração salutar: na medida em que as propostas sociológicas desenvolvidas na USP e na ELSP confrontaram-se em termos metodológicos de forma mais dura que em relação ao caso argentino, o fato de esses literatos pertencerem a uma larga tradição de vinculação burocrática e institucional, leva a uma flagrante continuidade nos temas, pelo menos até a década de 1950.4 Em suma, o problema da “formação da nação” marca essa confluência de temas, muito embora a “forma” literária fosse questionada pelo projeto empírico que se gestava nas instituições de sociologia de São Paulo.
No segundo capítulo, uma pergunta inicial aglutina e justifica as digressões teórico-metodológicas que se seguem. Precisamente, como explicar, apesar das diferenças sugeridas no capítulo anterior, o aparecimento de empreendimentos intelectuais tão bem sucedidos, como os de Gino Germani, no caso argentino, e de Florestan Fernandes, no caso brasileiro? A resposta passa por uma análise da questão estrutural das Universidades em que operam esses agentes. A partir de um histórico da formação das três instituições centrais da análise, quais sejam, a Faculdad de Filosofia y Letras da UBA (1896), a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP (1934) e a Escola Livre de Sociologia e Política (1933), o cotejamento dos autores se direciona a pensar de que forma as condições institucionais desses três centros viabilizaram, oportunizaram ou dificultaram um projeto acadêmico bastante ambicioso que une dois “ases” desse processo: Gino Germani e Florestan Fernandes. Na análise comparada, chegam à conclusão de que enquanto Florestan operava a partir de uma tradição mais consolidada e de uma ampla rede de apoiadores (formada, o que não é destituído de importância, por sumidades como D. Pierson e R. Bastide), Germani não conta com essa retaguarda, tampouco com um capital cultural acadêmico comparável ao brasileiro. Sinteticamente, “o brasileiro caminhou da ciência à política, o argentino trilhou o caminho inverno” (161).
Essa condição é fundamental pois é a partir das respectivas tradições intelectuais e institucionais em que se inseriram que os sociólogos desenvolvem suas estratégias de legitimação no espaço público. As Universidades argentinas, como apontado anteriormente, sofreram com longas intervenções – especialmente, a Universidade de Buenos Aires. Posto isso, os espaços acadêmicos atuaram como peça fundamental no acumulo de capital cultural dos intelectuais argentinos, motivo pelo qual a relação do mundo intelectual com o mundo político é comparativamente mais permeada por tensões e oscilações. No caso brasileiro, onde o Estado foi o grande empregador dos “homens de letras” ao longo de toda a primeira metade do século XX, a estrutura universitária era substancialmente mais rígida, o que torna os empreendimentos da sociologia mais orgânicos institucionalmente e, ao mesmo tempo, mais heterônomos em relação à tradição intelectual já estabelecida.
Já postas, dessa forma, as vicissitudes do processo inicial de enfrentamento da sociologia e constituição como uma disciplina autônoma nos dois países, e já balizados seus principais articuladores teóricos em confluência com as questões institucionais, passa-se para o capítulo final, Terrenos da Crítica. Nesse momento da análise a sociologia desponta, enquanto disciplina institucionalizada e em vias de especialização, enquanto legitimadora de uma série de prestígios acadêmicos, relações fundadas tanto no projeto teóricoepistemológico desenvolvido nos dois contextos, quanto nas trajetórias de seus dois protagonistas, que dão uma medida da posição de destaque que a sociologia ocupou, nos dois países, em relação a outras disciplinas do campo acadêmico.
Embora a esta altura já esteja claro que os embates da sociologia para estabelecer-se enquanto disciplina autônoma foram gradualmente distintos nos dois países, a tensão que se observa entre essas perspectivas sociológicas ascendentes e o campo da crítica literária é um fator em comum em ambos os contextos. Em síntese, “nos dois casos e quase ao mesmo tempo a crítica literária aproximou-se da sociologia, esforçando-se por obter um estatuto mais científico do que detinha até, aproximadamente, a primeira metade do século XX” (pg.
167). Como explicar, no entanto, esse movimento compartilhado? Para encontrar essa resposta, Blanco e Jackson trazem mais dois “ases” para o desenvolvimento do argumento: o argentino Adolfo Prieto e o brasileiro Antonio Candido. A análise dessas trajetórias procura levar em conta as tradições intelectuais nas quais se plasmam e, especificamente, as formas de inscrição institucional da crítica literária nos dois países. Salientando a relação díspar dos dois autores em relação ao polo central, representado então pela sociologia, os autores historicizam essas trajetórias cuidadosamente, considerando aspectos às vezes tidos como marginais, como a repercussão das publicações periódicas na definição de um espaço de autonomia para a crítica literária. Ao fim e ao cabo, a posição marginal do crítico literário Adolfo Prieto – atuante em universidades marginais da Argentina – e a posição central de Candido – ligado originalmente ao grupo de Florestan Fernandes na USP – contribuem para entender as disputas epistemológicas travadas por eles dentro de um quadro mais amplo, constituído em função da estrutura dos campos intelectuais em que se inseriram.
Nesse sentido, para dimensionar o impacto da sociologia na Crítica Literária é fundamental ter em vista que o método empírico, repertório teórico e epistemológico que une os projetos de Germani e de Florestan, logrou tornar-se, nas décadas de 1950 e 1960, o próprio paradigma através do qual deveriam se legitimar as análises sobre a modernização nos dois países. Dessa forma, observar de que forma os críticos literários foram confrontados com esse critério de validação, e de que forma se apropriaram do mesmo, é, indiretamente, perscrutar a circulação acadêmica do projeto sociológico, considerando suas distinções mas entendendo-o, como está suposto na proposta da obra, sob o mesmo foco de luz comparativo.
Os capítulos, como pretendemos demonstrar, abordam as tradições intelectuais dos dois países, as vicissitudes das organizações acadêmicas do Brasil e da Argentina e, por fim, as trajetórias dos “quatro ases” a partir de uma perspectiva comparada. A defesa do método, contudo, não é apenas um artifício narrativo, mas constitui o centro da hipótese, e perpassa os capítulos de forma sincrônica, conferindo a eles uma perspectiva contingente, atenta aos perigos de naturalizar determinadas relações entre sujeitos e objetos de pesquisa.
Consideramos, nesse sentido, que a contribuição do livro passa pela consideração das estratégias dos discursos científicos, acadêmicos, intelectuais, enquanto constituintes das dinâmicas de prestígio que organizam as relações entre as disciplinas. Dessa forma, é nessa trincheira entre auto-referenciamento disciplinar e cooperação metodológica que o livro ganha relevância, também, para historiadores.
Entender a disputas entre sociólogos, ensaístas e críticos literários – admitindo, quando é o caso, suas continuidades – em termos de estratégia de legitimação específicas pode indicar, no campo da história, um caminho de auto-reflexidade importante: assim como os “ases” do baralho em que se movem os sujeitos da pesquisa oscilam nas posições dentro do campo, as fronteiras disciplinares não respondem, somente, à discordâncias epistemológicas: são organizadoras do campo e, como tal, exigem, permanentemente, a “vigilância epistemológica” sugerida por Pierre Bourdieu.5 Não se trata, dessa forma, de obscurecer especificidades, mas de abrir-se ao diálogo, de abrir-se a um esforço conjunto de entendimento do mundo intelectual.
Notas
1 Além de uma série de artigos sobre a recepção de autores como Weber e Simmel na Argentina, é possível consultar, também, Razón y Modernidad, publicado em 2006 pela Editora Siglo XXI.
2 No caso de Jackson é possível consultar, além de seus estudos sobre a chamada Escola Paulista de Sociologia, a obra Os Parceiros do rio Bonito e a Sociologia de Antônio Cândido, publicado pela Editora da UFMG em 2002.
3 Esse é um dado importante para compreender os embates dentro do campo intelectual argentino, na medida em que, nesse caso, dá-se uma separação entre o campo acadêmico universitário (mais diretamente influenciado pelas hecatombes políticas das décadas de 1930 e de 1940) e uma longa e consolidada tradição de circulação de ideias e intelectuais nos ambitos privados, restritos às sociabilidades criollas. Exemplo dessa condição é o próprio CLES (Colégio Livre de Estudos Superiores) que atua – nos momentos de intervenção peronista na Universidade – como alternativa aos intelectuais que tiveram suas cátedras caçadas durante o regime. A existência e a força dessas plataformas de consagração acadêmica extra-universitárias, portanto, contribui para que a sociologia que emerge dentro do mundo acadêmico, na década de 1950, não dispute a mesma posição no campo intelectual. É um contraste bastante marcado em relação ao caso brasileiro, onde a tradição literária esteve, desde sua origem, vinculada às instituições acadêmicas, tanto por seu público como pela trajetória de seus principais autores.
4 Os autores levam em conta, nessa análise comparativa, que enquanto Buenos Aires era o grande centro da vida intelectual argentina, centralizando a maior parte desses embates, o caso brasileiro apresenta um outro fator de complexidade: as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro vivenciaram processos radicalmente distintos. Enquanto na primeira, pela questão da imigração e da relativa distância dos centros políticos de decisão, foi possível pensar a sociologia enquanto um projeto de cunho científico, no caso carioca a precoce criação de institutos ligados ao poder governamental tornou os embates mais imbuídos de conteúdo político. Essa relação é perene ao longo de todos os capítulos do livro, na medida em que se, em certos sentidos, Buenos Aires aparece em relação de similitude com o Rio de Janeiro – pela proximidade do poder e pelas redes de burocracia oficiais que se constituíam num fator dificultador da economia -, em termos de base de recrutamento e de projeto teórico e metodológico, a capital portenha possuía paralelos importantes com a cidade de São Paulo.
5 BOURDIEU, P. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2001.
Alexandra Dias Ferraz Tedesco – Mestre em história pela UNESP, campus de Franca, e doutoranda do programa de Pós Graduação em História da UNICAMP, bolsista do CNPq.
Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva – PETIT (REi)
PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. 2. ed. Tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: Editora 34, 2009. Resenha de: MUNIZ, Dinéa Maria Sobral; VILAS BOAS, Fabíola Silva de Oliveira. Revista Entreideias, Salvador, v. 4, n. 2, 152-157 jul./dez. 2015.
Michèle Petit é antropóloga e tem obras traduzidas em vários países da Europa e da América Latina. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva foi a primeira lançada no Brasil (2008) e recebeu o Selo “Altamente Recomendável” da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Além dessa obra, a Editora 34 também publicou A arte de ler: ou como resistir à adversidade (2009) e Leituras: do espaço íntimo ao espaço público (2013). A edição brasileira de Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva estabelece o convite à leitura desde a capa, em tom azul forte, com uma xilogravura de Moisés Edgar, do Grupo Xiloceasa (SP). A “orelha” do livro, escrita por Marisa Lajolo, é igualmente convidativa, pois ressalta o fato de que a leitura integra a pauta de diferentes agendas brasileiras, o que torna o livro mais que oportuno no país, e por esse motivo, certamente, interessará àqueles “[…] fascinados pela alquimia que, através das palavras impressas, aproxima as pessoas umas das outras, descortinando novas paisagens do universo que compartilhamos.1” O sumário da obra, além do prefácio escrito por Petit especialmente para a edição brasileira, apresenta quatro seções: “As duas vertentes da leitura”, “O que está em jogo na leitura hoje”, “O medo do livro” e “O papel do mediador”. No prefácio, a autora declara que, antes de vir ao Brasil pela primeira vez, desde que participou, em Paris, no ano 2005, das comemorações do “ano do Brasil na França”, começou nutrir a esperança de conhecer o país.
Na ocasião das comemorações, assistiu a concertos e exposições, descobriu telas do pernambucano Cícero Dias, leu lendas contadas por Clarice Lispector, seguiu relatos de J. Borges e J. Miguel, através de suas xilogravuras, de modo que essas (e outras) experiências alimentaram o desejo de estar em terras brasileiras.
Também no prefácio, Petit, a fim de contextualizar o desenvolvimento das pesquisas apresentadas, analisa o processo da democratização do ensino na França e suas armadilhas. Para a antropóloga, a inserção de jovens oriundos de camadas populares e marginalizadas nos segmentos secundário e universitário sempre fora conduzida a passo forçado, sem a oferta de meios pedagógicos que de fato os acolhessem. A observação de suas formas de viver e estudar permitiu constatar que eles não tinham acesso à cultura escrita, faziam anotações malfeitas e ilegíveis, apresentavam desconhecimento total das bibliografias, não pesquisavam em bibliotecas.
Esse bloqueio extremamente prejudicial dos jovens em relação à leitura só foi ultrapassado “graças a mediações sutis, calorosas e discretas ao longo de seu percurso” (p. 11). A biblioteca, nesse cenário, figurou tanto como um espaço de formas de sociabilidade, que os protegia das ruas, quanto um local profícuo para que estabelecessem uma relação mais autônoma com a cultura escrita e mais singular com a leitura.
Na primeira seção, “As duas vertentes da leitura”, Petit toma depoimentos de pessoas de diferentes níveis sociais, nos meios rurais franceses, e apresenta duas concepções de leitura de onde deriva cada vertente: uma marcada pelo grande poder atribuído ao texto escrito e outra marcada pela liberdade do leitor. A prática de leitura individual e silenciosa era incomum para esses sujeitos, pois boa parte dos entrevistados evocou lembranças de leituras coletivas, em voz alta (escola, catecismo, internato), ocasiões nas quais era possível controlar o acesso aos textos escritos, seus conteúdos, seus modos de dizer. Opondo-se a essa concepção e prática de leitura como “controle”, Petit adverte:
[…] não se pode jamais estar seguro de dominar os leitores, mesmo onde os diferentes poderes dedicam-se a controlar o acesso aos textos. Na realidade, os leitores apropriam-se dos textos, lhes dão outro significado, mudam o sentido, interpretam à sua maneira, introduzindo seus desejos entre as linhas: é toda a alquimia da recepção. (p. 26)
Por acreditar na vertente que focaliza a leitura como elemento essencial à formação de um espírito crítico e livre, considerado a chave de uma cidadania ativa, a autora argumenta a favor do poder que a leitura tem para provocar um deslocamento da realidade, ao abrir espaço para o devaneio, no qual tantas possibilidades de interpretação podem ser cogitadas. Nesse sentido, Petit defende que a leitura instrutiva não deve se opor àquela que estimula a imaginação; ao contrário, ambas devem ser aliadas, uma vez que “contribuem para o pensamento, que necessita lazer, desvios, passos para fora do caminho.” (p. 28). Por fim, Petit discute e caracteriza o leitor “trabalhado” por sua leitura como um sujeito ativo, que opera um trabalho produtivo à medida que lê, inscreve sentidos na leitura, reescreve, altera-lhe o sentido, reemprega-o, mas que se permite, também, ser transformado por leituras não previstas.
Em “O que está em jogo na leitura hoje em dia”, segunda seção da obra, a antropóloga lança ao leitor questões disparadoras: “Por que é ler é importante? Por que a leitura não é uma atividade anódina, um lazer como outro qualquer? Por que a escassa prática de leitura em certas regiões, bairros, ainda que não chegue ao iletrismo, contribui para torná-los [os jovens] mais frágeis?” (p. 60). Pensando inversamente, Petit interroga: “de que maneira a leitura pode se tornar um componente de afirmação pessoal e de desenvolvimento para um bairro, uma região ou um país?” (p. 60).
Para a autora, tais questões envolvem uma série de ângulos e registros. Contudo, a verdadeira democratização da leitura engloba a concepção dessa como um meio para se ter acesso ao saber, aos conhecimentos formais, sendo capaz, assim, de modificar o destino escolar, profissional e social das pessoas. Passa também pelo aspecto da leitura como uma via privilegiada para se ter acesso a um uso mais desenvolto da língua, pois essa pode, por vezes, constituir-se “uma terrível barreira social” (p. 66). A linguagem e a leitura têm a ver, ainda, com a construção de si próprio como sujeitos falantes, pois a leitura pode, em todas as idades, “ser um caminho para se construir, se pensar, dar um sentido à própria existência, à própria vida; para dar voz a seu sofrimento, dar forma a seus desejos e sonhos”. (p. 72).
Petit também retoma nessa seção a ideia da hospitalidade da leitura literária, da literatura como um lar. Para ela, os jovens que leem literatura são os que mais têm curiosidade pelo mundo real, pela atualidade e pelas questões sociais. Dessa forma, a leitura permite ao sujeito conhecer a experiência de outras pessoas, outras épocas, outros lugares e confrontá-las com as suas próprias, ampliando, assim, os círculos de pertencimento e criando um pouco de “jogo” no tabuleiro social. (p. 100).
Na terceira parte, intitulada “O medo do livro”, Petit problematiza que, se por um lado a leitura é a chave para uma série de transformações e o prelúdio para uma cidadania ativa, ela também suscita medos e resistências que encontram representação na seguinte voz comum: “É preciso ler”. A partir dessa relação ambivalente com a leitura, a autora cita exemplos de pessoas de diferentes regiões, muitas do campo, que, para ler, enfrentaram obstáculos, tais como a falta de domínio da língua e de acesso aos textos impressos, acessível apenas para representantes do Estado e da Igreja. A leitura era, assim, arriscada para o leitor, que poderia se ver privado de sua segurança ao pôr em jogo “tanto as fidelidades familiares e comunitárias como as religiosas e políticas” (p. 110).
Petit finaliza o capítulo desenvolvendo esta questão central: agora, definitivamente, como nos tornamos leitores? Para além do que provoca em termos da estrutura psíquica, a autora responde que a leitura é, em grande parte, uma história de família, de presença de livros e de adultos leitores; é, também, o papel da troca de experiências relacionadas aos livros (ler em voz alta, com gestos de inflexão da voz); pode ser, ainda, uma máquina de guerra contra os totalitarismos, contra os conservadorismos identitários, contra os querem imobilizar o outro a qualquer custo; enfim, a leitura é “uma história de encontros”. (p. 148).
A última e quarta conferência, “O papel do mediador”, destaca a importância de cada um que atua como mediador de leitura, seja ele um professor, um bibliotecário, um livreiro, um amigo e, até mesmo, um desconhecido que cruza o nosso caminho.
Para Petit, um mediador funciona como um elo entre o leitor e o objeto de leitura e “pode autorizar, legitimar um desejo inseguro de ler ou aprender, ou até mesmo revelar esse desejo.” (p. 148).
Os entrevistados participantes da pesquisa apontaram professores e, mais frequentemente, bibliotecários como seus principais mediadores. No caso dos professores, chamou a atenção um fato: mesmo muito críticos em relação ao sistema escolar, os jovens sempre lembravam um professor singular, que transmitia sua paixão por um livro, seu desejo de ler, fazendo-os, inclusive, gostar de ler textos difíceis. Após elencar excertos dos entrevistados sobre seus professores, Petit afirma que “para transmitir o amor pela leitura, e acima de tudo pela leitura de obras literárias, é necessário que se tenha experimentado esse amor.” (p. 161). Sobre os bibliotecários, a autora os define como pontes para universos culturais mais amplos. Assim, o iniciador aos livros é aquele que ajuda o outro a ultrapassar os umbrais em diferentes momentos do percurso, “é também aquele que acompanha o leitor no momento, por vezes tão difícil, da escolha do livro, aquele que dá a oportunidade de fazer descobertas […]”. (p. 175).
Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva, de Michèle Petit, é, certamente, uma obra de grande relevância por sua temática, pela abordagem sensível e profunda do assunto e pelo evidente conhecimento da causa da autora sobre variadas questões relacionadas à leitura. Petit consegue arrematar, por meio das reflexões apresentadas, o quão importante é compreender a leitura como um elemento capaz de transformar sujeitos e retirá-los de um contexto de exclusão e segregação, dando-lhes novas perspectivas de vida.
Notas
(1) Trecho retirado da orelha do livro.
Dinéa Maria Sobral Muniz – Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFBA Coordenadora do GELING (Grupo de estudo e pesquisa em Educação e Linguagem). E-mail: sobraldm@ufba.br
Fabíola Silva de Oliveira Vilas Boas – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFBA. E-mail: fabiolasovb@gmail.com
São Paulo: Novos recursos e atores – Sociedade, cultura e política – KOWARICK; MARQUES (NE-C)
KOWARICK, Lúcio; MARQUES, Eduardo (Orgs.). São Paulo: Novos recursos e atores – Sociedade, cultura e política. São Paulo: Editora 34/Centro de Estudos da Metrópole, 2011. Resenha de: Goulart, Jefferson. Novos percursos e atores em São Paulo: indicativos para uma agenda de pesquisa. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.97, Nov, 2013.
É conhecido o enigma da esfinge: decifra-me ou te devoro. A ideia fundamental consiste em que o ignorado é capaz de nos tragar precisamente pela dificuldade de compreendê-lo. Provavelmente a mais radical efetivação do enunciado tenha se materializado por ocasião da ruptura com o Ancien Régime e na invenção da modernidade, quando Saturno revelou sua fúria e devorou os próprios filhos – os rebentos da revolução. A pergunta indigesta permanece: mesmo em um novo mundo pautado pela razão, estaríamos condenados à ignorância?
Particularmente no que respeita aos estudos urbanos, nossa trajetória intelectual é valiosíssima. As pesquisas de diferentes áreas do conhecimento e mesmo aquelas de abordagem interdisciplinar produziram um extenso mosaico sobre a realidade urbana brasileira, notadamente das grandes cidades. Não por acaso, a obra organizada por Kowarick e Marques se inicia no olhar panorâmico e retrospectivo sobre essa produção.
O legado desse conhecimento influenciou gerações de estudos, demarcando a indissociável relação entre segregação socioespacial e dinâmica capitalista, ou seja, o urbano tratado como objeto privilegiado de reprodução do capital sob o impulso do Estado mediante a existência de um exército industrial de reserva. Pobreza e desigualdade tematizaram a literatura correspondente para depois se fragmentarem teórica e metodologicamente.1
Mesmo assumindo-a como uma escolha arbitrária, a síntese dessa tradição de pesquisa pode ser identificada no achado seminal de que a percepção de caos e a aparente ausência de ordem tinham, sim, uma lógica: a da espoliação urbana.2 Mais ainda: a acumulação foi operada por meio de mecanismos de dilapidação da força de trabalho (e nas formas perversas de sua reprodução), da primazia do capital financeiro-imobiliário que se manifestou em grandes ações das incorporadoras e da interrupção de direitos de cidadania mediante uma ação estatal autoritária. Enfim, uma urbanização anômica3 que se traduziu em uma desordem ordenada.
A multiplicidade de influências teóricas e de escolhas metodológicas dessa rica tradição – dentre as quais se destaca o prestígio da matriz estruturalista da sociologia marxista francesa – ensejou um consenso genérico sobre o processo de urbanização em geral e particularmente sobre sua maior cidade: “cidade multifacetada, plena de contrastes, conjugando dinamismo, coração econômico do país marcado por vastas extensões de pobreza”.4 São Paulo é isso e muito mais.
São Paulo: novos percursos e atores se debruça precisamente sobre esse “muito mais”, e oferece um largo panorama das mudanças recentes, das permanências e das rupturas que fizeram dessa megalópole um lugar paradoxal que provoca amor e ódio, e cujo magnetismo já não é mais o mesmo a ponto de atrair e fascinar os incautos. Assim desmistificam-se as previsões demográficas do século XX5, constatação inseparável da tendência à sobreposição de funções de estruturas econômicas industriais e terciárias.6 Mais ainda: as desigualdades do mercado de trabalho têm determinações anteriores ao acesso à ocupação, relacionadas aos atributos desses candidatos ao emprego e aos contextos nos quais estão inseridos.7
A chave do enigma foi anunciada no título da obra, na adoção de um adjetivo temporal no plural: novos. É em torno dessa escolha (menos semântica e mais conceitual e analítica) e de sua subjacente aspiração ao postulado de que, com efeito, emergiram novos personagens e engrenagens, que o livro deve ser compreendido. E a referência cronológica não deve ser ignorada: embora nem todos os autores a adotem como recorte específico, as últimas quadro décadas alteraram substantivamente as configurações socioeconômica e político-institucional da cidade. Dessa perspectiva, organizadores e autores não só são convincentes como remetem a problemas cuja complexidade ainda precisa ser analisada contínua e detidamente.
Nesses termos, São Paulo: novos percursos e atores ingressa na galeria das leituras obrigatórias sobre o urbano porque sintetiza uma guinada sutil nos estudos sobre a grande megalópole. E as razões dessa distinção são diversas.
Primeiro, naturalmente, porque é convincente na pretensão de demonstrar a originalidade de alguns desses novos atores e percursos. Vista de um ângulo genérico ou aparente , evidente que São Paulo permanece segregadora, desigual e paradoxal: opulência e riqueza de um lado, vulnerabilidade e miséria de outro. Mas o tempo e os subterrâneos da cidade abrigaram mudanças importantes de quantidade e qualidade que a tornaram efetivamente diferente sob vários aspectos, a ponto de a oposição centro-periferia não ser mais suficiente como modelo explicativo das desigualdades urbanas.
Alguns exemplos simbolizam bem essas mudanças. O primeiro deles reside no plano da identidade cultural e particularmente na emergência do rap como expressão periférica de ressignificação da vida pública fundada em uma “ordem moralista, onde não existe lugar para diferença”.8 Outro é a dificuldade de discernir linhas divisórias precisas entre o “correto” e o “ilegal, o informal e o ilícito”, afinal essas dimensões (como o negócio do comércio de drogas) são socialmente legitimadas, assim como “nesses pontos de fricção que homens e mulheres negociam a vida e os sentidos da vida. No fio da navalha. O fato é que os indivíduos e suas famílias transitam nessas tênues fronteiras do legal e do ilegal…”.9
Além da presença de novos atores (caso emblemático do pcc), “o mapa da violência em São Paulo revela o confinamento da violência letal nas periferias: as franjas da cidade concentram o maior numero de homicídios”.10
Antes cidade de portugueses, italianos, espanhóis, orientais, sírio-libaneses, ex-escravos e judeus que imprimiram suas marcas a bairros, costumes e à materialidade da urbe, a São Paulo contemporânea acolhe novos estrangeiros, cujo ingresso é útil para também compreender processos complementares como a produção de serviços urbanos, as relações capital-trabalho ou as interações culturais.11
Cidade de favelização tardia comparativamente ao Rio de Janeiro, São Paulo vem registrando uma expansão desse tipo de habitação precária que sintetiza um fenômeno indissociável de sua dinâmica econômica, com destaque para a precarização do trabalho como sintoma de um estado de vulnerabilidade social mais amplo. Essa trajetória, contudo, não é linear. Tal heterogeneidade autoriza a formulação de uma “tipologia das favelas”, cuja “análise comparativa permite sustentar a existência de uma razoável variabilidade entre núcleos favelados da cidade”.12 Ainda mais surpreendente (e perturbador) é que “em termos relativos, as favelas não apenas melhoraram, como se aproximaram da situação de outros moradores da cidade, sugerindo um processo de convergência, incompleto e talvez excessivamente lento, mas mesmo assim existente entre os indicadores médios de favelados e não favelados”.13
Outros exemplos se situam no plano das relações políticas. De um lado, há que se reconhecer o processo de institucionalização da participação, mas essa trajetória não prescindiu da permanência dos movimentos sociais. Pelo contrário, estes ainda são vigorosos, sobretudo, nas temáticas mais sensíveis das políticas públicas, caso notável da centralidade da habitação.14 Claro que as práticas de clientela não desapareceram, mas os atores também não são apenas os tradicionais, aos quais se juntaram as articuladoras do associativismo, “novo tipo de ator criado na última década [que] ganhou centralidade e posicionou-se ao lado dos movimentos pela sua capacidade de agregação de demandas e de coordenação da atuação de outros atores”.15
Nessa senda, a violência organizada não se confunde com os movimentos sociais, mas não deixa de exprimir um novo e importante protagonista na cena urbana. Se em tempos não tão remotos a ascensão socioeconômica transcorria por meio das teias de integração social do trabalho, agora o cenário é bem diferente, pois “abriu-se espaço para que o ‘mundo do crime’ disputasse legitimidade com toda essa série de instituições e atores tradicionalmente legítimos nas periferias da cidade”.16 Tais mudanças foram percebidas inclusive pelo cinema, que as retratou de maneira ora caricata, ora mais realista, através de registros que às vezes selam o abismo entre distintos universos sociais e a impossibilidade de convívio entre esses mundos diferentes ou que exaltam marcas identitárias da periferia.17
No plano estritamente político, a análise de Limongi e Mesquita18 demonstra a polarização entre direita e esquerda no comportamento do eleitorado paulistano desde o restabelecimento das eleições diretas para prefeito da capital, em 1985. Os autores observam a estabilidade do eleitorado e enfatizam que as disputas têm nos eleitores de educação média (no quesito socioeconômico) e de centro (no quesito ideológico) seu núcleo decisivo. Se tais postulados estiverem corretos – e há fortes razões para aceitá-los -, os resultados de 2012 marcam uma importante guinada rumo à esquerda, cuja inclinação do centro ainda está por ser analisada.
Mas há pelo menos duas omissões importantes nas abordagens políticas do livro. A primeira diz respeito não às estratégias eleitorais e ao comportamento (relativamente flutuante) do eleitorado, mas ao desempenho desses diferentes governos de direita e de esquerda, ou seja, como estes têm se comportado na gestão de políticas públicas e quais teriam sido as razões para as oscilações do eleitorado centrista.
Outra ausência é a escassez de análises de gestão urbana, isto é, as políticas públicas e os instrumentos através dos quais os diferentes governos municipais têm enfrentado a agenda urbana: a gestão do território, a aplicação da função social da propriedade, o tratamento das agudas questões da mobilidade urbana e da habitação social (dentre outras), enfim uma avaliação político-institucional do modelo de produção do espaço urbano. Nesse sentido, um balanço – mesmo que preliminar – sobre a aplicação do Estatuto da Cidade seria indispensável, afinal, trata-se de bandeira histórica do movimento pela reforma urbana que vigora desde 2001, regulamentou o capítulo da Política Urbana da Constituição cidadã e que tem suas marcas institucionais no Plano Diretor Estratégico de São Paulo.
A segunda razão do caráter original do livro diz respeito à sua pluralidade teórica e metodológica, mérito que corrobora a correção de abordagens interdisciplinares e multidisciplinares sobre um mesmo objeto.
Definitivamente não há hierarquia entre escolhas de ferramentas sociológicas, urbanísticas, etnográficas, demográficas, políticas, comunicacionais e quaisquer outras. Pelo contrário, seus usos simultâneos produzem modelos explicativos mais sólidos e análises mais críveis. Essa diversidade de olhares revela descobertas e resultados complementares. Tal virtude contrasta com a tendência tão em voga de fragmentação excessiva do conhecimento, inclinação absorvida pelas instituições científicas e respectivas agências cujo maior risco é o confinamento do saber. São Paulo: novos percursos e atores ousa ir contra a maré, e o faz de forma persuasiva.
A terceira virtude da obra é que, mesmo não tendo a pretensão de ser conclusiva, remete a uma agenda de pesquisa que, embora já se manifestasse de forma mais ou menos difusa, ainda não fora objeto de um esforço de sistematização.
Em boa medida, essa agenda está anunciada nos temas e nas abordagens dos autores – e até poderíamos aceitar o agrupamento apresentado pelos organizadores: “viver e habitar na cidade”; “trabalho e produção”; “política e representação”; e “sociabilidade, cotidiano e violência” -, mas a proposta ainda se revela incompleta. E este é um ponto delicado, pois também envolve escolhas éticas e alguns tabus no universo acadêmico.
Um exemplo provocativo: conhecemos razoavelmente a precariedade da infraestrutura urbana das periferias, das favelas e dos cortiços, estudamos as diferentes expressões da violência e suas determinações e impactos ou ainda sabemos dimensionar minimamente os efeitos da informalidade nas relações de trabalho, todas essas dimensões relativas aos pobres e miseráveis, mas são escassos os estudos sobre os “de cima” da pirâmide social, como se sua posição socioeconômica privilegiada fosse justificativa moral para ignorá-los.
Essa lacuna é reconhecida pelos próprios organizadores quando advertem que [o livro] “não analisa centralmente um outro lado da cidade, que envolve parcela significativa da riqueza nacional”.19
A propensão a dar as costas a esses atores gera prejuízos cognitivos à medida que desconhecemos como vivem, como se organizam e como atuam tais personagens. Ou seja, como suas escolhas (e percursos) interferem na dinâmica urbana. Claro que a “desumanidade da Cracolândia”20, por exemplo, é um grande tema de pesquisa, porém, é inegável que a solução dessa chaga – em suas múltiplas dimensões: da marginalização social per se, da generalização do consumo de drogas, da saúde pública ou da violência – implica conhecer o “outro lado”, qual seja, a banda dos concertos da Sala São Paulo e os interesses imobiliários que operam no Projeto Nova Luz (e que são característicos de quaisquer processos de gentrification). Ou ainda: que o conhecimento sobre a expansão da favelização é inseparável da ação dos interesses do capital imobiliário e da conduta empresarial nas relações trabalhistas. Assim sucessivamente poderiam ser invocados exemplos ad nauseam. Fato é que ainda conhecemos pouco os “de cima”, e como estes efetivamente interferem na cena urbana e nas decisões públicas.
Em seu primeiro pronunciamento após vencer as eleições de 2012, o novo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, declarou que a cidade foi inventada para proteger e promover a integração social, e que era seu compromisso resgatar tais ideais. Bom presságio, em que pese o sabido abismo que separa o discurso normativo da realidade. O enigma da esfinge permanece nos desafiando: ou compreendemos São Paulo ou ela nos devora. Nesses termos, seria mais do que oportuno – na verdade um imperativo – absorver a advertência de J. Jacobs de que cidades vivas têm em suas próprias crises os germes da regeneração.21 O próximo período poderá responder se esse otimismo contido é justificável.
Novos personagens e seus respectivos caminhos foram enunciados em 16 textos por 26 autores – baliza paradigmática na agenda de pesquisa sobre o urbano em geral e São Paulo em particular -, restando agora continuar a decifrá-los. Este é, simultaneamente, o mérito e o desafio de São Paulo: novos percursos e atores.
Notas
1 MOYA, Maria Encarnación. “Os estudos sobre a cidade: quarenta anos de mudança nos olhares sobre a cidade e o social”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (Orgs.). São Paulo: novos percursos e atores – sociedade, cultura e política. São Paulo: Editora 34/Centro de Estudos da Metrópole, 2011, pp. 25-50. [ Links ]
2 A esse respeito, ver: KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. [ Links ]
3 KOWARICk e MARQUES (orgs.), op. cit., p. 15.
4 Ibidem, p. 9.
5 BAENINGER, Rosana. “Crescimento da população na Região Metropolitana de São Paulo: descontruindo mitos do século XX”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 53-78. [ Links ]
6 COMIN, Alvaro. “Cidades-regiões ou hiperconcentração do desenvolvimento? O debate visto do Sul”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp.157-177. [ Links ]
7 GUIMARÃES, Nadya; BRITO, Murillo de; SILVA, Paulo Henrique da. “Os mecanismos de acesso (desigual) ao trabalho em perspectiva comparada”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 179-204. [ Links ]
8 CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. “O rap e a cidade: reconfigurando a desigualdade em São Paulo”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 318. [ Links ]
9 TELLES, Vera da Silva; Hirata, Daniel. “Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 391. [ Links ]
10 MIRAGLIA, Paula. “Homicídios: guias para a interpretação da violência na cidade”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 334. [ Links ]
11 LEME, Maria Cristina da Silva; Feldman, Sarah. “A presença estrangeira: processos urbanos e escalas de atuação”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 131-154. [ Links ]
12 SARAIVA, Camila; Marques, Eduardo. “Favelas e periferias nos anos 2000”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 119.
13 Ibidem, pp. 126-7.
14 TATAGIBA, Luciana. “Relação entre movimentos sociais e instituições políticas na cidade de São Paulo: o caso do movimento de moradia”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 233-252. [ Links ]
15 LAVALLE, Adrian Gurza; CASTELLO, Graziela; BICHIR, Renata. “Movimentos sociais e articuladoras no associativismo do século XXI”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 260. [ Links ]
16 FELTRAN, Gabriel. “Transformações sociais e políticas nas periferias de São Paulo”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 361. [ Links ]
17 HAMBURGUER, Esther; STÜCKER, Ananda; CARVALHO, Laura; Ramos, MIGUEL. “Cinema contemporâneo e políticas de representação da e na urbe paulistana”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 279-299. [ Links ]
18 LIMONGI, Fernando; Mesquita, Lara. “Estratégia partidária e clivagens eleitorais: as eleições municipais pós-redemocratização”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 207-232. [ Links ]
19 KOWARICK e MARQUES, op. cit., p. 16.
20 KOWARICK, Lúcio. “O centro e seus cortiços: dinâmicas socioeconômicas, pobreza e política”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p.88. [ Links ]
21 JACOBS, Jane. Morte e Vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. [ Links ]
Jefferson O Goulart – Professor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).
O inconsciente estético – RANCIÈRE (AF)
RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Ed.34, 2009. Resenha de: SOARES, Ednei. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.
É sabido que Freud recorreu à arte para encontrar nela algo que lhe fornecesse material analítico a fim de expor e discutir suas descobertas.
Ora, a obra de Freud é repleta de referências às obras de arte advindas ora da literatura, ora da pintura e da escultura. Os textos das primeiras décadas do século XX o com provam: “ Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen ” (1907), “ Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância ” (19 10), “ O Moisés de Michelangelo ” (1913), “O Estranho” (1919) e “ Dostoievski e o parricídio ” (1928).
Sabe-se também que existem outras maneiras de reconhecer o recurso psicanalítico às artes.
Desde Lacan, vimos a produção de uma inversão em relação àquela primeira perspectiva freudiana. Ao invés de aplicar a psicanálise à leitura das obras de arte, veremos psicanalistas e estudiosos d o campo aplicar a arte à psicanálise, isto é, a arte enquanto aquela que permite avançar a teoria psicanalítica.
É por meio deste debate que o filósofo Jacques Rancière, em “ O Inconsciente Estético” (2009), trata das relações entre a teoria freudiana e o domínio da estética.
Filósofo, Jacques Rancière é Professor Emérito de Estética e Política na Universidade de Paris VIII, onde lecionou de 1969 a 2000. Apesar de seu lançamento em 2009, o texto de “O Inconsciente Estético” foi extraído das conferências que Jacques Rancière realizou nove anos antes na École de Psychanalyse em Bruxelas durante janeiro de 2000. Entre os campos da E sté tica e da Política, Jacques Rancière ainda não tem toda sua obra publicada em língua portuguesa. Desde a década de 1970 temos “Sobre a Teoria da Ideologia” (1971) e mais adiante, por editoras brasileiras, “A Noite dos Proletários” (1988), “Os Nomes da História” (1994), “Políticas da escrita” (1995), “O desentendimento” (1996), “O Mestre Ignorante” (2004) e “A Partilha do Sensível” (2005), “O espectador emancipado”, “O destino das imagens”, “As distâncias do cinema” (2012).
Debatendo o tema do Inconsciente Estético para além da visada psicanálise da arte e fora do continente analítico, o filósofo vivifica ainda mais a discussão em jogo, pois fala a partir do domínio da estética, sua especialidade: “Não tenho nenhuma competência para falar do ponto de vista da teoria psicanalítica”. (RANCIÈRE, 2009, p.9).
Vemos que o autor parece colocar em tensão esses dois regimes de uso da arte pela psicanálise. Se por um lado, a interpretação das obras “ocupam um lugar estratégico na demonstração da pertinência dos conceito s e das formas de interpretação analíticas” (RANCIÈRE, 2009, p.9), por outro lado, Rancière resguarda a tradição, a autonomia e a potencialidade do pensamento estético nas obras de arte:
“Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante”. (RANCIÈRE, 2009, p.10-11).
Isto é, este domínio do pensamento que não pensa não é um território e m que Freud busca apenas companheiros e aliados. Para o esteta, “É um território já ocupado” (RANCIÈRE, 2009, p. 45).
É então, a partir da “ revolução silenciosa denominada estética” (RANCIÈRE, 2009, p.33-34) que o questionamento principal do filósofo se constrói.
Segundo ele mesmo foi no terreno da estética que a teoria freudiana se ancorou, quer dizer, “ nessa configuração já existente do ‘pensamento inconsciente’, nessa idéia da relação do pensamento e do não-pensamento ”. (RANCIÈRE, 2009, p.11) “O Inconsciente Estético” (2009) propõe, portanto, pensar o campo estético como um dos fundamentos de inscrição do pensamento analítico (RANCIÈRE, 2009). Assim, a hipótese de Rancière é de que “o pensamento freudiano do inconsciente só é possível com base nesse regime do pensamento da arte e da idéia do pensamento que lhe é imanente”. (RANCIÈRE, 2009, p.13-14.) Para sustentar tal empreitada, são diversas as referências artísticas utilizadas por Rancière. De “Os Miseráveis” de Victor Hugo, a Balzac com suas “La Maison d u chat qui pelote” e “A pele de onagro”, passando pelo belga Maurice Maeterlinck, até chegar às referências propriamente freudianas: Leonardo, Michelangelo, Jensen, Hoffmann, Ibsen, entre outros.
Para Rancière, a revolução estética não se dá, por exemplo, via a rebeldia britânica de Lord Byron contra a moral civilizada ou denunciando a s desordens da alma.
Trata-se antes de uma nova idéia de artista. Daquele que sabe freqüentar os subsolos, como o geólogo e naturalista francês, Georges Cuvier. De um artista que saiba encontrar a palavra muda através dos diversos usos do detalhe.
Diante disso, Rancière irá aliar a revolução estética ao advento da psicanálise: “O novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num certo sentido, faz o que fará o cientista de A interpretação dos sonhos ”.
(RANCIÈRE, 2009, p. 37). Isto é, “A grande regra freudiana de que não existem ‘ detalhes ’ desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética”. (RANCIÈRE, 2009, p.36).
Se nosso autor põe em relação pensamento estético e psicanálise, ele o faz preservando um cuidado histórico e epistemológico. A o estabelecer tal relação, Rancière não se esquece d o contexto médico-cientifico no qual a psicanálise foi criada e nem corre o risco de dissolve r o conceito de inconsciente freudiano. O filósofo não está inclinado em afirmar que o inconsciente freudiano depende da literatura e da arte, cujos segredos ele pretende desvendar (RANCIÈRE, 2009).
Segundo el e, “ Trata-se, antes de mais nada, de assinalar as relações de cumplicidade e de conflito que se estabelecem entre o inconsciente estético e o inconsciente freudiano ” (RANCIÈRE, 2009, p. 43-44).
Mais do que contrapor à autoridade da ciência a dos grandes no mes da cultura – os quais lhe servem de guias na viagem pelo Aqueronte explorada por seu método de tratamento-, Freud o faz porque essa lacuna entre ciência positiva e acervo cultural não está vazia (RANCIÈRE, 2009).
É justamente nesta brecha que o filósofo situa o Inconsciente Estético: Tal espaço é o domínio desse inconsciente estético que redefiniu as coisas da arte como modos específicos de união entre o pensamento que pensa e o pensamento que não pensa. Ele é ocupado pela literatura da viagem pelas profundezas, da explicitação dos signos mudos e da transcrição das palavras surdas (RANCIÈRE, 2009, p. 44).
Conforme nos lembra o autor, em Freud não há o insignificante, e os detalhes prosaicos que o positivismo desprezou e lançou à racionalidade fisiológica são signos que cifram uma história (RANCIÈRE, 2009).
Dito de outro modo: “Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra”. (RANCIÈRE, 2009, p.37). A literatura de geólogos e arqueólogos como Balzac e Freud mostram que entre pensamento e não pensamento, cifragem e decifragem, tal escrita se conecta à pura dor de existir e à pura reprodução do sem-sentido da vida, “(…) aquela que não fala a ninguém e não diz nada, a não ser as condições impessoais, inconscientes, da própria palavra”. (RANCIÈRE, 2009, p.39).
Freud, o psicanalista, é um hermeneuta, mas é também um médico, um sintomatologista, diz Rancière:
A sintomatologia literária mudará então de estatuto nessa literatura das patologias do pensamento, centrada na histeria, no “nervosismo” ou no peso do passado, nessas novas dramaturgias do segredo velado, em que se revela, através de histórias individuais, o segredo mais profundo da hereditariedade e da raça e, em última instância, do fato bruto e insensato da vida”. (RANCIÈRE, 2009, p.39).
Não somente através da doutrina freudiana, mas também através de Kant, S c helling e Hegel, o filósofo nos apresenta um pensamento daquilo que não pensa. Em “O Inconsciente Estético ”, a arte circunscreve um território de reunião dos contraditórios, de um pensamento presente e fora de si mesmo, idêntico ao não pensamento. Ou seja, há pensamento operando no elemento estranho do não-pensamento, e este não-pensamento que o habita lhe dá uma potência específica (RANCIÈRE, 2009).
As sim, as duas faces da palavra muda manifestam o inconsciente estético: a palavra muda escrita nos corpos que é decifrada e reescrita, e uma “ palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo,” (RANCIÈRE, 2009, p.41). Enfim, e m “O Inconsciente Estético”, vemos que a descoberta de Freud abriu uma lacuna entre ciência e arte produzindo uma racionalidade capaz de formalizar este campo de fronteira entre estética e teoria psicanalíticas:
“(…) a abordagem freudiana da arte em nada é motivada pela vontade de desmistificar as sublimidades da poesia e da arte, direcionando-as à economia sexual das pulsões. Não responde ao desejo de exibir o segredinho — bobo ou sujo — por trás do grande mito da criação. Antes, Freud solicita à arte e à poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da “fantasia”, que apoiem uma ciência que pretende, de certa forma, repor a poesia e a mitologia no âmago da racionalidade científica” (RANCIÈRE, 2009, p.45).
Ednei Soares-Psicanalista, mestre em Psicologia. Professor do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras de Ipatinga-MG
A arte de ler ou como resistir à adversidade | Michèle Petit
Abordagens teóricas sobre leitura e suas consequências na vida das pessoas têm sido relativamente comuns ultimamente. Não tão comum assim, contudo, é a tentativa de conciliar semelhante perspectiva a atividades próprias da psicoterapia e suas derivações, como procura fazer Michéle Petit em seu mais recente livro (A arte de ler ou como resistir à adversidade).
Refletindo sobre a atuação da leitura em lugares onde a crise é particularmente intensa (situações de guerra e violência, contextos de deslocamentos populacionais e recessões econômicas etc.), a autora começa lembrando que, em tais situações, a leitura poderia contribuir tanto na reconstrução de si mesmo quanto na promoção de uma atividade psíquica saudável. Nesse sentido, defende a apropriação da literatura nessa tarefa, na medida em que a literatura, além de mais crítica, torna-se mais capaz de explorar melhor a experiência humana. Semelhante atividade, completa a autora, tem sido desempenhada pelos mediadores de livros, cuja principal função seria auxiliar na compreensão da literatura como instrumento de organização e transformação da própria história dos leitores. São esses mediadores culturais que criam uma “abertura psíquica” (p. 50), revelando ao leitor o universo dos livros e da literatura, prática na qual a oralidade desempenha papel imponderável. Leia Mais
Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais – HONNETH (C)
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. Resenha de: SALVADORI, Mateus. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.
A figura mais proeminente dentre os teóricos da terceira geração de Frankfurt é Axel Honneth. Os seus estudos concentram-se nas áreas: filosofia social, política e moral, tratando ,principalmente, da explicação teórica e crítico-normativa das relações de poder, respeito e reconhecimento na sociedade atual.
O objetivo central de Honneth na obra Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, é mostrar como indivíduos e grupos sociais se inserem na sociedade atual. Isso ocorre por meio de uma luta por reconhecimento intersubjetivo e não por autoconservação, como salientavam Maquiavel e Hobbes. As três formas de reconhecimento são as seguintes: o amor, o direito, e a solidariedade. A luta pelo reconhecimento sempre inicia pela experiência do desrespeito dessas formas de reconhecimento. A autorrealização do indivíduo somente é alcançada quando há, na experiência de amor, a possibilidade de autoconfiança, na experiência de direito, o autorrespeito e, na experiência de solidariedade, a autoestima.
Honneth, inspirando-se no conceito de reconhecimento do jovem Hegel, busca fundamentar a sua própria versão da teoria crítica. Com isso, ele pretende explicar as mudanças sociais por meio da luta por reconhecimento e propõe uma concepção normativa de eticidade a partir de diferentes dimensões de reconhecimento. Os indivíduos e os grupos sociais somente podem formar a sua identidade quando forem reconhecidos intersubjetivamente. Esse reconhecimento ocorre em diferentes dimensões da vida: no âmbito privado do amor, nas relações jurídicas, e na esfera da solidariedade social. Essas três formas explicam a origem das tensões sociais e as motivações morais dos conflitos.
A primeira forma de reconhecimento consiste nas emoções primárias, como o amor e a amizade. Para investigar essa esfera, o autor volta-se aos trabalhos da psicologia infantil de Donald Winnicott. O ponto de partida dessa primeira forma é uma fase de simbiose, chamada por Winnicott “dependência absoluta”. A mãe e o filho estão em um estado de indiferenciação. As reações do filho são percebidas pela mão como um único ciclo de ação. Winnicott chama isso “intersubjetividade primária”, em que há uma unidade de comportamento. Porém, para ampliar o seu campo social de atenção, a mãe começa a romper a sua identificação com o bebê. Com isso, o bebê aprende que a mãe é algo do mundo e que não está à sua inteira disposição.
Essa segunda fase é chamada “dependência relativa”. É nesse período que a criança desenvolve a sua capacidade para uma ligação afetiva. A criança reconhece o outro como alguém com direitos próprios, independente. Para Winnicott, a fim de alcançar essa independência do outro, a criança tem que desenvolver dois mecanismos psíquicos: destruição e os fenômenos e objetos transicionais. A destruição (mordidas no corpo da mãe) consiste em atos que a criança pratica quando descobre a independência da mãe. Eles se tornam positivos quando o bebê reconhece a independência da mãe, amando-a sem as fantasias de onipotência. Os fenômenos e objetos transicionais (travesseiro, brinquedo, dedo polegar) são elos de mediação entre a fase da fusão e a da separação.
A criança somente alcança a criatividade quando fica sozinha com os objetos transicionais. Isso é possível devido à dedicação emotiva da mãe, mesmo estando distante da criança. Essa confiança na dedicação materna faz com que a criança desenvolva a autoconfiança. Nessa análise de Winnicott, pode-se concluir que o amor é uma forma de reconhecimento e, por meio dele, o indivíduo desenvolve uma confiança em si mesmo, indispensável para seus projetos de autorrealização pessoal.
Para Honneth o amor somente surge quando a criança reconhece o outro como uma pessoa independente, ou seja, quando não está mais num estado simbiótico com a mãe. O amor é o fundamento da autoconfiança, pois permite aos indivíduos conservarem a identidade e desenvolverem uma autoconfiança, indispensável para a sua autorrealização. O amor é a forma mais elementar de reconhecimento.
O amor se diferencia do direito no modo como ocorre o reconhecimento da autonomia do outro. No amor, esse reconhecimento é possível, porque há dedicação emotiva. No direito, porque há respeito.
Em ambos, somente há autonomia quando há o reconhecimento da autonomia do outro. A história do direito ensina que, no século XVIII, havia os direitos liberais da liberdade; no século XIX, os direitos políticos de participação e, no século XX, os direitos sociais de bem-estar. De modo geral, essa evolução mostra a integração do indivíduo na comunidade e a ampliação das capacidades, que caracterizam a pessoa de direito. Nessa esfera, a pessoa é reconhecida como autônoma e moralmente imputável ao desenvolver sentimentos de autorrespeito.
A solidariedade (ou eticidade), última esfera de reconhecimento, remete à aceitação recíproca das qualidades individuais, julgadas a partir dos valores existentes na comunidade. Por meio dessa esfera, gera-se a autoestima, ou seja, uma confiança nas realizações pessoais e na posse de capacidades reconhecidas pelos membros da comunidade. A forma de estima social é diferente em cada período histórico: na modernidade, por exemplo, o indivíduo não é valorizado pelas propriedades coletivas da sua camada social, mas surge uma individualização das realizações sociais, o que só é possível com um pluralismo de valores.
A passagem progressiva dessas etapas de reconhecimento explica a evolução social. Ela ocorre devido à experiência do desrespeito que se dá desde a luta pela posse da propriedade até à pretensão do indivíduo de ser reconhecido intersubjetivamente pela sua identidade.
Segundo Honneth, para cada forma de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) há uma autorrelação prática do sujeito (autoconfiança nas relações amorosas e de amizade, autorrespeito nas relações jurídicas e autoestima na comunidade social de valores). A ruptura dessas autorrelações pelo desrespeito gera as lutas sociais. Portanto, quando não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os indivíduos não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda luta por reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito. O desrespeito ao amor são os maus-tratos e a violação, que ameaçam a integridade física e psíquica; o desrespeito ao direito são a privação de direitos e a exclusão, pois isso atinge a integridade social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica; o desrespeito à solidariedade são as degradações e as ofensas, que afetam os sentimentos de honra e dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores.
As mudanças sociais podem ser explicadas por meio do desrespeito, gerador de conflitos sociais. Os conflitos surgem do desrespeito a qualquer uma das formas de reconhecimento, ou seja, de experiências morais decorrentes da violação de expectativas normativas. A identidade moral é formada por essas expectativas. Uma mobilização política somente ocorre quando o desrespeito expressa a visão de uma comunidade.
Portanto, a lógica dos movimentos coletivos é a seguinte: desrespeito, luta por reconhecimento, e mudança social. Honneth, seguindo as ideias de Hegel, afirma que a eticidade é o conjunto de condições intersubjetivas, que funcionam como condições normativas necessárias à autodeterminação e a autorrealização.
A teoria de Honneth é explicativa, pois busca esclarecer a gramática dos conflitos e a lógica das mudanças sociais com a finalidade de entender a evolução moral da sociedade, e crítico-normativa, porque fornece um padrão – a eticidade – para identificar as patologias sociais e avaliar os movimentos sociais. A eticidade, portanto, é o conjunto de práticas e valores, vínculos éticos e instituições, que formam uma estrutura intersubjetiva de reconhecimento recíproco. Por meio da vida boa, há uma conciliação entre liberdade pessoal e valores comunitários. A identidade dos indivíduos é formada pela socialização, ou seja, é formada na eticidade, inserida em valores e obrigações intersubjetivas. Portanto, não há como pensar a existência de um contrato para o surgimento da sociedade, mas nas transformações das relações de reconhecimento.
Esse conceito formal de eticidade, elaborado por Honneth, visa a ser uma ampliação da moralidade, integrando tanto a universalidade do reconhecimento jurídico-moral da autonomia individual como a particularidade do reconhecimento ético da autorrealização. Por conseguinte, esse conceito tem como objetivo alcançar todos os aspectos necessários para um verdadeiro reconhecimento.
Na sociedade moderna, o indivíduo tem de encontrar reconhecimento tanto como indivíduo autônomo livre quanto como indivíduo, membro de formas de vida culturais específicas. Essa concepção formal de eticidade fica sempre limitada pelas situações históricas concretas. Portanto, ela não cai num etnocentrismo, nem numa utopia, pois ela é uma estrutura que se encontra inserida nas práticas e instituições da sociedade moderna.
Mateus Salvadori – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor na Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: mateusche@yahoo.com.br
Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil – KOWARICK (NE-C)
KOWARICK, Lúcio. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo: Editora 34, 2009. Resenha de: MOYA,Maria Encarnación. Trajetórias e transições da questão social no brasil urbano. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.86, Mar 2010.
Na esteira da crise dos Estados de Bem-estar Social que seguiu às transformações econômicas orientadas pelo paradigma do neoliberalismo, a problemática da pobreza e das desigualdades ressurgiu como questão central em diversos países, com destaque para sua produção e reprodução no mundo urbano. Desemprego e precarização do trabalho, concentração espacial da pobreza, além da violência presente nesses espaços passaram a ocupar lugar central na agenda de governos, nas ações de organizações civis e, inevitavelmente, no campo de investigação das ciências sociais.
Em face das vertiginosas mudanças sociais, econômicas e político-institucionais em curso, e tendo por cenário dessas mudanças a cidade de São Paulo, Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil, do sociólogo e cientista político Lúcio Kowarick revela-se uma obra ímpar ao situar o leitor nas trajetórias e transições da problemática da pobreza e das desigualdades no Brasil urbano. Ou, nos termos do próprio autor, nos debates e embates em torno da questão socialque se configura em nossa atualidade urbana e que denomina vulnerabilidade socioeconômica e civil. Afilia-se, assim, à acepção conferida pelo sociólogo francês Robert Castel, para quem:
A “questão social” é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (o que em termos políticos se chama nação, para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência1.
Integrando história, sociologia e etnografia, Viver em risco oferece ao leitor uma profunda interpretação dos desafios enfrentados pela cidadania na sociedade brasileira. Desafios que dizem respeito às dificuldades históricas de expansão dos direitos, mas que hoje também se associam a restrições e a processos de destituição, particularmente dos direitos civis e sociais, no bojo das transformações em curso. Se na concepção moderna da cidadania, direitos civis, políticos e sociais são prerrogativas básicas para garantir a integração e a participação plenas numa comunidade nacional, promovendo em alguma medida maior eqüidade, Kowarick questiona a própria capacidade do Estado brasileiro de garantir a integridade física dos cidadãos, sobretudo daqueles que habitam os lugares onde se concentra a pobreza. O livro é resultado de ampla investigação que contou com a participação de graduandos e pós-graduandos da Universidade de São Paulo.
Desde os anos de 1970, Lúcio Kowarick é um dos mais reconhecidos especialistas nos estudos urbanos no Brasil e uma referência central no debate sobre pauperismo e desigualdades nas sociedades do “capitalismo periférico”. Em livros já clássicos como Capitalismo e marginalidade na América Latina (1975), Crescimento e pobreza (1975),A espoliação urbana(1979) , Kowarick desenvolveu conceitos influentes, como espoliação urbana, no interior de um quadro interpretativo que explicava o pauperismo e as desigualdades no mundo urbano como a “somatória de extorsões” resultante de processos econômicos e políticos. Essa noção, e o quadro interpretativo correspondente, foram revistos e atualizados ante as mudanças na realidade social, política e econômica brasileira,a emergência de novos atores e as próprias transformações no campo teórico e analítico das ciências sociais2.
A noção de vulnerabilidade socioeconômica e civil insere-se nesse contínuo processo de reatualização do pensamento do autor, construída a partir do diálogo com a literatura nacional e internacional, mas sobretudo a partir da análise de múltiplos dados quantitativos e do material qualitativo proveniente de pesquisa em profundidade realizada em bairros populares da cidade de São Paulo. O ensaio fotográfico de Antonio Saggese leva o leitor a um encontro sensível com as formas de moradia tipicamente associadas à pobreza, como também, hoje, à violência – cortiços das áreas centrais, loteamentos nas periferias e favelas -, revelando a precariedade que caracteriza para muitos o viver na cidade.
Viver em risco não se confunde com o “estado da arte” das discussões sobre pobreza e desigualdades em diversos países ou mesmo no Brasil, mas traz uma construção conceitual e interpretativa na qual, mediante a estratégia analítica dos “olhares cruzados”, o autor contrapõe lugares, instituições, representações e conflitos, de modo a indagar e delinear os contornos de nossa questão social. O leitor é agraciado com um relato histórico, sempre politicamente posicionado, de representações e práticas acerca da pobreza e das desigualdades, num momento em que essa problemática volta a ser central.
O livro é estruturado em duas partes. A primeira, “Olhares cruzados: Estados Unidos, França e Brasil”, é eminentemente teórica e inicia o percurso do autor no “campo teórico de investigação que diz respeito à vulnerabilidade socioeconômica” (p. 19), expondo em um primeiro momento as formas em que a questão social aparece nas sociedades norte-americana e francesa (cap. 1), para a seguir reconstruir essa problemática à luz da especificidade das questões que afligem a sociedade brasileira (cap. 2). Na segunda parte, “Sobre a vulnerabilidade em bairros populares: sociologia, história e etnografia”, o foco recai sobre os lugares e modos de morar e viver dos mais pobres na cidade de São Paulo e na violência que, nas últimas décadas, se concentrou nesses locais. O autor realiza uma reconstrução histórica e uma descrição detalhada dos três padrões que são tradicionalmente as alternativas de moradia dos mais pobres: o cortiço (cap. 3), a casa própria autoconstruída em loteamentos na periferia (cap. 4) e a favela (cap. 5). Os temas da habitação e da violência se entrecruzam ao final (cap. 6) com o objetivo de sintetizar a hipótese anunciada ao início do livro e que se afigura como a questão social enfrentada hoje pela sociedade brasileira:
[…] a violência, nos anos recentes, e de forma crescente, tornou-se um elemento estruturador da vida das pessoas,pois,não raras vezes, constitui fator de migração de um local para outro na escolha do local de moradia, além do cuidado em tomar medidas de segurança que minimizem os riscos de sofrer atos violentos (p. 20).
A questão social não se dissocia das formas históricas que a cidadania adquiriu em distintos contextos nacionais. Por essa razão, o papel desempenhado pelo Estado é central. Esse é o fulcro do capítulo 1, “A Questão da pobreza e da marginalização na sociedade americana e francesa”, no qual o autor contrapõe as trajetórias da questão social e seus dilemas nos Estados Unidos e na França. Como mostra, ao sofrerem os recentes impactos das transformações econômicas globais, ambos os países desenvolveram diferentes respostas político-institucionais, “em função das especificidades próprias de cada ambiente sócio-político nacional” (p. 29).
No caso estadunidense, a herança do racismo e a situação dos afro-americanos sempre ocuparam lugar central no debate público, nas ações governamentais e nas organizações civis, assim como na agenda da investigação das ciências sociais. Nos anos de 1960,no bojo das lutas anti-raciais, o dilema norte-americano desembocaria na lei dos direitos civis (1964) e em medidas de políticas de proteção social, no âmbito da hegemonia da visão liberal – o que significa uma visão progressista naquele país – num momento em que a presença do Estado e de políticas públicas que combatam a pobreza eram valorizadas e implementadas no interior da chamada War on Poverty. Na esteira da crise econômica que caracteriza os anos de 1970, o foco da atenção pública recai sobre os comportamentos “desviantes” da população afrodescendente empobrecida e concentrada nos guetos, designada como underclass [subclasse]. É o momento em que a balança política começa a pender para a direita.
Na obra que será referencial para o pensamento conservador, Losing ground, de Charles Murray, as políticas públicas de proteção social alavancadas e ampliadas nos anos de 1960, em especial o Aid to Families with Dependent Children (AFDC), são atacadas como causa de uma “cultura da dependência” – comportamentos opostos ao da sociedade mainstream, orientada pelos valores individualistas do “trabalho árduo, honestidade e responsabilidade pessoal”3. Kowarick lembra que apesar da dinamização do debate público e acadêmico a partir da publicação de The truly disadvantaged, obra do sociólogo William Julius Wilson que focaliza as conseqüências das mudanças macroeconômicas responsáveis pela maior concentração do desemprego entre os moradores dos guetos, a trajetória das políticas de proteção social nos Estados Unidos torna-se mais conservadora.
Com a substituição do AFDC pelo Personal Responsability and Work Opportunity Reconciliation Act (Prowora), o acesso ao benefício assistencial torna-se mais restrito e condicionado a contrapartidas por parte do indivíduo, como ter um trabalho. O objetivo, de matiz conservador, é combater o que se designa então como welfare dependency, isto é, tornar-se dependente dos serviços sociais. O autor conclui, assim, que a essência do debate nos Estados Unidos é “culpar ou não culpar a vítima” no interior de um processo de destituição progressiva de direitos sociais.
Na França, inversamente, a tradição republicana e jacobina que impregna as instituições francesas confere centralidade à ação do Estado no combate à pobreza e às desigualdades, independentemente da posição ocupada pelos diversos atores no espectro político. Kowarick retoma os percursos da questão social nesse país desde o pós-guerra, e principalmente as respostas institucionais aos efeitos da precarização econômica e social que, na década de 1980, atingem, sobretudo, os trabalhadores com baixas qualificações (franceses ou imigrantes) e os jovens das banlieues– termo próximo a “periferias” -, e, nos anos de 1990, também os trabalhadores mais qualificados. Os “bairros difíceis”, onde se concentram desemprego e atos violentos,tornam-se foco de diversas políticas públicas. Ao longo desses anos, multiplicam-se as ações governamentais e são criadas instituições como o Ministère de La Ville (1989), que coordena ações e reformas em âmbitos como educação, emprego e melhorias urbanas. Em 1991, o termo “exclusão social” aparece no interior do aparelho de Estado, e a “coesão social” é erigida como meta a ser atingida. Na França, não é a responsabilização do indivíduo que está em jogo,e o retrato francês parece menos desesperador quando comparado à situação estadunidense.
No campo das ciências sociais na França são múltiplas as noções desenvolvidas para apreender os processos de destituição em cur-so: “desqualificação social” (Serge Paugam), “desinserção” (Gaujelac), “desfiliação” (Castel). Lúcio Kowarick, no entanto, detém-se no conceito de desfiliação de Robert Castel ao considerar a obra deste autor como a de”maiorenvergadura histórica e teórica” (p.56):”Desfiliaçãosignifica perda de raízes sociais e econômicas e situa-se no universo semântico dos que foram desligados, desatados, desamarrados, transformados em sobrantes, em inúteis, desabilitados socialmente” (p.57).
O modelo formal desenvolvido por Castel é constituído por dois eixos – um econômico e outro social -,onde ganham centralidade os processos que levam à destituição do trabalho seguro e da participação em relações sólidas, que podem levar o indivíduo a transitar por quatro “zonas”: integração, vulnerabilidade social, assistência e desfiliação.
O contraste entre a forma como se configura a questão social nos dois países dá ensejo a uma observação crucial do autor:a questão social da atualidade nos países centrais pode ser balizada por processos mais ou menos intensos de desenraizamento que se associam ao papel do Estado na garantia de direitos de cidadania, o que se configura historicamente no interior de tensões e conflitos, segundo as especificidades políticas de cada contexto nacional.
No capítulo 2, “Sobre a vulnerabilidade no Brasil urbano”, o autor problematiza o caso brasileiro a partir de um denso ensaio acerca dos dilemas e dos bloqueios envolvidos na expansão dos direitos de cidadania no país, o que a seu ver representa o âmago de nossa questão social hoje. Se ao longo dos anos de 1980 e 1990 Kowarick avalia que houve a consolidação do sistema político democrático, isso teria ocorrido paralelamente à manutenção de um déficit em relação aos direitos sociais, econômicos e civis. O país viu crescer nas últimas décadas a vulnerabilidade socioeconômica em virtude do crescimento do desemprego e da expansão de formas precárias de trabalho, somados a um sistema público de proteção desde sempre restrito e incompleto. A vulnerabilidade civil perpetua-se graças à crescente incapacidade do Estado de controlar a violência da polícia e dos bandidos, que afeta, principalmente, os moradores dos bairros populares mais pobres.
Kowarick introduz a discussão do conceito de desfiliação à luz dessa problemática, mas não sem antes revisitar o que talvez possa ser considerado a mais importante tradição teórica e política desenvolvida no âmbito latino-americano: as teorias da dependência – elaboradas no marco da teoria marxista das classes sociais -, desenvolvidas num intenso debate intelectual-acadêmico acerca das possibilidades ou não de desenvolvimento das sociedades no interior do capitalismo.
De forma similar aos debates que hoje se centram na exclusão social, a noção de marginalidade social foi utilizada nesse âmbito para problematizar os processos de (des)inserção econômica dos contingentes populacionais de origem rural que, nos anos de 1960 e 1970, migravam para as cidades. Definida por Kowarick à época como formas de inserção marginal e intermitente no mundo do trabalho urbano, baseada na (super) exploração (Marginalidade na América Latina, 1975), a este processo o autor associou o que denominou como espoliação urbana: “ausência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que,conjuntamente com o acesso à terra,se mostram socialmente necessários à reprodução dos trabalhadores”4.
Não por acaso, o autor sugere paralelos entre a lógica do mercado de trabalho explicitada naquele contexto e as formas que este assume hoje, desta vez associadas à reestruturação econômica que deu origem a múltiplas formas de trabalho precário – em alguns casos conectadas a cadeias produtivas dinamizadas por alta tecnologia. Por outro lado, em se tratando do acesso à terra e à moradia na cidade, o autor destaca o crescimento das formas precárias de moradia, especialmente as favelas.
Tais questões são analisadas no livro por meio do conceito de desfiliação. Kowarick adverte, porém, que o uso dessa noção para problematizar a questão social brasileira contemporânea não diz respeito à crise da sociedade salarial, como na França, mas a “um vasto processo de desenraizamento do mundo do trabalho formal,na medida em que para muitos ele tornou-se informal, instável e aleatório” (p. 86). Não obstante, Kowarick considera o conceito mais adequado para pensar as conjunturas presentes, marcadas por processos de destituição de direitos sociais, do que para explicar conjunturas passadas, quando trabalho e moradia ainda representavam “vigorosas alavancas integrativas”, associadas ao acesso a serviços públicos na cidade – ou pelo menos à expectativa de sua chegada. Nas conjunturas mais recentes, para muitos a trajetória na cidade seria, antes, marcada por experiências de perdas e mesmo um processo de descenso social caracterizado pela impossibilidade de conquistar a casa própria ou mesmo a perda da condição de proprietário para morar em favelas, em razão do desemprego e do empobrecimento.
Por outro lado, a idéia de exclusão não é abandonada, mas passa a ser traduzida como a possível emergência de um princípio de exclusão social, instituído num conjunto de falas e de práticas calcadas em um imaginário social que associaria, hoje, a pobreza à delinqüência, estruturando “múltiplas práticas sociais de caráter defensivo, repulsivo ou repressivo” (p. 92).
Essa hipótese, delineada no início da obra, é desenvolvida ao longo da segunda parte, “Sobre a vulnerabilidade em bairros populares: sociologia, história e etnografia”, baseada em múltiplos indicadores quantitativos e na pesquisa em profundidade realizada junto a moradores de dois cortiços no Centro, dois loteamentos na periferia e numa favela da cidade de São Paulo. Os três primeiros capítulos que compõem essa parte do livro são preciosos por oferecerem ao leitor uma reconstrução histórica das três modalidades de moradia que se constituíram como alternativas possíveis para boa parte dos trabalhadores na cidade ao longo do século XX, em virtude dos baixos salários e da quase inexistência de políticas de habitação voltadas para as camadas populares.
Essas alternativas são hoje designadas pelo autor como “modalidades de viver em risco na cidade” em virtude da onipresença da violência nesses espaços, perpetrada por bandidos e pela polícia, mas também pelas condições insatisfatórias, desgastantes e por vezes humilhantes com as quais os moradores se deparam. Cada um dos capítulos dedica um item ao relato etnográfico que revela o cotidiano dos lugares pesquisados e a percepção de seus moradores, considerados personagens desses diferentes cenários urbanos. As falas revelam, segundo as perspectivas dos moradores, as vantagens e as desvantagens de se morar nessas diferentes condições, assim como as desvantagens que sempre envolvem os “outros” lugares, associados à violência, à discriminação e à desordem.
No capítulo 3, “As áreas centrais e seus cortiços: dinamismos, pobreza e políticas”, destacam-se as origens e os percursos da moradia popular no Centro de São Paulo. No início do século XX, o cortiço é praticamente a única alternativa de moradia para os trabalhadores pobres; mas hoje ainda continua como uma modalidade de moradia dos mais empobrecidos.,tendo-se espalhado mesmo nas periferias.
No caso das áreas centrais, a perda de sua primazia para outras localizações da cidade a partir dos anos de 1960 e 1970 foi acompanhada de esvaziamento populacional, com a saída dos mais ricos e o abandono de casas e edifícios. Isso estimulou seu uso para um negócio que se revelou muito lucrativo: a habitação coletiva de aluguel, atraindo uma população mais empobrecida. Apesar da precariedade das condições de vida nesse tipo de moradia (que envolve problemas de higiene, uso coletivo de banheiros, cozinha e outros equipamentos, além da prevalência de espaços exíguos nos quais o acúmulo de moradores e a proximidade tendem a gerar conflitos, nas falas de seus moradores), “o Centro é perto de tudo”. Trata-se da grande vantagem de morar em cortiço na área central – ou “pensão”,termo mais usado:a concentração e a proximidade das oportunidades de trabalho, de serviços e de opções de lazer, apesar da desvantagem dos aluguéis abusivos. Mas suas falas também são atravessadas por visões valorativas acerca da moradia em outros locais, que procuram evitar: favelas são em geral referidas como lugar da criminalidade, e a periferia, ou “vila”, distante de tudo, é também o local onde impera a violência. Tais relatos, no entanto,contradizem por vezes a realidade exposta em outras passagens, em que violência e assassinatos também estão presentes.
Apesar da deterioração que caracteriza parte das áreas centrais, Kowarick lembra que o Centro vem sendo objeto de investimentos públicos e privados, por meio de programas que envolvem conjuntamente associações – menção especial à Associação Viva o Centro – e órgãos públicos. Como afirma o autor, “são vastas as potencialidades sociais e econômicas do Centro e os recursos públicos nele alocados para os próximos anos não são em nada desprezíveis” (p.160).Daí ser lugar de disputas e lutas pela apropriação do espaço, em que o poder público, municipal e estadual, têm papel chave para canalizar recursos e influir no mercado imobiliário. Nesse sentido, ganha significação a orientação política de cada gestão em termos dos interesses que nela se expressam.
A esse respeito, há um posicionamento claro de Kowarick, que critica as ações coletivas e públicas orientadas por uma visão higienista e segregacionista de recuperação do Centro. Ante estas políticas, a ação dos movimentos sociais e das assessorias técnicas que as apóiam orientam-se muito mais pela ampliação dos direitos de cidadania, ao lutar pelo acesso à moradia no Centro para as camadas populares. Kowarick também avalia as gestões de diferentes partidos que estiveram à frente da administração da cidade, considerando que nos governos do PT predominaria um estilo de gestão que denomina “Republicanismo de participação”,enquanto o PSDB se orientaria pelo “Republicanismo delegativo”. Cada estilo comporta seus riscos:
O risco do modo petista de governar reside em retardar as decisões, acabando por tornar a participação ineficaz ao gerar um conselhismo ratificador das iniciativas do poder executivo. O risco da concepção baseada na representação, em uma sociedade extremamente hierárquica e excludente como a brasileira, reside em exacerbar posicionamentos tecnocráticos que acabam por reproduzir o elitismo que está na raiz da segregação de nossas cidades (p. 160).
A segunda “modalidade de viver em risco” é retratada historicamente e em sua atualidade no capítulo 4, “Autoconstrução de moradias em áreas periféricas: os significados da casa própria”. A autoconstrução da casa própria insere-se no conhecido padrão periférico de expansão urbana que teve papel central na produção do espaço da cidade, no que o autor classifica como verdadeiro laissez-faire urbano, que dominou a cidade de São Paulo desde os anos de 1940. Nesse capítulo, é retomado o processo tradicional de autoconstrução da casa própria nas periferias da cidade, modelo que continua a reproduzir-se em locais cada vez mais distantes da cidade.
A autoconstrução da casa própria em loteamentos de periferias distantes comporta muitos sacrifícios, que envolvem não só reunir recursos para seu empreendimento, mas também a distância do trabalho, implicando longas horas em transporte público. Mas os que se dirigiram a esta alternativa encontram nela vantagens significativas: um abrigo mais seguro não só em função da liberação do aluguel, mas também porque a casa é propriedade privada, bem que se valoriza com a chegada de infra-estrutura, serviços públicos e outras amenidades. O autor sugere que melhorias ocorreram, e muitas, renovando desigualdades que contribuem para reproduzir, nas diversas periferias, um tecido urbano muito heterogêneo – mesmo nas áreas que concentram pobreza.
Mas se esse processo de autoconstrução da casa própria continua expressivo,é porque se efetiva em locais cada vez mais distantes – nas franjas da cidade, nos “bairros-dormitório” de outros municípios da Grande São Paulo -, pois o preço da terra em localidades mais bem servidas tornou-se proibitivo para os que foram afetados pelo desemprego prolongado e pela precarização do trabalho, associada a rendimentos baixos e instáveis. Junto a outros fatores, esse processo assumiu também caráter predatório ao ocuparem-se densamente as áreas de mananciais, comportando um risco para a cidade como um todo.
Nas falas das personagens desse cenário de moradia, a casa própria aparece como uma conquista, que, a depender da experiência, envolveu lutas baseadas na organização local, no apoio e na assessoria de entidades de direitos humanos para a obtenção de serviços básicos e regularização da propriedade; ou, simplesmente, o investimento do grupo familiar-doméstico, com a ajuda de outros familiares, vizinhos ou amigos, e cada vez mais com a presença de pagamento a terceiros: com o desemprego e a precarização, a mão-de-obra “ociosa” tornou-se volumosa e mais barata. Em qualquer caso, é uma trajetória habitacional marcada por um início de muitas carências e sacrifícios, a casa sempre “por acabar”.
A violência aparece como algo onipresente, pois mesmo quando negada ou remetida para o passado por alguns, mostra-se parte do cotidiano nas falas, especialmente pelo medo dos assaltos e de sair para trabalhar de madrugada, quando ainda está escuro, assim como pela referência à ação violenta de traficantes e às rivalidades entre estes, aos homicídios, à “desova” de corpos nas proximidades e mesmo à experiência pessoal de alguém próximo e querido que foi vítima de assassinato.
Como mostra Kowarick, um dado interessante é o de que a autoconstrução da casa própria cresceu mesmo em conjunturas desfavoráveis, como os anos de 1990, substituindo em grande parte o viver de aluguel. Não obstante, o que mais cresceu em termos relativos na cidade foram as favelas. A questão das favelas é problematizada no capítulo 5, “Favelas: olhares internos e externos”.
Favelas não são mais ocupações totalmente ilegais, tampouco totalmente desprovidas de infra-estrutura e serviços.Nos anos de 1980, políticas de urbanização alcançaram esses espaços e teve início o processo de regularização da moradia. Isso ajudou a consolidar a favela como alternativa de moradia na cidade para os mais pobres e, como no caso dos loteamentos,deu origem a um mercado imobiliário informal ativo.Essa seria uma das razões por que,segundo o autor, já não representam lugar de moradia provisória, um “trampolim” para situações melhores. Mas seu crescimento seria também evidência de processos de mobilidade descendente, pois muitos chegam em virtude da perda da capacidade de pagar aluguel, ou mesmo porque forçados a vender a casa própria.
As favelas multiplicaram-se, mas são muito diversas, não só entre si, como internamente. Isso tem sido cada vez mais evidenciado, na última década, por estudos que contemplam a expansão das melhorias tanto em termos de infra-estrutura e serviços,como das características socioeconômicas de seus moradores5.
Nos relatos das personagens desse cenário, morar em favela representa vantagens específicas. Entre elas ,a ausência de taxas normais ou de impostos,e a possibilidade de reverter isso em economias para realizar melhorias na moradia que, apesar disso, não oferece a segurança da casa própria. Além disso, tanto a favela como seus moradores são alvo de profunda discriminação, ponto destacado por Lúcio Kowarick. Não é necessariamente nas favelas que se concentram os índices de criminalidade; apesar disso, mais do que em qualquer outro lugar, é nesse espaço que os olhares externos tendem a associar pobreza e criminalidade. Nas falas, no entanto, a criminalidade está presente, e os conflitos entre traficantes são um medo e uma ameaça constantes para os moradores; uma convivência inevitável, que estabelece a “lei do silêncio” e a desconfiança entre vizinhos. Além disso, há o desrespeito e a violência por parte da polícia, vista de forma ambivalente.Por essas razões, muitos querem sair da favela.
Nas “Considerações finais” (“Vulnerabilidade socioeconômica e civil em bairros populares”), Kowarick retoma os vários argumentos e evidências apresentados nos três capítulos anteriores, juntamente com falas (desta vez, despersonificadas) que contrastam as vantagens e as desvantagens de cada modalidade de “viver em risco”. No item final,”Violência e Medo”,o autor reforça a hipótese de que a violência é atualmente um elemento estruturador do modo de vida nos diferentes espaços: “Assim, a violência passou a ser um elemento que também estrutura o cotidiano das pessoas,demarcando espaços,selecionando horários e forjando atitudes e comportamentos defensivos que visam diminuir os riscos” (p. 299).
A partir das experiências de se “viver em risco” Lúcio Kowarick vincula a vulnerabilidade socioeconômica ao que denomina experiências do desrespeito: “um reconhecimento social denegado, baseado em formas sistemáticas de violação de direitos básicos de cidadania” (p. 301).
O livro de Lúcio Kowarick oferece ao leitor a oportunidade de refletir de modo abrangente acerca das continuidades e descontinuidades de nossa questão social nas últimas décadas, e que tornaram São Paulo um cenário urbano bastante diferente do que fora entre os anos de 1950 e 1970. Não obstante as mudanças positivas em alguns aspectos, o percurso da cidadania no Brasil é pontuado por contradições e descompassos, e as trajetórias e transições descritas trazem para o centro da problematização os atuais impasses à sua expansão:a violência e o medo disseminado, as restrições à capacidade do Estado em atuar como agente garantidor de segurança física e proteção social.
Notas
1 CASTEL, Robert. “Introdução”. In: As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Trad. Iraci D. Pole-ti. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1998, p. 20. [Links]
2 Essa trajetória é explicitada em KOWARICK,Lúcio.Escritos urbanos.São Paulo: Editora 34, 2000.[Links]
3 MURRAY, apud KOWARICK, Viver em risco, op. cit., p. 38.
4 Kowarick. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.[Links]
5 A esse respeito, ver SARAIVA, Camila e MARQUES Eduardo.”A dinâmica social das favelas na Região Metropolitana de São Paulo”. In: MARQUES, Eduardo e TORRES,Haroldo.São Paulo: segregação, pobreza e desigualdades sociais. São Paulo: Senac, 2005. [Links]
Maria Encarnación Moya– doutoranda no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap).
Grande Otelo: uma biografia – CABRAL (HP)
CABRAL, Sérgio. Grande Otelo: uma biografia. São Paulo: Editora 34, 2007, 320p. Resenha de: SANTOS, Tadeu Pereira dos. Grande Otelo sob o olhar de Sérgio Cabral. Histórias & Perspectivas, Uberlândia, v. 22, n.41 – Jul./Dez. 2009.
O livro “Grande Otelo: uma biografia” foi escrito pelo jornalista Sérgio Cabral1, a partir do acervo particular de Sebastião Bernardes de Souza Prata/Grande Otelo, como resultado de um projeto dirigido pela Sarau (Agência especializada em espetáculos musicais e teatrais) e apoiado pela Petrobrás. A obra está estruturada em 25 tópicos, nos quais se evidencia a experiência de Sebastião Prata em um enredo que vai do seu nascimento à morte. Trata dos aspectos centrais da vida de Grande Otelo, em um processo em que presente e passado se mesclam na interpretação do autor.
O enredo sobre Grande Otelo destaca o imaginário construído sobre e para Sebastião Prata, como ator cômico, travestido no seu personagem Grande Otelo, fazendo dos principais meios de comunicação de circulação nacional (revistas e periódicos), ao longo do século XX, vozes suportes dessa memória.
Na interpretação de Cabral, Otelo ocupa o lugar central da narrativa pela seletividade de seu passado oferecido a ler em um movimento de heroicização. Assim sendo, a sua narrativa é construída com o propósito de que os acontecimentos sobre Otelo tenham o caráter de grandeza, transformando-o em herói do cinema e do teatro enfatizando a sua notoriedade, o seu brilhantismo e a sua genialidade. Essa constitui a espinha dorsal da escrita do autor, pelo manuseio do passado na construção de uma memória sobre Grande Otelo, isto é, como escritor/jornalista, é a partir de 2006 que ele interpreta a trajetória de vida do artista desde seu nascimento à morte, tomando a infância do mesmo como ponto de partida de sua interpretação. Destaca as suas experiências na cidade de Uberlândia, na Estação Mogiana, nas ruas e em um Circo Mambembe em trânsito pelo Triângulo Mineiro e Alto- Paranaiba.
Ao tratar do seu deslocamento para São Paulo, credita a essa experiência, tutelada por Abigail Parecis, o suporte de sua formação artística e sua inserção nas Companhias Negras de Teatro de Revistas. Cabral narra relações de Bastiãozinho com figuras públicas do campo artístico, referenciais marcantes na sua afirmação como Grande Otelo. O autor destaca amplamente jornais dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia onde Otelo figurava como atração dos espetáculos.
Além disso, narra suas experiências em São Paulo, explicitando a sua passagem pelo Patronato de Menores e sua posterior adoção pela família Queiroz que oportunizou seus estudos no Liceu Coração de Jesus, no qual se destacava nas apresentações cênicas, convencendo seus pais adotivos de que o potencial artístico fluía em seu ser. Cabral descreve ainda o seu retorno às atividades artísticas com Zaíra Calvacante e posterior engajamento com Jardel Jardecolis, que o leva ao exterior. Após seu retorno, estabelece- se na cidade do Rio de Janeiro.
Cabe ressaltar, que a infância é interpretada por Cabral como uma vivência marcada por aventura, sofrimento, mas, sobretudo, como reveladora da “predestinação” de Otelo ao mundo das artes, pois desde criança já se constituía em sucesso por onde passava e ocupava lugar de destaque na imprensa nacional.
Posteriormente à interpretação das experiências de Otelo em Minas e São Paulo, Cabral direciona-a para o Rio de Janeiro, descrevendo os acontecimentos reveladores da transformação de Sebastião Prata em seu personagem Grande Otelo, destacando Jardel Jardecolis como definidor de seu nome artístico Grande Otelo e dos múltiplos significados por ele assumidos na sua vida, a exemplo de sua iniciação no cinema, local de encontro com Mesquitinha, um dos seus mestres na vida.
A narrativa do período de 1935 a 1940 delineia o processo em que Otelo vai assimilando o Rio de Janeiro e se afirmando com as participações em peças teatrais e filmes da Cinelândia, espaços em que conheceu Noel Rosa, Mário Lago, Mesquitinha. Ao trabalhar com Ari Barroso em “Batuque”, fez parceria com Déo Maria ao interpretar e cantar a música “No tabuleiro da Baiana”. Destaca o autor que, em 1940, Sebastião Prata já era Grande Otelo e assumia lugar na escrita jornalista, como cartaz de peças de teatro e como alvo dos críticos da época.
O Cassino da Urca é dado a ler por Cabral como central na vida artística de Otelo por lá ter conhecido, na década de 1940, grandes destaques como Orson Welles, Carmem Miranda, Wilson Batista, Ataulfo Alves e Herivelto Martins, seu grande amigo. Contudo, leva o leitor a outros universos freqüentados por Otelo em seus trabalhos em rádio, cinema e música. Sobretudo, explicita os filmes dos quais participou, as dificuldades enfrentadas enquanto desempregado, sua participação na imprensa e suas relações familiares antes de integrar-se à Atlântida.
Tendo como suporte da sua escrita a imprensa da época, Cabral revela ao leitor uma fase definitiva na transformação de Sebastião em seu personagem Grande Otelo, em um processo em que faz do mesmo o suporte definidor do imaginário dos significados a ele atribuídos. Consoante aos propósitos de sua interpretação, intercala as suas glórias e frustrações, com destaque aos filmes O Moleque Tião e a Dupla do Barulho, ao seu exercício jornalístico na Revista Fiu-Fiu e à tragédia de 1949, quando da morte de Chuvisco, seu enteado, e suicídio da sua esposa. Como biógrafo transforma episódios pessoais do artista em grandes acontecimentos, ressaltando as suas glórias, os seus feitos, em um procedimento que lhe confere natureza de grande herói do cinema e do teatro: No primeiro semestre de 1943, os jornais andaram publicando também notas sobre as atividades futuras de Otelo no cinema. Ademar Gonzaga, o grande comandante da Cinédia, anunciou a realização do filme Alma do Morro, tendo o ator como protagonista. Pouco depois, a revista Cena Muda informou que a Atlântida faria vários filmes de curta-metragem e que o primeiro deles focalizaria Grande Otelo. Certo mesmo que, em 1943, ele seria definitivamente consagrado como um Grande astro do cinema brasileiro.2 O enredo de Cabral cristaliza uma dada versão sobre Otelo, a que está no imaginário de diferentes gerações, manifesta nas lembranças sobre ele. Esta versão corrobora as avaliações de seus trabalhos pelos meios de comunicação, reveladores da sua versatilidade, ponto importante na configuração da sua memória.
Cabral direciona a sua narrativa para explicitar a participação de Otelo no cinema brasileiro, em um percurso que vai da Atlântida ao Cinema Novo, entrecruzando suas atividades em rádio, televisão e teatro, em formato de um catálogo localizador do tempo e do espaço onde estava Otelo. No período entre a segunda metade da década de 1950 e a década de 1980 mapeia os passos de Otelo, agregando suas experiências nos diferentes canais de TV da época, tais como as TVs Excelsior, Tupi e o início da sua participação na Rede Globo, em que trabalhou até à década de 1990.
Além do catálogo das atividades de trabalho, Cabral também faz um mapeamento de figuras públicas dos campos artístico e político com as quais Otelo conviveu ao longo da sua trajetória de vida, evidenciando-as em cada fase.
A catalogação efetuada por Cabral revela os grandes feitos de Otelo, em um processo constitutivo da sua imagem como homem que viveu para o mundo das artes, doando sua vida para o cinema e o teatro do país, sacrificando sua família, justificando suas escolhas na sua condição de herói, por estar presente nos grandes momentos da atividade cultural no país. Cabral referencia o filme Macunaíma (1969), apresentado ao leitor como o trabalho de maior repercussão do artista pelas homenagens no país e exterior, o que lhe deu visibilidade nos diferentes meios de comunicação.
Dessa forma, leva o leitor às experiências de Otelo na década de 1970, destacando a sua participação em novelas e programas da TV Globo, com referências às suas participações no teatro e no cinema.
Em relação à década de 1980, Cabral constrói a sua narrativa de maneira a apontar Otelo já direcionando o enredo para sua morte. Isto é, ao elaborar uma relação, das homenagens a ele prestadas no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Minas Gerais, destaca a comemoração dos seus setenta anos, em 1985, a sua passagem por Uberlândia e, sobretudo, explicita sua participação no movimento pela Separação do Triângulo Mineiro e Alto-Paranaiba em que o artista fora garoto propaganda do Estado, contrariando seus conterrâneos uberlandenses. Nesse universo, entremeado por atividades de trabalho, Otelo é apresentado como um sujeito que indaga como fora e era tratado, revelando as suas angústias e, ao mesmo tempo, os seus problemas de saúde. Cabral o mostra como um sujeito que lutava pela vida e que permaneceu ativo até o seu último instante; isto é, um sonhador e lutador mesmo com saúde precária, decorrente da sua vida boêmia e idade.
Por exercer estreita relação com as atividades do cinema e do teatro, Otelo sempre recomeçava a sua vida, desta vez com o filho Pratinha, por meio da produtora Go-Up Produções Artísticas, agregando-se a isso o seu trabalho na Escolinha do Professor Raimundo da TV Globo, homenagens, amores e os sonhos de escrever livros e produzir filmes. Essas eram experiências de Otelo na década de 1990, relatadas por Cabral quando definitivamente ausentava-se do cinema e do teatro em razão da sua morte em 1993, por não resistir ao último infarto sofrido em plena Paris, onde receberia sua última homenagem. Desde o final da década de 1970, seu agravado estado de saúde o obrigara a hospitalizar-se em sua terra natal (Uberlândia) e em seguida por diversas vezes no Rio de Janeiro.
No enredo construído por Cabral, Otelo é o centro da narrativa, na medida em que a sua história, o entrecruzamento entre seus trabalhos, principalmente no cinema, são peculiares aos propósitos do autor em fazer de Otelo um herói na sua trama. Por isso, os personagens a ele vinculados são apresentados na medida em que possibilitam afigurar-lhe grandioso, um homem que se fez do porte dos demais, grande entre as grandes figuras públicas do país. Ao destacar a publicação do livro Bom Dia, Manhã, de autoria de Grande Otelo, Cabral seleciona do prefácio um parágrafo que destaca a importância do ator na vida nacional: Não sei de brasileiro vivo mais importante no cenário da vida nacional – seja ele político, esportista, artista, escritor – do que Sebastião Prata, pouco conhecido pelo nome inscrito no registro civil. Mas quem não conhece Grande Otelo? Os brasileiros mais célebres e amados – o poeta Drumond, o arquiteto Niemeyer, a atriz Fernanda Montenegro, o atleta Pelé, para citar apenas quatro expoentes – serão tão grandes, mas não serão maiores do que este pequeno homem de carapinha grisalha, nascido na pobreza do povo brasileiro, de imenso talento, de irremediável vocação para a arte, criador sem igual, a força e a graça. Nosso povão não possui quem seja tão sua imagem, que o simbolize com tamanha verdade.3 Decorrente desse movimento de escrita, observamos as poucas referências a familiares, talvez pela opção de quem sacrificou a família em função do cinema e do teatro. No cotidiano do artista, vida conflituosa com as mulheres, a boemia, os atrasos aos compromissos, a lida trabalhista (fugas) e as relações de convivência com alguns diretores, nos indicam as tensões vividas.
A biografia assume relevância para estudiosos ou simpatizantes da temática na medida em que lhes possibilita perceber uma interpretação sobre Otelo vinculada ao cinema, em um movimento transformador de Sebastião Prata em Grande Otelo, construída com suporte na grande imprensa brasileira. Aos historiadores, possibilita problematizar os procedimentos adotados pelo biográfico como recurso peculiar à escrita da história, analisando o propósito do autor e a materialidade da narrativa. Nesse movimento, são percebidos os recursos utilizados para a construção de uma versão sobre o sujeito por aquele que se propõe a “contar” sua vida.
As minúcias narradas constituem a estrutura do enredo em que texto e iconografia produzem sentidos configuradores de verdade.
A narrativa é construída de modo a criar uma falsa impressão no leitor de que os acontecimentos contados, e a maneira como o são, encerram a experiência do biografado, quando, ao contrário, o que se apresenta é apenas uma interpretação condicionada ao uso de documentos e às questões propostas pelo autor.
Nesse movimento, a escrita também revela concepções de história que se explicitam na maneira de narrar. Como se trata de uma história para fazer do biografado um herói, coloca-se em evidência os seus grandes feitos: sua participação pelos diferentes meios cinematográficos (Chanchadas, Cinema Novo, Cinema Marginal); sua inserção pelo jornalismo; seu mergulho no mundo musical por meio da composição de samba; sua trajetória no rádio, no teatro e na televisão, nos quais o aspecto factual assume relevância na narrativa, ao transformar experiências do artista em grandes manchetes, o que possibilita engrandecê-lo e heroicizá-lo.
Devemos ainda considerar que essa forma de reconstruir o passado a partir do presente ocupa lugar singular no mercado editorial.
Ou seja, essas narrativas transformadas em mercadorias têm nele espaço cativo e são dadas a ler como História.
Desse modo, muitas biografias evidenciam uma concepção de História centrada nos “grandes” homens e acontecimentos, valorizando a ideia do detalhe travestido em data, personificação, ao subjugar a história à trajetória de apenas alguns, o que leva a um movimento cristalizador de uma dada forma de interpretar, reveladora de uma concepção restritiva onde alguns sujeitos são considerados agentes históricos dignos de terem suas vidas biografadas.
Aqui, o sujeito Sebastião Prata dá lugar ao artista Grande Otelo. Suas agruras do cotidiano, seus anseios, enfim, sua experiência no meio social cede espaço, na ótica do biógrafo, aos festejos e dotes artísticos apresentados por Otelo. Cabral não enxerga no artista o homem e, despeja sua análise no caráter singular do artista, deixando de lado as ações do sujeito. Nos flashes literários promovidos por Cabral, nas fotos, no palco da história, o sujeito é Grande Otelo quem surge, Sebastião Prata é apenas coadjuvante nas lentes do biógrafo.
1 Sérgio Cabral é jornalista, músico, compositor e escritor. Escreveu as seguintes obras: Pixinguinha: vida e obra (1977), com a qual venceu o concurso de monografias da Funarte sobre MPB; No tempo de Almirante (1991); No tempo de Ari Barroso (1993); As Escolas de Samba do Rio de Janeiro (1996); Antonio Carlos Jobim: uma biografia (1997); Mangueira: nação verde e rosa (1998) e Nara Leão: uma biografia (2001), entre outras. Cabral é presença constante em programas de diferentes canais da televisão brasileira e participante ativo de festivais de música como jurado.
Notas
2 CABRAL, Sérgio. Grande Otelo uma biografia. São Paulo. Editora 34, 2007. p104.
3 AMADO, Jorge & OLINTO, Antônio. Prefácio do livro Bom dia, manhã de autoria de Grande Otelo. In. CABRAL, Sérgio. Grande Otelo: uma biografia. São Paulo: Editora 34, 2007. p. 290.
Tadeu Pereira dos Santos – Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia, pesquisador da vida e obra de Sebastião Prata/Grande Otelo e bolsita Capes sob orientação da Professora Drª Heloisa Helena Pacheco Cardoso.
Macroeconomia da Estagnação | Luiz Carlos Bresser
Luiz Carlos Bresser Pereira lançou neste ano, pela Editora 34, a obra Macroeconomia da Estagnação, que versa sobre a política macroeconômica vigente no Brasil desde a implantação do Plano Real. Com subtítulo de “Crítica da ortodoxia convencional no Brasil pós-1994”, a obra pretende engrossar o coro da chamada escola “novo-desenvolvimentista”.
A obra está dividida em onze capítulos; nos dois primeiros – “Quase-estagnação” e “Nação e desigualdade” – faz-se um balanço da economia brasileira desde os anos trinta, basicamente endossando as idéias já presentes em outras obras suas, comentando também o ambiente econômico recente. Os capítulos restantes formam densa análise de aspectos da política macroeconômica que constituem o eixo fundamental da discussão moderna. Comentemos alguns capítulos: Leia Mais
Guerra e Paz: casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 | Ricardo Benzaquem Araújo || O Brasil visto de fora | Thomas Skidmore
Há quase um século as imagens sobre a suposta singularidade das relações raciais no Brasil têm como um de seus principais marcos constitutivos a experiência norte-americana. Processos distintos de implantação do sistema escravocrata e de sua posterior extinção, maior ou menor grau de miscigenação e seus efeitos sociais, sociedade multirracial versus sociedade birracial, mecanismos legais ou informais de discriminação racial foram alguns dos parâmetros utilizados para definir as diferenças entre as duas sociedades.
Apesar do denominado mito da democracia racial ter sido elaborado no século XIX, seu refinamento, sem dúvida, contou com a colaboração imprescindível de cientistas sociais tanto brasileiros quanto norte-americanos, especialmente nas décadas de 1930 e 1940. Gilberto Freyre e Donald Pierson são exemplos representativos desse momento. Leia Mais