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Les larmes de Rio / Laurent Vidal
Há muito os leitores de obras de história deixaram de se surpreender com livros que concentram o interesse de pesquisa no limite temporal de um único dia. Nos anos 1970, quando a história dos processos e estruturas parecia haver desterrado o evento, esse vilão encastelado na historiografia do século XIX, o medievalista George Duby consagrou um livro a um daqueles “dias memoráveis” da história da França, o 27 de julho de 1214.1 O argumento utilizado por Duby para justificar esse seu “retorno ao acontecimento”, foi que ele lhe permitiria alcançar os movimentos obscuros que fazem deslocar lentamente os alicerces de uma cultura.
O cerne do livro Les larmes de Rio (ele será traduzido para a língua portuguesa como As Lágrimas do Rio?), de Laurent Vidal, é um dia da vida da cidade do Rio de Janeiro, o dia 20 de abril de 1960, o dia do fechamento dos portões do Palácio do Catete e do embarque do presidente Juscelino Kubitschek para a nova capital, Brasília. Contudo, a relação entre evento e estrutura não está mais no centro da preocupação dos historiadores e o que Laurent Vidal tem em vista, enfrentando o trabalho com o tempo, esse desafio permanente dos historiadores, é voltar àquele dia e indagar sobre o que está contido nele.
O livro se orienta por três planos que permitem capturar esse adensamento de tempos diferentes. Deixemos que o próprio autor sintetize essa conjunção: ele se propõe a enfocar “Um acontecimento esperado (já que enunciado), vivido (o dia de seu desenrolar), e por fim percebido, integrado num discurso retrospectivo” (p. 11). O livro está assim organizado: um Prólogo; Parte I (“Quando o poder deixa a cidade”); Parte II (Poética do acontecimento) e Epílogo. Dirigiremos a maior parte dos nossos comentários à Parte I, que se divide em dois itens (“A perigosa entrada em cena de Juscelino Kubitschek” e “Juscelino, como Janus”) e cinco “Atos” sucessivamente intitulados “A cortina se levanta… sobre a Cinelândia”; “Quanto a cidade entra em cena”; “O apelo aos cariocas”; “Onde Juscelino se desfaz dos últimos laços com o Rio” e “A porta das lágrimas”. Segue um último tópico desta parte, sob o título de “à beira da cena, o herói e suas dúvidas”. A Parte II se intitula “Poética do acontecimento”, em que o autor busca reconstituir as “modalidades de percepção”, reconstituindo não o sentido do evento, mas “o modo como ele nos afeta” (p. 115), explorando para isso os escritos de intelectuais ligados à vida carioca.
O movimento do poder se desligando e se despedindo da cidade, produzindo um estado de suspense e despertando uma excepcional força coletiva, propiciou ao autor excelente matéria para sua narrativa. A separação entre cidade e poder é o problema central do livro. O autor inscreve seu problema no campo da historiografia, a partir da seguinte questão: há muitos estudos sobre a entrada do poder na cidade; em contrapartida, os historiadores têm dedicado pouco interesse aos momentos em que o poder deixa a cidade levando consigo as instituições, seus símbolos, sua corte de funcionários. No Rio, restará um palácio de portas fechadas, e como pretenso prêmio de compensação aos cariocas, a criação do estado da Guanabara.
A efetivação da transferência da capital foi um processo delicado. Num ambiente de ardentes ambições políticas, a mudança da capital abriu o caminho para a insegurança, o temor e fortes expectativas em relação ao futuro. O Rio de Janeiro, corte no período imperial e capital federal no período republicano, perderia a condição de capital e os cariocas reagiram revelando sentimentos os mais diversos (entre os principais estava o ressentimento e o alívio).
As lágrimas do Rio não é resultado de uma primeira aventura transoceânica de Laurent Vidal. Como outros trabalhos do autor, ele foi pensado e vivido. Vidal cruzou o oceano na direção do Brasil pela primeira vez há alguns anos, aterrissou em Brasília, morou no Rio de Janeiro e divide sua vida entre a França e o Brasil. Enquanto realizava suas próprias travessias, ele estudava outras travessias, todas relacionadas com o lado de cá do Atlântico.
Por exemplo: a travessia das utopias no curso do tempo, desvelando o poder exercido pelas imagens do futuro sobre o presente, em sua tese de doutoramento “Un projet de ville: Brasília et la formation du Brésil moderne, 1808-1960”, defendida na Universidade de Paris III, no ano de 1995, e que tomou a forma de livro publicado na França em 2002, com o título “De Nova Lisboa à Brasília: l´invention d´une capitale” e no Brasil, em 2008, com o título de “De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX).2 A imaginação dos homens já aparece neste livro como força mobilizadora. Nele, o mundo dos sonhos e dos desejos extrapola o tempo vivido, se projeta no futuro sob a forma de utopias, mas estão enraizados na vida social do presente.
Outra linha de orientação, associada à anterior, é o esforço teórico e poético dedicado à captura dos movimentos do tempo, que se projeta para diante e para trás sob a forma de nascimentos, mortes e renascimentos das cidades brasileiras entre os séculos XVIII-XX3, desenhando uma dinâmica que se exprime nas diversas experiências de deslocamento que lançaram na direção do Brasil franceses das mais variadas origens e nas mais variadas circunstâncias.4 Desse modo, o historiador identifica as fissuras naquilo que é aparentemente compacto, naquilo que está aparentemente imobilizado no espaço, paralisado no tempo do presente. Vidal tem chamado à atenção para isso em vários ensaios em que vem esboçando uma história social da espera, e os primeiros sinais dessa história se encontram no livro magnífico que liga e cruza, dentro da tessitura da lógica colonial e da memória dos indivíduos, três continentes e a história de um deslocamento: Mazagão: la ville qui traversa l´Atlantique.5 Em As lágrimas do Rio ele retoma, agora explorando o movimento dentro do tempo consagrado à espera, na curtíssima duração, dentro de uma cidade, o tempo que se volta para o passado mítico e o tempo que se projeta no futuro do Brasil moderno.
A pergunta que atravessa todo o livro é: diante da instabilidade agudizada pelo processo de separação entre cidade e poder, como assegurar essa transição, como superar esse “vazio” do poder legítimo, como administrar os sentimentos dos cariocas em face do despojamento do Rio de Janeiro de sua condição de capital federal? A mobilização do rito cumpre exatamente esse papel de reestabelecer o equilíbrio nesse momento delicado:.
Na cidade, o político se apodera do tempo e, criando a ilusão de dominá-lo, se instala na duração – como se estivesse protegido das inquietações do mundo. Ora, eis que, no Brasil, o político (Juscelino Kubitschek) decide se colocar a caminho e deixar definitivamente a cidade (Rio de Janeiro). Deixá-la no discretamente, mas ao contrário, magnificamente, fazendo de sua saída, de seus adeuses, um ato cerimonial. E como se trata de uma saída de cena, é preciso fazer da cidade um teatro onde o poder, representado, pode-se colocar em movimento. (p. 19).
Laurent Vidal narra os momentos decisivos (horas, minutos) daquele dia intenso para Juscelino e para a cidade do Rio de Janeiro. O narrador acompanha o deslocamento do interesse da cena do espaço público para os ambientes privados, o papel decisivo dos pronunciamentos do Presidente, o magnetismo de seus atos, o impacto das imagens, o modo como cada ator ou grupo de atores entra em cena, extraindo de cada imagem, gesto e sinal o significado que eles assumem no momento em que aparecem. Ele captura o efêmero, empregando com desenvoltura os instrumentos da antropologia, da sociologia e da literatura, enlaçando com naturalidade os fatos e a teoria. Vidal dispõe os fios da trama dos eventos, escandindo o tempo para reconstituir o ritmo certo dos acontecimentos, mostrando o adensamento e a dispersão dos fatos, e assim revelando ao leitor a tessitura fina daquele dia 20 de abril.
As qualidades para a tarefa, o autor já as havia revelado em obras anteriores: o estilo competente, o manejo eficaz da teoria, o olhar formado nas sutilezas, requisitos necessários para que possa dar conta da descrição de um momento delicado como aquele. Porque não é tarefa fácil para o historiador lidar com esses objetos: o tempo que extrapola a cronologia, os atos políticos que se movem e articulam o desejo do futuro e o apelo ao passado, os sentimentos complexos dos homens do poder, dos intelectuais e dos populares, as hesitações de Juscelino Kubitschek, a participação popular, o modo como cada voz deveria entrar nesse concerto (e como efetivamente entra), a oposição parlamentar, a ritualização elaborada com a finalidade de “reativar o mito da unidade do grupo”. (p. 35).
O centro do drama vivido por Juscelino é precisamente este: no curso de mudança da capital, como separar essas duas dimensões do poder sem abrir as portas às ambições políticas da oposição, sem colocar em perigo a ordem social, diante do temor de que a população carioca reagisse mal à perda de privilégios que a condição de capital federal lhes assegurava? Ao mesmo tempo, o vazio produzido por essa operação de separação é preenchido por uma operação de produção de novas identidades, recorrendo à história, mobilizando gestos, imagens, palavras. Palavras “que separam a função de capital da cidade e que convidam a preencher esse vazio pela busca de uma identidade mais autêntica.” (p. 49).
O livro inicia com a apresentação do contexto político da chegada de Juscelino Kubitschek à presidência, as forças políticas em jogo, a situação crítica em que ele sobe ao poder. A seguir, Vidal mostra as hesitações de Juscelino diante da complexidade dos fatos relacionados à transferência. Esses dois primeiros capítulos tratam do período anterior ao drama do dia 20, enfocado os eventos e os processos que preparam o drama. Sob o ponto de vista organizacional, a estrutura do livro, construída sobre uma ordem cronológica, favorece a clareza, sobretudo tendo-se em vista o público de língua francesa, desconhecedor da história do Brasil, a quem o livro inicialmente se destinou. Mas para o leitor brasileiro (pelo menos o leitor culto), que domina os elementos básicos do processo político que levou Kubitschek ao poder, essa estrutura talvez tenha sido demasiado benevolente e isso repercute no livro, que tem a sua primeira parte enfraquecida porque o que interessa é a dramatização do dia 20. Não é que esse diretor de cena (Laurent Vidal e não Juscelino Kubitschek) tenha errado a marcação da luz. Mas há leitores que prefeririam ver tudo isso reunido, toda a matéria do livro contida num único dia, absorvendo e subordinando dentro dela os antecedentes históricos, os elementos desencadeadores do “drama”, tudo encravado dentro da narrativa do dia 20 e não figurando na exterioridade dos “antecedentes históricos”. Se assim tivesse sido concebida a obra, esses tempos entrelaçados no dia 20 ganhariam em dramaticidade, em complexidade e em densidade. Isso não é um reparo à estrutura de As lágrimas do Rio. É provável que essa ousadia de composição da peça dedicada ao dia 20 de abril requeresse um esforço extraordinário e uma sofisticação no tratamento do tema impossível nesse momento. Mas é cabível pensar que o avanço das reflexões e das experiências do autor em torno da “história social da espera”, a que ele tem consagrado suas energias, lhe permita futuramente aventurar-se nessas audácias, se elas lhe interessarem.
As lágrimas do Rio é um livro que instiga, porque dá conta da tarefa a que se propõe e ainda provoca no leitor um repertório de indagações suplementares, indagações a que, ressalte-se, o autor não pretendeu responder. Apontarei duas, uma decorrente da outra, extraídas do centro mesmo do livro, do enredo e do cenário desse drama do dia 20. É Vidal quem escreve: “Kubitschek vai representar a saída do poder como um drama clássico”, protagonizando o grande espetáculo para uma multidão de espectadores e de ouvintes, “atentos a todas as posturas, a todas as palavras”. Trata-se de um drama, segundo Vidal, onde Juscelino “é ao mesmo tempo o autor, o diretor e o ator principal”. (p. 33). Juscelino é o mobilizador de mitos (p. 37). Ele é Janus, o deus de face dupla, o deus que deve presidir as situações de passagens.
O desenrolar do livro demonstra exatamente isso. O cálculo, as estratégias, as decisões, a escolha dos rituais adequados, as palavras medidas, uma vontade excepcionalmente dotada para todas as ocasiões, ainda que não possa evitar instantes de hesitação, é isso que distingue Juscelino. Juscelino é o centro desencadeador, tudo provém dele (exceção feita a dois colaboradores pontuais: um amigo que escreveu a história das mudanças das capitais, e um coronel que, em depoimento a Vidal, afirmou que sugeriu ao presidente transformar o palácio do Catete em Museu da República). E a peça é conduzida dentro do roteiro previsto, com pequenas transgressões ocorridas no calor dos entusiasmos, mas sem chegar a alterar o seu curso.
Esse poder extraordinário que vemos irradiar de Juscelino pode surpreender os historiadores mais sensíveis às estruturas do poder e aos rituais que costumam ser mobilizados para a legitimação do poder. Juscelino revela um poder taumatúrgico que reforça no leitor brasileiro a imagem de um presidente sedutor que está nas evocações pessoais de quem conviveu com ele e que alimenta a memória política dos grandes homens. Impõe-se a indagação a respeito de como num Estado que estava se organizando em bases modernas (a mudança da capital para Brasília, e Laurent Vidal o demonstra neste livro e em livro anterior, é um momento de separação, ruptura e de formação de um novo Brasil, o Brasil moderno) o presidente reine como uma figura solitária na condução das coisas, imperando sobre o protocolo, sobre os assessores, dispensando a figura de um conselheiro permanente, montando sozinho o roteiro do seu espetáculo, organizando os atos, estabelecendo os ritos que acompanharão essa retirada do poder…
Não aparecem no livro de Laurent Vidal os mecanismos burocráticos, o corpo especializado de auxiliares, a rede de poder que a gente imagina se movimentando em torno dele. Como se pensar nesse quadro um Brasil moderno desprovido de uma estrutura burocrática que interfira nos movimentos do poder num momento tão decisivo? Teriam os burocratas e tecnocratas relegado a programação espetacular do dia 20 de abril a um domínio exterior às razões da política, fazendo dela uma espécie de resíduo inofensivo encerrado no campo das prerrogativas e do personalismo de Juscelino? A indagação incide, na verdade, sobre a nossa modernidade política, e evidentemente não cabe a esse livro que cabe respondê-la. Não podemos dizer que essas questões aparecem como fios soltos na tessitura que Laurent Vidal oferece ao leitor. Mas se elas tivessem sido contempladas, o tecido do dia 20 de abril apresentaria a nossos olhos outras cores e desenhos ainda mais ricos.
E para o leitor que aceitar a interpretação proposta por Vidal, ficará mais uma indagação a respeito desse artífice e ator da cena de 20 de abril: afinal, como se produziu esse êxito de Juscelino nos efeitos de persuasão do ritual coletivo que apaixonou a vida dos cariocas naquele dia? Uma resposta poderia ser arriscada aqui. Ela talvez possa ser obtida se examinarmos a formação pessoal de Juscelino e se enveredarmos nos caminhos da sua memória. É provável que na memória desse homem no poder estivesse vivo o repertório recolhido da infância das cidades mineiras do ouro. Os ouvidos formados sob o estímulo sensorial das procissões da cidade engalanada, embriagando os atores e a assistência com os sons, as cores, o cintilar de luzes na noite, ritualizando a fé naquele teatro barroco que se deslocava nas ruas do velho Arraial do Tijuco, a cada novo ciclo do ano – é possível que tudo isso tenha lhe fornecido instrutivas lições de psicologia coletiva, pensada e sentida, a respeito da força dos rituais coletivos sobre as almas dos indivíduos, mineiros ou cariocas… É perfeitamente plausível que o presidente Juscelino conservasse na memória algo mais do que a canção cordial vinda dos fundos das Minas Gerais, o Peixe Vivo.
Quando fizer a travessia das línguas e chegar ao leitor carioca e brasileiro, o belo livro de Laurent Vidal provavelmente ganhará o sentido duplo que a língua francesa recusa a seus leitores. Afinal, para os francófonos, Les larmes de Rio é só (e tudo) isso: as lágrimas da cidade do Rio de Janeiro. Mas para os ouvidos lusófonos o título reserva essa ambiguidade das lágrimas da cidade que são ao mesmo tempo as águas do rio, promovendo o encontro semântico entre essas imagens ancestrais e muito brasileiras das lágrimas do rio que corre e das águas dos olhos que choram… É difícil pensar que Laurent Vidal, amoroso do Rio de Janeiro, não tenha concebido essa ambiguidade linguística no interior de um território de encontro entre duas culturas. Escrevendo para franceses, ele pensou como brasileiro.
O autor começa o livro com o relato de uma tarde de 21 de junho de 2006, narrando a sua aproximação do Palácio do Catete, contemplando-o, dialogando com ele. As Lágrimas do Rio é o resultado daquelas indagações. Concluída a leitura do livro, tendo presenciado, por força dessa narrativa evocadora, a intensidade do gesto de fechamento do palácio esvaziado de suas funções, o leitor (em especial o leitor carioca) nunca mais deverá olhar com os mesmos olhos os portões do Museu da República. Do mesmo modo que não sentirá mais essa passagem entre os dias 20, 21 e 22 de abril dominada pela memória da morte de Tiradentes e do Descobrimento do Brasil. A transferência da capital inscreveu dentro desse calendário o dia que suscitou a experiência que mobilizou com intensidade os cariocas, quando eles choraram vendo o despojamento de sua cidade, se dobraram sobre o seu luto e logo renasceram.
Notas
1. DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de Julho de 1214. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
2. VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa à Brasília: l´invention d´une capitale, XIXe-XXe siècle, Paris: IHEAL éditions, 2002. VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2009.
3. La ville au Brésil (XVIIIe-XXe siècles): naissances, renaissances.(Dir. Laurent Vidal). Paris: Les Indes Savantes, 2008.
4. Franceses no Brasil: séculos XIX-XX (org. Laurent Vidal e Tania de Luca).São Paulo: Editora UNESP, 2009.
5. VIDAL, Laurent. Mazagão, la ville qui traversa l´Atlantique: du Maroc à l´Amazonie (1769-1783). Flammarion, 2008. Traduzido para a língua portuguesa: VIDAL, Laurent. Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico: do Marrocos à Amazônia (1769-1783). Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008.
Raimundo Pereira Alencar Arrais – Professor Associado do Departamento de História – UFRN. Doutor em História Social – USP.
VIDAL, Laurent. Les larmes de Rio. Paris: Éditions Flammarion, 2009. 255p. Resenha de: ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Revista Porto. Natal, n.1, v.1, p.131-137, 2011. Acessar publicação original [IF].
Plotin Traités – BRISSON; PRADEAU (RA)
BRISSON, Luc; PRADEAU, Jean-François. Plotin Traités. Paris: Éditions Flammarion, 2009. Resenha de: JÚNIOR, José Carlos Baracat. Revista Archai, Brasília, n.5, p.139-142, jul., 2010.
Este é o oitavo volume de uma nova tradução, ainda em andamento, dos escritos de Plotino, sob a direção de Luc Brisson e Jean-François Pradeau. Neste trabalho coletivo, Brisson e Pradeau recrutaram um exército notável de estudiosos para apresentar, traduzir e anotar cada um dos tratados do filósofo neoplatônico, seguindo a ordem cronológica de sua composição, tal como informada por Porfírio (Vida de Plotino, capítulos 4-6).
Os escritos que compõem este volume são os tratados 45: A eternidade e o tempo, 46: Sobre a felicidade, 47-48: Sobre a providência (os dois tratados formavam um único tratado na origem, dividido por Porfírio), 49: Sobre as três hipóstases que conhecem e sobre o que está além, e 50: Sobre o amor – respectivamente III. 7, I. 4, III 2-3, V. 3 e III. 5, no arranjo sistemático em que Porfírio publicou as obras de seu mestre e ao qual chamou Enéadas (Vida de Plotino, capítulos 24-26). Matthieu Guyot é o responsável pelo tratado 45 (III. 7); Thomas Vidart, pelo 46 (I. 4); Richard Dufour se encarrega do tratado 47-48 (III. 2-3); Francesco Fronterotta, do 49 (V. 3) e Jean-Marie Flamand, do 50 (III. 5). Os volumes anteriores foram: tratados 1-6, em 2002; 7-21, em 2003; 22-26, em 2004; 27- 29, em 2005; 30-37, em 2006; 38-41, em 2007; e 42-44, em 2008. Há ainda quatro tratados a serem publicados (51= I. 8, 52=II. 3, 53=I. 1, e 54=I. 7), que devem sair num único e último volume em 2010.
Cada tradução, acompanhada de exaustivas notas filosóficas, filológicas e bibliográficas, é precedida por um estudo introdutório que expõe os temas centrais do tratado, e por um plano detalhado de seu desenvolvimento. No final de cada volume, há uma bibliografia selecionada, relativa aos tratados que compõem o volume; um quadro cronológico que põe em paralelo a vida de Plotino, os fatos culturais e os acontecimentos militares e políticos; um índice remissivo dos principais conceitos, e outro de nomes próprios.
As notices individuais às traduções se estruturam de modo semelhante: os autores procuram, em não mais do que quinze páginas, situar o tratado em relação à obra de Plotino, e o tema em relação às suas fontes e aos seus adversários, reconstruindo o desenvolvimento do tratado capítulo a capítulo de modo bastante claro e detalhado, e explicitando a originalidade e a profundidade do pensamento de Plotino.
Assim, Guyot apresenta o tratado 45 (III. 7) explicando o sentido da definição da eternidade como vida do intelecto (noûs) e do tempo como vida da alma, e notando que Plotino, aqui, numa exegese original do Timeu de Platão, busca uma definição da essência do tempo que seus predecessores não encontraram. Vidart enfatiza a importância do tema da eudaimonía na Antiguidade, e mostra como reflexão acerca da felicidade, em Plotino, é indissociável da reflexão acerca da constituição de um “sujeito”; sendo o eu múltiplo, uma hierarquia de vidas, vividas segundo o intelecto, segundo a alma, ou segundo o corpo, a verdadeira felicidade pertence apenas ao verdadeiro eu, isto é, o superior; o eu verdadeiro do sábio é impassível, mas os outros “eus”, os inferiores, sofrem, e muito, no Touro de Fálaris. A introdução de Dufour aos tratados 47-48 (III. 2-3) merece atenção especial pela nitidez com que consegue explicar os temas centrais desses tratados, tão propensos a criar confusões; Dufour nos guia em uma leitura segura da reflexão importante de Plotino acerca da providência (outro tema de grande relevo na Antiguidade), mostrando que a beleza deste mundo sensível é garantida pelo intelecto, através da ação dos lógoi (princípios formativos); ele chama nossa atenção ainda para o modo como Plotino, partindo das Leis de Platão e incorporando idéias estóicas, responde com originalidade aos epicuristas, aos peripatéticos e aos gnósticos. Fronterotta, por sua vez, nos mostra como o escrito 49 (V. 3) retoma o tema dos três princípios do real (alma, intelecto e uno) de uma nova perspectiva: tratado várias vezes, em escritos anteriores, do ponto de vista genético, isto é, de seu engendramento, ele é agora examinado a partir da possibilidade e do significado do autoconhecimento por parte de cada um dos princípios; a alma é capaz de conhecer a si mesma de modo imperfeito, ao contrário do intelecto, que é a perfeita identificação entre sujeito e objeto do conhecimento; o conhecimento de si não pode ser admitido quando se trata do uno, dada sua absoluta simplicidade, mas isso de modo algum implica carência ou enfraquecimento. Flamand, por fim, adverte que o tratado 50 (III. 5) busca dizer, filosoficamente, o que é Eros, o amor, enfatizando, por um lado, a forte influência do Banquete e do Fedro de Platão e, por outro, a interpretação alegórica da mitologia realizada por Plotino.
As notas costumam ser valiosas, não apenas por destrincharem as dificuldades dos argumentos, mas sobretudo pela grande quantidade de referências à literatura crítica; nas referências às fontes de Plotino, por exemplo, Platão e Aristóteles, os tradutores nunca se contentam com uma remissão simples aos textos, mas apresentam e discutem a passagem referida. É preciso esforço para encontrar uma passagem dos tratados que mereça uma nota e que não a tenha recebido; o tratado 45, por exemplo, têm 525 notas, que preenchem, com letras pequenas, quase 60 páginas. O trabalho de anotação dos tratados talvez seja, para os estudiosos de Plotino, o ponto alto do trabalho do grupo.
Mas é preciso reconhecer que não são poucas as notas completamente desnecessárias que nos fazem interromper a leitura da tradução e demandam esforço das nossas retinas. As traduções seguem o texto da editio minor de Paul Henry e Hans-Rudolph Schwyzer e acatam quase todas as correções propostas pelos editores; no início de cada volume, são listadas todas as discrepâncias das traduções em relação ao texto da editio minor sem as correções dos editores: ora, seria mais simples listar, então, apenas as divergências em relação às correções de Henry e Schwyzer. Não fosse o bastante, os tradutores assinalam novamente, através de nota, todas essas divergências já elencadas no início do livro. Dufour nos dá outra amostra: na introdução, ele adverte que os tratados 47 e 48 formavam, originalmente, um só escrito, que foi dividido por Porfírio em sua edição das Enéadas; todavia, a primeira nota de sua tradução é justamente para fornecer essa mesma informação.
De modo geral, as traduções deste volume, assim como as dos anteriores, são bastante confiáveis. É admirável como as batutas de Brisson e Pradeau conseguem manter a harmonia de um trabalho executado a tantas mãos. Leitores não especializados encontrarão um material satisfatório para ingressar nos difíceis escritos de Plotino; os especialistas, os mais recentes desenvolvimentos da interpretação de Plotino aplicados a uma tradução competente. Há, porém, algumas observações que eu gostaria de fazer a respeito da tradução.
Causa-me certo incômodo a tradução da palavra grega ousía por “realité”(realidade), em vez das escolhas tradicionais, “essência”ou “substância”. Não é que a palavra não possa ser traduzida assim – pelo contrário, ela pode e essa seria uma excelente solução. No entanto, com freqüência, essa escolha torna o texto bastante confuso para os leitores que não lêem o Grego – e são eles os que mais precisam da tradução, não? –; mesmo os conhecedores do Grego, se não se têm o texto original à mão, ficam constantemente em dúvida se a palavra “realité”, sempre que aparece, está traduzindo ousía.
Neste volume, é verdade, não encontrei passagens tão problemáticas como nos anteriores. No sexto volume (tratados 38-41), por exemplo, lemos na introdução de Fronterotta ao tratado 38 (VI. 7): “l’ Un qui est le premier principe de la réalité”(o Uno que é o princípio primeiro da realidade, p. 15); e, na sua tradução do mesmo tratado: “cette partie assure la sauvegarde de cette réalité”(essa parte garante a segurança dessa realidade, p. 45, VI. 7. 3. 16). Na primeira citação, “realidade”significa a totalidade das coisas existentes, o que, no caso de Plotino, não equivale à totalidade de essências ou substâncias (pois o Uno está além da essência, e a matéria, aquém); na segunda, a palavra traduz ousía. Se a confusão não fosse suficiente, ele ainda traduz pan sýntheton por “toute réalité composé”(toda realidade composta, p. 57, VI. 7. 10. 10): parece-me até questionável supor a noção de ousía aqui, onde um simples e inofensivo “coisa”bastaria.
Neste oitavo volume, encontramos passagens como estas: “comment une réalité absolutement simple et une peut engendrer l’unité multiple du monde intelligble”(como uma realidade absolutamente simples e una pode engendrar a unidade múltipla do mundo inteligível; Fronterotta, na introdução ao tratado 49, p. 312). Ora, o Uno não é ousía, mas é chamado “realidade”. Evidentemente a palavra está aí por “coisa existente”. Vejamos mais exemplos. Na página 42, tradução de Guyot do escrito 45 (III. 7. 3. 3-5), lemos “L’éternité, en effet, se manifeste dans la realité en vertu de la réalité elle-même…elles viennent de la réalité et sont avec la réalité”(a eternidade, com efeito, se manifesta na realidade em virtude da própria realidade…
elas [as coisas que provêm do intelecto] vêm da realidade e estão com a realidade); e, na página 39 (III. 7. 2. 30): “repos de la réalité”(repouso da realidade). Se não fazemos um esforço constante para lembrar que réalité (geralmente) traduz ousía, passagens como essas soam, no mínimo, estranhas. Principalmente depois de lermos, na introdução do mesmo Guyot (p. 18), que “les réalités temporelles ne sont jamais complètes”(as realidades temporais jamais são completas) e que “une réalité temporelle n’atteint donc sa complétude qu’au seuil de son anéantissement”(uma realidade temporal alcança sua completude apenas a caminho de sua anulação).
O grande embaralhamento provém, no fundo, do descompasso entre as introduções e as traduções: naquelas, a palavra “realidade”é empregada de modo mais amplo, com mais liberdade, não apenas como tradução de ousía, ao passo que nas traduções há um uso (geralmente) fixo do vocábulo. De qualquer maneira, parece-me haver certa negligência no uso da palavra “realidade”, tão complexa em filosofia. Uma advertência prévia para esse caso, quiçá o emprego exclusivo de “realidade”para traduzir ousía, e muita confusão seria evitada.
Outra dificuldade: freqüentemente nóesis e diánoia, e seus derivados, são traduzidas pela mesma palavra, “pensée”, “penser”(pensamento, pensar). Contudo, em Plotino esses conceitos nem sempre são sinônimos, dado que nóesis costuma aplicar-se ao noûs, e diánoia à alma. Há passagens cuja tradução acaba nos frustrando, talvez por alguma imposição do idioma francês: Fronterotta traduz (49, V. 3. 5. 28-29) “mais si l’intellection e l’intelligible sont une seule et même chose, comment alors ce qui pense se penserá-t-il ainsi lui-même ?”(mas se a intelecção e o inteligível são uma só e mesma coisa, como então aquilo que pensa pensará assim a si mesmo?). Ele preserva “intellection”e “intelligible”para nóesis e noetón, mas, enquanto Plotino emprega na seqüência nooûn (aquilo que intelige) e noései (inteligirá), Fronterotta infelizmente passa para “ce qui pense”e “pensera”. Se não temos o texto grego, temos a impressão, com isso, de que Plotino emprega palavras diferentes, e não diversas formas derivadas de noûs.
Uma última observação: tenho cá comigo que traduzir os escritos de Plotino como se eles fossem diálogos é um pouco desonesto com os leitores que não podem ler ou consultar o texto grego. Não sei exatamente quem deu início a essa prática, mas ela ocorre pelo menos desde 1982 (penso no primeiro volume da excelente tradução espanhola de Jesus Igal, publicada pela editora Gredos). Ela leva o leitor a pensar que o texto tem uma forma literária que, na verdade, não tem. E, como não há um dramatis personae, o leitor não tem certeza de quando é e de quando não é Plotino quem está falando. A intenção de separar as objeções e perguntas de interlocutores fictícios das respostas de Plotino é louvável, mas o que resulta disso não é, invariavelmente, uma clareza maior dos argumentos.
É tarefa fácil mas ignóbil apontar deslizes insignificantes em ótimas traduções cuja contribuição para os estudos de determinado autor é inquestionável. Assim, não desejo, de modo algum, que as observações acima dêem a entender que o trabalho dirigido por Brisson e Pradeau seja menos do que excelente. Mais valioso do que o resultado desse trabalho talvez seja o processo para se chegar a ele: transparecem o Brisson e o Pradeau professores, formando jovens pesquisadores, em condições ideais de trabalho, para serem referência nos estudos plotinianos.
José Carlos Baracat Júnior – Professor Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: baracatjr@hotmail.com