A Igreja Católica e o Estado Novo salazarista | Duncan Simpson

Nas últimas décadas, a historiografia brasileira intensificou as relações com a historiografia portuguesa no âmbito da contemporaneidade do século XX. Inúmeros intercâmbios foram estabelecidos, e investigadores passaram com frequência a cruzar o Atlântico. No Brasil, nomes como António Costa Pinto, Fernando Rosas, Álvaro Garrido, Maria Inácia Rezola e Fernando Catroga começaram a fazer parte da discussão acadêmica e intelectual. Redes de pesquisa, como a rede Conexões Lusófonas: ditadura e democracia em Português3, foram criadas com o propósito de apresentar, com maior dinamismo, resultados de pesquisas que buscam reflexões acerca do mundo lusófono.

Entre esses pesquisadores, destaco Duncan Simpson como um historiador necessário para o Brasil. Com uma vasta pesquisa sobre a história política e religiosa do Estado Novo salazarista, possui um sólido conhecimento e é um dos grandes nomes da historiografia, não apenas portuguesa, visto que está inserido em uma perspectiva transnacional. Leia Mais

O que é história global? | Sebastian Conrad

O que é a história Global? É um ensaio histórico escrito por Sebastian Conrad, cujo título original é What is Global History? traduzido para a língua portuguesa por Teresa Furtado e Bernardo Cruz, publicado pelas edições 70, em Lisboa, em 2019, com 310 páginas. Os onze capítulos estão entre a introdução e o posfácio, “o lento fazer da história global”, escrito por Miguel Bandeira Jerónimo.

Para se entender a concepção do global é imperativo perceber como é que as noções de mundo mudaram ao longo do tempo, pois a globalização alterou a forma como escrevemos a história. Deixou de ser possível estudar o Estadonação de forma isolada e de apreender a história mundial a partir do Ocidente. Mas o que é a história global? Sebastian Conrad explica a razões do global, que é um estudo que se revelou em uma das áreas inovadoras e promissoras do conhecimento histórico. Leia Mais

O que é história global? | Sebastian Conrad

Sebastian Conrad, Professor – Doutor em História e que, desde 2010, ocupa a cadeira de História Moderna na Universidade Livre de Berlim, é autor da obra What is Global History? [O que é história global?], lançada em 2016 2. Em seu capítulo introdutório, Conrad expõe seus objetivos: compreender o aumento da popularidade que a linha da história global adquiriu tanto mundialmente quanto dentro da disciplina de História, assim como apresentar uma perspectiva atual de História em oposição ao modelo historiográfico de história universal do século XX, um modelo profundamente eurocêntrico.

Segundo o autor, os primeiros esboços de uma história global surgem após a II Guerra Mundial e o interesse pela mesma ganha fôlego já no final do século XX. As principais razões para isso se devem à tendência em encontrar na globalização o ponto de explicação do presente, assim como o de análise das origens históricas de um processo e da revolução comunicacional, um contexto que impactou os historiadores e a maneira como produzem História. Tal efeito se deu tanto a partir das insuficiências dos instrumentos usados pelos profissionais até aquele momento quanto por conta dos desafios lançados pela globalização das ciências sociais. Leia Mais

Manual de Arqueologia Pré-histórica | Nuno Ferreira Bicho

Introdução

Antes mesmo de ser considerada e nomeada como ciência efetiva, em meados do século XIX, a Arqueologia já intrigava e despertava a curiosidade e o fascínio de colecionadores e estudiosos. E isso teria se dado não pela sua teoria em si, mas pelo seu objeto de estudo: a cultura material, com objetos e documentos preciosos de um tempo passado. Sua construção como ramo do conhecimento perpassa, desta forma, as fronteiras do acatamento em uma única disciplina.

Em outras palavras, é uma matéria interdisciplinar tanto em sua prática2 quanto em sua própria concepção3. Entretanto, além de interdisciplinar, dialoga tanto com o ambiente acadêmico/intelectual, quanto com o ambiente leigo, pois seu acesso é majoritariamente visual, palpável, fazendo-se entender pelo grande público (e despertando a curiosidade deste mesmo por ser um contato com o passado, tão “remoto” e “desconhecido”). Leia Mais

Alegoria do património | Françoise Choay

As argumentações desenvolvidas por Françoise Choay em Alegoria do património se ancoram, reiteradamente, em demonstrações etimológicas cujo pressuposto fundamental é assinalar as transfigurações das relações estabelecidas entre os seres humanos e as suas edificações ocorridas nos últimos séculos no Ocidente e em países como o Japão e a China. Deste modo, à designação “patrimônio”, cujo abarcamento restringia-se originalmente às propriedades hereditárias, foram acrescentadas categorias mais abrangentes, tal como o complemento “histórico” (CHOAY, 2014, p. 11). Enquanto o monumento é uma obra espontânea, seja auxiliar da rememoração ou da magnificência das localidades, o monumento histórico é produto de uma distinção artificial (CHOAY, 2014, p. 17-25). A destruição de um monumento pode se dar por diversos fatores, humanos ou naturais, mas ao monumento histórico é pressuposta uma irrestrita proteção (CHOAY, 2014, p. 25-26).

O acondicionamento destas construções como projeto nacional provém de um lugar específico e de um tempo também específico: o Ocidente oitocentista (CHOAY, 2014, p. 25-26). Pontualmente, o delineamento de um tal empreendimento é evidente em França ainda no século XVIII, marcado pela circunstância revolucionária, mesmo que propalado somente no XIX (CHOAY, 2014, p. 26-27). Por detrás destas constatações está a introdução do monumento histórico ao repertório linguístico francês, cuja autoria poderia ser atribuída precipitadamente a Guizot, porém trata-se de uma realização de Millin (CHOAY, 2014, p. 26-27). Neste sentido, é notória a relevância das ações de Françoise Choay pertinentes ao exame pormenorizado do referido léxico, visto que conduzem a oportunas reflexões acerca do delineamento da conservação patrimonial e de seus princípios. Leia Mais

A nova direita anti-sistema: o caso do Chega | Riccardo Marchi

O livro A nova direita anti-sistema: o caso Chega, de autoria de Riccardo Marchi é um estudo do partido que retirou Portugal da pequena lista de países europeus que não tinham representação parlamentar de partidos enquadrados como de extrema direita. Isto se deu com a eleição do deputado único do Chega, André Ventura, para a Assembleia da República nas eleições legislativas de 2019. Ventura se desponta não apenas como deputado único, mas também como principal liderança de seu partido, passando a ocupar importante parcela do debate público português, assim como da grande mídia de seu país.

Riccardo Marchi parte da história de vida de Ventura, iniciando o livro ao falar de sua infância e adolescência em Algueirão, no concelho de Sintra, uma freguesia de classe média baixa, marcada por construções decadentes, uma grande população de origem imigrante, e como tal cenário influenciou seu futuro posicionamento político. A criação católica e sua vivência na Faculdade de Direito também são elementos de destaque na parte inicial do livro. Ainda na adolescência, André Ventura deu início a suas atividades políticas, fazendo parte da seção juvenil do Partido Social Democrático (PSD), quando era aluno do Liceu. Leia Mais

Portugal e a questão do trabalho forçado: um império sob escrutínio (1944-1962) – MONTEIRO (LH)

MONTEIRO, José Pedro Monteiro. Portugal e a questão do trabalho forçado: um império sob escrutínio (1944-1962). Lisboa : Edições 70, 2018, 401 pp. Resenha de: CASTELO, Cláudia. Ler História, v.75, p. 296-299, 2019.

1 Licenciado em relações internacionais, mestre em ciência política e relações internacionais e doutor em História, José Pedro Monteiro é um investigador jovem com um currículo científico invulgarmente internacionalizado e consistente, mas que não tem descurado a vertente da divulgação para a sociedade portuguesa (refiram-se, em colaboração com Miguel Bandeira Jerónimo, os ensaios e entrevistas da série “Histórias do presente” saída no jornal Público ao longo de 2018, ou a exposição “O direito sobre si mesmo : 150 anos da abolição da escravatura no império português”, inaugurada em Julho de 2019, na Assembleia da República). Também o livro que temos em mãos, uma versão revista e editada da sua tese de doutoramento, se dirige a um público que extravasa a academia, interessando-o por um problema central na história do último império colonial português : a questão laboral africana.

2 O autor contribui para o avanço do conhecimento sobre o tema do ponto de vista empírico, conceptual e analítico. Baseado em pesquisa de fontes primárias publicadas e manuscritas (de arquivos portugueses, britânicos, norte-americanos e da Organização Internacional do Trabalho, em Genebra), e numa bibliografia actualizada e pertinente, este livro enquadra-se nos debates historiográficos recentes sobre “a mútua constituição, interdependência e intersecção” de dois processos históricos que marcaram o século XX : o internacionalismo e o imperialismo (p. 21). Revela-nos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) condicionou os debates e processos de tomada de decisão política respeitantes à questão do “trabalho indígena” (e modalidades aparentadas) no império colonial português no contexto de gradual contestação à legitimidade imperial após o fim da Segunda Guerra Mundial. Percebemos que o problema do trabalho forçado deve ser equacionado levando em consideração as dinâmicas internacionais e transnacionais que influenciaram a produção e avaliação de políticas e práticas imperiais, nomeadamente através de processos de escrutínio regular, cotejo normativo, denúncias internacionais e projectos e esforços de reforma, mesmo que sem tradução prática.

3 A estrutura do livro promete seguir a ordem cronológica dos eventos em quatro momentos : 1945-49, 1950-54, 1955-60 e 1961-62. A segunda parte, porém, volta ao início dos anos 40, não se cingindo, efectivamente, ao período indicado na introdução (p. 23). A organização diacrónica, não introduzindo inovação, oferece-nos uma narrativa detalhada do problema e espelha a sua complexidade. Somos confrontados com persistentes práticas laborais coercivas em várias geografias e envolvendo populações “indígenas” e “cidadãos” cabo-verdianos, desfasadas da evolução verificada nos impérios europeus congéneres, denunciadas não só por actores internacionais e transnacionais, mas também por agentes do estado-império português, envolvidos num “processo de autorreflexão imperial durante o período posterior à Segunda Guerra Mundial” (p. 64). Percebemos que, não obstante diversas críticas internas incisivas (para além da que ficou mais conhecida, a de Henrique Galvão), as iniciativas “reformistas” ficavam sempre aquém das soluções que visavam uniformizar os sistemas laborais metropolitanos e coloniais. Isto porque a grande preocupação dos críticos era arranjar formas de assegurar a respeitabilidade internacional do país e a legitimidade externa do império (p. 82), sem nunca pôr em causa o dever moral do “indígena” de trabalhar (p. 98).

4 Passamos a conhecer com minúcia os processos de decisão no seio do Estado Novo, assentes na gestão da tensão entre, por um lado, “a vontade de preservar a soberania imperial na definição das políticas sociais coloniais e de contrariar a sua internacionalização” e, por outro, “a necessidade de aprofundar a integração internacional neste domínio” (p. 52). Verificamos que foi a dimensão internacional que, na segunda metade dos anos 50, forçou o governo português a ratificar diversas convenções da OIT. O momento mais saliente da pressão externa, a queixa do Gana contra Portugal por violação da Convenção da Abolição do Trabalho Forçado, no seio da OIT, e a actividade da comissão de inquérito, além de levar à “multiplicação de instâncias de autoescrutínio” na máquina burocrática imperial e colonial, deu azo a “iniciativas que visavam emendar alguns dos aspectos mais gravosos da política social ‘indígena’” (p. 330). Também aqui – na capacidade de colaboração, acomodação e contemporização nos círculos internacionais – se evidencia a “arte de saber durar” do Estado Novo.1 Não esqueçamos que se o trabalho dos africanos foi a trave-mestra do império, da durabilidade deste dependia a existência do próprio regime.

5 Vejamos agora algumas questões que poderiam ter sido esclarecidas ou aprofundadas. Em que medida o recrutamento de trabalhadores cabo-verdianos para outras colónias portuguesas se pode inserir na problemática do “trabalho indígena”, não sendo os naturais de Cabo Verde abrangidos pelo indigenato (p. 248) ? Nos anos 40 a migração cabo-verdiana para São Tomé e Moçambique, “com o impulso das autoridades (…) adquiriu um nítido carácter forçado”.2 O trabalho contratado para as roças são-tomenses e plantações de Angola ou Moçambique equiparava-os na prática a “indígenas”, sendo tutelados pelos serviços de “Negócios Indígenas” e sujeitos a sanções pelas faltas laborais previstas no Código de Trabalho Indígena. Às normas jurídicas sobrepunham-se o pragmatismo económico, os interesses do recrutamento, a política de controlo social e a diferenciação racial no seio do império.3 Estou em crer que a mão-de-obra africana de Angola, Moçambique e Guiné, anteriormente categorizada como “indígena”, terá continuado sujeita à mesma “indigenização” informal após o fim legal do indigenato e do trabalho forçado. No contexto das guerras coloniais/de libertação, estradas e outras obras de “interesse público” continuariam a ser construídas sem que os trabalhadores africanos auferissem qualquer salário ; autoridades administrativas não cessariam de imediato de colaborar no fornecimento de mão-de-obra africana ao sector privado. Mas, como refere José Pedro Monteiro, só estudando o período posterior a 1962 será possível “aferir da transformação real das práticas que as mudanças legislativas impulsionaram (ou não)” (p. 369).

6 Outro feixe de questões relaciona-se com os tempos (tardios) e os modos (parcelares) de ajustamento ao standard internacional. Havendo entre os inspectores (e não só) do Ministério das Colónias/do Ultramar um tão amplo conhecimento dos abusos, da violência, da corrupção das autoridades administrativas, porque é que no império português a resistência à mudança foi mais duradoira do que noutros impérios ? Porque se tardou tanto a aceitar que a exploração económica se devia subordinar ao bem-estar das populações autóctones ? Porque é que “os limites da imaginação burocrática imperial continuavam presos a referenciais que se encontravam em processo de gradual deslegitimação internacional” (p. 274) ? Algumas passagens do livro parecem remeter-nos para a persistência entre os portugueses (autoridades e particulares) de uma visão “paternalista” (racista, diria) sobre os trabalhadores africanos (por exemplo, pp. 71, 77, 99 e 259), na contramão da tão propalada à época “tradição não-racista” dos portugueses. Mas outras razões poderiam ser aduzidas. Desde logo, o modelo de exploração económico vigente, que dependia da manutenção de um sistema laboral dual.

7 As Conferências Interafricanas de Trabalho patrocinadas pela Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA) e o Instituto Interafricano do Trabalho, organismo especializado da Comissão, surgem pontualmente ao longo do livro, mas não são alvo de tratamento específico. Que papel desempenhou a participação portuguesa nesta cooperação técnica regional nas dinâmicas de ajustamento às demandas internacionais ? O que podemos ganhar acrescentando de forma mais explícita a escala de análise interimperial e intercolonial ? Convém ter em conta, como salienta José Pedro Monteiro, que o problema do trabalho nas colónias portuguesas do continente africano era um problema indissociavelmente ligado ao êxodo de trabalhadores rurais para países vizinhos (p. 83).

8 Finalmente, deixo pequenos reparos. Na bibliografia foram incluídas fontes primárias impressas (produzidas na época por actores objecto de estudo, como Silva Cunha, Afonso Mendes, José Pereira Monteiro ou Adriano Moreira), embora mais à frente apareça autonomizada uma lista de fontes primárias impressas da OIT. A lista das fontes primárias é, de facto, uma lista de fontes de arquivo. Teria sido preferível apresentar primeiro as fontes primárias manuscritas ou de arquivo, depois as fontes primárias impressas e finalmente a bibliografia. O elenco das fontes de arquivo deveria apresentar os títulos dos fundos, secções, séries documentais ou colecções consultadas e não listas de códigos de referência ou de cotas topográficas. BIT (Bureau International du Travail, o secretariado da OIT) não chega a aparecer por extenso. As convenções são muitas vezes indicadas apenas pelo número. A inclusão de listas de siglas e das convenções teria ajudado o leitor. Trata-se de uma edição sóbria e cuidada, enriquecida com um índice remissivo. Estranha-se, no entanto, que ONU seja sistematicamente grafada num tamanho de letra inferior às restantes siglas.

9 Nada do que foi apontado como menos positivo invalida que se recomende vivamente a leitura deste livro. Trata-se de um trabalho incontornável, sério e rigoroso, no âmbito da história do colonialismo português tardio e especificamente da sua pedra angular – o trabalho forçado –, que expande o campo de observação à escala internacional, merecendo ser tido em conta pelos que se ocupam do estudo comparado das formações imperiais na era da descolonização (para isso recomenda-se a sua tradução para inglês), sendo também relevante para pensar o regime do Estado Novo.

Notas

Já foram examinados como factores explicativos da longevidade do Estado Novo português, o papel d (…)

2 Augusto Nascimento, O sul da diáspora : cabo-verdianos em plantações de S. Tomé e Príncipe e Moça (…)

3 Ibidem, pp. 206-209.

Cláudia Castelo – Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail: claudiacastelo@ces.uc.pt

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Casa dos Estudantes do Império: Dinâmicas Coloniais, Conexões Transacionais – CASTELO; JERÓNIMO (LH)

CASTELO, Cláudia; JERÓNIMO, Miguel Bandeira (org). Casa dos Estudantes do Império: Dinâmicas Coloniais, Conexões Transacionais. Lisboa: Edições 70, 2017, 271 pp. Resenha de: ALMADA e SANTOS, Aurora. Ler História, v.72, p.238-241, 2018.

Cláudia Castelo e Miguel Bandeira Jerónimo apresentam-nos um livro cujos capítulos resultam das comunicações apresentadas num colóquio internacional realizado em Lisboa, em 2015. A obra tem por ambição cumprir dois objetivos: refletir sobre as diferentes facetas da Casa dos Estudantes do Império e estabelecer uma relação com a mobilização transnacional de ideias, atores e práticas por parte dos estudantes. Num momento em que se assinala o 50º aniversário dos movimentos estudantis de Maio de 1968 em França, que tiveram repercussões em inúmeros países, o livro vem problematizar uma dimensão da contestação ao colonialismo português que, como os próprios organizadores reconhecem, tem recebido um tratamento superficial.

2A publicação do livro permite-nos estabelecer o diálogo com outra literatura recente que tem sido produzida quanto ao processo de descolonização europeu e português no pós-II Guerra Mundial. Fazendo um grande uso de fontes primárias, a obra encontra-se estruturada em treze capítulos, dos quais o primeiro, ao abordar o contexto nacional e internacional, serve de enquadramento para os demais autores explorarem as suas temáticas. Os nove capítulos seguintes reportam-se às especificidades da Casa dos Estudantes do Império, ao passo que os últimos três remetem-nos para outras realidades onde igualmente teve lugar o entrecruzar entre as ações das organizações estudantis e a contestação ao domínio colonial ou às decisões dos governos pós-coloniais.

3Seguindo-se à introdução dos organizadores, o primeiro capítulo, da autoria de Valentim Alexandre, embora sem trazer novidades substanciais, faz um ponto de situação do contexto no qual a Casa dos Estudantes do Império atuou. As considerações apresentadas vão de encontro às que o autor tem vindo a veicular nos seus trabalhos, reafirmando que a resistência portuguesa à descolonização assentava na irrealidade política, tendo havido uma conjugação entre o reformismo e a repressão como forma de salvaguardar a manutenção das colónias. Mais inovador, o capítulo de Margarida Lima de Faria e Sara Boavida incide sobre a análise sociológica dos membros da Casa, tendo por base a informação disponível nas fichas de associados das delegações de Lisboa, Coimbra e Porto conservadas no Arquivo da PIDE/DGS. Os dados reproduzidos permitem-nos estabelecer comparações e conhecer o número, a naturalidade, as idades, a profissão, o nível de ensino ou as áreas de estudo dos sócios. Contudo, como indicado pelas autoras, tal informação não pode ser considerada como definitiva, pois existe um conjunto de perguntas às quais ainda não permitem dar resposta.

4O terceiro e o quarto capítulos particularizam as vivências dos membros goeses, cabo-verdianos e guineenses da Casa. Retratados por Aida Freudenthal, os estudantes goeses são apresentados como tendo sido influenciados pelo convívio com associados de outras colónias, o que terá contribuído para a sua consciencialização política. Embora refira as reações dos estudantes quanto aos acontecimentos de Dadrá, Nagar-Haveli e Goa, o capítulo não faz uma caracterização cabal dos sócios goeses. A análise efetuada poderia ser mais consistente se, a título de exemplo, a autora tivesse também traçado o percurso de alguns desses estudantes dentro e fora da Casa. Quanto aos cabo-verdianos e aos guineenses, o capítulo de Ângela Coutinho interliga-se com o de Margarida Lima de Faria e Sara Boavida, onde vai buscar dados sobre os sócios nascidos em Cabo Verde e na Guiné. Concluindo que as experiências vividas em Portugal pelos estudantes foram relevantes para os futuros movimentos de libertação, a autora esclarece no entanto que a Casa dos Estudantes do Império não terá sido um local privilegiado de recrutamento dos dirigentes do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). São apontados espaços de sociabilidade política alternativos como o liceu Gil Eanes, em Cabo Verde, o que permite enquadrar a Casa dos Estudantes do Império na devida perspetiva, não sobrevalorizando a sua importância para os nacionalistas cabo-verdianos e guineenses.

5Num capítulo com bastante profundidade, Alexandra Reza debruça-se sobre o boletim Mensagem publicado pelos sócios da Casa dos Estudantes do Império. Examinando o boletim, Reza infere que os estudantes da Casa cunharam o conceito de unidade com diferença, para contrariar o de unidade sem diferença veiculado por Portugal, e que procuraram estabelecer ligações não somente entre as diferentes realidades existentes nas colónias portuguesas mas também com o que se passava além-fronteiras. A autora entende que utilizaram plataformas internacionais, como a revista Présence Africaine, indicando que aqueles que lutavam contra o colonialismo situavam-se no cruzamento entre fronteiras linguísticas e imperiais. Apoiando-se em reflexões quanto ao papel da literatura nas lutas de libertação, no capítulo subsequente, o sexto, Inocência Mata detalha as obras de ficção publicadas na coleção “Autores Ultramarinos”, organizada pela Casa. Verificamos porém que a autora ultrapassa o seu objetivo inicial, pois além de abordar as questões sugeridas pelas obras de ficção faz igualmente uma incursão na poesia produzida pelos estudantes, considerando que em alguns casos constituíam uma escrita de memórias.

6Victor Andrade de Melo questiona no capítulo sétimo se o envolvimento dos membros da Casa dos Estudantes do Império em atividades desportivas poderá fornecer elementos sobre a dinâmica de funcionamento da associação. Na sua principal conclusão, entende que existiu uma correlação entre desporto e atividades políticas, tendo o primeiro sido utilizado para escapar à vigilância que o aparelho repressivo do Estado Novo exerceu sobre a Casa. No seguimento de tais afirmações, Marcelo Bittencourt discorre sobre a diversidade, as escolhas e os contextos nas memórias referentes à instituição. Apesar do seu interesse, a abordagem efetuada por Bittencourt é ainda assim em grande parte genérica, focando-se superficialmente nas trajetórias e lembranças dos sócios angolanos, o que de início foi definido como o seu interesse principal.

7Uma outra perspetiva quanto à memória associada à Casa dos Estudantes do Império é introduzida por Margarida Calafate Ribeiro no capítulo nove, sobre os filhos dos associados. Todavia, poucos são os detalhes quanto ao conteúdo das memórias da segunda geração, os designados “filhos da Casa”, que a autora se propôs estudar. O texto aborda questões teóricas em torno da pós-memória, que somente de forma muito superficial são colocadas em diálogo com as experiências dos filhos dos associados da Casa dos Estudantes do Império. O livro ganharia em profundidade se esse capítulo fosse alargado, com a promoção desse diálogo. A finalizar a secção dedicada à Casa dos Estudantes do Império, a obra contempla um capítulo de Manuela Ribeiro Sanches que tenta explorar a contribuição dos associados para a descolonização da Europa, entendida enquanto libertação do colonizador à semelhança da libertação do colonizado. Concluindo que esse processo de descolonização ainda estava por concretizar, a autora que de início tinha o propósito de analisar os contributos de um grupo de estudantes salienta no entanto a figura de Mário Pinto de Andrade, na qual centra a sua narrativa.

8Como referido anteriormente, os últimos capítulos destinam-se a inserir a Casa dos Estudantes do Império na história transnacional do anticolonialismo e da contestação estudantil. Esse esforço é concretizado através de estudos de caso que se reportam a França, ao Reino Unido e ao Daomé, o que constitui indiscutivelmente um dos pontos fortes da obra, dado que permite-nos contextualizar melhor as atividades da Casa. No que se refere a França, Nicolas Bancel procura evidenciar que a radicalização dos movimentos estudantis coloniais esteve intimamente relacionada com os acontecimentos da guerra da Argélia. Para o Reino Unido, Hakim Adi expõe-nos o envolvimento dos estudantes africanos nas atividades anticoloniais, estudando a African Association, a West African Student Union, a Pan-African Federation ou o Committee of African Organisations. Por fim, Alexander Kesse foca-se na participação da Front d’Action Commune des Etudiants et Elèves du Nord na discussão sobre a evolução do Daomé após a independência, apresentando os estudantes daomeanos enquanto atores políticos.

9O final da obra consiste num posfácio de Cláudia Castelo, que deixa-nos pistas para futuras investigações sobre a Casa dos Estudantes do Império. Assim, Cláudia Castelo propõe que no futuro o programa de pesquisa contemple as causas que nortearam o comportamento do estado em relação à Casa, a comparação com outras associações de estudantes africanos e asiáticos nas metrópoles e nas colónias, o estudo da instituição no contexto de uma história compartilhada da solidariedade anticolonial, o cruzamento com a história social dos migrantes coloniais em Lisboa, a análise das formas de solidariedade antifascista e anticolonialista que a influenciaram e/ou foram por ela alimentadas, o exame do seu contributo para a disseminação do internacionalismo negro e as histórias de vida dos seus associados. Tais sugestões evidenciam que falta ainda explorar muitas dimensões sobre a temática, embora o livro no essencial atinja os objetivos propostos inicialmente. Efetivamente, retrata uma imagem matizada e pouco linear da Casa dos Estudantes do Império, que é enquadrada numa dimensão transnacional. Não obstante algumas debilidades, com o livro os nossos conhecimentos sobre o tema são consideravelmente enriquecidos, sendo que da publicação podemos retirar contributos para a promoção de novas preocupações historiográficas.

Aurora Almada e Santos –  IHC – NOVA FCSH, Portugal. E-mail: auroraalmada@yahoo.com.br.

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A águia e o Dragão – Portugueses e Espanhóis na globalização do século XVI | Serge Gruzinski

Velho conhecido dos estudiosos que se dedicam às investigações no campo das mentalidades, o historiador Serge Gruzinski, ratifica o seu interesse pelas sociedades coloniais da América e pelo intenso encontro de culturas que têm lugar neste cenário, e traz à público mais uma instigante análise na qual se debruça sobre as dinâmicas sociais e culturais que se engendraram no contexto da colonização ibérica na América com o seu novo livro, lançado no Brasil em 2015, intitulado A águia e o dragão – ambições europeias e mundialização no século XVI. O historiador francês, caudatário da Escola do Annales, tem alinhado suas pesquisas à uma perspectiva multidisciplinar da História, trabalhando em conjunto com outros campos das ciências humanas, como por exemplo a Antropologia, e incorporando à sua análise não só as fontes escritas, mas também as iconográficas, como podemos constatar em seus últimos volumes publicados, tais como: Les Quatre parties du monde. Histoire d’une mondialisation; Quelle heure est-il là-bas ? Amérique et islam à l’orée des temps modernes; L’Histoire, pour quoi faire ?.

Devemos ainda ressaltar que o seu trabalho critica a concepção eurocêntrica da historiografia tradicional e se ancora na perspectiva da Conected Histories [1], rechaçando qualquer tipo de comparação simplista que se apegue ao local em detrimento do total. Sua tentativa, portanto, seria a de demonstrar a convivência entre as múltiplas realidades sócio-culturais e suas mais variadas dinâmicas de interação, sem perder de vista a relação entre micro e macro. Diante disso, A águia e o dragão, se propõe a entender a inserção dos ibéricos no processo de mundialização, através da análise comparativa entre a atuação do embaixador de Portugal na China do imperador Zhengde e a atuação de Hernan Cortés no México-Tenochtitlan, junto à Montezuma e, portanto, pode ser considerada uma obra vinculada à perspectiva da História Global, já que tenta “juntar as peças do jogo mundial desmembradas pelas historiografias nacionais ou pulverizadas por uma micro-história mal dominada” (p.354).

O livro desvenda os caminhos de portugueses e espanhóis naquilo que o autor chama de “globalização do século XVI”, perscrutando as dinâmicas internas da China e do México no alvorecer do século e analisando como se deu o contato desses povos com os ibéricos. Com efeito, o autor defende que a maneira como os acontecimentos se desencadearam contribuiu, decisivamente, para que fosse fundado o “ocidente euroamericano”, e afirma que embora a presença dos ibéricos nos territórios referidos não tenha sido de fato programada, também não foi ao acaso e deve ser vista como fruto de uma dinâmica comum ao contexto da época, que inseria os reinos na lógica da expansão marítima com vistas na exploração das “molucas”, as conhecidas ilhas de especiarias. Além disso, o autor desmistifica a ideia de que os pioneiros no processo da expansão marítima europeia tenham se lançado rumo ao desconhecido e afirma que, embora houvesse grande confusão nas noções de Ocidente e Oriente, já havia, nessas sociedades, uma certa percepção do espaço marítimo, tanto devido à experiência acumulada com as navegações desde o final do século XV, quanto devido ao conhecimento dos escritos de Marco Polo.

Posto isto, podemos dizer que a tese do autor é a de que o comportamento e as atitudes políticas de Tomé Pires junto ao império de Zenghde, bem como de Hernan Cortés junto ao império de Montezuma, simultaneamente ao posicionamento e contexto das autoridades locais da China e do México, foram determinantes para que o primeiro empreendimento incorresse em fracasso e o segundo tivesse sucesso. Assim, essa conjuntura teria traçado o destino da China e, nesse caso, a falência do projeto colonizador português na área, bem como teria delineado a sorte do Méxicotenochtitlan, que seria dominado e colonizado pelos espanhóis. Portanto, o autor defende que a interação entre esses povos acabou sendo responsável pelo destino que lhes aguardava e que as condições locais que se engendraram a partir desse contato foram responsáveis pelo triunfo ou derrota dos objetivos dominantes, objetivos estes, vale ressaltar, amplamente voltados para o comércio de especiarias. Nesse sentido, para Gruzinski, essas teriam sido as circunstâncias fulcrais que levaram ao processo de interligação dessas partes do mundo – Ásia, América e Europa – através de circuitos comercias que as ligariam intensamente e que marcariam a viragem dos europeus para o Oeste e a fundação do que ele chama de “ocidente euroamericano”.

Nessa perspectiva, o livro em questão se trata de um profundo e estimulante estudo a respeito das características das sociedades chinesa e mexicana do século XVI e da interação do mundo ibério com estas populações. O autor consegue, à medida que vai demonstrando a sua tese, explorar a forma de organização e administração da China e do México, explicando como o contato inicial desses povos com portugueses e espanhóis, respectivamente, foi pacífico e logo descambou para o conflito e o que ele chama de “choque de civilizações”, resultando no domínio e colonização no caso dos mexicas e na resistência e expulsão, no caso dos chineses. Ao percorrer este caminho, o autor consegue esclarecer o processo de decodificação do outro nesse espaço de convivência, afirmando que enquanto os chineses não tinham nenhum interesse em identificar o intruso que para eles se tratava de mais um bando de piratas de nacionalidade desconhecida, os mexicas, por outro lado, tinham urgência em compreender o seu agressor, pois disso dependia, em certa medida, a sua capacidade de resistir.

Em contrapartida, os ibéricos tentavam distinguir o outro para melhor concretizar seus anseios de conquista e, segundo o autor, comprovaram que a falta de conhecimento inicial não se constituía como uma barreira intransponível e, nesse sentido, se esforçavam para se adaptar à língua, ao clima, à alimentação e etc, na tentativa de construir atalhos que facilitassem a compreensão da lógica social e cultural daquelas sociedades. Uma vez que esses aspectos foram mapeados e resultaram na consciência das fraturas políticas do adversário, os ibéricos se aproveitaram deles na tentativa de concretizar o domínio. No México, a identificação das intensas rivalidades entre as cidades devido à falta de unidade política foi decisiva para que o domínio e colonização tivesse sucesso, já na China, o diagnóstico do descontentamento local devido à rigidez do sistema imperial não foi suficiente para que a empreitada ibérica tivesse êxito.

Obviamente, este diagnóstico não se resumia às questões políticas, econômicas e sociais, havia também o espantoso encontro de culturas completamente distintas, que a partir dali iriam se misturar e se modificar simultaneamente. Esse encontro deu margem para que os estranhos mundos se representassem concomitantemente, daí uma série de conhecimentos serão difundidos na Europa acerca dessas civilizações, tanto a chinesa, quanto a mexicana. O autor, ressalta, porém, que enquanto as informações sobre o México são divulgadas desde o início do processo de colonização, aquelas referentes à China só irão se propagar pela Europa a partir de meados do século XVI. Segundo o autor, esse fenômeno poderia ser atribuído, entre outras coisas, ao fato de que a China não era completamente desconhecida por parte dos ibéricos, devido às relações comerciais existentes naquela região, já o México é um mundo completamente novo a se descortinar e causou grande reboliço ao ser descoberto, acabando por motivar imenso fascínio. Os documentos escritos que cumprem o papel de nos dar um retrato daquilo que seriam a China e o México no limiar do século XVI são: a Suma Oriental de Tomé Pires e as cartas de Hernan Cortés.

Segundo o autor, os ibéricos ficaram espantados ao perceberem que, tanto na China quanto no México, os povos contavam com a existência do livro, e isso teria sido determinante para que se moldasse uma imagem positiva na Europa sobre esses povos, já que o livro, para as culturas letradas, é um marcador de civilização. Do outro lado, porém, existe uma notável dificuldade para invocar representações da Europa feitas por estes povos, em primeiro lugar, no caso da China, devido à sua pouca abertura, pela falta de interesse em conhecer o seu inimigo, considerado apenas como um forasteiro. Já no caso do México, mesmo com o grande interesse e curiosidade pelos europeus, por não haver testemunhos escritos de uma visão pessoal do ameríndio, estes, se um dia existiram, não sobreviveram ao tempo.

Dessa maneira, se constituíram as imagens que se firmariam ao longo do tempo como fundadoras daquilo que viriam a ser as civilizações mexica e chinesa. As cartas de Cortés seriam amplamente divulgadas e, segundo o autor, familiarizariam a cristandade com os esplendores do México e com a representação das glórias da conquista, estas serão eternizadas no imaginário universal. Em contrapartida, embora não tenham sido alvo de larga divulgação, a descrição feita por Tomé Pires acerca da China, traz uma visão, de acordo com Gruzinski, mais assertiva a respeito das características dessa sociedade, pois seria um diagnóstico feito do interior dessa sociedade, enquanto que o relato de Cortés seria uma visão panorâmica e, portanto, superficial. Ainda assim, o fato é que mesmo diante de todas estas questões “a epopeia dos conquistadores e o destino fatal do império Asteca continuariam a fascinar, enquanto a descoberta da China dos Ming e o fracasso de Tomé Pires nunca interessaram muita gente” (p.106).

Acreditamos que a obra ultrapassa os limites de sua tese central e acaba por se transformar num manual de história do México e da China, ao qual se pode recorrer para sanar dúvidas pontuais a respeito da organização e administração política, social e cultural dessas sociedades. Nesse sentido, acreditamos que o livro não só cumpre com o seu objetivo precípuo, como também transborda erudição. Para aqueles leitores que não têm grande formação a respeito do Oriente, a quantidade de informações novas pode representar alguma dificuldade, mas com o desenrolar das páginas o leitor passa a se familiarizar com os nomes e os acontecimentos analisados no texto e, ao final da leitura, percebe-se o ganho de uma noção panorâmica acerca das civilizações em questão. O livro consegue ir além da temática do choque cultural entre portugueses/chineses e espanhóis/mexicas e nos leva por outros caminhos dessa história, pelos meandros da organização interna dessas sociedades.

Como não poderia deixar de ser, a obra traz uma discussão bem fundamentada, ancorada, como já afirmamos aqui, nas perspectivas da Connected Histories e da História Global e, assim sendo, rejeita a historiografia tradicional que concebe a Europa como centro do mundo, procurando demonstrar que esse papel protagonista no processo de globalização do século XVI – embora, paradoxalmente, não possa ser negado, visto que foram os ibéricos os atores principais – não se deu simplesmente devido à graça e talento destes homens, mas foi sim, em grande medida, impulsionado e delimitado pelos contextos e dinâmicas que se apresentavam na época. Diante disso ao autor afirma que “a imagem de um avanço inevitável dos europeus, quer se enalteça as suas virtudes heroicas e civilizadoras, quer o votemos ao desprezo, é uma ilusão que teima em persistir. Decorre de uma visão linear e teleológica da História, que continua associada à pena do historiador e ao olhar do seu leitor” (p.40).

Isto posto, vale salientar ainda que, o autor trava diálogo com a historiografia clássica e a mais atualizada, tradicionalmente competente e de referência na temática pertinente à Expansão Ultramarina europeia. Entre os autores com os quais dialoga estão Francisco Bethencourt, Sanjay Subrahmanyam e Charles Boxer. As fontes elencadas permitem demonstrar a sua tese. Ele recorre às cartas e aos relatos de viagem de homens como Cristovão Colombo, Pietro Martire d’Anghiera, Bernal Diaz del Castillo e, obviamente, Hernan Cortés e Tomé Pires, entre outros. Contudo, ao longo do texto, o próprio Gruzinski, deixa claro a deficiência de sua obra no que diz respeito às questões da representação europeia feita pelos indígenas e/ou chineses, afirmando que para tal estudo não existem fontes, pois estas, quando existem, são limitadas pela influência direta do domínio europeu e até da conversão ao cristianismo e, portanto, não exprimem uma visão pessoal a respeito dos ibéricos. Ou, nos demais casos, sequer existem, pois não resistiram ao tempo. Esse obstáculo não prejudica o trabalho, visto que o seu debate central não está circunscrito a esta temática especificamente.

Com efeito, uma outra característica que contribui efetivamente para o alcance dos objetivos do livro, é, sem dúvida a organização de sua estrutura. O autor, opta por uma estrutura que não separe as análises referentes à China, daquelas referentes ao México, pelo contrário, ele dispõe as discussões de maneira a fazer com que o leitor perceba que elas são complementares e a sua visão em separado acarretaria em prejuízo no entendimento total da obra. Os capítulos, por sua vez, são dispostos de modo a guiar o leitor através dos labirintos dessa história, dando-lhe, de maneira impecável, não só a nítida compreensão do argumento defendido pelo autor, mas também um excelente panorama sobre história das culturas chinesa e mexicana. Nesse sentido, não utiliza a conclusão de seu texto para expor sua tese – esta fica evidente ao longo das 373 páginas escritas – mas apenas para ratificar o seu argumento. Dessa maneira, facilita o trabalho do leitor e não abre margens para confusões.

Por último, cumpre dizer que a obra em discussão não está desconectada do tempo e do espaço e encontra lugar na produção historiográfica atual. Sua perspectiva de análise, já discutida aqui, tem notável eco na História que vem sendo desenvolvida desde finais do século passado. Nesse sentido, o autor demonstra sua capacidade de aclimatação e desenvolve um estudo que fortalece seu elo com a História da América Latina, numa análise comparada profunda e densa sobre os aspectos culturais, econômicos e sociais da China imperial e do México-Tenochtitlan, nos dando uma verdadeira lição de como se faz História em tempos de prateleiras abarrotadas de romances históricos acríticos e fantasiosos.

Nota

1. SUBRAHMANYAM, Sanjay. “Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia”, Modern Asian Studies, v. 31, n. 3, 1997, pp. 735-762.

Duarte Izabel Maria dos Santos – Mestre em História da Arte, Património e Turismo Cultural pela Universidade de Coimbra. Atualmente é doutoranda em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.


GRUZINSKI, Serge. A águia e o Dragão – Portugueses e Espanhóis na globalização do século XVI. Trad. Pedro Elói. Lisboa: Edições 70, 2015. Resenha de: SANTOS, Duarte Izabel Maria dos. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.35, n.1, p.296-301, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]