Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935) – SOUZA (RBH)

Publicado em 2017, Em busca do Brasil, de autoria de Vanderlei Sebastião de Souza, é fruto da tese de doutorado defendida na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e agraciada com o III Prêmio de Teses da Anpuh, no biênio de 2011-2012. Os cinco capítulos que compõem o livro trazem à tona a preocupação com o tema da identidade nacional na trajetória política e científica do médico e antropólogo Edgard Roquette-Pinto. Em especial, a obra analisa a sua relação com a antropologia física, suas interlocuções transoceânicas e a ampla discussão racial mobilizada durante as primeiras décadas do século XX. Leia Mais

Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RIHGB)

LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (Orgs). Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto.Nísia Belo Horizonte, UFMG e Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2008. Resenha de RIOS: José Arthur. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun. 2010.R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun 2010.

O título do livro deriva da expressão cunhada por Edgard Roquette-Pinto, tema principal dessa coletânea de ensaios. As organizadoras, téc­nicas e professoras da Casa de Oswaldo Cruz, uma, socióloga (Nísia), outra, historiadora (Dominichi), ambas se completam na interpretação e na análise documental dos dados e informações colhidos em obras, cor­respondências e arquivos, sobre essa curiosa figura de sábio e pioneiro.

Robert Wegner assina erudito Prefácio completado por uma Apre­sentação das organizadoras que associam a trajetória intelectual de Ro­quette-Pinto à própria história da República na primeira metade do século XX e, mais que isso, à historia das ideias e do pensamento científico naquelas décadas.

Valiosa a transcrição de uma palestra de Roquette sobre “Ciência e Cientistas do Brasil”, proferida em 1939, onde nos dá, com a autoridade de protagonista, o estado da questão, uma visão panorâmica dos avan­ços e atrasos das ciências físico-naturais no Brasil da época. Duas ideias transparecem (Dominichi) nesse texto: – a influência do Positivismo e a preocupação dominante na legitimação da ciência, sobretudo de uma “ciência pura” face a uma “ciência aplicada”.

Na mesma perspectiva interpretativa, Alberto Venâncio Filho analisa a obra de Roquette-Pinto como expressão de humanismo, assinalando a importância da formação positivista, bebida desde tempos escolares, na gênese do pensamento do autor de Rondônia; bem como sua tentativa de conciliar ciência e técnica com as melhores fontes do humanismo do século XIX, sobretudo com a obra de Goethe, de declarada influência na obra de Roquette.

Central, no livro, o ensaio de Nísia Trindade Lima situando o cien­tista na sua geração, no papel renovador e contestatário que esta desem­penhou face à sociedade patriarcal e à cultura que produziu, baseada na inteligentsia bacharelesca, na aversão das elites ao trabalho manual e na retórica romântica.  Nessa perspectiva – do amplo processo de desagregação do regime escravista e da sociedade patriarcal, e a demorada extinção de suas mar­cas – as autoras situam a obra de Roquette. Seria esta mais um capítulo na busca de identidade do povo brasileiro. Escreve em momento de tran­sição social e cultural em que antigas categorias explicativas como “raça” e “mestiçagem” vão cedendo lugar a traços culturais persistentes como analfabetismo, doença e atraso. Tudo isso se prende à ascendência das camadas médias urbanas na sociedade brasileira, ansiosas por abraçar, na nova República, uma ideologia justificadora. Nesse cenário avulta o papel inspirador – e formatizador – do que João Cruz Costa chamou “po­sitivismo difuso”, de remota, mas certa raiz na doutrina de Comte.  Esse Positivismo sui generis é tema do ensaio de Luiz Otávio Fer­reira (“Ethos positivista e a institucionalização das ciências no Brazil”) onde salienta a função do arcabouço institucional então criado, institutos, centros de pesquisas e laboratórios, sem o que as ideias renovadoras dessa nova geração careceriam de uma caixa de ressonância. Como demonstra o autor, mediatizaram essas instituições as inovações intelectuais trazidas pelos cientistas, articulando sua atividade com um sistema de ensino su­perior, criando campo de prova para as primeiras reformas universitárias. Sob esse aspecto, a obra de Fernando de Azevedo, companheiro de gera­ção de Roquette-Pinto, é bastante característica dessas vocações. Nesses avanços científicos, – caruncho no tronco – brota o cientificismo, no qual capitulam os melhores espíritos – Alberto Torres, Oliveira Vianna, Eucli­des, que pagaram preço alto à pseudociência dos tempos.

Essa institucionalização se prende a amplo projeto nacional. É o grande tema de Rondônia, como evidenciam, em outro ensaio, a mãos juntas, Nísia Trindade Lima, Ricardo Ventura Santos e Carlos E. A Coim­bra Junior. A obra de Roquette resultou de um projeto caro à nova Re­pública – a expedição Rondon e a implantação das linhas telegráficas no extremo Oeste. Graças a Rondon, a ciência não se legitimava apenas pe­las elocubrações e descobertas de gabinete, mas por propiciar a extensão do Estado às regiões inóspitas, aos “sertões” do Brasil; e a incorporação das populações indígenas à proteção paternalista do Governo. O “sertão” é assim anexado à cultura urbana e o sertanejo – o homem forte, mas abandonado, de Euclides, – é agora associado à obra coletiva da criação nacional. Em Rondônia, como os autores vêm a obra mestra de Roquette, ocorre a transição da antropologia física de Broca, Bertillon e outros – a antropologia das medidas antropométricas – para uma redefinição do “primitivo” que só poderá se processar em termos culturais.

Ricardo Ventura Santos aborda o mesmo tema sob o ângulo da mes­tiçagem, objeto de acalorados, às vezes transviados, debates na sociologia e na medicina da época e que levaram Roquette, admirador de Euclides, a separar-se, nesse ponto, do cientificismo do autor dos Sertões. Na discus­são o autor exalta, com acerto, a importância da componente nacionalista que vai dominar a polêmica nos anos 20 e 30.

É justamente o momento em que o debate passa do domínio cientifico – ou cientificista – para o campo político e avulta, no cenário internacional do após Primeira Guerra, – cortado de redefinições de fronteiras e movi­mentação de povos, – o problema das migrações. É este objeto do denso, pesquisado e fundamentado ensaio de Giralda Seyferth (“Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”). Demonstra os obstáculos ideológicos que atravancavam o caminho para uma solução racional e despreconceituosa do problema. Ditadas por uma teorização equivocada e lacunosa, surgem, no cenário brasileiro, propostas que, hoje, nos fazem rir, assinadas por figuras respeitáveis, alguns médicos, de renome.

Típica é a reação de muitos à imigração japonesa, tida como ameaça à nossa pureza racial, a ponto de merecer a denúncia de “perigo amarelo”. Assim também a repulsa à mera possibilidade de uma imigração chinesa acalentada por alguns líderes desde o tempo do Império, como substitu­ta no latifúndio cafeeiro, à escravidão africana – e até considerada nos anos 30 “repugnante”. Obedece aos mesmos preconceitos a sugestão de adoção do sistema de quotas, cópia do modelo americano. Essas ideias, como verifica a autora, resultaram em políticas, ditaram critérios restriti­vos quando não proibitivos, contra correntes imigratórias que nos teriam trazido, como algumas de fato trouxeram, progresso social, tecnologia e prosperidade. Eram todas sustentadas em nome da pureza da raça, concei­to de problemática definição.

A confusão, muitas vezes ciente e consciente, entre raça, etnia, povo e nacionalidade, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e durante o Estado Novo, resultou de fato em políticas anti-imigrantistas. É o tema de Jair de Souza Ramos (“Como classificar os indesejáveis?”). O autor, no entanto, usa o termo “racialização”, “medidas racialistas”, quando na verdade está falando de racismo, tout court, agravado no período da Se­gunda Guerra, pela entrada do Brasil na luta contra o Eixo e que atingiu, por motivações diversas, os descendentes de italianos, alemães e japone­ses no Sul do Brasil, e também judeus que tentavam fugir à perseguição nazista – como fartamente documentado. Roquette-Pinto prestou-se, no caso, a interpretações nacionalistas, quando afirmou que o brasileiro não precisava de substituto – nivelando-se a outro contemporâneo que ficou célebre pela afirmação “o brasileiro é o melhor imigrante”.

A preocupação da Eugenia, generalizada na época e importada dos círculos científicos europeus e norte-americanos, constituiu tropeço no pensamento de Roquette, como demonstra Vanderlei Sebastião de Souza (“As leis da eugenia na antropologia de Roquette-Pinto”). A Eugenia an­dou muito associada às teorias racistas, tornou-se, na Alemanha nazista, instrumento e desculpa para a eliminação de “indesejáveis” – leiam-se minorias, os chamados “quistos” – termo usado no Brasil para designar as colônias alemãs no Sul – por serem, segundo os autores dessas teorias, inassimiláveis, irredutíveis ao melting pot brasileiro. Assim também fo­ram considerados os “amarelos”, os orientais de várias procedências, cuja assimilação e docilidade à miscigenação tornaram-se hoje evidentes, a olho nu, para quem transita nas ruas de São Paulo, onde se misturam gos­tosamente com os descendentes dos bandeirantes, arianos e não – arianos, caros a Oliveira Vianna.

Os últimos ensaios do livro dedicam-se à descrição do enorme papel desempenhado pelo autor de Rondônia na criação da nossa radiofonia educativa. E, paradoxalmente, na elaboração das normas de censura a esse novo meio de comunicação. Ildeu de Castro Moreira, Luisa Mas­sarani e Jaime Aranha descrevem a importância de Roquette na nossa primeira divulgação científica, enquanto Regina Horta Duarte compõe um retrato do Roquette viajante e Sheila Schwartzman realça sua contri­buição ao uso educativo do cinema.

Enriquece o livro farto material fotográfico e cartográfico e a trans­crição de textos de Roquette-Pinto, alguns inéditos. É de lamentar a falta de um índice onomástico, indispensável face à riqueza das fontes consul­tadas e citadas.  Nenhum praticante das ciências humanas está isento da contamina­ção com teorias espúrias, ranço de seu pensamento cientificismo, seja o darwinismo de seu pensamento social, o positivismo, o marxismo de pacotilha ou a psicanálise de bolso. O livro, de titulo elusivo, mas de lei­tura essencial, é indispensável para uma visão dos caminhos e descami­nhos da antropologia brasileira – ainda que não brasiliana – nas primeiras décadas do século passado; e mais, para uma compreensão dos problemas epistemológicos e metodológicos que enfrentou na transição, ou acomo­dação, entre uma ciência biológica e uma ciência da cultura. Nesse sentido, a obra de Roquette-Pinto, como nos demonstram os ensaios coligidos no livro, é paradigmática. Não se abalançaram as orga­nizadoras a uma síntese conclusiva sobre o ideário de Roquette-Pinto, seu legado às novas gerações, talvez porque a riqueza do material reunido em ensaios tão variados e a vivência do cotidiano institucional na Fiocruz – à qual Roquette esteve tão associado – lhes dificultassem a distância e a perspectiva necessárias.

Que era, afinal, a “antropologia brasiliana”, alem de um modismo?Que resta desse empreendimento, uma vez despido das aderências ideo­lógicas de seu tempo?  O livro mereceria um capitulo sobre o administrador de instituições que foi Roquette – como diretor do Museu Nacional; quando, em mo­mento crítico – a gripe espanhola, – assumiu a direção de uma enfermaria do Hospital Deodoro; ou quando esteve à frente da primeira emissora de radiodifusão do Brasil, depois mutado na Rádio MEC que, em 1937, ele doou generosamente ao Ministério da Educação e Saúde. E quando, ain­da, em 1936, dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).

Essa intensa, importante atividade institucional é mencionada, mas não devidamente descrita e analisada para a compreensão necessária do que seria, naqueles anos, um administrador institucional do porte criativo de Roquette.

Como convivia o cientista, o humanista, com o clima autoritário, depois totalitário do Estado Novo? Como teria disciplinado a censura cinematográfica?Que censura era essa?Qual teria sido o convívio de Roquette com a Ditadura, de origem positivista e constituição salazarista, que iria formalizar-se na carta de 1937 e esterilizou, com o peso de suas burocracias, tanta iniciativa fecunda na educação e na saúde? De um a outro capítulo, delineia-se o perfil de Roquette-Pinto educa­dor. Merecia capítulo à parte. Difícil, também neste passo, compreender como o signatário do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” – com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Francisco Venâncio Filho e  tantos outros – documento de tempera liberal, veio a filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro, no qual chegou a candidatar-se em 1954 a deputado à Câmara Federal. Que socialismo era esse?O de Proudhon ou o de Saint-Simon? Não seria certamente o de Marx.

Outro ponto que mereceria análise, nessa personalidade – de tão ri­cas e instigantes contradições – era sua religiosidade. Chegou a articular, nos idos de 1935, um curioso Credo (sic), onde parece transitar do Positi­vismo, doutrina conservadora, para um Socialismo reformista.

Não há dúvida que essas tensões eram as de sua geração, alimentada pelas ideias de Darwin, de Spencer, de Comte, e animada por um Roman­tismo fundamental. Nascidos poucos anos depois da Abolição da escra­vatura, esses pensadores cresceram nos padrões e comportamentos per­sistentes de uma sociedade patrimonialista e de uma cultura bacharelesca. Sem a prática do método científico e sem as disciplinas da Universidade esses cientistas formam-se ao acaso do encontro, da viagem, do livro ou da experiência estrangeira, ainda apegados, malgie soi, ao discurso, ao culto da palavra, ao individualismo decorativo – menos ao laboratório, ao trabalho técnico e manual à pesquisa de equipe. Admirável, tenham conseguido produzir uma ciência e uma estrutura institucional, pagan­do alto preço ao ufanismo que os levaria às aberrações nacionalistas dos anos 30, à Ditadura de 37, às restrições criminosas à imigração – enfim, até ao Racismo.

Livrou-se Roquette dessa maleita e do racismo arianista pelo concei­to problemático de uma raça brasileira – ou brasiliana – encontrada por Euclides no sertanejo, por Roquette nos nhambicuaras. Bastante cientista, no entanto, Roquette percebeu que esse brasiliano não podia ser “antes de tudo um forte” e continuasse analfabeto, verminótico, tuberculoso, en­quanto exercesse práticas agrícolas destrutivas – e que era preciso tratá-lo, dar-lhe hospital, vacina, arado. Essa a grande missão que destinava ao Estado e às elites do seu tempo. Nessas esperanças, de alguma forma, comungamos, indivíduos ou instituições. Desse idealismo, não no sentido de Oliveira Vianna, mas no comum, Roquette, como o livro assaz demonstra, foi exemplo egrégio e continua mestre e inspirador.

José Arthur Rios – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RBH)

LIMA, Nísia Trindade; Sá, Dominichi Miranda de (Org.). Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 327p. Resenha de: OLIVEIRA, Lucia Lippi. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, no.58, DEZ. 2009.

Durante o século XIX ainda existiam dúvidas sobre como deveria ser chamado o nascido no Brasil. Não por acaso o principal jornal do Império denominava-se Correio Brasiliense. Já no início do século XX, ao apresentar um panorama da evolução da ciência no país, Roquette-Pinto se referia à contribuição científica dos ‘brasilianos’ e ao Brasil ‘brasiliano’, aquele depois de Ron-don. Essa mesma designação foi usada por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, organizadoras da coletânea Antropologia Brasiliana.

As quatro partes do livro mapeiam a ciência – a Antropologia – e a área de atuação – a educação – de Edgard Roquette-Pinto. A primeira parte, como diz seu título, trata do “Perfil e trajetória”; a segunda, de “Positivismo e nação”; a terceira, de “Antropologia e população”, e a última, de “Ciência e ação”. Na “Apresentação”, as organizadoras ressaltam que Roquette-Pinto é mais lembrado e reconhecido por suas realizações no rádio e no cinema educativos, ou seja, como divulgador da ciência, e é relativamente esquecido como cientista, estudioso das raças e dos tipos antropológicos brasileiros. Destacam, também, um ponto central presente na maioria dos artigos: Roquette-Pinto, com base em pressupostos da antropologia física e da biologia mendeliana, refutou as teses da inferioridade dos mestiços brasileiros.

Os artigos da coletânea procuram, cada um à sua maneira, situar a trajetória e a obra de Roquette-Pinto no contexto da época e mostrar como as questões-chave dos anos iniciais do século XX envolviam o fortalecimento da República e da nação. A ciência da época – o Positivismo – prometia progresso e civilização, e nesse quadro sobressaía o papel dos engenheiros, dos médicos e dos educadores. As figuras de Oswaldo Cruz, Paulo de Frontin, Aarão Reis, Pereira Passos, Euclides da Cunha e Cândido Rondon, entre outros, podem iluminar os diagnósticos, as expectativas, as atuações, e também os desencantos dos primeiros anos da República no Brasil. Essa era a reação dos desiludidos, que procuravam respostas para a questão: “como explicar o atraso do Brasil?”. Os intelectuais cientistas entraram no debate lançando mão do que tinham à disposição: leis biológicas, eugenia, mestiçagem, ‘branqueamento’, imigração. Tudo isso foi acionado, com diferentes combinações, para explicar a formação do povo, da ‘raça’ brasileira, do ‘tipo’ nacional, e tentar responder ou resolver a questão mencionada.

O “Prefácio”, de Robert Wegner, assim como o artigo “Roquette-Pinto e sua geração na República das Letras e da Ciência”, das organizadoras do livro, oferece um bom guia de leitura. Então, como reapresentar aqui o livro aos leitores? O que selecionar? Como a seleção se faz guiada por motivações derivadas do trabalho do leitor/resenhador, esclareço as questões que guiaram minha leitura.

A construção de um regionalismo no Brasil durante o Estado Novo, reiterada pela atuação do IBGE na redefinição do mapa do país, ao estabelecer em 1941 a divisão regional do Brasil, foi acompanhada pela apresentação e divulgação de desenhos que representavam ‘tipos brasileiros’, como o seringueiro, o vaqueiro, o pescador, a baiana e o gaúcho, entre outros. Percy Lau, desenhista e funcionário do IBGE, foi o autor dos desenhos dessas figuras que frequentaram os livros de Geografia por muitas décadas. Durante a leitura, eu me perguntava: essa história de ‘tipos brasileiros’ teria a ver com sociologia de Oliveira Viana? Lendo Antropologia Brasiliana pude entender melhor a matriz dessa classificação e conhecer o papel dos estudos de Roquette-Pinto no debate sobre a unidade ou pluralidade da ‘raça’ brasileira. Os artigos de Giralda Seyferth, de Jair de Souza Ramos e de Vanderlei Sebastião de Souza, que compõem a terceira parte do livro e analisam a Antropologia do autor, oferecem a chave explicativa do debate em questão.

Giralda Seyferth, no magnífico artigo “Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”, analisa a obra antropológica do autor confrontando-a com a antropologia da época, em especial com o que já se dizia nos Estados Unidos (sobretudo Franz Boas). Roquette-Pinto produziu uma classificação dos ‘tipos nacionais’, assunto de destaque da antropologia física, que importava até mesmo para assuntos demográficos. Suas categorias se reportavam à cor da pele: leocodermos (brancos), melanodermos (negros), xantodermos (mestiços de branco e índio, indicativo da cor amarela) e faiodermos (mestiços de branco e negro). As classificações foram elaboradas com base em amostragem significativa de homens jovens oriundos de todos os estados brasileiros. Segundo Giralda, Roquette-Pinto, mesmo com uma bibliografia cheia de paradoxos, de classificações ambíguas, foi capaz de mostrar “a falácia da desigualdade racial, a heterogeneidade da população, a normalidade dos mestiços e a impossibilidade de vaticinar a formação de um tipo nacional” (p.161).

O artigo de Vanderlei Sebastião de Sousa, “‘As leis da eugenia’ na Antropologia de Edgard Roquete-Pinto”, também aborda a pesquisa “Notas sobre os tipos antropológicos do Brasil”, cujo texto foi publicado em 1928 no Boletim do Museu Nacional e apresentado em 1929 no Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Ali Roquette-Pinto concluía que nenhum dos tipos da população brasiliana apresentava qualquer estigma da degeneração antropológica. Negava assim os supostos efeitos negativos que derivariam da miscigenação social. Reafirmaria em Ensaios de antropologia brasiliana (1933) que não havia mal algum no processo de mestiçagem, na combinação de fatores biológicos que levaram à formação de um tipo híbrido, e que haveria mesmo, nessa formação, uma eugenia saudável. Assim, o homem brasileiro precisava era ser educado, e não substituído.

Jair de Souza Ramos, no artigo “Como classificar os indesejáveis?”, acompanha a participação de Roquette-Pinto no debate da seleção racial suscitado pela política de imigração. Explora os passos dados na identificação e restrição aos imigrantes indesejáveis e reafirma que Roquette-Pinto – convocado a participar nos debates das políticas de imigração por sua condição de antropólogo, autor de Rondônia (1917) e diretor do Museu Nacional (de 1926 a 1936) –, usando os caminhos da antropometria, abordando a questão da mestiçagem sob o ângulo da eugenia, ou seja, como portador de um discurso racialista, foi crítico da superioridade das raças. O uso da categoria ‘racioalismo’ como o autor do artigo esclarece, é feito no sentido explicitado por Todorov:

As doutrinas racialistas têm três pressupostos: 1) os homens se diferenciam em grandes grupos chamados raças, os quais possuem certa unidade física, que lhes confere determinadas características psicológicas e culturais; 2) o predomínio do grupo sobre o indivíduo (isso significa supor que o comportamento do indivíduo é determinado, em grande medida, pelo grupo racial ao qual ele pertence); 3) as ‘raças’ não seriam apenas diferentes, mas também desiguais. (p.206)

Para além dos artigos que tratam da questão das raças e dos ‘tipos nacionais’, gostaria também de ressaltar o artigo de Regina Horta Duarte, “Rumo ao Brasil: Roquette-Pinto viajante”, que enfoca a viagem como uma vitória sobre a rigidez dos costumes, como algo capaz de forjar uma abertura no caráter do indivíduo e de operar uma transformação em cada brasileiro. As via-gens de Euclides, de Rondon, dos médicos sanitaristas, dos modernistas paulistas às cidades mineiras e de Mário de Andrade ao Norte e Nordeste vêm merecendo atenção de inúmeros analistas. No caso de Roquette-Pinto o foco da transformação tem a ver com o impacto produzido pelo encontro com os Nhambikuáras em 1912, quando, acompanhando Rondon, fez sua viagem de descoberta do Brasil. Roquette-Pinto fez anotações e fotografou os índios, seus enfeites, seus apetrechos, suas habitações. Gravou a narração de lendas e cantigas, filmou o preparo da mandioca, os trabalhos de tecelagem e fiação. Observou, desenhou, documentou tudo, como prova e também como fonte de conhecimento a ser utilizado na educação.

Para Roquette-Pinto, a constituição da nação implicava vencer distâncias, e as estradas eram referidas como ‘vasos nutridores’ do Brasil. Se os ‘tipos brasileiros’ precisavam e podiam ser melhorados pela educação, o país enfrentava dificuldades adicionais derivadas da grande extensão territorial. Pode-se então compreender o papel do rádio e do cinema como projetos de divulgação do saber, como meios eficazes de vencer distâncias, de ultrapassar os limites do espaço e do tempo, possibilitando que os homens do povo realizassem suas viagens transformadoras. Daí sua frase: “Para nós o ideal é que o cinema e o rádio fossem, no Brasil, escolas dos que não têm escola”. Tanto suas ações envolvendo o rádio e o cinema quanto sua atuação como editor da Revista Nacional de Educação, fundada em 1932, falam de uma mesma estratégia de partilhar o conhecimento entre os brasileiros espalhados pelo território nacional, nos informa Regina Horta Duarte.

A concepção de nação como domínio sobre os territórios e suas populações, as ideias sobre a importância do saber geográfico na construção da nação, estavam na ordem do dia. A premiação de Rondônia e de A expansão geográfica do Brasil Colonial, de Basílio de Magalhães, em 1917, pelo IHGB, falam dessa tendência. A repercussão de Os sertões já indicava isso. A relação entre ocupação do território e população também está fortemente presente na historiografia de Capistrano de Abreu. Se nação é combinação entre território e população, Roquette-Pinto estudou, escreveu, atuou nos dois campos, e procurou responder ao desafio de vencer dificuldades de ambos: vencer distâncias e demonstrar que o povo mestiço não era inferior. Seu compromisso com a nação, sua missão de construir a nacionalidade guiou sua trajetória e sua obra.

Ao discutir e apresentar a obra de Roquette-Pinto, Antropologia Brasiliana oferece um importante panorama das teses e dos confrontos de posições entre os intelectuais e cientistas que compunham a geração que pensou o Brasil na Primeira República. Mostra também a complexidade e a riqueza do pensamento da época ao fazer uso das categorias ciência, desigualdade, mestiçagem, branqueamento, imigração e democracia. Se alguns dos temas são questões do passado, outros estão presentes nos dias de hoje, quando políticas de ação afirmativa baseadas em critérios raciais vão se tornando correntes nas ações do Estado brasileiro. É importante que historiadores, sociólogos e antropólogos tomem conhecimento das experiências anteriores, quando a raça foi a principal moeda para condenar o mestiço brasileiro e para classificar os imigrantes desejados.

Lucia Lippi Oliveira – Socióloga, pesquisadora e professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Praia de Botafogo, 190. 22250-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. lucia.lippi@fgv.br.

Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA; SÁ (EH)

LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (orgs). Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: UFMG, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008, 327p. Resenha de: HOFBAUER, Andreas. Roquette-Pinto: uma vida dedicada ao progresso da nação. Estudos Históricos, v.22 n.44 Rio de Janeiro July/Dec. 2009.

Roquette-Pinto não é uma personagem desconhecida: sobretudo para aqueles que estudam a história da ciência e para quem se interessa pelos primórdios do desenvolvimento do rádio e do cinema no Brasil, Roquette-Pinto era um homem de muitos talentos e de muitos projetos. Executou múltiplas atividades profissionais, muitas vezes paralelamente, e ocupou vários cargos importantes durante a sua vida. Criativo, inventivo, com fortes convicções morais e políticas, envolveu-se nas mais diversas questões que preocupavam a intelectualidade brasileira da primeira metade do século XX: pesquisava, opinava e intervinha. Por toda esta trajetória, não deixa de ser curioso que existam relativamente poucos estudos sobre Roquette-Pinto e nenhuma biografia completa a seu respeito.

Neste sentido, o livro Antropologia brasiliana. Ciência e educação na obra de Edgard Roquette-Pinto, organizado por Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá, veio para suprir uma enorme lacuna. As organizadoras optaram por não seguir uma exposição cronológica das atividades deste grande intelectual, mas escolheram tópicos que julgaram centrais na diversificada produção de Roquette-Pinto e convidaram especialistas para analisar suas contribuições para cada uma das temáticas específicas. Os ensaios foram agrupados em quatro seções, incitando o/a leitor/a a aprofundar o diálogo entre elas: “perfil e trajetória”, “positivismo e nação”, “antropologia e população”, “ciência e ação”. Na primeira parte, foi incluído ainda um texto inédito do próprio Roquette-Pinto (“Ciência e cientistas do Brasil”, 1939), elaborado para uma conferência proferida no Palácio do Itamaraty. Nesse texto, Roquette-Pinto não somente expõe a sua maneira de ver a história da ciência no país, mas também avalia o papel e o lugar que ele próprio atribui a si mesmo neste processo. O manuscrito, que foi encontrado pelas organizadoras durante a sua pesquisa no acervo pessoal do intelectual (que se encontra hoje sob a guarda da Academia Brasileira de Letras), completa o quadro dos textos.

Desta forma, o livro se revela um mosaico de abordagens sobre a vida de Roquette-Pinto: oferece leituras sobre uma mesma personagem partindo da análise de um tema específico. O resultado são reflexões que, inevitavelmente, em diversos momentos, se cruzam com, e até se sobrepõem a, abordagens que têm outra área de atuação de Roquette-Pinto como foco de análise. Este efeito intencionado pelas organizadoras, que procura espelhar a vida multifacetada do cientista, ganha reforço visual na bela capa montada por Jayme Moraes Aranha Filho, que construiu um retrato do homenageado a partir de um arranjo de centenas de imagens coloridas, que apresentam, na sua maioria, aparelhos de época voltados para a comunicação: microfones, máquinas de escrever, vitrolas, rádios etc.

Os vários textos que compõem a coletânea elucidam que não é possível entender a vida de Roquette-Pinto sem levar em consideração o seu espírito nacionalista e a sua forte crença na ciência, além do espírito positivista que compartilhava com tantos outros pensadores da época. “Creio nas leis da Sociologia positiva e por isso creio no advento do Proletariado, conforme foi definido por Augusto Comte…”, afirma o nosso pensador em 1935. Roquette-Pinto era um daqueles intelectuais que apostavam no progresso por meio do aprofundamento do conhecimento científico e de sua disseminação pela educação popular. Ele via nas invenções tecnológicas um potente meio de transformação da sociedade. Acreditava firmemente na força missionária e na função utilitária da ciência, atribuindo-lhe a capacidade de dar respostas para o problema da nação e de preparar o caminho para a modernização. Ao mesmo tempo, o envolvimento pessoal com questões sociais não permitia que Roquette-Pinto se transformasse numa pessoa dogmática. Prevalecia, portanto, um perfil que as organizadoras do livro chamaram de “humanismo científico”.

As distintas contribuições valorosas do livro destacam a importância da participação de Roquette-Pinto na expedição Rondon, em 1912. O contato direto com o sertão levaria o jovem cientista, formado em medicina, a rever a visão do admirado Euclides da Cunha a respeito dos males do sertanejo, que Roquette-Pinto qualificaria, posteriormente (em Seixos rolados, 1927), de ilusória: de acordo com ele, os sertanejos não deveriam ser percebidos como seres inferiores, nem como incapazes, como avaliava Euclides, mas tão-somente como atrasados e ignorantes; nem o isolamento, nem as influências da mestiçagem, e sim muito mais o abandono do poder público explicaria a vida precária nos interiores do Brasil. Ponto alto da viagem foi o encontro com os índios Nambikwara. Fazendo uso do seu talento etnográfico, Roquette-Pinto produziu importantes registros e documentos: confeccionou uma das primeiras imagens cinematográficas dos índios e transcreveu músicas indígenas que inspirariam Villa-Lobos. O seu caderno de campo, que seria publicado sob o título Rondonia: anthropologia – ethnographia (1916), expressa a simpatia que sentia em relação aos indígenas; ao mesmo tempo, não esconde o seu ideário positivista-evolucionista, que fazia com que julgasse, por exemplo, a cerâmica indígena “rudimentar” e “grosseira”, e a sua plumária “insignificante”.

Como diretor do Museu Nacional (1926-1935), preocupava-se em desenvolver estratégias e meios que possibilitassem à população ter acesso ao desenvolvimento científico. Buscava transformar a instituição num museu pedagógico-educativo, numa “universidade do povo”, segundo as suas próprias palavras. Para isto, lá instalou, inclusive, um auditório especial e incentivou escolas a frequentar o local. Com a fundação da Revista Nacional de Educação (1932), voltada para a educação e para a divulgação da ciência, das letras e da arte, e que seria distribuída gratuitamente, Roquette-Pinto realizou um sonho pessoal que, porém, duraria apenas dois anos.

Roquette-Pinto foi fundador da primeira emissora de rádio no Brasil, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro (1923), e também o primeiro diretor da instituição. Seu envolvimento com os “novos meios de comunicação” – rádio e cinema -, que via surgir e ajudava a consolidar, foi impulsionado pelas mesmas preocupações e convicções do cientista. O objetivo principal era criar programas de rádio e produzir filmes que apresentassem, de forma didática, os avanços da pesquisa científica e os progressos tecnológicos. Roquette-Pinto dirigiu alguns filmes e participou da feitura de roteiros de outros. Teve grande influência sobre a produção cinematográfica no período de 1936 a 1947, durante o qual ocupou o cargo de diretor do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Um pouco antes (de 1932 a 1934) tinha atuado como censor. “Cinema não é arte”, asseverava enfaticamente em 1938. O cinema era, para ele, em primeiro lugar, um meio: um meio tecnológico e científico que deveria contribuir para a educação e para a elevação do povo brasileiro. A grande maioria dos filmes do INCE seguia um viés erudito, avalia Sheila Schvarzman em seu texto: procurava dar “aos carentes o conhecimento da cultura letrada oficial” e esperava que os expectadores, humildemente, assimilassem as verdades científicas que os fariam avançar na escala do progresso civilizatório. Assim, ainda de acordo com a análise de Schvarzman, os filmes revelavam uma certa “incapacidade de contato com o real” que proviria do pensamento positivista: um pensamento que possibilita, num plano abstrato, a integração dos mais diversos grupos e indivíduos numa mesma comunidade, mas, ao mesmo tempo, justifica um relacionamento assimétrico com todos aqueles identificados como não-civilizados, já que as diferenças detectadas neles eram entendidas como decorrências de um estágio inferior de desenvolvimento cultural.

O tema científico que mais profunda e longamente atraiu a atenção de Roquette-Pinto foi a questão racial, assunto que marcava também, profundamente, os debates da época sobre a imigração, a saúde pública e, portanto, os rumos futuros da jovem nação. É também nesta temática que se concentra provavelmente o maior impacto sociopolítico do pensamento de Roquette-Pinto: os diferentes ensaios que compõem a coletânea, particularmente os de Ricardo Ventura Santos, Giralda Seyferth, Jair de Souza Ramos e Vanderlei Sebastião de Souza, revelam a complexidade e certas ambiguidades e incoerências que se expressam nas ideias de Roquette-Pinto acerca das noções de raça, miscigenação e eugenia.

Todos os autores sublinham a importância do cientista no combate ao determinismo racial e climático, sem que ele tivesse, porém, aberto mão do conceito de raça. Raça constituía uma das categorias mais importantes e mais disseminadas na época, e era usada por cientistas e pelo senso comum para fazer referência a, e para analisar, diferenças humanas. Refletir sobre o valor das raças e as consequências da mestiçagem significava, no caso do Brasil, pensar o passado e, sobretudo, o futuro da nação. No debate acadêmico, opunham-se duas posições extremas: de um lado, havia aqueles (por exemplo, Nina Rodrigues) que, devido à longa prática da miscigenação no país, mostravam-se céticos e pessimistas a respeito do futuro do Brasil. De outro lado, posicionavam-se aqueles (por exemplo, Lacerda) que acreditavam que um determinado tipo de miscigenação pudesse, sim, contribuir para a construção de uma civilização forte nos trópicos: a chave para este processo, que levaria ao ansiado branqueamento da população brasileira, seria o incentivo estatal à imigração de mão-de-obra europeia. Por trás destas posições, articulavam-se não somente diferentes avaliações a respeito da origem causal das diferenciações raciais e do impacto das raças e do processo de miscigenação sobre as vidas humanas. As diversas análises particulares também eram evidentemente permeadas por convicções de ordem política e ideológica, e marcadas por posturas pessoais frente à ciência e à nação.

Os estudos das raças efetuados por Roquette-Pinto, que incluíam a aplicação de métodos antropométricos (por exemplo, os de 1920, quando elaborou um estudo sobre “tipos antropológicos do Brasil”), tinham um nítido objetivo social e político: propiciavam-lhe um conhecimento ao qual podia recorrer nas suas discussões acerca da imigração (especialmente, no caso dos japoneses) e nas suas atividades junto à Liga Pró-Saneamento do Brasil.

Em 1912, ele elaborou um diagrama que, baseado em dados dos primeiros recenseamentos nacionais, projetava a extinção dos negros para o ano de 2012 e, desta forma, fornecia a Lacerda um importante material para a defesa de seu discurso pró-branqueamento. Pouco depois, no entanto, Roquette-Pinto transformar-se-ia num eminente crítico de tais ideias: incorporando um espírito nacionalista, que ganhava força no país na época da Primeira Guerra Mundial, Roquette-Pinto revelou-se, nestas discussões, um árduo defensor das populações locais. Lutava em duas frentes: contra a “ideologia do branqueamento”, e contra aquele pensamento racial que criava hierarquias fixas entre grupos humanos e condenava os produtos de cruzamento à – supostamente irreversível – degeneração. Assim, fazia críticas irônicas a letrados estrangeiros, como Agassiz e Gobineau, os quais, após rápidas passagens pelo Brasil, disseminaram tais teses que, de acordo com Roquette-Pinto, seriam erroneamente reproduzidas por certos intelectuais brasileiros, como por exemplo Euclides da Cunha. Roquette-Pinto via nestas ideias uma atitude imperialista que buscava justificar a expansão colonial de países europeus. Argumentava que a mestiçagem em si nada tem a ver com as mazelas do país, e, ao mesmo tempo, opunha-se àqueles que viam na imigração europeia um meio adequado para melhorá-lo: “O problema nacional não é transformar os mestiços em gente branca. O problema é a educação dos que aí se acham, claros e escuros”, afirma Roquette-Pinto em 1927; ou ainda em outro contexto: “(…) o homem, no Brasil, precisa ser educado e não substituído”.

Diante de tais posicionamentos, o forte envolvimento de Roquette-Pinto com a eugenia pode causar um certo estranhamento. O instigante ensaio de Vanderlei Sebastião de Souza ajuda-nos a entendê-lo melhor. De acordo com o autor, Roquette-Pinto empregava a eugenia como um instrumento modernizador: como uma ferramenta científica tanto para pensar o processo do aperfeiçoamento da raça quanto para defender o homem brasileiro das condenações implicadas no determinismo biológico. Na abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, Roquette-Pinto deixava claro que “as leis da eugenia” deveriam ser aplicadas com o objetivo de “melhorar o patrimônio biológico” dos brasileiros. Assim, a seleção matrimonial deveria seguir os ensinamentos da ciência eugênica. Dever-se-ia incentivar o casamento entre pessoas com “boa herança”, independentemente do “tipo racial”. Ou seja, a preocupação eugênica do cientista recaía sobre a eliminação de doenças hereditárias localizadas em seres humanos particulares, e não sobre determinadas características raciais ou sobre a “mistura das raças” em si. A mestiçagem é um mal somente “quando realizada ao deus-dará dos infortúnios, sem eira nem beira, sem higiene e sem eugenia, sem educação e sem família”, costumava dizer Roquette-Pinto. Num artigo publicado em 1933, o cientista chegou a sugerir a promoção de um concurso para escolher, entre trabalhadores rurais e operários das indústrias, um casal de jovens que apresentasse “os tipos de herança realmente eugênicas, e qualidades pessoais relevantes”. Os vencedores deveriam ser premiados por fazendeiros e industriais com um pequeno aumento de salário, já que os casamentos eugênicos trariam, em última instância, lucros aos empregadores.

O fato de Roquette-Pinto ter lutado contra o determinismo biológico não significa, porém, que acreditasse numa “completa igualdade de atributos biológicos”, conforme escreve Ventura Santos. E se o “peso do biológico” é, de certo modo, questionado no plano coletivo das raças humanas, Roquette-Pinto insiste, ao mesmo tempo, na necessidade do cuidado para com a “boa herança” no plano dos seres humanos particulares. A maneira como se dava, para ele, a relação entre “boa herança individual” e “boa herança coletiva” não parece bem explicada na argumentação deste pensador. Com o intuito de chamar a atenção dos leitores para as não raras incongruências que se expressavam nas atitudes de muitos daqueles que fervorosamente debatiam o tema da raça, Ventura Santos termina o seu ensaio com uma irônica comparação entre um estudo anatômico promovido pelo “clássico determinista racial” Nina Rodrigues e outro executado pelo combatente do chamado “racismo científico, Roquette-Pinto. Enquanto Nina Rodrigues, na sua análise do crânio de Antonio Conselheiro, não conseguiu detectar nenhuma anormalidade nas características fisiológicas daquele personagem que descrevia como “delirante” e “megalomaníaco”, Roquette-Pinto teria descoberto na “complexidade das circunvoluções” cerebrais do autor de Os sertões evidências de sua genialidade.

Raça é um conceito elástico, ensina-nos Giralda Seyferth. Nunca houve consenso em torno da quantidade de raças existentes e em torno daquilo que define este conceito. As diversas contribuições desta coletânea alertam-nos para não partirmos de uma noção a-histórica de raça ou de eugenia. Para entendermos os usos, ambiguidades e “não-coerências” de tais conceitos e ideias, é preciso estudarmos os contextos, os interesses particulares e as convicções político-ideológicas daqueles que contribuíram para a sua construção e transformação.

Ventura Santos explica que, embora Roquette-Pinto tenha defendido “posições igualitárias, contrárias a noções de fatalismo racial”, não chegou, contudo, “a propor uma completa desvinculação entre orgânico/racial e mental/social, que veio a se tornar a posição predominante na reflexão antropológica algumas décadas depois”. Uma das razões pelas quais o cientista não investiu numa tal separação conceitual pode ter a ver com as suas fortes convicções positivistas e com o seu comprometimento com as causas da nação. Na América do Norte, o antropólogo Franz Boas, frequentemente lembrado pelos autores da coletânea e comparado com o nosso autor, estava, neste mesmo período, preparando o caminho para fazer um corte conceitual rigoroso entre o reino da natureza, de um lado, e o(s) mundo(s) da simbolização, de outro. Começava a se referir à existência de uma pluralidade de culturas – isto é, não mais a um só percurso possível de uma cultura humana única – que Boas valorizaria e analisaria de forma cada vez mais independente das esferas biológicas e geográfico-climáticas. Crítico ao determinismo biológico, tal como Roquette-Pinto, Boas convenceu-se, porém, já muito cedo – diferentemente do nosso autor – de que a diversidade das vivências e experiências humanas não podia ser explicada a partir de leis naturais.

O livro Antropologia brasiliana tem o mérito de situar as ações e ideias de Roquette-Pinto no contexto histórico local e internacional e, sendo assim, traz uma importante contribuição para várias áreas de conhecimento, especialmente para os estudos sobre o chamado pensamento social brasileiro, e será particularmente importante para uma melhor compreensão da tão espinhosa questão racial no Brasil.

Andreas Hofbauer – Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília, Brasil (andreas.hofbauer@uol.com.br).