In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region – GARFIELD (RBH)

GARFIELD, Seth. In Search of the Amazon: Brazil, the United States, and the Nature of a Region. Durham: Duke University Press, 2014. 343p. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34 n.67, jan./jun. 2014.

Nas primeiras páginas de seu livro In Search of the Amazon, Seth Garfield evoca os antigos relatos de exploradores – narrativas emocionantes de jornadas hercúleas – para apresentar sua própria empreitada de anos de investigação sobre a Amazônia. As narrativas antigas de viagens às quais o autor alude, entretanto, representavam o meio tropical por meio de identidades bem estabelecidas e contrapostas ao mundo europeu, fundando mitos e firmando preconceitos. Diferentemente, estamos agora diante de uma refinada reflexão histórica que nos incita a questionar o que sabemos sobre a Amazônia. Com ele palmilhamos – página a página – as trilhas construídas no passado por diversos atores históricos, continuamente refeitas e redirecionadas no jogo dos enfrentamentos sociais e políticos. Munido de minuciosa pesquisa documental e disposto a trilhar territórios inexplorados, Garfield desmonta armadilhas de pretensas identidades, conceitos e representações arraigadas. Demonstra como a busca bem-sucedida de uma essência da Amazônia implica a conclusão de que ela não tem essência alguma, pois é lugar historicamente produzido em intricadas relações sociais de escalas locais, regionais, nacionais e globais. Com guia tão perspicaz, torna-se uma aventura intelectual estimulante adentrar a floresta. Garfield integra a melhor estirpe de historiadores, pois, como disse Marc Bloch (s.d., p.28), “onde fareja a carne humana, sabe que ali está sua caça”.

O tema da exploração da borracha na Amazônia brasileira no período do Estado Novo conduz o livro. A despeito de referenciar continuamente os tempos áureos dessa commodity no Brasil entre 1870 e 1910, e dedicar o epílogo às representações e práticas que delineiam a Amazônia desde os anos 1970 até os dias de hoje, o foco principal concentra-se nos anos da Segunda Guerra Mundial. O contrabando de sementes da Hevea brasiliensis, a seringueira, para o sudeste da Ásia, em 1876, e o sucesso das novas plantações nas primeiras décadas do século XX estabeleceram uma competição internacional na qual o Brasil saiu derrotado: no início dos anos 1930, a Amazônia produzia menos de 1% da borracha consumida no mundo.

Entretanto, com o lançamento da Marcha para o Oeste como projeto de integração nacional por Vargas e o avanço da conquista japonesa sobre o sudeste asiático em 1941, a Amazônia emergiu como local estratégico para o fornecimento dessa matéria-prima. In Search of the Amazon concentra-se na análise política, cultural e ambiental da região, acompanhando a produção de múltiplos sentidos para a Amazônia, no entrecruzamento de práticas sociais e disputas de poder.

A Amazônia é analisada como lugar instituído na temporalidade histórica por uma miríade de sujeitos que, por sua vez, enfrentam as condições do meio físico. Para tanto, Garfield dialoga com o geógrafo David Harvey, para quem os lugares são artefatos materiais e ecológicos construídos e experimentados no seio de intricadas redes de relações sociais, repletos de significados simbólicos e representações, produtos sociais de poderes políticos e econômicos. Com Bruno Latour, o autor argumenta que a “natureza” é inseparável das representações sociais, e que a sociedade resulta também de elementos não humanos. Com Roger Chartier, considera os conflitos sociais à luz das tensões entre a inventividade de indivíduos e as condições delineadas pelas normas e convenções de seu próprio tempo. Esses horizontes precisam ser avaliados na investigação do que homens e mulheres pensaram, fizeram e expressaram.

Garfield escarafunchou arquivos em Belém, Fortaleza, Manaus, Porto Velho, Rio Branco e Rio de Janeiro, como também nos Estados Unidos. Enfrentou condições diversas de conservação, organização e acesso aos acervos, nos quais encontrou jornais da época publicados em várias cidades, boletins e revistas de serviços ligados à borracha, programas de rádio, cinejornais, trabalhos científicos de diversas áreas do conhecimento, entrevistas com migrantes nordestinos, processos criminais e civis, relatórios diversos, correspondências pessoais de homens e mulheres envolvidos na saga dos “soldados da borracha” nos anos 1940, romances sobre a Amazônia, literatura de cordel e fotografias. As imagens são pedra de toque na caprichosa edição do livro. Vinte e oito fotografias – além de figuras e mapas – privilegiam aspectos urbanos de Ma-naus e Belém, cenas de trabalho e vida cotidiana, poses de autoridades políticas e técnicos, acampamentos de migrantes. O diálogo entre as análises do autor e as imagens é extremamente rico, mesmo que o leitor permaneça curioso sobre as condições de produção de algumas fotografias.

Desde a decadência da borracha em 1910, ruínas invadiram a paisagem amazônica, com cidades fantasmagóricas, retração demográfica e um rastro de miséria e doenças tropicais. Os ideólogos do Estado Novo elegeram a Amazônia como imperativo nacional, investindo-a de muitos significados: interior a ser desenvolvido pelo Estado centralizado, fronteira a ser delimitada e protegida, terra de promissão para os migrantes nordestinos, torrão natal e metonímia da nação. Vargas visitou Manaus em 1940, discursou, lançou financiamentos para migrantes, inaugurou serviços para incrementar o comércio da borracha, o abastecimento, condições sanitárias e transporte. Mas a invenção da Amazônia não seria urdida apenas “de cima”. Contou com outros atores e interesses: elites regionais, militares, médicos e sanitaristas, engenheiros, botânicos, agrônomos, geógrafos, literatos, cordelistas e migrantes.

A despeito do caráter espasmódico das articulações entre a Amazônia e o mercado internacional, a história investigada no livro é sobretudo uma história de conexões globais. As transformações tecnológicas colocavam a borracha – isolante, flexível, resistente e impermeável – entre os materiais mais estratégicos para as nações. Em 1931, Harvey Firestone Jr. gabou-se de como as coisas feitas de borracha se haviam tornado indispensáveis para o ser humano civilizado, desde o primeiro choro do recém-nascido até a lenta marcha para o túmulo. A borracha alimentou a cultura do automóvel na sociedade norte-americana e o crescimento da aviação por todo o mundo. Presente em milhares de produtos (como luvas cirúrgicas, sapatos, preservativos e pneus), a borracha revolucionou o cotidiano dos civis e a fabricação de artefatos militares. Evitando interpretações deterministas, o autor alerta para o fato de que as inovações tecnológicas e aplicações da borracha na indústria eram produtoras e produtos das mudanças políticas, econômicas e culturais resultantes de práticas dos agentes sociais (p.55).

Quando o ataque japonês à Malásia suspendeu o fornecimento de borracha, a atenção norte-americana se voltou para a Amazônia. Delinearam-se profundas divergências entre membros do governo de Franklin D. Roosevelt. Alguns, como o empresário e político Jesse Jones, viam a Amazônia como inferno verde e inelutavelmente bárbaro: uma vez que nenhuma ação poderia transformá-la, tratava-se de explorar a borracha da forma mais prática possível. Outros, como o vice-presidente Henry Wallace, apostaram na Amazônia como terra promissora, pedra fundamental da integração interamericana, defendendo projetos de saúde, melhorias e integração social. Ao delinear a ação norte-americana na Amazônia, o autor argumenta a multiplicidade de intenções e práticas dos Estados Unidos na região – resultantes paradoxais de enfrentamentos na política interna desse país – traçando uma análise complexa e original das relações entre o Brasil e os Estados Unidos naqueles anos.

O diálogo entre os norte-americanos defensores de projetos sociais paralelos à exploração da borracha e as autoridades nacionalistas do governo Vargas foi profícuo e gerou iniciativas conjuntas de formalização do trabalho e estabelecimento de condições mínimas de higiene, saúde e alimentação. Autoridades brasileiras e representantes norte-americanos se esforçaram pela presença efetiva do Estado brasileiro na Amazônia, com ações e estratégias para formação e controle da mão de obra. Todas essas práticas eram informadas por projetos políticos críticos da mera exploração descompromissada e inconsequente, embalados tanto pelos sonhos brasileiros de construção nacional como pelas aspirações dos Estados Unidos no sentido de estabelecer conexões interamericanas sob sua égide.

Os seringueiros, por sua vez, surgem nas páginas do livro como sujeitos sociais ativos. Garfield critica sua representação recorrente como vítimas passivas, fáceis de manipular, meros joguetes de campanhas pela borracha. Relatos orais transmitidos entre gerações acenavam com histórias pessoais de enriquecimento com a borracha. Signos de masculinidade abrilhantavam a aventura de partir para a Amazônia. O caráter sazonal, móvel e independente da atividade atraía muito mais que a perspectiva do trabalho nas fazendas de café do Sudeste. A informalidade e a mobilidade combatidas pelo Estado seduziram homens em busca de trabalho e com ganas de enriquecimento. A decisão de migrar foi fruto da seca e da falta de perspectivas nos locais de origem, mas também se baseou em cálculos informados por relações de parentesco, gênero e valores culturais.

Analisando as relações entre Brasil e Estados Unidos em torno da Amazônia em termos de interesses recíprocos, o autor afasta-se das interpretações do Brasil como país subdesenvolvido e vitimado pelo Tio Sam. Nem por isso desconsidera o legado impactante das políticas norte-americanas de guerra, que acirraram a competição em torno do acesso e uso dos recursos, representações divergentes da natureza e disputas pelo exercício do poder.

In Search of the Amazon encontrou também todos os indícios do sofrimento e miséria dos trabalhadores da borracha, e das tragédias de isolamento e abandono após o final da guerra. Entretanto, mostra como os seringueiros foram capazes de se reinventar nas décadas que se seguiram. Passaram de aventureiros desavisados a populações tradicionais e detentoras de saberes, de “soldados da borracha” a ambientalistas. Obtiveram apoio internacional para suas lutas e interesses na conservação da floresta. Investiram a Amazônia de novas significações e desafios. Explorando conexões regionais, nacionais e globais da saga da borracha no período da Segunda Guerra Mundial, Garfield problematiza a natureza da região, apresenta ao seu leitor um panorama instigante da Amazônia como lugar produzido socialmente, arena contínua de conflitos e lutas no jogo da história contemporânea, cenário de controvérsias garantidas dos tempos que virão.

Referências

BLOCH, Marc. Introdução à História. 4.ed. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.         [ Links ]

DUARTE, Regina Horta.- Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora CNPq. reginahorta duarte@gmail.com.

Acessar publicação original

[IF]

 

Los que ganaron: la vida en los countries y barrios privados / Maristella Svampa

Em 2008, realizei um trajeto de ônibus entre Buenos Aires e La Plata. Pela janela, descortinou-se uma paisagem perturbadora. Nos 57 quilômetros de ocupação humana contínua entre as duas cidades, intercalam-se ajuntamentos de habitações miseráveis, grandes amontoados de lixo a céu aberto, pequenos cursos de água visivelmente degradados e placas de indicações dos acessos a vários condomínios fechados de luxo.

Naquele mesmo ano, publicou-se a segunda edição – revista e aumentada – da obra Los que ganaron, de Maristella Svampa, socióloga argentina, pesquisadora do Centro Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnicas em Buenos Aires (CONICET) e professora da Universidad de La Plata. Em um novo capítulo, incorporado sob a forma de posfácio, a autora considera o aprofundamento das tendências de privatização da sociedade argentina, apontadas na primeira edição de 2001 como a principal chave para a compreensão do fenômeno da expansão estrondosa dos condomínios privados nesse país desde os anos 1990.

Numa sociedade contemporânea crescentemente fragmentada, composta de ilhas que se constituem como universos autocentrados, os condomínios privados apresentam-se como uma metáfora emblemática e poderosa dos modelos neoliberais hegemônicos. A gravidade da crise argentina de 2001-2002, o avanço do neoliberalismo e o retraimento do Estado social, o esvaziamento das práticas de cidadania, o declínio da cidade como local de convivência social e política e o empobrecimento da população justificam, segundo a autora, o aprofundamento da reflexão sobre essas comunidades segregadas. Trata-se de romper com a sua naturalização, mostrar como surgiram a partir de certo momento da história das cidades argentinas e, sobretudo, criticar a forma como reproduzem e aprofundam uma “cartografia dura de nossa sociedade, marcada de maneira iniludível pela cristalização de grandes assimetrias” (p. 291) [1].

Os marcos cronológicos da pesquisa são 1989 e 1999, período da longa presidência de Carlos Menem, que inaugurou políticas de privatização radical dos serviços de utilidade pública e medidas para a livre circulação de capitais financeiros, desfavorecendo os setores produtivos, gerando forte desindustrialização e taxas de desemprego galopantes. Frente à redução dos trabalhadores a condições miseráveis, e ao depauperamento de grandes fatias das classes médias, aprofundaram-se as desigualdades sociais, cresceram a violência e o sentimento de insegurança urbana.

Foi nesse contexto que pequenas parcelas da população argentina – classes médias altas e elites enriquecidas (os „ganhadores‟, em contraposição aos „perdedores‟, ou „losers‟) – passaram a privilegiar amplamente a escolha de habitar em áreas isoladas, protegidas de um „mundo externo‟ caracterizado negativamente pela insegurança, destruição ambiental e heterogeneidade social. O „mundo de dentro‟ dos condomínios passou a ser valorizado como local de refúgio verde, contato com o mundo natural, liberdade para os filhos em ambientes seguros. Essas „ilhas‟ apresentam-se cercadas por altos muros, minuciosamente controladas por portarias monitoradas, tudo garantido pela presença de guardas particulares armados.

As entrevistas foram a principal fonte da autora, que chega a definir os principais tipos de bairros privados, desde aqueles originários dos primeiros „countries‟ dos anos 1930, até os mais recentes e mais luxuosos, com fachadas cinematográficas, frutos de mega-empreendimentos de grandes incorporadoras. Apesar das diferenças do nível econômico de seus moradores, assim como das construções arquitetônicas, é possível delinear uma série de pontos em comum, entre os quais o principal é a espacialização hierárquica das relações sociais. Dentro do condomínio vive-se junto ao seu igual. Esses „ganhadores‟ partilham ideais de prestígio, freqüentam os mesmos lugares (o golfe, a hípica, a quadra de tênis, etc.), enquanto seus filhos estudam nas mesmas escolas. Os „pobres‟ chegam todos os dias para a prestação de serviços, vigiados quase sempre com extrema rigidez nas portarias. Há também os que vivem nos bolsões de miséria entorno dos condomínios e para os quais se olha com terror. Somam-se aqueles para os quais se dirigem ações de caridade organizadas pelas mulheres e escolas dos condomínios. Entre a desconfiança e a beneficência, essas elites reforçam cotidianamente uma identidade do „entre nós‟, em contraposição a um mundo externo ameaçador.

Algumas questões percorrem toda a obra, e trazem um viés político para a análise da autora: qual tipo de sociedade se delineia nessas práticas segregacionistas? Que modelo de cidadania fazem prevalecer? Através da exposição sistemática das dezenas de entrevistas realizadas com moradores de condomínios privados na Argentina, Svampa argumenta o declínio dos espaços públicos. O sucesso dos condomínios favoreceu a formação de „microcidades‟ privadas com regras próprias e o delineamento de uma „cidadania patrimonialista‟ onde as pessoas são sócias e não cidadãos comprometidos com um pacto político. O „detalhe‟ de que os condomínios são acessíveis apenas para quem pode pagar algumas vezes gera culpa (aliviada na beneficência) ou simplesmente satisfaz a sede de prestígio e status. O que se encontra em jogo é o modelo de „cidade aberta‟ e dos encontros nela possíveis. A vida entre muros, a „cidade fechada‟ evidencia um processo de estreitamento das possibilidades de ação política.

A cidade passa a ser reconhecida apenas por suas funções econômicas ou turísticas. Seu papel político é obscurecido, pois os condomínios cada vez mais se regem por regras próprias, desconhecem a municipalidade e se tornam autosuficientes em serviços básicos. A cidade como centro cultural e social também se esvai, pois deixa gradativamente de ser opção de local de encontro entre diferentes. Antes, desenvolve-se uma vasta rede delivery dos mais diversos serviços, desde a entrega de alimentos e pratos prontos até livros e filmes. A história dos centros urbanos é também oculta à medida que esses novos espaços são naturalizados como destino inexorável para a qualidade de vida num mundo globalizado e ambientalmente deteriorado.

Para os leitores brasileiros, Svampa oferece estudo pioneiro sobre um fenômeno que se espalha por inúmeros países da América Latina, incluindo o Brasil.[2] Os condomínios „verdes‟ invadem o entorno de nossas cidades. Ao longo de nosso litoral, inúmeras praias são controladas por resorts internacionais e acessíveis apenas aos seus refinados hóspedes. As portarias de condomínios passaram a integrar nossas paisagens e se transformaram no grande ícone dos folhetos de propaganda imobiliária.

Para o grupo específico dos historiadores, Los que ganaron, apesar de sua abordagem marcadamente sociológica, instiga principalmente a reflexão sobre a história das cidades latino-americanas, as práticas políticas que nelas se desenvolveram ao longo do século XX e a relação entre as novas configurações espaciais e os desafios políticos contemporâneos. Se a história da América Latina não pode ser estudada sem que se investigue a história de suas cidades, a ruptura nas formas de vida urbana ocorrida nas últimas décadas é expressiva das escolhas que vêm prevalecendo nessas sociedades, e nas quais se delineia seu futuro.

Notas

1. Todos os trechos citados foram traduzidos pela autora desta resenha.

2. Outro estudo importantíssimo é o de Caldeira, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/EDUSP, 2000.

Regina Horta Duarte – Professora Associada do Departamento de História – UFMG. Doutora em História – Unicamp.


SVAMPA, Maristella. Los que ganaron: la vida en los countries y barrios privados. 2ed. Buenos Aires: Biblos, 2008, 301 p. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Revista Porto. Natal, v.1, n.1, p.127-130, 2011. Acessar publicação original [IF].

BH: horizontes históricos – DUTRA (VH)

DUTRA, Eliana Regina de Freitas (Org). BH: horizontes históricos. Belo Horizonte: C/ Arte, 1996. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 507-508, nov., 1997.

De que é feita uma cidade? A resposta a tal indagação pode ter um número vasto de abordagens, como nos mostra a obra B.H — horizontes históricos. Na verdade, qualquer um teria dificuldades de pensa-la ou defini-la sem realizar associações imediatas como todas as sensações e impressões mescladas as imagens de cidades em que viveu, conheceu de passagem ou através de fotos, textos literários, poesias ou imagens cinematográficas.

Mas é justamente a dificuldade de precisar a cidade o segredo para pensá-la. Pois uma cidade e feita de vida e experiencias, inscritas em suas pedras, ruas, nas luzes que brilham a noite, nos rostos das pessoas que passam, nos locais onde se encontram ou se resguardam. Ela não é uma totalidade fechada a ser desvendada nem um espaço de relações passive! de ser aprisionado em um sistema organizado. Esta e sua beleza, este é seu fascínio.

A perspectiva da comemoração do centenário de Belo Horizonte tem, certamente, nos estimulado a refletir sobre seus problemas e esperanças. Mas o aniversario traz também a noção de tempo decorrido. Surge, aqui, a questão de se pensar a história desta capital: os sonhos que a mobilizaram, os homens que a ocuparam e nela construíram suas vidas, as múltiplas cidades que a formam. Pois se horizonte é um substantivo no singular, sua unidade e uma mera abstração de nosso olhar sobre o céu. 0 horizonte e de infinitos, formação de incontáveis e indistintos pontos e trajetos. Belo Horizonte: termo que unifica, afetivamente, toda a pulsação e a explosividade de uma série de práticas dos homens que a habitaram em momentos diversos, na mem6ria que imprimiram pelos seus quatro cantos, na presença de seus vivos ou nos sinais que estes tentam deixar aos seus sucessores.

BH — horizontes históricos, organizado pela professora Eliana de Freitas Dutra, do Departamento de Histeria da UFMG e publicado pela Editora C/Arte, apresenta-se como um momento propiciador de indagarmos essa multiplicidade de Belo Horizonte. A cidade vista nas relações de seus homens e mulheres, nos projetos em que foi delineada, nas práticas que a tentaram definir e em que se construíram suas identidades, em suas praças e parques, ruas e bondes, casas e cinemas, cafés e bares, estatuas e placas comemorativas, Igrejas e imagens.

Formado por seis ensaios sobre a cidade — todos eles produzidos ou orientados no Âmbito do Departamento de História da UFMG — a obra possui uma rica diversidade temática, convidando o leitor a viajar por Belo Horizonte por caminhos muitas vezes impensados. A partir de uma alta qualidade acadêmica, os autores obtiveram o resultado de uma leitura extremamente agradável, com um tratamento preciso e, simultaneamente, simples das questões envolvidas nas reflexões históricas propostas.

Dirigido a um público amplo, BH — horizontes históricos possibilitara a seus leitores, com alta qualidade e extrema singeleza, a reflexão em torno de fascinantes aspectos da vida de nossa cidade. E, ao ressaltar a complexidade de nossa histeria, acaba por abrir-nos promissoras perspectivas de tudo o que pode ser construído no âmbito ilimitado da capacidade criativa de seus cidadãos.

Regina Horta Duarte – Professora do Departamento de História FAFICH- UFMG.

Acessar publicação original

[DR]

 

Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura – FUNARI (VH)

FUNARI, Pedro Paulo. Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura. São Paulo: Contexto, 1989. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.9, n.12, p. 154-155, dez., 1993.

Os estudiosos da história vêm, há muito tempo, ampliando sensibilidade em relação aos sinais do passado que chegaram até nós, trazendo seu testemunho acerca de outras organizações sociais.

O historiador francês Lucien Febvre alertou, num texto de 1949, para a 1mportancra dessa abertura da noção do documento histórico: os documentos escritos têm grande utilidade na pesquisa. Porém, sua ausência não deve impossibilitar tal trabalho. Também os signos, as palavras, as paisagens e as formas dos campos, ou seja, tudo o que traga inscrita a ação humana serve como documento ao historiador hábil e perspicaz.

É esta criatividade na busca de fontes que faz da obra de Pedro Paulo Funari um texto essencial para os leitores que s interessam pelas várias possibilidades abertas pela construção do passado histórico. No caso, a Antigüidade Clássica é analisada a partir de um aspecto inédito, o que leva o autor a falar em uma outra Antiguidade. A cultura popular, suas manifestações esquecidas e desprezadas durante tantos séculos- quando só uma parte da cultura clássica fascinou e serviu de modelo à cultura ocidental moderna – é o tema de reflexão da obra.

Na ausência de documentos escritos tradicionais, o autor recupera as pichações nos muros e paredes das cidades antigas. A maior parte da documentação foi levantada em Pompéia, cidade onde uma catástrofe vulcânica Preveniu a destruição desses sinais. A forma de lidar com os grafites mostra-se tão original quanto a sua escolha como documentação: Funari não se reduz a desvendar as palavras, frases e poesias inscritas, mas analisa a expressividade iconográfica dos sinais gráficos, mostrando a excelência artística dos autores anônimos e, talvez o mais importante para o olhar do historiador, a forma através da qual esses pichadores relacionavam-se com as palavras.

No seu intento de fugir a uma história parcial, que privilegia apenas uma versão construída pelas elites dominantes da época, o autor utiliza os grafites como monumentos: são sinais de um assado construídos dentro de situações de conflito, ambiguidades, sonhos e esperanças, protestos e indignações. Entretanto, a obra continua apoiando-se num dos pilares da historiografia tradicional: o que move a pesquisa é, segundo as palavras de Funari, reconhecer-se “nos gregos e nos romanos e perceber como eles têm a ver com a gente”. Historiadores dedicados ao período clássico – como Finley, Vidal-Naquet, Vernant, M. Dettienne e Paul Veyne – renovaram a abordagem historiográfica justamente pela vertente oposta. Destacam a diferença de valores, de mentalidade, de organização social. Ressaltam o caráter diverso dessas sociedades, renunciando-se às categorias eternas e continuidades enganadoras. Como afirma o filósofo C. Castoriadis, o que precisamente nos interessa na história é nossa “alteridade autêntica, os outros possíveis do homem em sua singularidade absoluta”.

Outro aspecto passível de discussão pode ser apontado na visão dicotômica transmitida na separação cultura popular/cultura erudita. A cultura erudita é classificada como “continuadora imóvel da tradição reprodutora de um passado clássico”; a minoria erudita é inativa; a pintura apreciada pela elite caracteriza-se, para o autor, pela ”continuidade na ausência de rupturas, na sensação de imutabilidade”. Funari apresenta o leitor uma cultura clássica erudita completamente estática e desprezível. Por outro lado, a cultura popular é dinâmica, criativa, revestida de caráter multifacetado e contestatório.

Entretanto, não é tão fácil dividir, cultura erudita e popular, já que há um movimento constante de recriações e apropriações, onde pólos aparentemente opostos se interpenetram. Além disso, é inútil negar a riqueza da cultura clássica que o autor classifica como erudita. Como desprezar (só para citar alguns exemplos) Ésquilo, Sófoles, Hesíodo, Heródoto, Virgílio e tantos outros? A nova história precisa exorcisar o perigo da adesão às novidades simplificadoras, como a de que tudo o que foi criado pelos “vencidos” seja “bom”, sob pena d cair no moralismo românico.

Paralelamente à necessidade de debater tais posições contidas no livro, afirma-se o valor de sua leitura. Dedicado a um público Jovem, estimulará, sem margem de dúvida, o fascínio pelo estudo da história. Acreditamos que seu uso, em turmas de jovens estudantes, poderá contribuir imensamente para levar, ao ensino de segundo grau, uma história renovada, simples sem ser simplista, interessante e, finalmente, instigante.

Regina Horta Duarte – Professora do Departamento de História FAFICH·UFMG.

Acessar publicação original

[DR]

 

Musa Libertaria – arte, literatura y vida cultural del anarquismo español (1880-1913) – LITVAK (VH)

LITVAK, Lily. Musa Libertaria – arte, literatura y vida cultural del anarquismo español (1880-1913). Barcelona, Antoni Bosch Editor, 1981. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.5, n.9, p. 185-187, jun., 1989.

“No se presenta un plan prefabricado, sino ideas

audaces y heterodoxas, porque exigían que cada

hombre fuese único e uno dentre muchos” (p. 402)

Musa Libertaria cumpre, segundo a concepção benjaminiana, a função da obra do historiador, despertando no passado as “centelhas da esperança”. A autora reflete sobre o papal da arte como forma de luta. Alguns artistas consagraram-se e imortalizaram-se como Tolstoi, Picasso, Pissaro. Muitos, entretanto, permaneceram na obscuridade.

Lily Litvak dedica seu livro ao estudo desses artistas ocultos, destacando os anarquistas espanh6is. Chamando a atenção para a escassez de obras sobre a vida cultural e literária dos anarquistas, afirma que estes valorizavam a obra de arte como parte inseparável da propaganda, atribuindo-lhe um papel revolucionário. As criações artísticas de tendência libertaria se inspiravam nas vozes silenciadas e nas vidas dos despossuídos.

0 anonimato em que permaneceram tais obras e a derrota sofrida pelos anarquistas espanhóis não justificariam que o tema permanecesse esquecido. Como afirma a pr6pria autora, existem “tristes êxitos e her6icas derrotas”. Quanto a questão da eficácia ou não da atuação anarquista como arma contra a dominação, sempre se costuma lembrar seus fracassos. Porém, sua efetividade encontrava-se em sua própria existência, “enquanto testemunho da rebeldia humana contra a opressão e a injustiça” (p. 399).

Nota-se a forte influência de W, Benjamin sobre o propósito da obra em questionar o domínio dos vitoriosos e estabelecer uma relação de empatia com os que foram vencidos e derrotados.

0 estudo das manifestações artísticas libertarias não se faz de maneira simplesmente descritiva, mas esquadrinhando-se, com perspicácia, inúmeros pontos básicos e problemas fundamentais presentes no ideário anarquista.

0 levantamento dos temas a serem abordados no decorrer da obra é feito a partir da análise das imagens ficcionais construídas na literatura, nas gravuras, desenhos e pinturas de inspiração libertária. Assim, é através de poemas, romances e canções que se reconstrói, por exemplo, a concepção de natureza comum entre os libertários: a natureza harmoniosa, fonte de exemplos para a regeneração da sociedade humana, equilíbrio ao qual retornaria o homem na sociedade anárquica. São reproduzidas gravuras de jornais anarquistas, dentre alas uma que exemplifica a vida anarquista através da imagem de uma família trabalhando no campo: esta presente a noção de continuidade do labor na vida do homem, da beleza moral do trabalho e da premiação do esforço humano pela natureza, vista como uma mãe serena e fecunda (p. 27 e 28).

As figuras do padre, do capitalista, do miserável, do revolucionário, etc., eram apresentadas pelos anarquistas de forma estereotipada, tornando fácil a identificação. A autora destaca o expressionismo presente nestas caricaturas e a forma como as mensagens são’ comunicadas intensa e vibrantemente. 0 inimigo é simbolizado através de objetos (crucifixos, espadas, coroas, etc.), como animais ferozes (cobras, serpentes, monstros) ou através da ênfase a aspectos burlescos (burgueses gordos, avaros amarelados com um riso falso nos lábios, etc.). Os miseráveis são representados como possuidores de grande beleza moral e dignidade. A imagem do operário militante revela coragem, luta, rosto nobre, fronte larga. Na linguagem, como na construção das personagens, nada é sutil, tudo é manifesto, claro e simples. A emotividade transparece no use frequente de expressões extravagantes, de palavras de sonoridade significativa, repetições, exclamações e interrogações.

Este excessivo maniqueísmo levava a uma estética dominada por contrastes absolutos. 0 realismo anarquista era exagerado e desmedido, buscando demonstrar a todo o custo uma verdade inquestionável, cujo conhecimento levaria ao caminho da anarquia.

Analisando a linguagem e a construção de imagens ficcionais pelo realismo anarquista, Lily Litvak faz uma instigante reflexão sobre temas importantes do ideário anarquista e a extensão do conhecimento científico; o pacifismo; a valorização do potencial revolucionário dos miseráveis, criminosos, mulheres e camponeses; a preocupação com a criação de uma estética revolucionaria; a representação do caráter digno do trabalho (desvirtuado pela sociedade capitalista); o fervor religioso presente na crença no caráter regenerador da doutrina anarquista; visões da utopia, dentre outros.

Além da literatura e da pintura, a autora também examina outras atividades culturais. A imprensa é uma delas. 0 papel alternativo da imprensa anarquista era valorizado pois divulgava idéias, fatos e eventos silenciados pela imprensa burguesa. Os libertários buscavam organizar um sistema eficiente de distribuição. Os jornais lidavam com dois tipos de mensagens, as escritas e as tipográficas. As disposições tipográficas, na busca de impacto, traziam cores agressivas e simbólicas. Gravuras complementavam o texto, buscando despertar emoções. A imprensa libertaria intencionava ser um canal de comunicação alternativo que criticasse, desmascarasse e negasse a linguagem e os canais institucionalizados pela burguesia, contribuindo para a pratica de uma cultura revolucionaria.

0 teatro libertário é analisado em seu caráter popular (à medida em que era facilmente compreensível pela massa, por retratar com simplicidade seu pr6prio cotidiano) e realista medida em que procurava mostrar verdades absolutas que transcendiam a própria realidade “palpável”). A educação e a cultura também eram muito estimuladas. Várias revistas foram criadas, procurava-se facilitar o acesso a livros, jornais, etc.

A partir da avaliação de todas estas atividades, conclui-se que existia uma verdadeira pratica cultural levada a frente pelos anarquistas. Estes, opondo-se cultura burguesa, pretendiam forjar outros códigos linguísticos e novos veículos de comunicação (p. 283).

A concepção corrente entre os anarquistas espanhóis sobre a arte também objeto de reflexão da autora: a arte como forma de luta, como meio de despertar as consciências e o espírito de rebeldia. Relacionado a vida cotidiana, o ato criador era mais valorizado que o produto final, pois as obras artísticas eram vistas como uma forma de ação direta. Desmitificava-se as obras artísticas consagradas, assim como os museus, exposic6es, etc.

Lily Litvak realiza um estudo esclarecedor do anarquismo espanhol, utilizando livros, poemas, canções e gravuras. Investigando as especificidades desse movimento, consegue trazer ao leitor uma maior compreensão das ideias, esperanças e desejos libertários.

Regina Horta Duarte

Acessar publicação original

[DR]