O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna | Jacques Rancière

No início dos anos 1970, Hayden White causara grande agitação entre os historiadores ao demonstrar o recurso destes aos procedimentos e elementos poéticos na construção da narrativa e da interpretação histórica (WHITE, 1992). Trinta anos depois, François Hartog evidenciava, a partir de seus regimes de historicidade, não somente outra faceta da historiografia oitocentista, como também, de modo mais geral, da relação da sociedade ocidental com o tempo histórico. De acordo com Hartog (2013), o regime historicista moderno, marcado por uma concepção de tempo futurista, não se limitava às narrativas historiográficas – ia além, perpassando diversas formas de relação social com a temporalidade, inclusive a literatura.

Contemporâneo de White e Hartog, Jacques Rancière, filósofo francês, foi gradativamente afastando-se do marxismo althusseriano [2] – que marcou o início de seu trabalho – até se aproximar, sobretudo nos anos 1990, das discussões em torno da relação entre estética e política, e mesmo entre a ficção e a historiografia. No âmago dessas reflexões, Rancière (2005) identificou a existência, no Ocidente, de três regimes na produção das artes: um regime ético, cuja base é a filosofia platônica; um regime representativo, orientado pela poética aristotélica; e, finalmente, um terceiro regime, o estético, que é propriamente moderno, e cuja origem encontra-se no questionamento e na subversão da poética representativa. Esses regimes implicam não somente concepções e relações poéticas, mas igualmente políticas, uma vez que o filósofo identifica certa indissociabilidade entre essas esferas. Desse modo, esses regimes são fundamentais na compreensão, tanto da composição poética quanto dos seus desdobramentos críticos em sua recepção. As implicações de sua reflexão, no entanto, não se limitam à ficção e à política, permitindo recolocar em questão a relação entre estas e a história, compreendendo sua articulação, especialmente, no momento da constituição da disciplina ou ciência histórica no século XIX.

Em O fio perdido, um conjunto de ensaios sobre a ficção moderna, Rancière percorre, ao longo de três capítulos, diversos nomes consagrados do romance, da poesia e do drama com o intuito de identificar mecanismos e indícios específicos que demarcam em cada obra e em cada segmento a decadência do regime representativo, centrado no modelo orgânico e na lógica da ação, e a emergência do regime estético que caracteriza propriamente essas ficções como modernas.

O primeiro capítulo da obra, O fio perdido do romance, é aberto por um texto sobre Gustave Flaubert, O barômetro da Sra. Aubain. Nele, Rancière tenta dar conta da novidade contida na obra flaubertiana, identificando-a, primeiramente, a partir das críticas tecidas ao romancista. Logo no início do prólogo do livro, o filósofo recorre à sentença de Barbey d’Aurevilly sobre a Educação sentimental: “não há livro ali dentro; não há essa coisa, essa criação, essa obra de arte de um livro, organizado e desenvolvido, que vai em direção a um desfecho” (1869 apud RANCIÈRE, 2017, p.7). A crítica é sintomática, ela evidencia a cisão que o filósofo identifica na obra do romancista. Conforme afirmava Michel de Certeau (1998, p.91-106; p. 266-268), a crítica pertence ao terreno das táticas, consiste em um instrumento de controle, no caso, não somente das leituras, mas também das práticas de escrita literária. Ela demarca, segundo a própria reflexão rancieriana, uma concepção de ficção literária vigente. Nesse caso, trata-se do regime representativo, presente na poética aristotélica, que define a ficção, positivamente, como uma “intriga de saber” que implica na construção poética o estabelecimento de uma ordem temporal (começo, meio e fim), de uma ordem causal regida pela verossimilhança, pela necessidade, pela subordinação dos detalhes e das partes ao conjunto da obra e também por certa proporcionalidade e correspondência entre a descrição, o pensamento e a ação.

Desse modo, para o crítico de Flaubert, sua obra transgredia esses princípios, logo ela era carente de elementos necessários para qualificá-la enquanto ficção. No entanto, para Rancière, não se trata de uma carência, mas sim do efeito da emergência de um novo “paradigma estético”, que não deixa de ser um “novo paradigma da vida”. Nesse sentido, o excesso descritivo presente no romancista – encarnado na presença do barômetro da sra. Aubain, em Um coração simples –, demarcaria não a deficiência de um elemento destoante e desnecessário, muito menos um efeito de real pelo qual Roland Barthes e a crítica estruturalista estipulavam o lugar da descrição inútil e demarcavam a tentativa burguesa de petrificação e naturalização da ordem social, mas um aspecto próprio ao regime estético.

Essa descrição inútil é, para Rancière, primeiramente a recusa à progressão do relato, e consequentemente uma recusa à ação, à submissão das partes – inclusive do detalhe – ao todo, ou seja, ao desfecho, que marca a poética representativa e seu modelo orgânico. A multiplicidade desses detalhes que antecedem ao ato, à ação, também são sintomas da ampliação e da complexificação das relações causais.

No entanto, segundo o autor, a poética aristotélica não é somente uma estrutura de racionalidade, mas “uma categoria organizadora de uma divisão hierárquica do sensível” (RANCIÈRE, 2017, p.21). Em outras palavras, a ordem representativa, na qual a ficção constrói-se como um corpo no qual os membros se submetem a um centro e as ações se ordenam pela necessidade ou pela verossimilhança, é também a metáfora de uma concepção do ordenamento social, segundo a qual os homens dividem-se hierarquicamente entre ativos e passivos. Nessa ordem, os aristocratas são ativos, pois podem conceber grandes fins ou outros fins e buscar sua realização, enquanto os demais – a grande maioria, o povo – são considerados passivos, não por sua inação, mas porque sua ação não pode conceber outro fim senão a mera reprodução da vida cotidiana (RANCIÈRE, 2017. p. 21). Essa distinção limitava, portanto, o acesso dos passivos à ficção, da qual não eram dignos devido às suas supostas capacidades sensíveis inferiores. É como contraponto a essa “política representativa” que o filósofo propõe sua leitura da obra flaubertiana. Desse modo, não somente o barômetro da sra. Aubain, mas principalmente Emma Bovary, são anunciadores de uma democracia ficcional própria ao regime estético. A presença do barômetro produz um “efeito de igualdade” entre os elementos da ficção, ele não está a serviço do real, nem da ação e muito menos do todo, enquanto Emma marca a igualdade sensível de todos: “a descoberta de uma capacidade inédita dos homens e das mulheres do povo de obter formas de experiência que lhes eram, até então, recusadas” (RANCIÈRE, 2017, p.19). Essa afirmação da capacidade sensível dos anônimos proporciona, de acordo com Rancière, um poder de desidentificação em relação à velha ordem representativa que articulava posições sociais, identidades e capacidades sensíveis. No entanto, esse poder dos anônimos é deles afastado para forjar o “poder impessoal da escrita” (RANCIÈRE, 2017, p.33). Dessa forma, segundo o autor, Flaubert incorpora em sua escrita o poder da “igualdade sensível dos anônimos” e dos “estados sensíveis coexistentes”, mas acaba por submetê-los à “velha lógica da ação” (RANCIÈRE, 2017, p.37).

No texto seguinte, A mentira de Marlow, dedicado à obra de Joseph Conrad, Rancière observa a radicalização desse novo regime da ficção. Se a obra flaubertiana evidenciava a debilidade dos encadeamentos causais orientados pelo necessário e pelo verossímil, próprios a uma concepção orgânica de totalidade (ta katholou), mas também subordinava a ordem das sucessões (kath’hekaston) e das coexistências ao curso de uma intriga ainda causal, os romances de Conrad recusam totalmente qualquer controle que tente se impor à verdade da ficção – que é também a verdade da vida –, ou seja, à ausência de qualquer ordem ou qualquer sentido.

Consequentemente, na obra de Conrad, a ordem que orienta a composição das ficções advém do kath’hekaston, não tomado como mera sucessão de fatos da vida cotidiana, mas como uma ordem das coexistências que não pode ser reduzida a qualquer ordenamento. Uma temporalidade das coexistências substitui, portanto, os encadeamentos possíveis. Mas não somente isso, para Rancière, o ceticismo do romancista inglês conduz a uma indistinção entre a ficção e o real, de modo que este real passa a englobar tudo, inclusive a ficção e o sonho. Dessa concepção ampliada do real decorre a destruição da verossimilhança, e toda a lógica da ação tradicional torna-se o indício de uma mentira. Mentira não somente sobre a ficção, mas principalmente sobre a própria vida.

Por conseguinte, de acordo com o filósofo francês, a narrativa de Conrad compõe-se, contrariamente à escrita de Flaubert, de modo a ampliar os círculos das coexistências, revelando-as e evidenciando a tirania mentirosa das intrigas bem construídas. Portanto, a ficção não deve mostrar a progressão rumo a um desfecho, mas tão somente esse “meio sensível” que é a própria vida, cuja única temporalidade é o presente, um presente que engloba tanto resquícios do passado quanto antecipações do futuro. Ela torna-se, desse modo, palco “de um encontro aleatório e inevitável entre um ser de desejo e de quimera, e uma realidade cuja síntese escapa a qualquer cálculo das causas e dos efeitos” (RANCIÈRE, 2017, p.54).

Contudo, Rancière indica que essa temporalidade das coexistências que recusa qualquer sentido, controle ou finalidade encontra certos limites impostos pela ficção. Um deles é o “fim”. Desse modo, se a mentira dos inícios é contornada por Conrad ao iniciar suas ficções com algum equívoco ou acaso desdobrando-o, a necessidade do ponto final, sempre mentiroso, não faz o romancista recuar em sua convicção. Pelo contrário, para o filósofo, os fins das ficções do capitão Conrad sempre reafirmam sua concepção mesmo quando mentirosos. Esses artifícios para encerrar o livro são basicamente dois: o recurso a um deus ex machina ou à mentira necessária (como no caso de O coração das trevas) que deixam transparecer, no entanto, a verdade da ficção.

O último texto do primeiro capítulo do livro aqui resenhado, A morte de Prue Ramsay, analisa a obra de Virginia Woolf. A romancista partiria, segundo a leitura rancieriana, dos mesmos pressupostos de Conrad. Dessa forma, a imagem que lhe traduz a verdade da vida e, conseguintemente da própria ficção, é a da “chuva sempre cambiante de acontecimentos sensíveis” e impessoais (RANCIÈRE, 2017, p.39). A verossimilhança e a necessidade não podem, portanto, regular a ficção, pois tanto a vida quanto a ficção pertencem à ordem do kath’hekaston (entendido como coexistência). Consequentemente, a intriga torna-se, para Woolf, uma tirania, que pode ser: paterna, em sua forma clássica; ou materna, em sua forma contemporânea, aquela que “ordena a grande rede das coexistências” e reduz a “chuva anárquica dos átomos às pequenas coisas e aos pequenos milagres da vida cotidiana” (RANCIÈRE, 2017, p.60).

Entretanto, o autor observa que a forma desta “chuva anárquica de átomos” é incompatível com a forma narrativa da ficção que precisa de uma mínima organização de ações. Nesse caso, a saída encontrada nos romances de Woolf consiste na prática de instaurar no próprio romance a “tensão entre várias maneiras de inscrever a chuva de átomos” (RANCIÈRE, 2017, p.64). Nessa prática, o filósofo distingue dois procedimentos complementares: por um lado, a multiplicação, pela qual se ampliam as redes das coexistências que conservam sua autonomia escapando a tirania de uma intriga que busca apropriar-se dessa multiplicidade; por outro lado, opera-se uma divisão, pela qual se separa a multiplicidade que evidencia o amor e a vida universais dos “prazeres conhecidos e das virtudes familiares” (RANCIÈRE, 2017, p.69) que compõem a tirania materna da intriga, mas também do equívoco dos que confundem toda multiplicidade da vida impessoal com mensagem individual, apropriando-se dela e submetendo-a a qualquer pessoalidade. Septimus Warren Smith, personagem de Mrs. Dalloway, vítima dessa segunda indistinção que se torna loucura, é também, aos olhos do filósofo, uma figura essencial da nova ficção, pois seu sacrifício resolve a “relação entre a verdade da chuva de átomos e a lógica mentirosa das intrigas” (RANCIÈRE, 2017, p.72), e impede igualmente que “o halo luminoso da vida universal” seja confundido com as “aspirações pessoais dos filhos do povo semieducados” (RANCIÈRE, 2017, p.74).

O segundo capítulo do livro, A República dos poetas, é composto por dois textos. O primeiro deles, O trabalho da aranha, é dedicado à obra de John Keats. Keats encarna, aos olhos de Rancière, uma das novidades do regime estético, pois ele é antes de tudo, como Emma e Septimus, um “filho do povo” que, no entanto, recusa a posição e a identidade que, de acordo com a ordem clássica, o nascimento lhe impunha. Contudo, a política de sua poesia, conforme assinala o filósofo, não se encontra na articulação do poema com as agitações sociais, os posicionamentos políticos, ou em seu sentido, mas em uma “identidade dos contrários” (RANCIÈRE, 2017, p.81).

Essa identidade dos contrários não os relaciona como “antípodas”, mas como “equivalentes”. Ela subverte a lógica da ação tradicional ao equiparar a atividade com a passividade, mais precisamente, ao fazer perceber na ação o seu contrário, a passividade, e nesta última um caráter ativo, liberto, no entanto, da necessidade dos fins ou da função utilitária que caracteriza a ação na ordem clássica. Essa subversão é observada por Rancière na “negative capability” forjada por Keats, a qual consiste em uma “‘capacidade de não’: não buscar uma razão […], não concluir, não decidir, não impor” (RANCIÈRE, 2017, p.85). Tal recusa à determinação é uma marca da própria estética e sua disponibilidade a todos destrói a “diferença sensível entre duas humanidades”, aquelas que orientavam o regime representativo e a “distribuição dos corpos em comunidade” (RANCIÈRE, 2017, p.86).

Na leitura rancieriana, essa identidade é produzida pelo estabelecimento de três formas de comunidade: a primeira é aquela estabelecida “entre os elementos tecidos pelos poemas: as palavras e a presenças que elas suscitam”; a segunda comunidade se constitui “entre os poemas e outros poemas: os que o poeta escreve e os que ele não escreveu”; a terceira forma de comunidade é “aquela que o modo de comunicação sensível próprio do poema projeta como possível comunicação entre os humanos”. A política do poema consiste, portanto, na “configuração de um sensorium específico que mantém juntas essas três comunidades” (RANCIÈRE, 2017, p.81-82).

Desse modo, a imagem que define, em grande medida, a interpretação que Rancière faz de Keats é da teia de aranha, pois ela pressupõe uma igualdade horizontal, a qual desconhecia qualquer superioridade, e que se opunha, a seu tempo, à igualdade vertical ou cristã, proclamada por Willian Wordsworth, que a reconhecia como concessão ou presença divina comum, o que evidenciaria, segundo Rancière, uma superioridade do poeta que a proclama. A igualdade da teia liberta, dessa forma, as sensações de qualquer identificação pessoal e faz da obra poética uma disponibilidade acessível a cada um, pela igualdade sensível, para integrar suas teias.

O outro texto desse segundo capítulo, O gosto infinito pela República, é dedicado a Baudelaire. A expressão que dá título ao ensaio, tomada do próprio poeta que a utiliza para caracterizar a obra de Pierre Dupont, serve igualmente a Rancière para caracterizar uma categoria estética ou uma política estética presente na obra baudelairiana, que marca a participação de todos na Vida Universal, esta compreendida como um poder que perpassa e iguala a todos.

Entretanto, para compreender esse “republicanismo estético” é preciso, afirma o filósofo, distanciar-se da “interpretação benjaminiana”, demasiadamente centrada no “dado antropológico constitutivo da modernidade: o da perda da experiência, produzida pela reificação mercantil e pelo encontro da cidade grande e da multidão” (RANCIÈRE, 2017, p.103). Desse modo, essa interpretação que percebia nos escritos do poeta a substituição do modelo orgânico por um modelo inorgânico é incapaz de perceber a novidade contida em sua obra ou, mais precisamente, o “tecido estético” dentro do qual esse republicanismo ganha sentido.

Para apresentar esse “paradigma poético” da época, Rancière analisa os temas do heroísmo e da beleza modernos. O que ambos evidenciam e que permeia toda a época romântica é a falência da ação, da ação como modo de pensamento e racionalidade que normatiza os “comportamentos sociais legítimos” e a “composição das ficções” (RANCIÈRE, 2017, p.108). Essa falência é, para o filósofo, fruto do excesso, da ampliação e complexificação do mundo e do conhecimento, pois a ação demandaria “um mundo finito”, “um saber circunscrito”, “causalidades calculáveis” e “atores selecionados” (RANCIÈRE, 2017, p.108). A leitura rancieriana de Baudelaire é, consequentemente, tributária de Balzac, pois seria dele que o poeta teria tomado não somente a característica da beleza moderna, ou seja, o “flutuante”, a fugacidade, mas, sobretudo, a percepção do divórcio entre o saber e a ação. Em outras palavras, desde Balzac o mundo social perdera-se gradativamente em “infinitas ramificações”, e o tema perdera-se, igualmente, em uma “rede infinita de sensações” (RANCIÈRE, 2017, p.111-112), tornando o tecido sensível incompatível com a ação clássica. Essa ampliação também produziria um efeito de desidentificação, positivado pelo filósofo. A multidão, portanto, não igualaria a todos, mas, pelo contrário, o olhar sobre ela abrir-se-ia para a sua multiplicidade.

No último capítulo de O fio perdido, O teatro dos pensamentos, Rancière analisa a relação entre “o pensamento, a palavra e a ação no teatro moderno” (RANCIÈRE, 2017, p.123) ou, mais precisamente, no chamado teatro popular. Sua análise parte do diagnóstico, dado por Barthes, de “aburguesamento” do Théâtre National Populaire (TNP), de Jean Villar, sobretudo pela atuação de Gérard Philippe, seu maior astro nos anos 1950, para retomar a longa história do teatro moderno.

O primeiro protótipo do teatro popular é encontrado por Rancière no princípio do “palco aberto”, formulado por Victor Hugo. Este consistiria não somente na destruição das convenções ligadas aos gêneros, mas na “mistura de tudo” como na vida, “um igualitarismo radical” (RANCIÈRE, 2017, p.126). Esse palco aberto ao povo celebrava, no entanto, algo maior que ele. Celebrava, segundo tal leitura, a vida universal que ultrapassa todas as individualidades, constituindo uma dramaturgia da coexistência.

Porém, a reflexão de Hugo detém-se aí. O teatro representa, contudo, não apenas uma metáfora do ordenamento social, mas é também uma metáfora do pensamento, afirma o filósofo. Nesse sentido, duas imagens governaram historicamente a relação entre pensamento e teatro: uma negativa ou platônica opõe um ao outro, fazendo do teatro o reino da imagem, da mentira do poeta e do ator, da ilusão e da passividade, do excesso e da paixão, o contrário do pensamento; e há uma imagem positiva, a aristotélica, que faz do teatro uma “intriga de saber”, um “modelo de racionalidade”, ou do “pensamento em ato”, no qual “o espaço visível da representação é dado como o lugar de efetuação de um esquema” e a palavra adere e expressa o pensamento, controlado por uma vontade, anunciando o ato (RANCIÈRE, 2017, p.128-29). A subversão da segunda imagem dessa relação é encontrada por Rancière nos trabalhos de George Büchner. Em sua obra o modelo orgânico é substituído por um modelo vivo, resultado de uma nova concepção do meio da ficção, não mais entendido como intervalo entre um início e um fim, mas como uma rede infinita que ultrapassa qualquer forma de unidade, seja a do organismo seja a da ação.

O pensamento torna-se desse modo, sinônimo do excesso, afirma o filósofo. Suas operações infinitas excedem o corpo, a palavra, o gesto e o ato, e a sua origem e fim imprecisos impedem que qualquer vontade possa controlá-lo. Isso não significa que ele não age, mas que o modelo de sua ação verdadeira, aquele que desconhece suas origens e fins, opõe-se à forma da ação racional controlada do modelo aristotélico, e a sua nova forma será, pelo contrário, a do sonho ou do sonambulismo. Essa nova imagem do pensamento faz da imagem aristotélica do teatro como “intriga de saber” uma mentira, um equívoco sobre a natureza, a forma e a origem do pensamento, bem como sobre o modo como ele ganha corpo e age.

Como consequência dessa nova concepção do pensamento no palco, Rancière observa o surgimento de uma “arte da direção” que compreende duas modalidades: a primeira, presente nas reflexões de Maurice Maeterlinck, faz da direção a “arte da disposição das palavras no espaço” (RANCIÈRE, 2017, p.142), atribuindo à palavra não uma função de anunciar o pensamento ou o ato, mas de evidenciar o meio sensível, o “fora-do-espaço”, que é o lugar desse pensamento tomado como excesso. Ela demarca, dessa forma, a distância entre o verdadeiro pensamento e as pretensões da intriga clássica. Asegunda modalidade é proveniente, entre outros trabalhos, das atuações de Jean-Gaspard Deburau no Théâtre dês Funambules, e “consiste em bordar na trama ficcional das causas e efeitos um cenário de pura atuação”, uma atuação que consiste não na representação, mas na pura ação dos corpos (RANCIÈRE, 2017, p.144-45).

O teatro moderno que culmina no TNP é, portanto, marcado por essa disjunção entre o pensamento, caracterizado pelo excesso, a palavra, cuja função é evidenciar a distância que marca o meio seio sensível do palco, e o ato, tomado como pura atuação dos corpos. Para Rancière, essa longa história é ignorada no juízo de Barthes, que toma por base a oposição brechtiana entre um teatro da identificação e um teatro do distanciamento, pela qual Brecht buscava restabelecer o vínculo entre o prazer estético e o saber necessário para a ação revolucionária. Essa oposição omite essa história, pois, como concepção “revolucionária”, ela busca restabelecer a velha lógica da ação em crise desde o século XVIII. Desse modo, a “questão pela qual a política está ligada ao teatro não é saber como sair do sonho para agir na vida real; é a de decidir o que é o sonho e o que é a vida real” (RANCIÈRE, 2017, p.149).

Embora O fio perdido de Rancière consista em um livro dedicado à ficção, sua leitura inquietante não se limita aos interesses do crítico literário ou do ficcionista, indo além desses limites. Ao reconhecer, como White, que a constituição da História, e mesmo, das Ciências Sociais, enquanto saberes e disciplinas modernas ou ciências é tributária do modelo da poética tradicional, centrado na lógica da ação e da intriga causal, e que a própria poética representativa é igualmente uma concepção de comunidade ou de um ordenamento social, Rancière fornece novos elementos para a compreensão de aspectos que permeiam a constituição do campo de trabalho e das práticas dos historiadores. Desse modo, cabe também questionar, a partir desses indícios da falência da ação e desses deslocamentos nas práticas da escrita ficcional, suas possíveis consequências no campo da historiografia e das ciências da sociedade.

É intrigante, igualmente, refletirmos acerca dos contrastes entre, de um lado, essa emergência de um regime estético na ficção desde o final do século XVIII, identificada nesse conjunto de ensaios de Rancière, cuja marca fundamental consiste em uma crescente abertura, pluralização ou multiplicação heterogênea do social, da noção de acontecimento e de pensamento, e do próprio vínculo entre pensamento, palavra e ação. Por outro lado, no que tange à historiografia, mas também à ampla parcela do pensamento filosófico, sociológico e antropológico, observamos, nesse mesmo período, um crescente processo de unificação, homogeneização e hierarquização da temporalidade histórica e do conjunto dos recursos conceituais de análise histórica, sociológica e antropológica. Portanto, trata-se de uma leitura fundamental, pois implica um conjunto de problemas cruciais às ciências humanas tanto em sua origem quanto na contemporaneidade.

Nota

2 Rancière participou inclusive do primeiro volume da obra Ler O capital, coordenada por Louis Althusser (1979).

Referências

ALTHUSSER, Louis; RANCIÈRE, Jacques; MACHEREY, Pierre. Ler O Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 1v.

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 91-106

. ______. Ler uma operação de caça. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 259-276.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

______. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (Org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-49.

WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Editora da USP, 1992.

Cássio Guilherme Barbieri – Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humana da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. Graduado em História pela UFFS – Campus Chapecó. É membro do Laboratório Escrita, Memória e Arte (LEMA) e do Grupo de Estudos Teoria da História, ambos vinculados ao Curso de História da UFFS. E-mail: cassiobarbieri@hotmail.com


RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017. Resenha de: BARBIERI, Cássio Guilherme. Estética, política e historiografia: indícios da emergência do regime estético na ficção moderna. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.627-636, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Ontologia e dramma: Gabriel Marcel e Jean Paul Sartre a confronto – ALOI (ARF)

ALOI, Luca. Ontologia e dramma: Gabriel Marcel e Jean Paul Sartre a confronto. Prefácio de Franco Riva. Milano: Albo Versorio, 2014. Resenha de: SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. Ontologia e drama: Gabriel Marcel e Jean Paul Sartre em tête-à tête. Aufklärung – Revista de Filosofia, João Pessoa, v.3, n.1, p.171-­174, Jan./jun. 2016.

Se há dois autores em que, filosofia e teatro harmoniosamente se mesclam, é Gabriel Marcel (1889­1973) e Jean ­Paul Sartre (1905­1980). Ambos transfiguram, no cenário da cultura contemporânea, um estilo realmente único para não dizer paradigmático de interrogação da condição humana. E isso, seja ao advogar as próprias teses, seja ao dar vida aos seus personagens. Partilham, em grande medida, das questões candentes que, peremptoriamente, assolariam, de maneira crucial, um momento decisivo na história do século passado: o período entre­guerras. Aliás, para eles, a guerra jamais fora um evento geopolítico circunscrito, apenas, numa escala de interesses macro­econômica. Ao contrário, a guerra assume, do ponto de vista, sobretudo, fenomenológico, um agenciamento próprio como questão, o que se torna ,pois, evidente, tanto em virtude da atividade filosófica quanto da multifaceta da produção estética (dramatúrgica, literária, musical) que um e outro dão vazão em suas reflexões. Nesse contexto, o legado deixado por suas obras é, indiscutivelmente, de um valor teórico­-literário emblemático. Fato é que, muito embora Sartre tenha sido uma figura que “roubara a cena” intelectual de então (sem falar de sua carismática personalidade política que, midiaticamente, passa cobrir parte expressiva da segunda metade de século), nem por isso, a presença de Marcel deixa de ocupar um espaço pujante e decisivo. Este último é um autor que também terá o seu público e os seus leitores. Cabe atentar, antes de tudo, que ele é um mestre de cuja inspiração afeta toda uma geração de intelectuais do porte de Merleau- ­Ponty, Ricœur, Lévinas, e, é claro, o próprio Sartre. É Marcel, por exemplo, quem põe na ordem do dia, pela primeira vez, a noção de engajamento como signo de um debate que marcaria, para sempre, o espírito da época; espírito este encarnado numa nova forma de se fazer filosofia: uma filosofia “militante” embebida no “concreto”. Trata-­se de um modus operandi que toma corpo como estilo único de reflexão instituindo, pois, em solo francês, uma nova tradição de pensamento: a tradição fenomenológico­existencial.

É esse panorama mais geral que Luca Aloi abre emOntologia e dramma:Gabriel Marcel e Jean­Paul Sartre a confronto. Com Prefácio de Franco Riva, editado em 2014 pela Albo Versorio de Milão, o livro transcende qualquer quadro meramente comparativo ou descritivo. Ele se propõe, antes, como incisivamente provocativo. O autor traz à cena as figuras de Marcel e Sartre como expressões de um alquímico experimento na seara da tradição em questão. Partindo de tal registro, Aloi põe na balança, dois pesos e duas medidas dessa viva e fértil cultura intelectual do século XX: uma herança, ainda, por ser mais bem inventariada. Nessa retrospectiva, o trabalho de Aloi reaviva o caloroso colóquio entre os dois pensadores travado num momento efervescente das mais variantes posições.

Em regra, malgrado a complexa análise de conjuntura balanceada nesse trabalho de fôlego, Aloi incita, no calor da discussão, um verdadeiro “fogo cruzado” que se propaga em múltiplas “labaredas”. Cada capítulo do livro é como uma “lenha na fogueira” a mais … A primeira chama já é acesa com a insidiosa polêmica de O Existencialismo é um Humanismo?, de 1946; conferência em que Sartre, deliberadamente, alcunha o termo existencialismo não só à própria obra, mas a um circuito mais amplo de autores. A repercussão do texto que simbolicamente ressoa mais como um manifesto tem, de imediato, uma recepção nada simpática por parte daqueles que são associados à signatária terminologia como Jaspers, Heidegger e o próprio Marcel. Este, veementemente, protesta, julgando que “o pensamento existencial degenera em existencialismo” (Marcel, La dignité humaine. Paris: Aubier, 1964, p. 10), tomando ainda partido, ao lado de Heidegger, contra o professo “humanismo” sartriano. Isso tudo, sem falar de sua indiscreta ojeriza a certas aderências lexicais como é o caso dos “ismos” comumente sufixados em muitas posições teóricas ou ideológicas. No fundo, essa querela deflagraria apenas a ponta de um iceberg cuja camada contém, por certo, dimensões maiores. Aloi “quebra o gelo” ao situar Marcel e Sartre como autores, em radical dissenso, o que desde já, também sela o que será a tônica do pensamento concreto em curso: seu caráter dissidente, multiforme e, por isso mesmo, heterodoxo.

Não há, portanto, como permanecer indiferente, retrata Eloi, a essa “constante frequentação polêmica com Sartre” (2014, p. 17). A próxima lenha na fogueira agora é o solipsismo. Será que Sartre realmente o supera? Ora, a sua posição tem sido, por vezes, manifesta: “meu pecado original é a existência do outro”, escreve em L’ Être et le Néant.Paris: Gallimard, 1943, p. 321. O outro, enquanto olhar, se torna “minha transcendência transcendida” (Ibidem) sendo, pois, a própria “morte oculta de minhas possibilidades” (Idem, 1943, p. 323). Ele é, ao mesmo tempo, “como todos os utensílios, um obstáculo e um meio. Obstáculo, porque o obrigará, certamente, a nova sações (avançar sobre mim, acender sua lanterna). Meio, porque, uma vez descoberto em um beco sem saída, ‘sou capturado’” (Ibidem). Em tais condições, “já não sou dono dasituação” (Ibidem): a aparição do outro desvela um aspecto não desejado por mim. É esta contingência que constitui, horrorosamente, “a parte do diabo” (Idem, 1943, p.324): ela me expõe à angústia inalienável, diante da qual, “o inferno são os outros” (Idem,Huis Clos. Paris: Gallimard, 1945, p. 122). Desse modo, “pelo olhar do outro, eu vivo como que fixado no meio do mundo, como em perigo, numa situação irremediável” (Idem, 1943, p. 327). Trata-­se de um “perigo” que me ronda perpetuamente: “o outro está presente agora por toda parte, debaixo e acima de mim” (Idem, 1943, p. 336). Em face dessa incômoda presença, será preciso, diversamente de Husserl, que “o outro não deve ser procurado primeiro no mundo, mas, sim, do lado da consciência” (Idem, 1943, p. 332). Ora, uma vez posto nessa relação lateral, cartesianamente imputada, “é curioso observar o quanto o pensamento de Sartre tende a fechar-­se num perfeito solipsismo”, avalia Marcel (Le déclin de la sagesse. Paris, 1954, p. 67). Nessa doutrina, outrem se reduz ao nível de um problema: a alteridade é captada sob o olhar medusado de um ego nadificante, objetivante. É preciso avançar para além dessa premissa monolítica e petrificante, realocando, pois, a intersubjetividade para outro plano, abdicado por Sartre: o da situação humana, in concreto. Marcel, então, inflama o debate: a possibilidade da percepção de outrem se transfigura como mistério. Outrem é mistério porque nele e com ele estou inexoravelmente engajado, numa só participação ontológica. Disso resulta a premente necessidade de despaginar o luciférico capítulo sartriano, parodiando-­a inversamente: “o inferno é o eu” (Aloi, 2014, p. 110). Afinal, “ser é ‘ser com’, existir é ‘co-­existir’” (Apud Aloi, 2014, p. 139); coexistência que atesta “o mundo como dimensão intersubjetiva originária” (Aloi,2014, p. 142).

É partindo desse argumento que o tema da liberdade toma forte impulso. Tal como uma brasa viva, a lenha da liberdade inflama outro confronto à queima-­roupa entre os filósofos. No frigir dos ovos, qual o problema? O ideal sartriano da liberdade como negatividade. Esse ideal, solipsista por princípio, é o que assenta a radical impermeabilidade entre o ser e o nada, deflagrada pelo caráter inerentemente negativo da existência. Disso emana uma noção niilista de liberdade, sintomaticamente cara a Sartre: o homem está, em absoluto, condenado a ser livre. Eis, em prima facie, o “mito central do sartrismo: uma liberdade edificada no nada” (Aloi, 2014, p. 46). É que, para Sartre, “estamos condenados a ser livres; a liberdade é o nosso destino, é a nossa servidão, mais que a nossa conquista […]. Ela é aqui concebida a partir de uma falta, não de uma plenitude” (Marcel,Homo viator. Paris: Association Présence de GabrielMarcel, 1998, p. 231). Trata-­se de uma “falta” que, “do ponto de vista do cogito, é consciência (de) falta” (Ibidem). Assim, mais uma vez, chega­-se a outro beco sem saída, como nota Aloi (2014, p. 40): “A minha liberdade se encontra com outra liberdade no signo da negação e da limitação recíproca: a natureza das relações entre eu e outrem se revela como intrinsecamente conflituosa”. O que esperar, para além dessa teoria do conflito? Outro modo de existência livre, ou seja, uma liberdade situada, imersa, originariamente, na própria abertura ao mundo e a outrem. Por isso, a referida “liberdade que defendemos in extremis, não é uma liberdade prometeica, não é a liberdade de um ser que seria ou que pretendia ser para si” (Marcel, Les hommes contrel’humain. Paris: Editions Universitaires, 1991, p. 151), mas “uma liberdade que seinsere na trama mesma de nossa existência” (Idem, 1964, p. 183).

Posto isso, o ponto de fricção com Sartre mal parece ainda ter fim. Ademais, é a candente questão do engajamento que passa a arder em chamas. Em sua produção literário-­dramatúrgica, Sartre acentua o caráter infundado e absurdo da existência. Como em A Náusea, a contingência radical permanece um ideal irrealizável, um objetivo completamente fora de alcance. Na contramão dessa tese, Marcel, uma vez mais, toma partido, optando por outra via: a de uma “fenomenologia da esperança”. Oque é a esperança? Ela é interrogada a partir de seu enraizamento e transcendência. “A esperança não tem, portanto, nada a ver com um otimismo de matriz ‘iluminista’”(Aloi, 2014, p. 101), ou, o que é pior, uma atitude passivamente estática. Ela é “tensão contínua”, “exposição, risco, impulso” (Aloi, 2014, p. 109), inflamando-­se, pois, na militância do concreto, isto é, em meio à itinerância humana; aquela do homo viator conforme metaforiza Marcel pondo a nu, visceralmente, o que o discurso filosófico é incapaz, de per se, expor. Aqui, sem maiores cerimônias, a criação dramática e a práxisfilosófica se solicitam. O ontológico se fenomenaliza. Entre o “ser” e o “aparecer” desconstrói­-se qualquer distinção ou sobreposição. Como na ágora grega, o discurso se inflama tragicamente, maieuticamente. O teatro se torna o solo, o húmus desde onde a reflexão se prepara e se cultiva. O drama é esse experimento, por excelência, que perfaza comunhão viva na qual se radica toda participação, todo engajamento, toda ação. Sartre avançara em seu projeto, mas, em virtude do recalcitrante cartesianismo, permanecera ainda prisioneiro de uma forma de humanismo, egologicamente, centrada. Ora, é tal humanismo que põe em risco a própria noção de engajamento, deixando ao sabor dos acontecimentos o sentido último da ação, imputada por certa cartilha ou plataforma político­-ideológica. Marcel vira o jogo: é preciso fazer a passagem do “espírito de abstração” (excludente, por princípio) para outro nível: o da participação ontológica (em rigor, inclusiva).

Afora essas discrepâncias teóricas, um dos aspectos retratados pelo livro de Aloi é o fator de impacto da produção dramatúrgica tanto de Marcel quanto de Sartre. A projeção sartriana, nesse quesito, é, sem dúvida, patente, o que, por outro lado, cabe observar que “Marcel realiza uma intensa atividade de leitor e crítico teatral […] sem jamais deixar de reconhecer os méritos de Sartre como dramaturgo de quem, inclusive, elogia um talento extraordinário” (Aloi, 2014, p. 71). Se Marcel poupa a arte dramática de ser dogmática, apologética ou um “teatro de tese”, é para salvaguardar o que de mais reside nesta de real e de concreto. Um teatro de tamanho peso jamais se furta ao trágico. É essa lição que a criação estética de ambos revela, extraordinariamente, de catártico. O drama desvela o seu ardil: via o personagem, toca-­nos intimamente, ontologicamente. Atrama dramática inflama profundamente, pondo o dedo na ferida de nossos personalismos, narcisismos, misticismos. Essa é a razão pela qual o trabalho de Aloi também não ignora o lugar do dramaturgo como tema constante da reflexão de Marcel. O intérprete italiano mostra o quanto, para o pensador francês, o autor deve­-se cuidar para não intervir de maneira invasiva em seus personagens. Ao diretor, digno desse nome, convém manter, tão somente, certa “presença de ausência”, sem deixar de ser perspectivista ou de promover pontos de vista múltiplos.

Afinal, se o livro de Aloi é “incendiário” é porque, no fundo, ele também seja, propositivamente, heraclitiano. Como a filosofia, o teatro também enuncia um logos, um fogo vivo que não se apaga. O que o leitor presencia aí é um fogo ateado, a quatro mãos sem, no entanto, prescindir de suas origens gregas. Sob esse prisma, longe de ser uma simples aventura piromaníaca, Ontologia e drama exerce, com primor, uma práxis paradoxal: ao mesmo tempo em que tudo consome, como no fogo de Heráclito, tudo renova. A noção de “confronto” cotejada no subtítulo da proposta exprime bem não só uma dissonância, mas uma consonância digna de audiência. Como bem adverte seu autor, “esse confronto não fornece da relação Marcel ­Sartre uma interpretação excessivamente rígida e esquemática […] haja vista a sua complexidade interna” (Aloi,2014, p. 100); complexidade que, para além de uma “guerra dos opostos”, põe em cena uma harmonia essencial que faz do filosofar e da dramaturgia dois gestos concêntricos.

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva – PósDoutor em Filosofia. Professor dos Cursos de Graduação e de PósGraduação (Stricto Sensu) em Filosofia da UNIOESTE – Campus Toledo, com Estágio PósDoutoral pela Université Paris 1 – PanthéonSorbonne (2011/2012). Escreveu “A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty” (São Leopoldo, RS, Nova Harmonia, 2009) e “A natureza primordial: Merleau-Ponty e o ‘logos do mundo estético’” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2010). Organizou “Encarnação e transcendência: Gabriel Marcel, 40 anos depois” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2013), “MerleauPonty em Florianópolis” (Porto Alegre, FI, 2015) e “Kurt Goldstein: psiquiatria e fenomenologia” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2015). E-mail: m@itlo: cafsilva@uol.com.br

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