Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana (1959-1964) | Leonardo R. Botega

O que tem em comum Arturo Frondizi, Jânio Quadros e João Goulart, além de terem sido presidentes de seus países? A resposta mais evidente é que nenhum deles concluiu o seu mandato. Frondizi foi deposto pelos militares argentinos em 28 de março de 1962, Quadros renunciou à presidência do Brasil em 25 de agosto de 1961 e Goulart foi alijado do poder por um golpe civil-militar em 1 de abril de 1964.

Além disso, há, ainda, outro ponto de contato entre esses três personagens: todos eles patrocinaram, em um período muito próximo, mudanças nas relações exteriores de seus países que ficaram conhecidas por políticas externas independentes. E mais ainda: procuraram aproximar o Brasil e a Argentina na defesa da autonomia da América Latina num momento de extrema tensão ocasionado pela emergência da Revolução Cubana que modificou o estatuto da Guerra Fria no continente americano.

É disto que trata o livro Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana (1959-1964), de autoria de Leonardo da Rocha Botega.1 Adaptado de sua dissertação de Mestrado defendida na Universidade Federal de Santa Maria, o livro, agora, aumentará a circulação da consistente pesquisa elaborada pelo seu autor em um grande número de fontes primárias, com destaque para os anos iniciais da Revista Brasileira de Relações Internacionais com seus números que foram editados entre 1958 e 1964. Some-se a isso o expressivo número de 140 referências bibliográficas que colaboraram para que o livro tenha uma rica densidade teórica bem como uma ampla perspectiva da História do fim dos anos 50 e inícios dos 60 do Século XX.

Afinal, foi a Revolução Cubana de 1959 que trouxe a latino-americanização da Guerra Fria. Até então, pouca importância davam os Estados Unidos da América (EUA) para o subcontinente latino-americano.[2] É assim que Botega abre o primeiro capítulo de sua obra:

Quando Fidel Castro, Ernesto Che Guevara, Raul Castro, Camilo Cienfuegos e outros tomaram a capital Havana, em janeiro de 1959, sem sombra de dúvidas a América Latina passava a viver um momento diferente em seu cenário político. O forte poder de atração que esta exerceu sobre a esquerda trouxe para a América Latina a “sombra” do conflito leste-oeste, atingindo em cheio a esfera de influência dos Estados Unidos, principalmente ao definir no período 1960-1961 o seu caráter socialista.[3]

Nesse capítulo inicial, o autor produz uma visão panorâmica sobre a Argentina, o Brasil e Cuba, tendo como elemento comparativo das realidades históricas de cada um desses países o nacionalismo. Aqui é importante frisar, como o fez Eric Hobsbawm,[4] que o nacionalismo é um conceito histórico e que, portanto, ele se modifica ao longo do tempo, podendo se localizar nos mais extremos espectros políticos. Porém, no tempo e no espaço da Argentina, Brasil e Cuba dos anos 1950, houve a coincidência de o nacionalismo assumir “um caráter cada vez mais à esquerda no contexto da Guerra Fria”,[5] constituindo assim uma preocupação para os Estados Unidos que procuraram –durante a VII Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, realizada entre 22 e 29 de agosto de 1960 na Costa Rica – impor “a adoção de sanções econômicas e de medidas coercitivas ao governo de Cuba”.[6] Não obtiveram sucesso em razão da forte oposição da Argentina, do Brasil e do México,[7] que incluíram na Declaração de San José que “nenhum Estado americano pode intervir em outro Estado americano com o propósito de impor-lhes suas ideologias ou princípios políticos, econômicos e sociais”[8] .

Leonardo Botega reconstitui a trajetória política de Arturo Frondizi além de discutir teoricamente a ideologia de seu projeto de desenvolvimento conhecido por desarrollismo, que visava superar tanto os entraves patrocinados pelo latifúndio quanto pela exploração imperialista. Também analisa a difícil situação do presidente argentino que se encontrava sob fogo cruzado, entre a extrema-direita patrocinada pelos militares anticomunistas e antiperonistas e pelos peronistas que o consideravam um traidor, pelo fato de ter permitido que o capital estrangeiro explorasse o petróleo de seu país.

Nesse capítulo primeiro, o autor também, analisou a polarização vivida pelo Brasil no “tempo da experiência democrática (1945-1964)”,[9] culminando com a eleição de Jânio Quadros – quando Afonso Arinos de Melo Franco implementou a Política Externa Independente (PEI) – e sua intempestiva renúncia que “permanece ainda alvo de debates. Porém, mesmo sem provas documentais, a literatura de história e ciências sociais concorda que o presidente desejava dar um golpe de Estado”.[10] Aborda a Campanha da Legalidade, o governo parlamentarista com o reatamento de relações diplomáticas com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o turbulento período presidencialista de João Goulart, com sua desestabilização patrocinada pelos EUA e o golpe civil-militar de 1964.

Fechando esse capítulo, é realizada detida exposição acerca do desenvolvimento histórico de Cuba, partindo de sua conquista em 1511 até o período da luta revolucionária – enfatizando a relação com os Estados Unidos. Recupera a trajetória de Fidel Castro, desde sua juventude nos anos 1940, passando pelo malogrado assalto ao Quartel de Moncada e seu discurso de defesa intitulado A História me absolverá até chegar a luta em Sierra Maestra e a revolução sair vitoriosa. A partir desse momento, o autor se concentra no esgotamento da relação com os EUA, principalmente, em função da reforma agrária e da “nacionalização de todas as propriedades norte-americanas (…) 36 engenhos de açúcar, todas as refinarias de petróleo e instalações telefônicas e de fornecimento de energia elétrica”[11] e do episódio da Baía dos Porcos, onde as forças de Castro vencem os invasores. Com isso, tem início a verdadeira obsessão dos irmãos Kennedy sobre Cuba, não faltando planos de assassinar Castro operados diretamente por Robert Kennedy através da Operação Mangusto,[12] bem como a pressão cada vez mais intensa para excluir Cuba do convívio com os demais estados americanos.

O segundo capítulo nos aproxima das políticas externas independentes da Argentina e do Brasil. Através da análise da documentação produzida naquele período – discursos e pronunciamentos dos responsáveis pelas políticas externas e dos presidentes dos dois países – e de dois livros – um de autoria de Frondizi e outro de San Tiago Dantas [13] – o autor procurou responder às seguintes questões:

Quais as fundamentações da política externa independente do governo Arturo Frondizi e da política externa independente do Brasil? Quais suas bases conceituais? Que leituras tinham da realidade latino-americana e mundial? Que pontos de vista as aproximavam?[14]

Botega conclui que há muitos pontos de aproximação entre as duas políticas externas: ambas estão calcadas no nacionalismo, buscam um paradigma de maior autonomia para suas relações exteriores, procuram fazer da política externa uma ferramenta na busca pelo desenvolvimento econômico-social, criticam a deterioração dos termos de troca nas relações econômicas entre os países mais industrializados e os países em vias de industrialização, frisam que não são neutralistas mas que procuram a independência dentro do bloco ocidental (ambos são acusados pelos adversários de estarem a serviço de Moscou), pretendem manter boas relações com os EUA (Frondizi e Goulart discursaram no Congresso dos Estados Unidos), e, por fim, que são defensores dos princípios de autodeterminação dos povos e de não-intervenção.

É justamente sobre os princípios de autodeterminação dos povos e de não-intervenção que trata o terceiro capítulo do livro, ao analisar de que forma Argentina e Brasil colocaram em prática suas políticas externas independentes quando da crise da “questão cubana”.

Por “questão cubana” se entendia a adoção do socialismo a partir da declaração de que “o que os imperialistas não podem nos perdoar é que fizemos uma Revolução Socialista debaixo do nariz dos Estados Unidos e que defenderemos com nossos fuzis esta Revolução Socialista (…) Viva a Revolução Socialista! Viva Cuba Livre”[15] feita por Fidel Castro, e sua incompatibilidade com o sistema interamericano. Ressalte-se que essa modificação no estatuto da Revolução Cubana se deu em 16 de abril de 1961, um dia após tropas de exilados cubanos financiados pela CIA terem realizado um ataque com grande saldo de vítimas fatais em Cuba e um dia antes da tentativa de invasão conhecida como Baía dos Porcos, o que permite entender essas palavras como um pedido de socorro à URSS para a defesa da Revolução Cubana.

Em razão de Cuba ter se declarado socialista, primeiro o Peru e posteriormente a Colômbia (ambas com apoio estadunidense) invocaram o Tratado Interamericano de Aliança Recíproca (TIAR) para convocar uma Reunião de Consulta dos Chanceleres da Organização dos Estados Americanos (OEA) com o objetivo de “intervir coletivamente através da OEA em Cuba”[16]. Tanto o Brasil, como a Argentina e também o México, se posicionaram de forma contrária até que “o próprio Fidel Castro acabou dando munição para os seus adversários. No discurso de inauguração da Universidade Popular, em 2 de dezembro de 1961, declarou ‘sou marxista leninista e serei marxista-leninista até o último dia de minha vida’”[17]. Desse modo, ficava muito difícil, em termos políticos, barrar a convocação da Reunião.

Dado a polêmica da questão, nenhum país quis sediar a Reunião de Consulta, exceto o Uruguai. Assim, a VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos se realizou em Punta del Este entre 23 e 31 de janeiro de 1962. San Tiago Dantas, representando o grupo composto por Brasil, Argentina, México, Bolívia, Chile e Equador e Haiti (o Uruguai oscilava entre a posição brasileira e a posição colombiana pela expulsão de Cuba), defendeu que a ilha não fosse excluída do sistema americano sob o risco de estarem-na jogando aos braços dos soviéticos.

Os Estados Unidos, sob a liderança do Secretário do Departamento de Estado, Dean Rusk, exerceram pressões sobre o Brasil, a Argentina e os outros países que eram contra a expulsão de Cuba. Outras pressões eram exercidas pelos setores mais à direita internamente nos países, como o fez o exército argentino e alguns ex-chanceleres brasileiros. Contudo, foi um dos mais fracos países do continente que acabou sucumbindo às pressões dos EUA: o Haiti foi o necessário 14º voto para a aprovação da íntegra do texto de resolução apresentado por Rusk.

Leonardo Botega analisa as repercussões internas das posições do Brasil e da Argentina, que acabaram se abstendo de votar o texto completo de Rusk. Percebeu os apoios e as oposições às políticas externas independentes. No caso brasileiro, de forma mais imediata, a posição em Punta del Este acabou sendo um empecilho para San Tiago Dantas ser aprovado pelo Congresso como primeiro-ministro em junho daquele mesmo ano. No caso argentino, a pressão foi tão intensa que o país rompeu relações diplomáticas com Cuba em 8 de fevereiro e, mesmo cedendo desse modo aos militares, o presidente Frondizi foi deposto em 29 de março de 1962. Dois anos depois, tendo como uma das justificativas salvar o Brasil do comunismo, João Goulart também foi golpeado por militares e por civis.

Do belo trabalho de pesquisa realizado por Leonardo da Rocha Botega fica uma questão em aberto: até que ponto os golpes militares não foram, também, resultado das políticas externas independentes, ou talvez, resultado da posição frente a questão cubana?

Notas

1. BOTEGA, Leonardo da Rocha. Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana (1959-1964). Porto Alegre: Letra & Vida, 2013.

2. Basta lembrar que a Operação Pan-americana (OPA) proposta por Juscelino Kubitschek em maio de 1958 não despertou maior interesse de Eisenhower. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 3ª edição ampliada. Brasília: Editora da UNB, 2010, p.293-294.

3. BOTEGA, op.cit., p.29.

4. HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

5. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O nacionalismo latino-americano no contexto da Guerra Fria. In: Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, ano 37, nº 2, 1994, p.55-56.

6. BOTEGA, op.cit., p.43.

7. As posições da política externa independente mexicana, em especial com sua relação com a questão cubana, são abordadas em profundidade por Altmann. ALTMANN, Werner. México e Cuba: revolução, nacionalismo, política externa. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p.77-86.

8. BOTEGA, op.cit., p.44.

9. A expressão é de Jorge Ferreira e Lucília Delgado. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: o tempo da experiência democrática. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

10. FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p.25.

11. GOTT, Richard. Cuba: uma nova História. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p.211.

12. WEINER, Tim. Legado de Cinzas: uma história da CIA. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.208-217.

13. FRONDIZI, Arturo. A Luta Antiimperialista: etapa fundamental do processo democrático na América Latina. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1958. DANTAS, San Tiago. Política Externa Independente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.

14. BOTEGA, op.cit., p.104.

15. Fidel Castro apud MÁO JÚNIOR, José Rodrigues. A Revolução Cubana e a Questão Nacional (1868-1963). São Paulo: Núcleo de Estudos D’O Capital, 2007, p.354.

16. BOTEGA, op.cit., p.184.

17. Idem, p.185.

Charles Sidarta Machado Domingos – Doutor em História pela UFRGS. Professor de História no IFSUL- Campus Charqueadas. E-mail: csmd@terra.com.br


BOTEGA, Leonardo da Rocha. Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a questão cubana (1959-1964). Porto Alegre: Letra & Vida, 2013. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. Os primeiros anos 60 nas relações internacionais de Brasil e Argentina: a Revolução Cubana e a latino-americanização da Guerra Fria. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.16, p.496-501, jul., 2015.Acessar publicação original [DR]

Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola – QUINSANI (CTP)

QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. A Guerra contra o esquecimento da Guerra. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 17, p. 74-78, set./out. 2014.

Tempo de mudanças substanciais na História da Humanidade, o Século XX foi um período repleto de disputas, sejam elas entre classes sociais, como a Revolução Russa, sejam elas de caráter ideológico, como a Guerra Fria. Se na primeira o socialismo saiu vencedor, ao forjar uma sociedade de modulações totalmente novas, na disputa da Guerra Fria o projeto de formação econômico-social capitalista sobressaiu-se em detrimento da proposta representada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Esse Século XX foi claramente cortado em sua metade. O conflito de maiores proporções de destruição, morte e terror que ocorreu em todo o desenvolvimento humano foi a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Esse conflito foi tão peculiar, porque único, que foi capaz de alicerçar uma aliança entre a vencedora da Revolução de 1917 e o bastião maior do capitalismo, os Estados Unidos da América (EUA). Uniram-se, a despeito de tudo o que mais acreditavam, pelo objetivo de enfrentar e vencer o Nazismo. Ao impingirem a derrota militar às forças do Eixo permitiram que a História se desenvolvesse como hoje a conhecemos.

Mas a Segunda Guerra Mundial não foi de todo uma novidade na experiência histórica. Trazia, em seu bojo, reminiscências extremamente próximas de um conflito que também se fez militar, que também se fez ideológico e que – como tão bem se reportou o jornalista Herbert Matthews2– dizimou metade de um país. Esse conflito foi a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

O “maior historiador nato de nosso tempo”,3 Eric Hobsbawm, afirma que “as disputas da década de 1930, travadas dentro dos Estados ou entre eles, eram portanto transnacionais. Em nenhuma parte isso foi mais evidente do que na Guerra Civil Espanhola de 1936-9, que se tornou a expressão exemplar desse confronto global”.4 Estavam em confronto, dentro do território espanhol, as forças que defendiam a República com seu projeto de um Estado laico, com desenvolvimento social, educação pública não confessional e reforma agrária versus o agrupamento de forças que tinha na Igreja Católica e no alto oficialato das Forças Armadas, com seu projeto de conservação social, de apoio aos latifundiários e de manutenção da ordem tradicional. O que conferia esse caráter transnacional e, porque não, de laboratório da Segunda Guerra Mundial, era o apoio dos fascistas, com seus mais de 70 mil soldados italianos e dos mais de 40 mil membros das Brigadas Internacionais, oriundos de 53 países, dentre eles a URSS, os EUA, a França, e inclusive do Brasil.

Mas as novas gerações, principalmente fora da Espanha, mas não só, quase não sabem disso, como atesta Eric Hobsbawm: “Hoje parece pertencer a um passado pré-histórico, mesmo na Espanha”.5 Passados pouco mais de 75 anos do conflito, vivemos “uma era de esquecimento”,6 um tempo no qual a experiência histórica parece estar perdendo o seu valor. Vivemos imersos no presente, reféns do imediatismo em todos os tipos de relações, até mesmo com nossa consciência. E isso representa um perigo, pois, se o passado deixa de ser um ponto de reflexão, o mesmo pode ocorrer ao futuro e, com isso, podemos perder a capacidade de perseguir projetos de vida, sociais ou individuais.

Mesmo em plena era de esquecimento, ainda há possibilidades de lembrança. E uma das mais eficientes se dá pela arte, em especial aquela que é a expressão artística por excelência do Século XX: o Cinema. Ao associá-lo com a História, temos, então, uma poderosa ferramenta de análise. É o que acontece no livro A Revolução em Película,7 do historiador Rafael Hansen Quinsani.

Nessa obra, o autor parte da premissa de que “nossa função [dos historiadores] continua sendo lembrar e tornar inteligível o que muitos (propositalmente ou não) esquecem.8 Quinsani, desse modo, demonstra a mesma preocupação de Judt, quer seja, combater o esquecimento, trazer a História para o centro da vida social. E ele faz isso com muita competência.

O livro está organizado a partir de uma Introdução ao tema, seguido de um capítulo teórico-metodológico intitulado Cinema-História. Na introdução, é realizada uma rápida historicização do Cinema. Em seguida, é evidenciado a forma como serão analisados os filmes elegidos para o estudo, todos relacionados com a Guerra Civil Espanhola. A introdução ainda traz uma importante reconstituição do conflito, a partir de suas bases materiais e ideológicas. No capítulo primeiro, é elaborada uma densa e consistente reflexão teórica-metodológica. A partir das noções de imagem, representação e ideologia, Rafael Hansen Quinsani perscruta o desenvolvimento da História ao longo do Século XX. Para tanto, toma mão de autores consagrados, como Marc Ferro, Roger Chartier e Michel Vovelle.

No capítulo intitulado Primeira Projeção: !Ay, Carmela! Arte, Guerra e o Início do Debate é abordado o filme !Ay, Carmela!, do diretor espanhol Carlos Saura, produzido em 1990. Além do filme, esse capítulo traz outras fontes que foram muito bem trabalhadas pelo autor, como algumas canções da época da Guerra Civil Espanhola e a peça de teatro homônima de autoria de José Sanchis Sinisterra. Essa triangulação de fontes produz um capítulo muito rico em termos de História da Cultura, pois Quinsani realiza, de forma acurada, a crítica externa e interna dos documentos escolhidos, realizando, inclusive, um debate muito interessante sobre a adaptação da literatura para o cinema.

O filme traz o impacto que os soldados italianos do regime fascista de Mussolini causaram na Guerra Civil Espanhola. Realiza uma potente crítica ao fascismo, ao demonstrar como os soldados italianos transformaram uma escola em prisão! E realiza, através da analise do autor, uma síntese da sociedade espanhola do período a partir de seus personagens principais:  Os três personagens acabam compondo um só personagem que, no seu somatório de características, simboliza a Espanha daquele contexto. Carmela é o lado emotivo, sentimental, preocupado com os outros e direta em suas declarações, representa os combatentes e os simpatizantes da República, Paulino está disposto a sobreviver a qualquer custo, maleável a diferentes contextos, propício a se adaptar às exigências nacionalistas, e Gustavette é a jovem geração, silenciada pelas bombas, pelo terror já presente e que se estenderá sob os anos do Franquismo.9 Ainda é realizada pelo autor uma associação entre a personagem Carmela com as distintas representações da República, em especial com uma tela muita estimada por mim, A Liberdade Guiando os Povos, de Delacroix. Embora as batalhas típicas do conflito militarizado não estejam presentes na película, fica muito patente a forma pela qual a vida das pessoas foi modificada durante o conflito. E, mais além, como se deu a relação da cultura sob o regime de Franco.

A Segunda Projeção: Terra e Liberdade, o enfoque estrangeiro: as disputas e conflitos no interior do processo revolucionário, trabalha com o filme Terra e Liberdade, do cineasta britânico Ken Loach. É nessa película, de 1995, que fica mais em evidência o caráter internacional do conflito, “uma versão em miniatura de uma guerra europeia” de acordo com Hobsbawm.X A composição das Brigadas Internacionais, o apoio intensivo de Hitler e Mussolini aos nacionalistas espanhóis, o apoio e os limites estratégicos impostos por Stálin bem como a política de apaziguamento, para não dizer total omissão, do governo de Frente Popular de Léon Blum na França estão presentes nas análises feitas pelo autor.

Assim como no capítulo anterior, neste, Rafael Hansen Quinsani analisa detalhadamente também uma fonte literária, o famoso Lutando na Espanha, de George Orwell – que, assim como Ernest Hemingway participou da Guerra Civil Espanhola. Há uma polêmica, destacada por Quinsani, a respeito de Terra e Liberdade ser ou não baseado no livro de Orwell. Mesmo assim, muitas são as semelhanças entre o livro e o filme, e elas são deslindadas com elegância nesse capítulo.

Neste capítulo há uma excelente análise de História Política, na qual o autor esmiúça as divergências entre os grupos que defendem a República, sejam eles anarquistas, membros do Partido Comunista ou trotskistas vinculados ao Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM):  Outra cena que explicita claramente a fragmentação da esquerda e faz uma crítica à centralização e à stalinização é aquela em que David, após deixar as milícias, ingressa no exército e acaba envolvido num combate com anarquistas durante os “eventos de maio de 1937”. No filme todo o contexto e os debates são sintetizados e condensados na cena em que anarquistas e comunistas estão frente a frente nos telhados de prédios vizinhos. Entre tiros esparsos e insultos mútuos, os referenciais históricos de cada grupo se fazem presente: “– Você deveria estar matando fascistas e não outros. –Ei, você, o sócio de Stalin. Em que divisão estava você? – A divisão de Karl Marx. E você é da Terceira Divisão? – Não, seu bastardo. Somos da Divisão de Durruti, o melhor”.XI  Na Terceira Projeção: Libertárias. As milícias, o papel das mulheres e o auge do debate, a obra analisada é o filme Libertárias, do diretor Vicente Aranda, realizado quase simultaneamente ao filme de Ken Loach. O centro da análise empreendida por Quinsani é o protagonismo das mulheres na Guerra Civil Espanhola e no Cinema. Para tanto, o autor realiza uma eficiente síntese abarcando as décadas de 30 a 70 do século passado. Em relação a Guerra Civil, é elaborado um histórico sobre a emancipação feminina a partir da organização Mulheres Livres, fundada no mesmo ano em que o conflito se iniciou. Além disso, a análise remete a representação das mulheres protagonistas do filme:  O mérito do filme de Aranda é fugir da dicotomia puta-miliciana presente no imaginário espanhol e inserir no front de batalhas personagens complexas e dotadas de diferentes visões de vida. Maria representa a mulher pura que aos poucos vai descobrindo elementos que estiveram ausentes em sua vida reclusa. Charo é uma prostituta que decide mudar de vida e é influenciada pelos valores anarquistas. Pilar é uma revolucionária determinada. Floren mistura sua ideologia anarquista com um espiritismo peculiar.XII  Nesse capítulo, ainda são abordados o papel recalcitrante exercido na Espanha “por uma Igreja Católica que rejeitava tudo o que aconteceu no mundo desde Martinho Lutero”XIII e a dimensão do anarquista Buenaventura Durruti, para a Guerra Civil Espanhola.

Na conclusão, o autor compara os três filmes analisados. Para tanto, faz uso da aplicação do seu método histórico-cinematográfico, uma inédita – e sofisticada – classificação elaborada a partir de uma dedicada leitura da obra de Marc Ferro.

A riqueza da análise presente nesse livro demonstra um autor seguro sobre seu objeto de pesquisa. Além da apreciação de elementos cênicos – que muitas vezes passam despercebidos por espectadores menos atentos – passando pelo movimento das câmeras, até chegar a crítica externa das fontes, o que temos em mão é uma aula de História. E o melhor: uma aula ilustrada, pois o livro conta em seus três capítulos de análise, com 119 imagens reproduzidas dos filmes analisados, o que configura como uma das grandes jogadas desse livro, pois quando o autor se reporta a determinada passagem de um dos filmes analisados, na sequencia é possível conferir quase como se estivéssemos no Cinema.

A concepção de História de Quinsani está em consonância com Eric Hobsbawm para quem “o ofício dos historiadores é lembrar o que os outros esquecem”XIV e com Tony Judt, quando adverte à nossa sociedade de que “de todas as nossas ilusões contemporâneas a mais perigosa é a ideia de que vivemos em um tempo sem precedentes”XV. Ao analisar o filme de Ken Loach, o autor foi capaz de ler “que o filme busca educar às novas gerações e alertá-las do perigo do esquecimento”.XVI Pois bem, A Revolução em Película também cumpre esse papel.

Notas

2 MATTHEWS, Herbert. Metade da Espanha morreu: uma reavaliação da Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

3 JUDT, Tony. Reflexões sobre um Século Esquecido (1901-2000). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 149. Judt também observa que Hobsbawm é o “historiador mais conhecido do mundo”. Idem, p. 137.

4 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 157.

5 Idem, p. 161.

6 JUDT, op.cit., p. 13.

7 QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014.

8 Idem, p. 10. Interpolações minhas.

9 Idem, p. 77.

10 HOBSBAWM, op.cit., p. 162.

11 QUINSANI, op.cit., p. 109.

12 Idem, p. 144.

13 HOBSBAWM, op.cit., p. 158.

14 Idem, p. 13.

15 JUDT, op.cit., p. 32-33.

16 QUINSANI, op.cit., p. 112.

Referências

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

JUDT, Tony. Reflexões sobre um Século Esquecido (1901-2000). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

MATTHEWS, Herbert. Metade da Espanha morreu: uma reavaliação da Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014.

Charles Sidarta Machado Domingos – Doutor em História pela UFRGS. Professor DIII-3 do IFSUL – Câmpus Charqueadas.

Acesso à publicação original

A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola / Rafael H. Quinsani

Uma das grandes marcas do Século XX é a sua relação com a guerra. Não há como o historiador entender o Século XX –independentemente de sua posição social ou geográfica no mundo –se fechar os olhos para esse fenômeno sempre revestido de violência e de crueldade, pois a guerra é capaz de despertar o lado mais sombrio do ser humano. O maior historiador do (e sobre o) Século XX, Eric Hobsbawm, assim sinaliza a importância da guerra para esse século:

Não há como compreender o Breve Século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra. Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões se calavam e as bombas não explodiam. Sua história e, mais especificamente, a história de sua era inicial de colapso e catástrofe devem começar com a da guerra mundial de 31 anos [1].

Além da guerra, o Século XX é também o século por excelência do Cinema. É nesse século que ele se desenvolve tanto em suas técnicas quanto em suas temáticas. Inclusive, é nesse século que é utilizado também como elemento de propaganda, tanto de regimes políticos quanto de modos de vida.

O encontro entre a Guerra e o Cinema no Século XX, então, era só uma questão de tempo:

Assim, a guerra frequentou o cinema intensamente, desde suas origens, ora sob a forma de cinejornal –poucas vezes diferenciado da propaganda política de cunho nacionalista –ora como ficção, celebrando o heroísmo nacional e a tragédia grandiosa da guerra. Algumas vezes, o cinema assumiu, de modo claro, um papel fortemente pacifista, de combate e denúncia contra a guerra, pensada enquanto irrazão [2].

Quando Hobsbawm se reporta a uma guerra mundial de 31 anos, ele quer evidenciar que há um processo de continuidade entre 1914 e 1945. Imediatamente, podemos pensar que ele se refere à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mas podemos depreender que ele possa estar, também, se referindo a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) dentro desse processo de continuidade. Afinal, não são poucos os historiadores que percebem o conflito da Espanha como um prelúdio da Segunda Guerra Mundial.

Um historiador que assim percebeu a Guerra Civil Espanhola, ressaltando seu caráter de “microcosmo global, pois sintetizava o radicalismo e a polarização de uma era” é Rafael Hansen Quinsani, emseu livro A Revolução em Película. [3] Logo na introdução, é realizada uma síntese eficiente do conflito entre republicanos e nacionalistas, capaz de permitir que mesmo o leitor não especialista na temática tenha uma boa noção do que representavam os dois projetos em disputa na Guerra Civil.

O autor examina, com uma riqueza de detalhes ímpar, a partir de seu método de análise histórico-cinematográficotrês filmes realizados na década de 1990: duas produções espanholas (!Ay, Carmela!, de Carlos Saura e Libertárias, de Vicente Aranda) e uma produção britânica (Terra e Liberdade, de Ken Loach). Muito mais que um historiador que comenta filmes, Quinsani, a partir de sua metodologia de trabalho, obtém uma nova forma de escrita da História, realizada a partir de três eixos articulados entre si: o cinema nahistória, a história nocinema e a história docinema. Para tanto, o autor examina alguns vestígios:

A anotação dos diálogos permitiu a análise do conteúdo histórico de cada fala e de cada personagem. Os diálogos mais irônicos de Libertárias e! Ay, Carmela! ocorrem pela formação dos cineastas espanhóis e pela maior incidência do caráter tragicômico na cultura espanhola como um todo. A anotação dos ângulos de câmera, os planos utilizados, os movimentos empregados e os recursos fotográficos presentes, permitiram o uso do plano geral para enquadrar ambientes naturais e coletividades humanas, como manifestações, reuniões e desfiles presentes nos três filmes. A alternância de planos médios e planos americanos é o que mais ocorre nos filmes. O uso do primeiro plano, o close-up, é empregado para destacar algum objeto (a carteira do Partido Comunista rasgada por David) ou alguma expressão facial (os olhos de Durruti). […] Libertárias, dentre os três, é o que mais apresenta movimentos de câmera, travellingse panorâmicas, ressaltando o caráter dinâmico da narrativa. !Ay, Carmela! também utiliza bastante movimento de câmera, mas concentrado em espaços fechados. Esta é a película que utiliza mais recursos de iluminação direcionados na composição dos personagens. O uso do claro-escuro é empregado em diversos momentos e diferencia-se do tom mais cru utilizado nos outros dois filmes. O emprego do som é utilizado de forma sincrônica à linguagem visual, sendo que algumas vezes ocorre uma transposição para o emprego ilustrativo. Somente Terra e Liberdadeutiliza narração em off, do próprio protagonista, destacando duas instâncias temporais e operando sobre o espectador uma dupla imersão: no passado representado, e no presente em que assiste a esta representação [4].

Assim como duas são também as críticas a serem realizadas perante todo e qualquer vestígio do passado: a crítica interna, capaz de avaliar o significado da fonte histórica; e a crítica externa, na qual se busca a melhor orientação acerca das condições de produção da fonte que “necessariamente está divulgando uma ‘mensagem’, uma interpretação da realidade, uma visão de mundo que pertence ao seu autor. Este é, por sua vez, o resultado de múltiplas e incontáveis relações sociais que remetem para a sociedade onde foi realizada a produção cinematográfica” [5].

Assim, é importante lembrarmos, que os três filmes são realizados na década de 1990, um período no qual a democracia voltou à Espanha após mais de 35 anos de ditadura franquista. [6] Em 1978, três anos após a morte de Francisco Franco, foi estabelecida a Monarquia Parlamentar. Quatro anos após, portanto em 1982, o Partido Socialista Operário Espanhol assumiu o poder político na Espanha. Desse período para cá, muito se debateu acerca da Guerra Civil Espanhola e do Franquismo naquela sociedade, e a produção dos filmes analisados certamente contribuiu para essas discussões. E isso não escapa ao autor, que é capaz de perceber todo o componente político que subjaz a época na qual as pessoas foram aos cinemas assistir !Ay, Carmela!, Terra e Liberdade e Libertárias:

A transição foi baseada numa anistia progressiva, onde o Franquismo se transformou e se adaptou à persistência das elites. A lei da Anistia deixou impunes os autores dos crimes de lesa humanidade, pois buscou silenciar o passado embasado numa hipótese de culpa coletiva [7].

A teoria dos dois demônios é muito propagada na sociedade: está fundamentada na noção –difundida pelos que deram o golpe –de que eventuais “excessos” cometidos pelas forças estatais se justificam em razão de evitar um “mal maior”, quase sempre associado com o comunismo. Não se menciona, no entanto, que houve o aparelhamento do Estado por longos anos de ditadura censurando obras da cultura e mesmo a imprensa, prendendo adversários que muitas vezes sequer desenvolviam atividades que poderiam ser consideradas “subversivas”, obtendo confissões à base de torturas, desaparecendo para sempre com pessoas que contestavam a força dos quartéis.

Que conste que o país em questão ainda é a Espanha. Por mais que eu esteja escrevendo essa resenha em março de 2014. E por mais que você, no Brasil, conheça bem de perto essa História!

Notas

  1. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos–O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 30.
  2. TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Guerras e Cinema: um encontro no tempo presente. In: Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. Niterói: 7 Letras, Vol. 8, nº 16, 2004, p. 95.
  3. QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014, p. 13.
  4. QUINSANI, op.cit., pp. 154-5. Interpolações minhas.
  5. GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. Prefácio –História e Cinema, Noves Fora? In: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). A Prova dos 9: a História Contemporânea no Cinema. Porto Alegre: EST, 2009, p. 11.
  6. Para entender as bases de sustentação de uma ditadura tão longa, o trabalho de Francisco Calero é bastante oportuno. CALERO, Francisco Sevillano. A “cultura da guerra” do “novo Estado” espanhol como princípio de legitimação política. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, Vol. 1, pp. 257-282.
  7. QUINSANI, op. cit., p. 160.

Charles Sidarta Machado Domingos – Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSUL) – Campus Charqueadas


QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhais: Estronho, 2014. 224p. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. História histórias. Brasília, v.2, n.3, p.191-194, 2014. Acessar publicação original. [IF]

A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX | Denise Rollemberg e Samantha V. Quadrat

O século XX foi, talvez, o período histórico mais impactante da História da Humanidade. O nível de progresso social foi gigantesco – mesmo que raras vezes tenha beneficiado aos seres humanos de forma bem distribuída. O século XX foi o século da busca pela igualdade entre homens e mulheres, da conquista dos direitos civis, do reconhecimento dos direitos das minorias. Foi o século das Revoluções que pretenderam concluir o legado da Revolução Francesa: a Revolução Russa, mas também a Revolução Cubana, a Revolução de 1968, a Revolução Sandinista e tantas outras que enfatizavam o caráter da busca pela igualdade. Mas o século XX também o foi século dos horrores das duas Grandes Guerras Mundiais, do Nazismo, dos conflitos típicos da bipolaridade da Guerra Fria. O século XX trouxe flores, como Marc Riboud universalizou por sua célebre foto: algumas flores, no entanto, têm muitos espinhos.

Esses espinhos estão presentes por todo mundo! Não são mazelas de povos subdesenvolvidos, exclusivamente. Esses espinhos se materializaram, quase sempre, na forma de regimes autoritários. África, América, Ásia, Europa, em todos esses continentes houve ditaduras ao longo do século XX. Como as sociedades conviveram com essas ditaduras é a pergunta que articula os textos acadêmicos da coleção A Construção Social dos Regimes Autoritários, editada pela Civilização Brasileira e organizada pelas professoras Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Na última década, a editora Civilização Brasileira tem contribuído muito com a divulgação da pesquisa acadêmica em História. Foram editadas as coleções: O século XX (2000),[2] O Brasil Republicano (2003),[3] As Esquerdas no Brasil (2007), [4] O Brasil Imperial (2009).[5] Com a exceção de O Brasil Republicano, organizado em quatro volumes, as outras obras estão dispostas em três volumes e todas tem a organização delegada a professores de Universidades do Rio de Janeiro. Os mesmos moldes são seguidos na coleção organizada pelas professoras da UFF; mas há novidades na política editorial dessa coleção, entre elas, a grande quantidade de contribuições de historiadores e demais cientistas sociais do estrangeiro.

Há uma apresentação comum aos três volumes, assinada pelas professoras Rollemberg e Quadrat e na qual abordam a linha geral da coleção, baseada em dois problemas de pesquisa: “como um regime autoritário/uma ditadura obteve apoio e legitimidade na sociedade; como os valores desse regime autoritário/ditatorial estavam presentes na sociedade e, assim, tal regime foi antes resultado da própria construção social”.[6] Argumentam as autoras que o fio condutor da coleção é baseado em uma perspectiva mais original, haja vista que os estudos sobre as ditaduras, no Brasil por exemplo mas não só, são calcados fundamentalmente na idéia da resistência à implantação e ao desenvolvimento dos regimes autoritários, esquecendo-se que as ditaduras foram construídas e mantidas com o apoio de parcelas da população.

O primeiro volume da coleção aborda a Europa. Composto por 11 artigos, examinase a França colaboracionista do Regime de Vichy em dois artigos – um o ótimo “Sociedades e Regimes Autoriátios” de Marc Olivier Baruch, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS); a URSS é abordada em três artigos escritos por Marc Ferro, Daniel Aarão Reis e Angelo Segrillo – é de Segrillo a grande contribuição à coleção, em termos teóricos, ao utilizar o conceito de hegemonia elaborado por Antonio Gramsci enfatizando para o leitor leigo que “as hegemonias de classe na história não são apenas uma questão de imposição pela força, mas envolvem também uma criação de consenso em redor de certos valores, o que torna possível e mais estável sua dominação”;[7] o fascismo italiano está presente em dois artigos, um escrito por historiador francês e outro por historiadora italiana; sobre o regime nazista, duas colaborações aparecem na obra, sendo uma delas a interessante, para nós que gostamos do futebol, “O futebol sob o signo da suástica”, na qual o professor Nils Havemann, da Universidade de Mainz, demonstra o uso político do esporte. O primeiro volume ainda conta com textos sobre as ditaduras de Franco e Salazar no ocidente da Europa.

O segundo volume trata da América Latina – dos 17 artigos 8 são dedicados ao Brasil, entre eles: “Estado Novo: ambigüidades e heranças do autoritarismo no Brasil”, de Angela de Castro Gomes (grande influência para esse grupo de historiadores das Universidades do Rio de Janeiro); “Celebrando a ‘Revolução’: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe de 1964”, de Aline Presot; e “Simonal, ditadura e memória: do cara que todo mundo queria ser a bode expiatório”, de autoria de Gustavo Alonso. Sobre os demais países da América Latina esse volume – o mais extenso de todos – conta ainda com artigos para Argentina, Paraguai, Chile, Uruguai, México, Perú e Cuba (assim como eu estranho a inclusão de Cuba em uma coleção sobre regimes autoritários, outros analistas certamente estranharão a exclusão da Venezuela).

O terceiro volume analisa os continentes africano e asiático. Entre os 11 textos, chamam muito a atenção dois artigos escritos sobre a Tunísia e que foram escritos antes da Primavera dos Povos Árabes ocorrer: “À sombra da Europa, o autoritarismo no Mediterrâneo: o caso da Tunísia”, do professor Michel Camau, da Universidade de Aix-em-Provence e “Economia Política da Repressão: o caso da Tunísia” escrito por Béatrice Hibou, pesquisadora do Centre d’Études et de Recherches Internationales. O volume traz, ainda, contribuições muito relevantes sobre o Irã, o Iraque e a Coreia do Norte, demonstrando, historicamente, qual o verdadeiro sentido de terem sido enquadrados por George W. Bush como “Eixo do Mal”, além de artigos sobre a África Ocidental, São Tomé e Príncipe, África Central, China e Filipinas.

Mas a História não é feita apenas de sombras; também é feita luz! E essa luminosidade torna impossível para nós, professores de História, não condenarmos moralmente fenômenos terríveis como as ditaduras civil-militares, os fascismos e o caso incomparável – único regime realmente totalitário que o é – do nazismo. No entanto, parcelas da sociedade apoiaram as torturas, denunciaram opositores aos regimes, colaboraram com os invasores. Quem eram essas parcelas da sociedade? Por que fizeram isso? Quem foram os maiores beneficiados com essas rupturas dos Estados Democráticos de Direito? “A Construção Social dos Regimes Autoritários” fornece boas pistas para essas questões.

Notas

2. REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (orgs.). O Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 3v.

3. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 4v.

4. FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (orgs.). As Esquerdas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 3 v.

5. GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 3v.

6. ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz. Apresentação – Memória, História e Autoritarismos. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.12. V. 1.

7. SEGRILLO, Angelo. URSS: coerção e consenso no estilo soviético. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.123. V. 1.

Charles Sidarta Machado Domingos – Professor de História no IFSUL. Doutorando em História na UFRGS. Autor de O Brasil e a URSS na Guerra Fria. Porto Alegre: Suliani Letra e Vida, 2010.


ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 3v. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. As sombras do Século XX. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.308-310, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]