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Foices e Facões. A Batalha do Jenipapo | Bernardo Aurélio e Caio Oliveira; Dois de Julho: a Bahia na Independência do Brasil | Maurício Pestana
A leitura em conjunto e a comparação entre as obras de Bernardo Aurélio e Caio Oliveira e de Maurício Pestana levantam, de forma enfática, a questão da adaptação da historiografia brasileira para uma linguagem ainda pouco convencional na abordagem da história da Independência do Brasil: a das Histórias em Quadrinhos. Ambas possuem propostas semelhantes, ou seja, enaltecer, preservar e trazer à tona episódios de lutas locais ocorridos durante o processo de Independência – o ‘Dois de Julho baiano’ e a piauiense ‘Batalha do Jenipapo’ –, com pouca afirmação no imaginário histórico fora de seus estados de origem. Os governos dos dois estados figuram nas duas produções, tendo a Secretaria da Cultura baiana publicado e editado Dois de Julho: A Bahia na Independência do Brasil, e a Fundação Cultural do Estado Piauí patrocinado Foices e Facões. A Batalha do Jenipapo. Neste último, inclusive, há um prefácio de Wellington Dias, governador do Piauí à época do lançamento. No entanto, enquanto em Dois de Julho percebe-se a intenção de uma leitura rápida e de extremo didatismo, Foices e Facões se destaca como um trabalho mais denso e de liberdade autoral.
Esse tipo de adaptação não é algo novo. Da Colônia ao Império – um Brasil para inglês ver (1983), de Lilia Schwarcz em parceria com o cartunista Miguel Paiva, se tornou obra referencial neste campo. Mais recentemente, Schwarcz voltou a explorar essa linguagem em D. João carioca: a corte portuguesa chega ao Brasil (2008), em colaboração com o ilustrador Spacca, e em História do Brasil em Quadrinhos: chegada da Família Real – Dia do Fico – Independência (2008), roteirizada por Jota Silvestre e Edson Rossato, e ilustrada por Laudo, a Independência foi novamente quadrinizada. Evidente que propostas, formas e conteúdos diferem bastante de uma obra acadêmica para um enredo de HQ. Este último, geralmente, tende a enfocar essencialmente tramas e conflitos entre personagens, situando o seu desenvolvimento em um tempo curto, como o dos eventos. Uma narrativa dramatizada baseada em indivíduos. Algo que na ciência histórica se assemelha a mais tradicional história política em sua roupagem oitocentista. O rigor científico tende a ser muito menor, havendo bastante liberdade criativa na construção de um enredo funcional, compromisso primordial da HQ.
No entanto, essa linguagem, caracteristicamente mais artística e ficcional, não deve ser tida como completamente descompassada e incongruente com a produção acadêmica. É possível constatar, numa aparentemente descompromissada dramatização em quadrinhos, maneiras de expor ou levar o leitor a intuir sobre questões atuais na historiografia, havendo assim um potencial de divulgação considerável nesse tipo de adaptação. Vale a pena, portanto, uma discussão acerca das soluções narrativas utilizadas pelos autores para a adaptação de conteúdos mais frequentemente trabalhados pela historiografia, neste caso, a Independência.
Em Dois de Julho, Maurício Pestana – jornalista e cartunista – desenvolve sua obra em trinta e quatro páginas, o que sugere certa compactação do conteúdo quando comparada com as mais de duzentas páginas de Foices e Facões, produzidas pelo roteirista – e também historiador – Bernardo Aurélio e pelo desenhista Caio Oliveira. A solução narrativa apresentada por Pestana consiste na utilização de uma personagem narradora, a garota Hamalli, como interlocutora entre os eventos passados e o leitor. Dessa maneira, existem duas linhas temporais distintas na obra: o presente, onde a presença e voz de Hamalli norteiam e expõem os acontecimentos que culminam no ‘Dois de Julho’ baiano, sobreposto ao passado mudo das ilustrações, que servem como acessório ao discurso da narradora. Em outras palavras, um passado condensado por um discurso sintético do presente.
Não se trata de um recurso original, podendo ser identificado em outros títulos, como, por exemplo, na obra de Silvestre e Rossato, acima mencionada. O problema desse expediente é afastar o leitor da visão do passado como um processo dinâmico, múltiplo em suas possibilidades e em constante (re)construção. De fato, acaba por apresentar o objeto histórico em quadros fixos e estáticos, cuja única função é ilustrar e confirmar o que a personagem do presente, portanto, extemporânea ao passado histórico, tem a dizer sobre ele.
Logo, na obra de Pestana, o passado é absolutamente imóvel, determinado e obedece a um devir inevitável, encapsulado nesses quadros estáticos, sem maior espaço para apresentar mais e diversas nuances de si mesmo. A própria característica sequencial dos quadrinhos se torna pouco efetiva, pois a única continuidade de ação é a da fala narradora, que ambientada fora das ilustrações do passado histórico, deixam estas últimas como uma espécie de fotografias colocadas em série, mas sem maiores progressões de ação quadro a quadro. Configura-se, assim, um objeto histórico mudo, apresentado em flashes fixos, paralisados, recortados de seu contexto e mais aprisionados pelos enquadramentos do que se utilizando deles para se desenvolver.
De maneira oposta, Aurélio e Oliveira aproveitam as duas centenas de páginas para deixar a trama – o passado – , se construir por si, sem a intervenção e tutela de uma linha temporal do presente. Não há uma diretriz extemporânea para determinar o desenvolvimento da ação, sendo sintomático como essa liberdade concedida ao passado, que se constrói através de um roteiro mais denso, resulta em maior sofisticação tanto no enredo quanto no conteúdo histórico exposto.
Foices e Facões, além de dar voz aos personagens – alguns históricos outros ficcionais –, apresenta tramas que se desenvolvem concomitantemente, em diferentes núcleos, de forma semelhante a uma novela. Isso permite, por exemplo, uma maior aproximação da ‘Batalha do Jenipapo’ com a mais conhecida progressão de eventos do centro-sul, cujo ápice é tradicionalmente visto como sendo o grito de D. Pedro. Os dois eventos são alinhados no início da história, dando uma ideia de complementaridade entre eles. Ao contrário, a rigidez narrativa de Dois de Julho lida de maneira mais conflituosa com os eventos mais próximos à Corte. Não há representação gráfica do grito, cujas menções diretas são reduzidas a passagens textuais. “Um campo de batalha. Mortos, feridos e muita desolação. Bem diferente da cena de um imperador gritando ‘Independência ou morte’…O cenário da guerra foi Salvador. Vésperas do 2 de julho de 1823, quando o Brasil ficou, de fato, independente de Portugal” (p.5). Nota-se na passagem a oposição entre as duas datas, como em uma disputa para determinar qual é a mais exata ou significativa para demarcar a Independência em perspectiva nacional. E não se torna forçoso extrair daí um ufanismo regionalista, deslocando a primazia do cenário do Centro-Sul, mas apenas para substituí-la pelo Nordeste. Se há na historiografia acadêmica obras que privilegiam espacialmente os arredores da Corte, estabelecendo um elo direto entre, por exemplo, a Inconfidência Mineira e o 7 de setembro, que muitos historiadores das últimas décadas vêm evitado explicitamente, de forma análoga aqui temos que, para Pestana,
Lembrar o 2 de julho, dia da Independência da Bahia, de fato, é trazer de volta a maior vitória do povo brasileiro e pouco estudada fora da Bahia, mesmo sendo a data de fato da Independência do Brasil, uma batalha vencida por negros, indígenas e brancos que antes mesmo do início dos conflitos já tinham histórico de luta por liberdade. É só analisarmos rebeliões de negros (escravos, libertos e livres), que em 1798, aliando-se também a brancos liberais inspirados na Revolução Francesa, iniciaram em Salvador uma luta por liberdade conhecida como a Revolta dos Búzios, reprimida violentamente. Alguns anos depois, essa mesma população negra se juntaria a indígenas e brancos com esses ideais libertários e se alistariam maciçamente no exército pacificador que combateria os portugueses em solo baiano (p.6).
De forma mais sutil, Foices e Facões inicia com o convencional grito em 1822, mas logo avança para o Piauí, em 1823, levando o leitor a intuir que tanto a Batalha do Jenipapo quanto os acontecimentos em São Paulo são duas eventuais cristas de uma mesma onda, ou processo. Há, desse modo, uma aproximação com a historiografia da Independência mais atual, pois, ao contrário de Dois de Julho – onde majoritariamente eventos são listados um em seguida do outro, como se obedecessem a uma ordem lógica –, a noção de um processo que se desenvolve para além da ação individual e prenhe de possibilidades se faz presente.
Esse resultado só é possível, novamente, pela maleabilidade do roteiro. Ao comportar subtramas, contendo diferentes núcleos de personagens de diversas origens e estratos sociais, o enredo de Foices e facões tende a dimensionar um halo de ação que ultrapassa o indivíduo, perpassando todas essas subtramas e inserindo-as num conflito numa perspectiva mais conjuntural. A Independência não se torna uma ação sob a regência de alguns personagens, mas pelo contrário, o soldado reinol, a família de camponeses, o latifundiário, membros da elite favorável à Corte do Rio de Janeiro, todos eles estão, em suas ações, em uma relação mais dialética com esse processo. A Independência torna-se uma espécie de personagem oculta, mas imprescindível, que se faz presente como a fonte e linha mestra de todos os conflitos e ações dos indivíduos presentes na trama.
As duas obras simplificam, em determinados momentos e em maior ou menor grau, o sentido dos confrontos que lhes dão os respectivos títulos, apresentando-os como uma simples oposição entre portugueses e brasileiros, sem maiores considerações acerca dessas duas categorias identitárias – muito matizadas pela historiografia na última década – bem como da natureza de suas origens. Nesse ponto, verifica-se em ambas as obras a reiteração de um persistente lugar-comum que assume que, à época, os dois termos estivessem profundamente consolidados, imunes a qualquer questionamento, resultando, portanto, em identidades plenamente distintas. Sobretudo em Dois de Julho, o português não é apenas oposto ao brasileiro, mas frequentemente a outras identidades mais locais. Assim, lemos que “os cachoeiranos venceram e aprisionaram os integrantes das escunas e todo o armamento dos portugueses… É bom lembrar que em matéria de armamento, era brutal a diferença entre brasileiros e portugueses” (p.13).
Em Foices e Facões, a excessiva dicotomização identitária também se faz presente, sobretudo nos diálogos entre as personagens: “prenderam o padre lá na vila…prenderam ele porque era português. Vão acabar prendendo o Januário por causa das besteira que ele anda dizendo” (p.95). O mencionado personagem Januário é um caso em que as fronteiras entre as duas identidades se tornam mais tênues. Trata-se de um latifundiário estabelecido no Piauí, que apoia a manutenção do Reino Unido português e, por conseguinte, os esforços do Major Fidié, governador geral designado por D. João VI para uma campanha de consolidação do poder da Coroa sobre a capitania. Ao leitor, ainda que isso não seja explícito no texto, ele se encaixa como morador tradicional de Campo Maior, não podendo ser chamado de português na conotação de ser um recém-chegado e estranho à terra, apesar de sua origem além-mar. “Sou português, sou cidadão. Quando me casei com você filha desta vila, tive filhos brasileiros. Exijo proteção” (p.97). Algumas páginas antes, um membro da elite piauiense e articulador da adesão da província a Corte do Rio de Janeiro diz:
Deixe-me lhe contar uma coisa Dr. Cândido: este navio acaba de chegar da Inglaterra. Portugal quer a volta do pacto colonial…Meu pai, que era português, me contou com satisfação dos acontecimentos de 1808, quando abriram os portos para as nações amigas depois que a corte portuguesa chegou aqui. Já imaginou os prejuízos desse retrocesso. (p.41)
Ainda que todas as passagens individualmente denotem que o “ser português” provém essencialmente da origem europeia dos indivíduos – concepção já desconstruída pela historiografia –, a leitura delas na sequência fragiliza essa ideia. O local de nascimento passa a dividir importância com a orientação política e interesses no futuro incerto da união entre os dois reinos. O pai português que defende a abertura dos portos e gera um filho separatista contradiz a ideia de uma fidelidade ao território português, supostamente inata aos nascidos na Europa. Por outro lado, um reinol de nascimento, mas plenamente integrado no Piauí, vê-se dividido por uma lógica dualista que suplanta seu pertencimento à província. Por fim, o soldado Luis, português de nascimento, e inicialmente a serviço de Fidié, encerra a história desertando e se estabelecendo junto a uma família de camponeses em Campo Maior. Portanto, é possível ao leitor intuir que o par identitário português/brasileiro não era, à época, estanque, e dependia mais ou igualmente de uma opção política do que o local de nascimento; também não se fazia presente em qualquer situação, mas era evocado, sobretudo, por conjunturas específicas no interior do processo de Independência, podendo ser agregado, entrar em confronto, ou simplesmente coexistir com outras identidades.
Mais uma vez, essa diferença entre as duas obras perpassa a maneira como seus roteiros são desenvolvidos. Em Dois de Julho, o passado mais imobilizado pela voz de uma personagem do presente tende a não ser mostrado como detentor de múltiplas possibilidades, mas apenas como o que teria inevitavelmente ocorrido. E nesse escopo teleológico, a separação entre português e brasileiro cabe aparentemente sem maiores problemas. No entanto, o roteiro de Foices e Facões, que permite a visualização de um passado em construção, através da ótica e da relação entre diversos indivíduos, permite o questionamento dessa distinção de identidades, embora não a sustente explicitamente.
Logo, não é necessariamente a linguagem dos quadrinhos um suporte insuficiente ou contrário à transposição do conteúdo científico da historiografia. O alcance e os limites da narrativa de uma HQ variam de acordo com a inventividade do autor em sua capacidade, claro, de aproveitar inspirações de conteúdos formais, neste caso, advindos da historiografia acadêmica. Cabe a este relacionar as possibilidades de uma história desenvolvida através da progressão quadro a quadro com o tipo de conteúdo a ser adaptado. No caso da historiografia, de maneira semelhante ao já citado Da Colônia ao Imperio – um Brasil para inglês ver, Foices e Facões demonstra ser possível apresentar conjunturas e processos através de um enredo amplo contendo diversas subtramas se desenvolvendo em um mesmo roteiro. No entanto, a utilização do narrador fora do passado de que se fala, como é notado em Dois de Julho, apresenta maior risco de um discurso teleológico. O esforço de fugir de uma transposição mecânica, explorar os limites da composição de um roteiro, é fundamental para a descoberta de novas maneiras de unir de modo mais eficaz HQs e historiografia.
Luis Otávio Vieira – Graduando em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil). E-mail: luis_vieira_mail@yahoo.com.br
AURÉLIO, Bernardo; OLIVEIRA, Caio. Foices e Facões. A Batalha do Jenipapo. Teresina: Núcleo de Quadrinhos do Piauí, 2009. PESTANA, Maurício. Dois de Julho: a Bahia na Independência do Brasil. Salvador: FPC/SecultBa, 2013. Resenha de: VIEIRA, Luis Otávio. A Independência em quadrinhos: formas de se contar história (s). Almanack, Guarulhos, n.6, p. 158-162, jul./dez., 2013.