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Os mundos do trabalho e suas interfaces com a ciência, a saúde e a doença | Mundos do Trabalho | 2020
Vivemos um presente distópico, de pandemia e mudança repentina de hábitos, paradigmas, maneiras de compreender a realidade e lidar com suas consequências em nossa vida cotidiana. Uma realidade que foi pincelada, de maneira mais ou menos próxima ao que vivenciamos, por autores de ficção do século passado. O historiador Sidney Chalhoub se referiu ao momento que enfrentamos neste ano de 2020, com a pandemia da covid-19, como uma distopia neoliberal. Uma doença desconhecida, um vírus novo, e em poucos meses o mundo inteiro parou – e se trancou em casa. Ao menos quem pode. A pandemia obrigou os mercados a reduzir sua atividade, forçou o isolamento, encerrando viagens locais e internacionais, fechando fronteiras, na contramão da defesa exagerada do consumo e das propostas de um neoliberalismo privatista de extrema direita que se instalou em grande parte do mundo neste começo de século. A tão ovacionada globalização que, como descreveu Frederick Cooper, é sempre invocada para incentivar os países ricos a diminuir o Estado social e os países pobres a reduzir as despesas sociais, sofreu um forte abalo com a covid-19.1 Mais do que nunca, ficou explícita a importância de um sistema de saúde público e eficiente, de um Estado consistente que centralize a organização de todas as forças possíveis para salvar vidas. Leia Mais
Saúde-doença dos trabalhadores / Tempos históricos / 2015
As últimas décadas poderiam ser entendidas como de uma verdadeira obsessão por parte do empresariado nacional em busca da obtenção de indicadores de qualidade, traduzidos, por exemplo, na multiplicação de ISOs (International Organization for Standardization) 9000. A argumentação para tal firma-se na necessidade de um mercado globalizado, referenciado em padrões compatíveis com os parâmetros internacionais, visando a satisfação do consumidor mais remoto, via procedimentos massivos adotados na produção e na distribuição.
Desdobramento dessa busca pode ser notado nas constantes liberações (permissões) de produtos e serviços para exportações a países e regiões, conjuntamente a obtenção de certificados de qualidade específicos para este ou aquele produto, que não só os da ISO, como, por exemplo, o British Retail Consortium (BRC) obtido pelo setor frigorífico para exportação na Europa.
Esta obsessão, como tudo na sociedade capitalista, parece extremamente seletiva, pois foca no produto, mas não necessariamente no produtor, aquele que efetivamente faz a transformação das matérias primas no objeto desejado – de diversas ordens -, sujeito a péssimas condições de trabalho e via de regra exposto a riscos, agravos, acidentes etc. Vejamos alguns indicadores disponibilizados pela OIT (2014):
– 2,02 milhões de pessoas morrem a cada ano devido a enfermidades relacionadas com o trabalho;
– 321 mil pessoas morrem a cada ano como consequência de acidentes no trabalho;
– 160 milhões de pessoas sofrem de doenças não letais ligadas ao trabalho;
– 317 milhões de acidentes laborais não mortais ocorrem a cada ano;
– a cada 15 segundos, um trabalhador morre de acidentes ou doenças relacionadas com o trabalho;
– a cada 15 segundos, 115 trabalhadores sofrem um acidente laboral.
As comparações estatísticas seriam diversas. Fiquemos apenas numa: o trabalho matou quase seis vezes mais do que a dengue no Brasil, em números absolutos. Ou seja, em sete anos, de 2007 a 2013,
o país teve 5,3 milhões de casos de dengue, número equivalente aos acidentes de trabalho. Menos letal, a doença matou 3.331 pessoas, média de 475 por ano, contra 19.478 óbitos no trabalho, ou 2.780 por ano – os 720 mil acidentes anuais ainda deixam 14,5 mil inválidos permanentes. Cabe lembrar que, ano após ano, o combate à dengue mobiliza todo o país, um esforço que não se vê no combate aos perigos no trabalho [3].
Além disso, o trabalho era mais letal do que a dengue: o risco de morte é quase 12 vezes maior, tomando-se a população trabalhadora e a população geral sob o risco do vírus. Só no Brasil, segundo o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), esta situação comprometeu, entre 2003 e 2014, R$ 16 bilhões, sendo que estas despesas consomem 90% dos recursos daquele órgão [4]. Isso ilustra o fato de que os recursos públicos são investidos de forma trágica, pois os problemas são estruturais e não se consideram as causas, mas tão somente os aspectos secundários. Ou então, o que dizer sobre a insegurança e a desatenção do capital e do Estado para com a saúde do trabalhador serem tratados nos tribunais!
Com base nos exemplos, que se perdem à exaustão, é imprescindível a associação entre processo de trabalho e saúde do trabalhador. Isso requer nossas atenções para a qualidade de vida do trabalhador dentro e fora do trabalho, já que esta está cada vez mais ameaçada, coerentemente sustentada na irracionalidade sistêmica do capital, ou seja, na extração de trabalho não pago, base estrutural de todo o edifício sociometabólico da sociedade capitalista.
Este dossiê “Saúde / Doença do Trabalhador” busca contribuir não só com esta discussão, mas também com a visibilidade do problema, colocando-a em perspectiva histórica, evidenciando a longevidade e as fissuras da relação saúde / doença. Neste sentido, se a insalubridade e fatalidade do trabalho para o trabalhador é uma aspecto da produção capitalista que perdura conjuntamente a esse sistema, suas circunstâncias e formas têm a mesma diversidade, o que fica caracterizado, longe do suficiente, nos quatro artigos que compõem o dossiê.
Assim, em “Saúde e trabalho no Brasil e os desafios da participação”, Carlos José Naujorks, pontua a historicidade da conceituação da questão, partindo de médicos e sanitaristas europeus no século XIX, deslocando-se à participação e mobilização dos trabalhadores no Brasil na defesa da salubridade laboral no século XX. Comparativamente aos outros artigos que compõem este dossiê, Naujorks contribui com uma visão sintética e geral da questão, ao passo que os demais artigos focam categorias específicas de trabalhadores.
O artigo de Anderson Vieira Moura, “Operários têxteis e o acesso à saúde”, parte de processo judicial, investiga as articulações entre diferentes grupos – patrões, sindicalistas e profissionais da saúde, além dos próprios trabalhadores – no que se refere ao acesso aos serviços médicos vinculados ao trabalho, em Maceió, na década de 1950.
No artigo de César Augusto Martins de Souza, a construção da rodovia Transamazônica, na década de 1970, é o “palco” dos embates vividos pelos trabalhadores em relação às enfermidades e mortes, não só dos que executavam a obra, como também da população lindeira, também atingida pelo “empreendimento”. De posse de farto material empírico, o autor contrapõe elementos críticos com base na euforia dos asseclas da ditadura pós-1964 com a possível “ocupação” daquela região que viabilizaria a exploração de madeiras, fauna, minérios etc. suas muitas riquezas e as preocupações com os riscos que tal obra poderia propiciar à saúde pública.
No quarto artigo desta coletânea, Fernando Mendonça Heck investiga e interpreta uma das categorias profissionais que expressam, desafortunadamente, na contemporaneidade mais estreitamente aquela contradição que apontamos no inicio desta introdução: os trabalhadores em frigoríficos. Este setor que propagandeia o sucesso da produção com qualidade no Brasil, detentora de índices de exportação e rentabilidades, mesmo em períodos de suposta crise, expressivos, laureado com diversos certificados internacionais que atestam a grandeza do agronegócio nacional, é, articuladamente e não tão divulgado, um dos setores que mais danos causam aos trabalhadores. Esses elementos são abordados por Heck, com as atenções também para o processo crescente de terceirização implementado pelo capital para fragilizar a luta político-organizativa dos trabalhadores.
Tendo em conta a natureza do tema, ficaria difícil desejar aos leitores uma agradável leitura. Desejamos assim que ao menos ela seja proveitosa, não só no aprofundamento de discussões, mas também como oportunidade de denunciar a situação.
Notas
3. Gazeta do Paraná, O Trabalho mata mais do que epidemia no Brasil, 5 de julho de 2015. Disponível em www.gazetadopovo.com.br / vida-e-cidadania / especiais / acidentes-de-trabalho-no-brasil / index.jpp.
4. In INSS, 1º. Boletim Quadrimestral sobre Benefícios por Incapacidade, 25 de abril de 2014. Disponível em http: / / www.previdencia.gov.br / wp-content / uploads / 2014 / 04 / I-Boletim-Quadrimestral-deBenef%C3%ADcios-por-Incapacidade1.pdf
Antonio Thomaz Junior – Doutor em Geografia (USP), professor do Programa de Pós-Graduação e da Graduação em Geografia da UNESP (Campus de Presidente Prudente).
Rinaldo José Varussa – Doutor em História Social (PUC-SP), professor associado do Programa de Pós-Graduação e da Graduação em História da UNIOESTE (Campus de Marechal Cândido Rondon).
THOMAZ JUNIOR, Antonio; VARUSSA, Rinaldo José. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.19, n.2, 2015. Acessar publicação original [DR]