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Documentos Judiciais e História Social / História Social / 2011
O uso de documentos judiciais como fonte histórica já está estabelecido na historiografia. Há cerca de quatro décadas, esse material vem sendo abordado por historiadores interessados em resgatar aspectos da fala, da vida e do cotidiano das camadas mais pobres da população, que por muito tempo foram relegadas à margem da História. O potencial dessa documentação abriu relevantes e férteis caminhos de investigação em nossa produção acadêmica, sobretudo, no campo da História Social. Por outro lado, a importância dos documentos judiciais para a pesquisa histórica – e para a formação de cidadãos – revela, de maneira gritante, a indiferença do Poder Público em matéria de arquivamento e preservação. O dossiê “Documentos Judiciais e História Social” propõe-se a discutir esse paradoxo, ou seja, se de um lado o leitor encontrará estudos de caso que mostram, com brilhantismo, as potencialidades da documentação judicial, por outro, deparar-se-á com textos que colocam em relevo a importância desse material.
Assim, logo na abertura, Paulo Afonso Zarth aborda “A importância dos arquivos do poder judiciário para a pesquisa histórica”, destacando sua experiência junto ao acervo do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Em busca de elementos para o estudo da história agrária do Planalto Sul Rio-grandense durante o século XIX, Zarth propõe-se a questionar pesquisas que enfatizavam a predominância das plantations na região. Amparado por ampla documentação sobre a estrutura de posse de terra, bens e disputas judiciais, Zarth pôde apresentar uma visão mais aprofundada das relações sociais e econômicas na região destacando-se, especialmente, a presença considerável de pequenos produtores de origem nacional e escravos, ao contrário de uma visão que lançava este porte de unidades produtivas nas mãos de imigrantes europeus.
No artigo seguinte, “O problema de viés de seleção na pesquisa histórica com fontes judiciais e policiais”, Karl Monsma ressalta a necessidade de estabelecimento de metodologia criteriosa para a escolha e tratamento de fontes policiais e judiciais. Ao passo que reforça a importância deste tipo de material de pesquisa, Monsma nos conduz por uma série de fatores que podem condicionar a própria constituição dos acervos documentais e, assim, determinadas escolhas por recortes de fontes, tanto quantitativas como qualitativas, podem influenciar decisivamente nos resultados das pesquisas.
O trabalho de Rita de Cássia Mendes Pereira, “O trabalhador rural nas fontes da justiça do Trabalho (Vitória da Conquista-BA, 1963-1982)”, relata, inicialmente, os esforços do grupo de pesquisadores reunidos no Laboratório de História Social do Trabalho da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (LHIST / UESB), na organização de fontes para o estudo da região à qual pertence a cidade baiana. As atividades de coleta e catalogação do material produzido pela Junta de Conciliação da cidade embasaram a formulação dos problemas apresentados pela autora em relação a utilização dos documentos. O que possibilitou perceber as diferenças quanto à natureza das reivindicações e às estratégias de luta adotadas, pelos trabalhadores que recorreram à Justiça do Trabalho pelo cumprimento da legislação trabalhista e pela ampliação de direitos.
Em “Não só para “inglês ver: justiça, escravidão e abolicionismo em Minas Gerais”, Luiz Gustavo Santos Cota analisa a lei que proibiu o tráfico atlântico de escravos para o Brasil, publicada em 7 de novembro de 1831, e questiona o epíteto atribuído ao dispositivo como algo para “inglês ver”. A partir da pesquisa em processos judiciais, especialmente aqueles produzidos na década de 1880, o autor percebeu que a lei de 1831 serviu de importante instrumento na luta contra a escravidão. Ao observar a mobilização de advogados simpáticos à causa abolicionista e a ação dos mesmos para mobilizar o repertório legal necessário para garantir a liberdade dos cativos, o autor reforça a importância do uso das fontes judiciais para o questionamento de impressões arraigadas na historiografia, e aprofunda os novos desdobramentos de pesquisas que utilizaram este tipo de fontes.
O último texto do dossiê, “A Luta Pela Preservação dos Documentos Judiciais: a trajetória do combate à destruição das fontes a partir da Constituição de 1988”, de Magda Barros Biavaschi e Alisson Droppa, trata de uma longa trajetória da luta pela preservação de documentos que há décadas demonstraram o seu valor histórico e cultural. Os autores detalham a mobilização nas arenas judiciais, legislativas, na imprensa e nas associações de profissionais como magistrados, advogados e historiadores para garantir a permanência de processos judiciais e, em especial, trabalhistas de modo que possam garantir o acesso à informação, à pesquisa, em suma, à cidadania. A defesa do arquivamento integral de nossos arquivos judiciais fica evidente no dossiê.
Certamente, ao deparar-se com as páginas desta edição da revista História Social, o leitor identificará a relevância política e historiográfica dos temas debatidos. No artigo de Zarth, percebe-se que o próprio ato da preservação interferiu diretamente na concepção do objeto, especialmente, em relação à história do “homem esquecido”, tal como também nos é mostrado por Luiz Gustavo Cota. Os caminhos e as dificuldades estabelecidas pelo “viés de seleção” apresentado por Monsma reforçam a necessidade das séries documentais completas. Quanto mais preservado um acervo, ou seja, quanto menor o corte estabelecido para preservação das fontes, mais chances teremos para criar critérios de seleção e análise que resultem conclusões mais sólidas. No caso dos processos judiciais trabalhistas, estudados por Rita de Cássia, observa-se a importância da reflexão e do engajamento de instituições e intelectuais quanto ao uso e à preservação desse material. Nesse sentido, o artigo de Biavaschi e Droppa nos conduz por uma outra história, recente e triste, de uma ampla mobilização pela manutenção destes documentos tão ricos e relevantes para a observação do que nos foi deixado pelo passado e do nosso legado para gerações futuras enquanto grupos organizados transforma História em fumaça. Que este dossiê, “feito de pedra, tijollos, cimento e ferro”, em referencia a fonte utilizada por Zarth, que ajude-nos a salvar o “quanto possível, contra a ação destruidora do fogo, a importante papelada que constitui a garantia da riqueza de todos”.
Samuel Fernando de Souza – Pós-doutorado no CECULT-UNICAMP (2008 – 2012). Professor da Escola DIEESE de Ciências do Trabalho.
SOUZA, Samuel Fernando de. Apresentação. História Social. Campinas, n.21, 2011. Acessar publicação original [DR]