Pistas falsas: uma ficção antropológica | Néstor García Cancline

Nestor Garcia Canclini Ficção Antropolígica
Nestor Garcia Canclini | Imagem: Jornal da USP, 2020

Todo o planeta, uma década no futuro – este é o ambiente do novo livro do antropólogo argentino Néstor García Canclini. “Pistas Falsas: Uma Ficção Antropológica” (Itaú Cultural/Iluminuras, 2020, 106 páginas na versão digital) é um trabalho ficcional do autor empossado em 2020 na Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Está dividido ao todo em 20 capítulos, sendo estes divisíveis em dois grupos. No primeiro grupo, de quinze capítulos, a narrativa é apresentada em terceira pessoa onisciente, cujo enfoque é na descrição de mundo, e os diálogos, centrados nas relações acadêmicas e pessoais dos principais personagens. O segundo grupo reúne cinco diários de campo em primeira pessoa, “escritos” pelo protagonista: um arqueólogo chinês não-nomeado, cujo conflito inicial se dá quando, intrigado pelas condições sociais e culturais da América Latina, começa uma pesquisa antropológica urbana ao se mudar para Buenos Aires. Leia Mais

Passe Livre. As possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização | Daniel Santini

Há algum tempo, ouvir o termo passe livre despertava, apesar do ceticismo inicial, certa inquietação, curiosidade e abertura para uma discussão com enorme potencial de abarcar questões fundamentais à vida nas cidades. Para as pessoas da nossa geração, que estiveram nas ruas em 2013 contra o aumento da tarifa de transporte, o passe livre surgia como ferramenta de democratização da sociedade. Na contramão dessa percepção otimista, após a aparente sedimentação das manifestações de 2013, tal debate passou a ser encarado com desconfiança, como questão encerrada e pauta esgotada. O que acontecia neste meio tempo para que algo potencialmente tão transformador fosse deixado de lado? Principalmente pelo campo progressista?

Não é sequer necessário recorrer aos liberais ou aos grupos conservadores que emergiram na esteira – ou no vácuo – dos protestos daquele ano para encontrarmos posições contrárias. Para estes o passe livre desde o início representava um modelo “estatista” e antiliberal de transportes. Antiliberal evidentemente que sim. A própria esquerda, que já se dividia sobre o tema antes de 2013, parece hoje relembrar o assunto como um episódio traumático, com enorme desconfiança, algo irreparável e um erro estratégico de grupos autonomistas que conduziram os protestos em torno do Movimento Passe Livre. Leia Mais

História & Distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século 21 / Julio Bentivoglio

É revelador o aumento das pesquisas sobre as condições que envolvem o fazer historiográfico. Interessantes trabalhos têm sido produzidos em âmbito nacional e internacional por diversos pesquisadores que buscam questionar os mais distintos fundamentos que circunscrevem o discurso histórico[1]. Como, por exemplo, as estruturas temporais e as dimensões ética, estética, linguística e performática. Isso indica uma mudança substancial na maneira com que o historiador encara seu ofício, desvinculando-se de um espaço naturalizado e legitimado previamente por seu lugar social e seus métodos estabelecidos. Se por um lado, revela esse desejo em tensionar o lugar da disciplina história no mundo contemporâneo, sua rigidez metodológica e seu alcance social; por outro, demonstra que a matriz histórica cientificista, fundada sob a égide da modernidade, divide agora seu lugar hegemônico com outras formas de conhecer e produzir reflexões sobre o passado.

Uma rápida pesquisa na base da língua inglesa do Google Ngram Viewer –   ferramenta que permite ao seu usuário a busca e análise de dados dentro da plataforma de livros digitalizados do Google Books – nos permite identificar um crescimento exponencial no uso do vocábulo dystopia a partir dos anos 1960[2]. Em certa medida, o aumento no interesse pela ideia de distopia, pode ser visto como um reflexo do desencantamento com as promessas emancipadoras de futuro, sustentadas pelas metanarrativas do progresso. Esse aumento coincide também com um momento decisivo do pensamento ocidental, no qual a recepção dos esforços em torno da constituição de uma crítica ao projeto filosófico/político da modernidade são igualmente crescentes[3].

Na atualidade não faltam produções culturais que exploram o tema da distopia. Na literatura é notório o interesse por revisitar alguns clássicos da ficção científica, como as HQ do enigmático V de Vingança, e os romances de Philip K. Dick, George Orwell, Isaac Asimov, entre outros. No cinema destacam-se, desde a década de 1980 até o presente, uma quantidade exorbitante de produções aclamadas entre os espectadores, dentre as quais estão Blade Runner (1982), Matrix (1999), e as recentes séries, Black Mirror (2011-2019), Dark (2017-2020), e The Handmaid’s Tale (2017 – ). É certo que tais manifestações culturais são um sintoma de uma inédita experiência histórico-temporal, que coloca em xeque nossa relação amigável com o futuro e as possibilidades mais significativas de mudanças na vida social. Mas de que maneira a historiografia responde (ou pode responder) a essa configuração da realidade? Quais horizontes são abertos para o conhecimento histórico reformular algumas noções como narrativa, historicidade, temporalidade, e consciência/imaginação historiográfica?

É a partir dessas e outras evidências e perguntas, que Júlio Bentivoglio[4], em seu instigante livro História & Distopia, fornece uma importante contribuição aos estudos históricos. O trabalho de Bentivoglio é relevante no momento em que sua intenção principal não se limita a desarticular os mitos fundadores do saber histórico (algo que vem sendo feito há um bom tempo), mas, para além disso, em propor novas categorias fundamentais de observação da prática historiográfica. Nesse sentido, o texto trabalha em duas preocupações indispensáveis da pesquisa histórica: refletir sobre o mundo no qual estamos inseridos e as condições que definem nossa historicidade; e questionar, até mesmo desestabilizar, os clichês nos quais a escrita da história se desdobra. A erudição do livro está justamente em não ser apenas uma redundante observação das fissuras que atingem a historiografia, mas em avançar e propor novas abordagens a partir dessa constatação.

Bentivoglio, animado pelas reflexões de Hayden White sobre a imaginação histórica e a nova filosofia da história (Cf.: WHITE, 2002), argumenta que uma inédita consciência historiográfica emergiria no alvorecer do século XXI, notoriamente pós-moderna e distópica. Isso significaria dizer, que a forma pela qual o historiador trata, enreda, e apresenta o passado que lhe é disponível, seria resultado de uma experiência da história determinada pela produção de um lugar deslocado, impróprio, fora do eixo e hostil, sendo analiticamente sintetizado pela noção de deslugar. O passado, longe de responder a uma verdade absoluta, é desprendido das coerções praticadas pelo método da ciência histórica, para se deslocar em diversos sentidos que lhe são atribuídos por narrativas, representações e simulacros.

Minha hipótese é a de que acompanhamos a emergência de um novo paradigma poético-linguístico, pré-crítico e meta-histórico. E que esse paradigma, no século XXI, é eminentemente distópico. Ou seja, a atual consciência na historiografia é um modo preciso de pensamento, cuja pré-elaboração do enredo de início é, em si mesma desconfiada, seja das capacidades científicas da história, seja das realizações da historiografia, seja das evidencias ou da materialidade do passado, seja das verdades produzidas pela história a ele. O passado tornou-se deslocamento, deslugar (BENTIVOGLIO, 2019, p. 58).

Tal definição de distopia como deslugar, é uma abertura para pensarmos a própria temporalidade do conceito, rompendo sua definição mais comum e imediata, que o coloca como o contrário da utopia. Nesse sentido, distopia não é apenas uma relação temporal distante entre futuro e presente, mas pode se caracterizar como uma irradiação de forças que deslocam um imaginário compartilhado sobre o passado irrevogável, admitindo dessa maneira, sua interferência assombrosa e fantasmagórica no presente. Considera-se, portanto, que a distopia na história remete a espectralidade de um passado-presente (cf: HARTOG, 2013; HUYSSEN, 2014). “A distopia não é uma antiutopia, ela é um deslugar, que não se encontra exatamente no futuro, mas, que pode estar em qualquer lugar, inclusive no presente e no passado” (BENTIVOGLIO, 2019, p. 96).

O trabalho de Bentivoglio, ao revisitar a formação da ciência histórica no século XIX, demonstra que a consciência historiográfica moderna estaria marcada por uma “tensão entre os objetivos utópicos e a adoção de práticas disciplinares distópicas” (BENTIVOGLIO, 2019, p.26). Esse conflito viria à tona com as reflexões epistemológicas que são caracterizadas como pós-modernas – como os passados práticos de Hayden White – que admitem uma ampla circulação do passado, destituindo assim, o próprio privilégio da historiografia em organizar arbitrariamente o passado. Bem como, as reflexões de Foucault sobre as condições de possibilidade que fundam a ciência histórica moderna.

Contudo, se o caráter distópico da moderna historiografia residia no método, hoje a distopia se autonomizou como imaginação histórica (o impacto dos sentidos da experiência da história sobre os modos de pensar) e consciência historiográfica (os artefatos e técnicas usados para conferir forma a uma narrativa). Nesse cenário, portanto, seria possível afirmar que assim como a utopia estava para a modernidade, a distopia está para a pós-modernidade. A história utópica, que transcorre sobre a racionalidade moderna, seria uma tentativa arbitrária de produzir sentido as metanarrativas do progresso e disciplinar o passado em um único regime de verdade. No sentido que submete o passado ao controle único do historiador sob as premissas de um regime de cientificidade de pretensão realista. O autor observa que a noção de objetividade do projeto historiográfico ocidental, caracteriza esse desejo da narrativa histórica em conhecer o passado como ele realmente foi ou de reconstruí-lo o mais fielmente possível através de modelos (métodos) científicos. A diferença decisiva entre uma história utópica e uma história distópica seria então que a natureza distópica da história de algum modo acaba por abalar não somente o mito fundador do passado, como o próprio mito de fundação científica da história na modernidade, porque se patenteia a existência de tantos passados quanto as obras de histórias serão capazes de produzir” (BENTIVOGLIO, 2019, p. 30).

Num panorama geral, o pequeno livro oferece uma densidade admirável. A quem interessar a leitura, encontrará um percurso de investigação que passa pelas raízes da literatura distópica; pela formação da ciência histórica no século XIX; pela crise de representação e o esgotamento das filosofias especulativas da história (o já conhecido debate sobre o fim da história). Tal caminho, que ao primeiro olhar pode parecer desconexo, é uma tentativa bem-sucedida de ilustrar que há sobre a historiografia, uma incidência de outro tipo de imaginação histórica, que se distancia do conceito moderno de história. Alguns aspectos dessa distinção podem ser abordados pela passagem do passado lugar ao passado deslugar; do regime de cientificidade ao narrativismo; da verdade absoluta aos confrontos de sentido sobre o passado; do modernismo ao pós-modernismo; do futuro aos passados-presentes; do otimismo ao ceticismo; enfim, da utopia à distopia.

O trabalho em questão também é importante pois se torna uma base teórica imprescindível para que a historiografia possa alcançar novos objetos de pesquisa. O objeto não deve ser apenas aquilo que esgotamos em análises exaustivas, como se fosse algo cristalizado no tempo e no espaço; uma historiografia que tem a distopia como parte fundamental de sua prática deve transformar o objeto naquilo que nos leva ao caminho do pensamento, da reflexão filosófica sobre nossas bases epistemológicas, e que principalmente, propõe questões ao tempo presente. Tais objetos não-convencionais fazem parte desse movimento de produzir a partir do estranhamento, de enxergar soluções a partir da catástrofe que se aproxima. É pensar o mundo contemporâneo de um lugar, ao mesmo tempo, perigoso e privilegiado. Somente assim, enxergando o passado a partir de outras perspectivas, poderemos conferir espessura a um presente fraturado e pensar sobre o que o futuro poderá vir a ser.

O livro de Júlio Bentivoglio, reforça que a distopia deve ser encarada como uma noção organizadora dos fenômenos do tempo presente. Não podemos mais acusa-la de extrapolar os limites da ficção e do real. É justamente essa preponderância em trazer à tona o absurdo, que constitui seu lugar como um potente meio de crítica ou de reflexão em relação ao nosso presente. Trata-se de questionar o real, tensionar o cotidiano e as relações socias já estabelecidas. Esse incomodo que é provocado pela agressividade da imaginação distópica deve assumir-se como um despertar para a historicidade que atravessa, dentre outras dimensões, o saber histórico. Perceber a relevância de elementos da vida contemporânea como a tecnologia, a vigilância, e a catástrofe, é interrogar, mas sobretudo, encarar os sentidos que compõem a experiência da história hoje.

Por fim, fica o convite à leitura desse livro que se torna uma referência de maior grandeza para aqueles interessados, principalmente, nos estudos em Teoria da História. Para além de sua amplitude argumentativa, o livro cumpre um papel importante na afirmação do protagonismo brasileiro como importante centro de pesquisa e reflexão teórica sobre a historiografia. Nele o leitor poderá encontrar as discussões mais atuais das pesquisas na área, juntamente com uma originalidade teórica, que confere ao texto aquilo que alguns historiadores ainda não entenderam muito bem: teorizar não é se limitar a comentar teorias alheias, mas sim traçar um diálogo sólido com a tradição e arriscar novas propostas e conceitos que movimentem a historiografia de seu lugar-comum.

Referências

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas de memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014.

WHITE, Hayden. Meta-história. São Paulo: Edusp, 2002.

Notas

1. Podemos citar teóricos da história como Ewa Domanska, Berber Bevernage, Sanjay Seth, Dipesh Chakrabarty, Ethan Kleinberg, Ivan Jablonka, Zoltán Simon, entre outros. No Brasil destaca-se a organização de pesquisadores em torno da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH), algo que tem promovido um avanço qualitativo nas pesquisas da área. Além do trabalho de Bentivoglio, devemos destacar as recentes pesquisas de Valdei Araujo e Mateus Pereira sobre o atualismo, e o importante livro A história (in)disciplinada, organizado por Arthur Ávila, Rodrigo Turin e Fernando Nicolazzi.

2. O gráfico pode ser visualizado neste link. Acesso em: 18/06/2020.

3. Podemos citar como exemplo dois movimentos principais que percorrem a filosofia do século XX, são eles: o pós-estruturalismo e o esclarecimento da Escola de Frankfurt.

4. Simultânea a escrita desta resenha, foi lançada a série de entrevistas Crise & Historicidade – uma iniciativa de LETHIS-UFES e do NIET-UFMG, em parceria com a HH Magazine: humanidades em rede – que tem como segundo episódio uma entrevista do professor Júlio Bentivoglio sobre a relação entre história, distopia, e crise. Ela está dividida em duas partes, as quais podem ser acessadas através dos seguintes links:

Episódio 02, Parte 01: https://www.youtube.com/watch?v=AzKFECirBIk

Episódio 02, Parte 02: https://www.youtube.com/watch?v=dGG-5ufAUs0

Ricardo Mateus Thomaz de Aquino – Graduando em História pelo Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Tem interesse nas áreas de Teoria da História, História da Historiografia e História Intelectual. Atua como bolsista voluntário no projeto de extensão HH Magazine: humanidades em rede, história pública democrática.

Utopia, Dystopia. A Paradigma Shift in Art e Architecture | Pedro Gadanho, João Laia e Susana Ventura

No segundo semestre de 2016, paralelamente à 4ª edição da Trienal de Arquitetura (1), inaugurou-se em Lisboa o MAAT, o museu de arte, arquitetura e tecnologia de Lisboa, causando polêmica ao introduzir a capital lusitana no pulsante circuito global de arquiteturas espetaculares.

Entretanto, não é a arquitetura do MAAT, projetado pela arquiteta inglesa Amanda Levete, que proponho apresentar nesta resenha, tampouco as obras de sua exposição inaugural: “Utopia/Dystopia, A paradigma Shift in Art e Architecture”O destaque aqui é a publicação do livro homônimo, lançado em março de 2017 (2), que por sua vez não é um mero catálogo da exposição, mas uma ambiciosa coletânea de ensaios inéditos, focados em refletir os impulsos utópicos e distópicos que dominam o homem desde o inicio da modernidade. Há um evidente tom de manifesto, fortalecido pela publicação em edição bilíngue. Livro e exposição trabalham como entidades complementares, ainda que autônomas, tornando-se o primeiro compêndio a explorar as diferentes abordagens de artistas contemporâneos, arquitetos e teóricos sobre as dualidades e tensões em torno do par utopia/distopia. Leia Mais