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“A Direita na América Latina Contemporânea”: universidades, intelectuais, disputas de espaços e sentidos | Revista de História da UEG | 2021
Apresentação
“Um fantasma recorre a América Latina”. Especialmente desde os anos de 1960, depois da Revolução Cubana e seu influxo na radicalização política de alguns setores da juventude militante daquele período, os debates entre universitários “bolcheviques”, ou seja, aqueles mais próximos da experiência soviética e chinesa, que, por sua vez, baseavam-se na prática maoísta, o surgimento das propostas de socialismo nacional nos partidos populares, bem como o boom dos escritores latino-americanos fez com que se afiançara a noção cultural da hegemonia das esquerdas nos campos intelectual e universitário. Paradoxalmente, esse argumento, qual seja, o do “esquerdismo” dos e das estudantes, docentes e intelectuais, é um velho tópico usado também pelas direitas para denunciar a decadência das universidades e da cultura em geral.
Por isso, esse dossiê analisa esse sentido comum por meio de diferentes artigos que mostram as experiências direitistas de intelectuais e universitários em diferentes países latino-americanos. Entendemos o conceito de intelectual em seu sentido amplo, isto é, incluindo jornalistas e empresas editoriais, bem como atores políticos que fazem uso de instrumentos intelectuais para indicar e defender suas ações e projetos. O campo de estudos sobre as direitas latino-americanas (e de outros recortes geográficos) cresceu significativamente nas últimas décadas, ganhando legitimidade como tema de investigação social, desmentindo a alguns detratores que lhe atribuíam um caráter meramente militante. Por outro lado, com a recente irrupção de partidos e governos de direita na região, se colocaram em evidência as premissas e corpus de ideais pensados por intelectuais de direita que também assumiram uma nova visibilidade. Leia Mais
Direita na história / Varia História / 2014
Durante muito tempo, a pesquisa acadêmica relegou a segundo plano o estudo da direita política. Em parte, isso se explica pelo desprezo que os círculos progressistas devotavam à direita, que muitos consideravam destinada ao lixo da história graças ao esperado triunfo das forças favoráveis à mudança social. Tal quadro de pensamento fortaleceu-se com a derrota da direita no contexto da Segunda Guerra, o que levou os mais afoitos a imaginar um declínio irreversível das forças conservadoras. Ledo engano. Em décadas recentes a direita demonstrou capacidade de renovar-se e formar novas lideranças, ao mesmo passo em que tem conseguido atrair apoio social e suporte eleitoral. Processos iniciados há algum tempo, como o declínio dos modelos dominantes à esquerda – notadamente a crise das matrizes soviética e social-democrata – contribuíram para esse quadro, assim como eventos mais atuais, como a crise econômica europeia. Já vão longe os tempos em que a direita parecia sem futuro, obliterada pela sensação (exagerada) de uma maré montante dos valores progressistas. O fato é que a direita “voltou” ao proscênio da política mundial – e nacional –, o que a torna um tema de pesquisa ainda mais relevante. Para os historiadores, o fato de um determinado processo ou fenômeno estar superado não diminui sua importância como objeto de estudo. Porém, sem dúvida, a atualidade aguça o nosso interesse e curiosidade, bem como as eventuais implicações políticas do nosso trabalho.
Para designar adequadamente esse campo político o melhor seria dizer “direitas” – embora a pluralidade pode ser entendida como implícita no conceito –, pois o grupo é heterogêneo e marcado pela presença de diferentes tradições políticas. O estabelecimento das “fronteiras” que definem o campo direitista é assunto polêmico. Há desde as situações consensuais, como o conservadorismo clássico e o fascismo, cujo pertencimento à direita não é objeto de questionamento sério, até o caso mais complexo do liberalismo, que gera disputas mais acirradas devido a suas implicações atuais. Por outro lado, deve ser lembrado que a própria luta contra a esquerda ajuda a estabelecer os contornos da direita, já que o combate acirrado contra os inimigos é fundamental para a sua instituição como segmento específico do campo político.
Ao longo do tempo as forças de direita construíram tradições que lograram arraigar-se profundamente, ao ponto de podermos identificar algumas delas como verdadeiras culturas políticas. Mais além de constituírem projetos de poder e basearem-se em conjuntos de ideias, as culturas de direita fornecem identidades agregadoras e implicam valores que transcendem a política stricto sensu. A manutenção da ordem, na perspectiva de algumas culturas de direita, significa muito mais do que a defesa da propriedade e de interesses materiais. Elas batem-se, também, por valores morais e, frequentemente, religiosos, que percebem como estando ameaçados pelas ações da esquerda. Fundamental levar em conta a complexidade que caracteriza os grupos de direita, estudar seus valores, seus mitos, seus objetivos, de outro modo não se alcançará análise e compreensão adequadas desse fenômeno pleno de relevância histórica e de atualidade.
Tais considerações explicam a motivação para propor este dossiê aos editores de Varia Historia. Para dar corpo à ideia de organizar o volume foram convidados destacados pesquisadores estrangeiros que se dedicam à história das direitas. A intenção é oferecer aos estudiosos do tema no Brasil – aliás, um grupo em crescimento – uma amostra do que nossos colegas do exterior têm realizado. E os cinco artigos apresentam diferentes possibilidades (teóricas, temáticas, regionais) de abordagem do campo da direita. Não se trata de aprender ou ensinar lições, afinal, estudos elaborados no Brasil também têm inspirado pesquisadores de outros países. A expectativa é estabelecer uma relação de troca que poderá ser frutífera para todos nós, inclusive porque a maioria dos autores convidados pesquisa o contexto brasileiro ou dialoga com ele.
O primeiro texto do dossiê é de autoria do pesquisador e professor português António Costa Pinto, que tem publicado importantes trabalhos sobre movimentos autoritários e fascistas da Europa. No presente artigo, Costa Pinto centra sua análise no corporativismo e nas instituições nele inspiradas, que foram apropriadas por diferentes grupos de direita. O autor analisa as origens do corporativismo, mas, sobretudo, a sua difusão no contexto entre guerras (anos 1920-40), quando alcançou vários países na Europa e em outros continentes. No texto, Costa Pinto mostra que as ideias e as instituições corporativistas, originalmente produtos do pensamento católico, transcenderam essas bases religiosas e foram adaptadas por diferentes regimes políticos autoritários e fascistas, por vezes alcançando marcante longevidade.
No artigo seguinte, a pesquisadora norte-americana Margaret Power apresenta um estudo sobre tema marcante na histórica recente das manifestações de direita, o ativismo político de grupos femininos. A participação das organizações femininas no golpe de 1964 é tema conhecido e já bastante estudado no Brasil. A novidade do artigo é mostrar as conexões transnacionais estabelecidas por tais grupos de mulheres, concentrando-se no estudo de redes que se constituíram entre Brasil, Chile e Estados Unidos. Tributária da historiografia mais recente que vem questionando visões tradicionais sobre a Guerra Fria e o papel dos atores locais nessas disputas, Power analisa como a direita norte-americana foi influenciada pela atuação das mulheres conservadoras atuantes em países da América Latina.
O terceiro texto do dossiê foi escrito por Ernesto Bohoslavsky, historiador argentino que tem oferecido contribuição importante ao estudo das direitas no cone sul. Neste artigo, Bohoslavsky analisa o tema do anticomunismo no debate político e parlamentar do Brasil e do Chile no contexto dos anos iniciais da Guerra Fria. Nesse período ocorreram processos semelhantes de perseguição aos comunistas nos dois países, que culminaram na exclusão dos respectivos Partidos Comunistas do jogo político institucional, nos anos de 1947 e 1948. Aprofundando o estudo dos discursos políticos produzidos por líderes de direita nesse contexto, o autor encontrou um quadro mais complexo no que toca ao anticomunismo professado por todos eles. A iniciativa de proscrever os partidos comunistas do jogo político não foi aceita de maneira unânime entre as direitas, que divergiram na estratégia de combate ao comunismo. Enquanto alguns setores apoiaram a repressão total aos partidos comunistas, outros grupos de direita acharam que a proibição do funcionamento legal de tais partidos era ineficiente, além de significar uma agressão inaceitável às garantias democráticas tradicionais.
No artigo seguinte do dossiê publicamos uma interessante reflexão do historiador francês Stéphane Boisard, cujas pesquisas têm como foco as direitas na América Latina. Neste texto, a proposta de Boisard é fazer algumas reflexões gerais sobre a aplicação à América Latina de categorias e conceitos elaborados originalmente para o quadro europeu. Partindo da análise dos principais debates teóricos realizados por autores europeus para a caracterização das direitas, o autor aponta a necessidade de aprofundar as pesquisas sobre esse tema na América Latina. Enfatizando a importância de pesquisar as redes de circulação de ideias entre a América e a Europa, e o modo como os conceitos europeus foram recebidos nesta parte do mundo, Boisard sugere, entre outras coisas, que se dê atenção especial à periodização da história das direitas, e que se busque uma adequada caracterização dessas correntes políticas na América Latina.
O texto do historiador norte-americano Benjamin A. Cowan encerra o dossiê, com um esclarecedor estudo que aponta a atualidade do tema da direita. Ele aborda a história recente da atuação política dos evangélicos conservadores, que ganharam notável visibilidade nos dias atuais. A originalidade do trabalho de Cowan reside em mostrar o processo de surgimento e ascensão da direita evangélica em seus primórdios, nos anos 1970. Atemorizados com o processo de mudança de comportamentos e valores morais, que eles percebiam como implicado nas ações da esquerda, os evangélicos conservadores abandonaram sua atitude tradicional de evitar o campo político. Eles passaram a abraçar com entusiasmo a militância conservadora, entrando em choque com grupos protestantes de linha “progressista”. Nesse caminho, aliaram-se à ditadura militar, em nome da defesa da família tradicional e da moral cristã, contra a liberdade sexual e o comunismo.
Enfim, o leitor tem nas mãos um conjunto de trabalhos de qualidade, que mostram o “estado da arte” no campo de estudos da história da direita. O dossiê é uma aposta no estreitamento do diálogo transnacional envolvendo os pesquisadores dedicados ao tema, assim como um convite para que jovens historiadores venham se juntar ao grupo.
Boa leitura, bom diálogo.
Rodrigo Patto Sá Motta – Departamento de História Universidade Federal de Minas Gerais.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.52, jan. / abr., 2014. Acessar publicação original [DR]