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O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil | Esther Solano Gallego
Ester Solano | Imagem: Nocaute
No dia 8 de outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial brasileira, a editora Boitempo liberou gratuitamente o e-book O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil, organizado pela socióloga Esther Solano Gallego, com o objetivo e “ajudar a compreender” como havíamos chegado à situação na qual o retrógrado Jair Bolsonaro estava à frente nas pesquisas e com grandes chances de vencer a eleição. Às vésperas de um novo certame, em junho de 2022, as preocupações com as ameaças (algumas delas já concretizadas) à democracia brasileira, as teses, as propostas de resistência ao “fascismo” comunicadas naquele livro permanecem na “ordem do dia”. Por essa razão, revisitaos a obra tantas vezes resenhada para reavivar as suas assertivas.
Os 22 autores que compõem o projeto são, em maioria, professores universitários brasileiros das áreas das ciências humanas e sociais, ativistas e cartunistas e um religioso identificados com o campo progressista. Todos contribuem para o cumprimento da meta do livro, descrita por Gallego: “aprofundar-se nas complexas dinâmicas das direitas desde diversos pontos de vista e análises”. Se quisermos de fato lutar contra as direitas, continua a organizadora, “com frequência antidemocráticas e retrógradas, devemos primeiro observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la. Não sabemos tudo. Aprendamos juntos.” (p.8). [i]
Para iniciar o aprendizado, compreendamos que as “direitas” às quais o título da obra se refere são plurais na terminologia. Os autores a tratam como “conservadorismo radical”, “direita”, “direita radical”, “extrema direita”, “grupos de direita”, “nova direita” e “novas direitas”. Abordadas, em sua maioria, como lideranças políticas, partidos políticos, movimentos e instituições da sociedade civil, as direitas nascem nos anos 80, a partir da reorganização “das classes dominantes”, representadas em várias instituições de pesquisa e financiamento (think thanks), como também das ameaças sofridas por essas classes médias em suas “oportunidades”, da conjunção de identidades e da conjuntura propiciada pelas redes sociais e internet, já nos anos 2000/2010.
Alguns autores destacam o caráter militante desses grupos (ao contrário do caráter financiado desses grupos), o transbordamento dessa militância para além dos partidos, alcançando editoras, movimentos e grande mídia, marcando a sensibilidades de jovens da periferia que passaram literalmente da esperança dos anos de crescimento econômico à indignação com a indiferença do Estado em termos de segurança e oportunidades, por exemplo. Outros ainda ressaltam as consequências que essas direitas de orientação militarizadas trouxeram à vida dos negros, dos pobres, das mulheres e das pessoas GLBTI. A “democracia, os direitos humanos, ao Estado laico e à diversidade humana”, segundo um desses autores, foram as principais vítimas dos fundamentalismos e extremismos advindos das novas direitas.
O diagnóstico está presente na maioria dos textos, enquanto as declarações propositivas são minoritárias. Como sair dessa situação? Em geral, estudar, denunciar, protestar são as medidas. Apenas um se engaja em solução radical: transformar “as condições socioeconômicas que lhe fornecem a base material” (p.35).
No que diz respeito ao espírito deste dossiê de Crítica Historiográfica, vale destacar as ideologias atribuídas às novas direitas brasileiras. Se hoje, autores divergem nos critérios de classificá-las e nos termos empregados para as designações, imaginem há quatro anos. Os autores agrupam os mesmos étimos de modo diferente, embora na maioria das combinações o libertarianismo esteja presente: “libertarianismo” (ultraliberalismo), “fundamentalismo religioso” (antiaborto, homofobia) e “anticomunismo”; “libertarianismo”, “monetarismo” (Chicago) e “neoliberalismo” (Áustria); “libertarianismo”, “conservadorismo” e “reacionarismo”; “libertarianismo”, “fundamentalismo religioso” e “anticomunismo”; “fundamentalismo religioso cristão” e “extremismo religioso cristão” (que ganham a forma de “protofascismo”).
Autores também significam as palavras de modo diferente e até divergente. Eles afirmam que os “conservadores” são os mais aguerridos combatentes da (falsa) “ideologia de gênero”; que o “conservadorismo radical” (mapeado nas redes sociais) divide brasileiros em “pessoas de bem” e “vagabundos”, ou seja, denunciam esse segundo tipo como humanos de comportamento desviante, resultantes de uma educação equivocada e do culto aos direitos humanos, que corrompem a inocência das crianças, cujo líder é Lula e os instrumentos são movimentos sociais, sindicatos e Supremo Tribunal Federal. Eles afirmam, por fim, que a ideologia das novas direitas pode ser sintetizada na ameaça do “inimigo interno”, sobrevivente do Discurso de Segurança Nacional dos tempos da ditadura, na reação ao estado de bem-estar social (neoconservadorismo) e na implantação de políticas de “austeridade” (neoliberalismo).
No que diz respeito especificamente ao lugar do direito, três textos se destacam. Dois deles tratam de direitos de grupos determinados e um da ação do poder judiciário. Em “Precisamos falar da ‘direita jurídica’”, Rubens Casara denuncia o “populismo jurídico” e o “ativismo jurídico” como ameaças à democracia, assim como os operadores do direito que interpretam as leis ao modo conservador e neoliberal, ou seja, que concebem o poder judiciário como “um mero homologador das expectativas do mercado” ou “instrumento de controle tanto dos pobres […] quanto das pessoas identificadas como inimigos políticos do projeto neoliberal” (p.92)
Dos dois que tratam de grupos, o primeiro descreve ações dos fundamentalistas aos “direitos LGBTI” na Constituinte de 1988 (orientação sexual) e no parlamento, de 2006 a 2015 (anti-homofobia, união estável de pessoas do mesmo sexo e identidade de gênero). “Moralidades e direitos LGBTI nos anos 2010”, de Lucas Bulgarelli, põe formalmente os direitos LGBTI e os direitos humanos em posições separadas, ambos combatidos pelos conservadores. O segundo texto – “Feminismo: um caminho longo à frente”, de Stephanie Ribeiro –, denuncia a negação do “direito ao aborto seguro e legal” (de modo direto pela direita e indireto pela esquerda) e a vertente feminista de orientação “liberal”. Segundo a autora, trata-se de “um feminismo sem comprometimento com outras mulheres […] ou que não precisa ter um posicionamento político […] pautado em ascensão individual e não em rompimento com estruturas opressoras” (p.133)
Apesar dos esclarecimentos, das denúncias e alertas, a coletânea não está isenta de afirmações controversas e/ou usos equivocados de conceitos. Duas delas chamam a atenção pelo primarismo: a inclusão do conservadorismo (uma macro ideologia) em pé de igualdade com o neoliberalismo, por exemplo, a afirmação de que a defesa do estado de direito é uma “reivindicação conservadora” que serve ao capital. Outras não menos inquietantes são: a admissão da existência de “neoliberais de esquerda”; a declaração de que o Ministério Público foi partícipe de todos os golpes de Estado; que o neoliberalismo” e a “nova direita” são ideais antagônicos; e que a esquerda liberal e neoliberalismo progressista são ideais sinônimos.
Usos equívocos que merecem a atenção do leitor são a tomada do fundamentalismo como fundamentalismo religioso, a definição de extremismo como uso de violência, sem a respectiva definição de violência; e o emprego de “feminismo liberal” com o sentido de feminismo neoliberal.
O grande termo ausente, porém, é o “ódio”, que está no título do livro e na apresentação da editora. Ele aparece (antifeminista e pró segurança pública) tangencialmente como o par oposto da esperança (orçamento participativo e bolsa família) entre os jovens pobres de Porto Alegre, o ódio às minorias, disparado pelas “classes dominantes” (FHCC), o discurso de ódio experimentado pelos pobres, diante da falta de “dignidade” resultante da crise econômica (F), o ódio ao pensamento livre disparado pelos reacionários contra os professores pelo ESP (FP), demonstrando que não é sentimento de esquerda ou de direita (contraditando, de certo modo, o que sugere a designação da obra).
As ausências e as situações controversas, ao contrário de borrarem a obra, somente reforçam a importância da sua leitura. Para profissionais do direito, principalmente, o livro pode auxiliar na mudança de sensibilidade dos apartidários e imparciais “operadores” para as causas das mulheres e da população LGBTQIA+. Para os professores de História, o livro serve duplamente: como testemunhos dos anos quentes do golpe e da campanha eleitoral de 2018 e como roteiro de para a ação, seja no planejamento da formação continuada, seja na orientação da ação no interior da escola. Aliás, os objetivos anunciados pela organizadora (e cumpridos com sobras) são em si mesmos pragmáticos e beneméritos: “observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la.” (p.9).
Sumário de O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil
Prólogo | Gregório Duvivier
Apresentação | Esther Solano Gallego
- A reemergência da direita brasileira | Luis Felipe Miguel
- Neoconservadorismo e liberalismo | Silvio Luiz de Almeida
- A nova direita e a normalização do nazismo e do fascismo | Carapanã
- As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo | Flávio Henrique Calheiros Casimiro
- O boom das novas direitas brasileiras: financiamento ou militância? | Camila Rocha
- Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista | Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
- Periferia e conservadorismo | Ferréz
- A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção | Edson Teles
- Precisamos falar da “direita jurídica” | Rubens Casara
- O discurso econômico da austeridade e os interesses velados | Pedro Rossi e Esther Dweck
- Antipetismo e conservadorismo no Facebook | Márcio Moretto Ribeiro
- Fundamentalismo e extremismo não esgotam experiência do sagrado nas religiões, Henrique Vieira
- Moralidades, direitas e direitos LGBTI nos anos 2010 | Lucas Bulgarelli
- Feminismo: um caminho longo à frente | Stephanie Ribeiro
- O discurso reacionário de defesa de uma “escola sem partido” | Fernando Penna
- Sobre os autores
- Charges
Resenhista
Lucas Miranda Pinheiro é Doutor em História (UNESP/Franca), professor do Departamento de Relações Internacionais (DRI) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Entre outros trabalhos, publicou (em coautoria) Perspectivas e Debates em Segurança, Defesa e Relações Internacionais e Relações Internacionais: Olhares Cruzados. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6576943412041943; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4821-0168; E-mail: cucapinheiro@yahoo.com.br.
Para citar esta resenha
GALLEGO, Esther Solano. O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. 133p. Resenha de: PINHEIRO, Lucas Miranda. Bolsonarismo à direita? Crítica Historiográfica. Natal,.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/um-elemento-ausente-resenha-de-o-odio-como-politica-a-reinvencao-das-direitas-no-brasil-organizado-por-esther-solano-gallego/>.
The Right and Radical Right in the Americas – Ideological Currents from Interwar Canada to Contemporary Chile | Tamir Bar-On e Bàrbara Molas
Casa Branca (Washington, DC/EUA). Ilustração de “The Gay Takeover of American Conservatism” | Cronicles (2022)
Em The right eand radical right in the Americas: currents from interwar Canada to contemporary Chile [A Direita e a Direita radical nas Américas: correntes ideológicas no entreguerras do Canadá ao Chile contemporâneo], Tamir Bar-On e Bàrbara Molas querem cobrir a lacuna deixada pelo recente The Oxford Handbook of the Radical Righ, editado por Jens Rydgren, que não inclui países da América Latina – diga-se de passagem, uma prática contumaz de imperialistas e ex-imperialistas, mesmo que o Handbook não tenha anunciado objetivos e perspectivas comparatistas. Entre as metas do livro, anunciado como, provavelmente, um pioneiro no tema (dentro dos marcos espaciais e temporais referidos), estão o exame das “tradições ideológicas de Direita”, a avaliação do impacto da “Direita” e da “Direita radical” na política latino-americana, o impacto das ideias nacionalistas e dos pensadores europeus e estadunidenses nessa tradição e a declaração de que a esquerda aprende muito quando estuda as distintas “tendências ideológicas” concorrentes.
Na introdução, o mexicano T. Bar-On e a canadense B. Molas, experimentados pesquisadores das direitas radicais, tentam atribuir unidade à coletânea que organizaram a partir do emprego da expressão “tradição ideológica” [right-wing ideological traditions] (são 13 tradições) e da significação minimalista de “direita” como todos os “teóricos, movimentos, partidos políticos e regimes que veem a desigualdade humana como ‘natural’ ou ‘normal’, seja no âmbito socioeconômico, seja baseado em diferenças raciais, culturais ou de gênero” (p.6). Em breve comentário sobre as tipificações de direita – incluindo Cas Mudde, Roger Eatwell, Pierre Ignazi Vedran Obucina e Jens Rydgren –, os organizadores concluem que as “forças políticas, movimentos e partidos” examinados podem ser designados, sem grandes problemas, por “direita”, “direita radical populista”, “direita nacionalista populista”, “direita radical”, “direita alternativa” ou “extrema direita” (p.6). Os pontos de interlocução entre os nove capítulos, contudo, são estabelecidos também pelos objetos que tangenciam ou encarnam tais tradições: catolicismo, corporativismo, multiculturalismo e etnonacionalismo. Leia Mais
La reledía se volvió de la derecha | Pablo Stefanoni
Pablo Stefanoni | Foto: Bernardino Ávila
La reledía se volvió de la derecha, de Pablo Stefanoni traz um subtítulo enciclopédico, entregando a matéria ao leitor sem que se tenha a necessidade de abrir o livro: o combate ao progressismo político e ao politicamente correto é rebelde e atrai multidões de jovens. É necessário, então, ler esses arautos das novas direitas (“extrema direita”, da “direita alternativa” ou “populismo de direita”) caso queiramos compreender as razões do seu sucesso ou, em outra chave, as razões do fracasso das esquerdas. A tarefa anunciada é cumprida com um texto breve, distribuído em cinco capítulos (além de epílogo e glossário) que focam o pensamento das novas direitas em escala global (América do Sul, América do Norte, Europa e Ásia).
Antes de La rebeldia, Stefanoni escreveu livros sobre a ação da esquerda na Bolívia e na Rússia e atuou em parcerias com Clarín e o Le Monde Diplomatique. Professor da Universidade Nacional de San Martín e Doutor em História, o autor situa seu novo livro no domínio da História Intelectual. Stefanoni se ocupa de autores comuns – terroristas, ativistas moderados, intelectuais que militam na internet, escritores – atuantes nas duas últimas décadas, mediante redes de divulgação artigos, posts em redes sociais, vídeos, trechos de livros e memes. Ao abordar indivíduos de “subculturas on line”, Stefanoni investiga o significado dessa nova rebeldia, questionando sobre a ideia de “futuro próximo” compartilhada entre seguidos e respectivos seguidores. Leia Mais
Da direita Moderna à Direita Tradicional | Cesar Ranqueta Júnior
Cesar Ranqueta Júnior | Imagem: Unipampa
De autoria de Cesar Ranqueta Jr, o livro Da direita Moderna a Direita tradicional, publicado em 2019, tem duas ambições. A primeira delas é reconstituir historicamente o conceito de Direita, sistematizando argumentos e compilando autores que são ícones para sua fundamentação no mundo ocidental. A segunda é, a partir de uma análise dessa corrente de pensamento no Brasil, apresentar suas fragilidades, incongruências, antinomias e propor, a partir dessas análises, uma fundamentação teórica a ser seguida.
O interesse do autor por essa questão tem como base uma dupla crítica que é por demais razoável em uma sociedade cada vez mais polarizada e marcada por uma naturalização de conceitos do campo da política. A primeira é a recusa aos autores filiados ao pensamento de direita, assim como às suas ideias nos círculos especializados de debate, implicando em seu desmerecimento. A segunda está na forma pela qual esses pensadores tendem a ser adjetivados: “fascistas” e “anacrônicos”. Para Ranqueta, esta última é uma clássica estratégia da esquerda em desmerecer seu maior rival ideológico. Para nós, trata-se de um problema de metodológica científica. Leia Mais
Las nuevas caras de la derecha | Enzo Traverso
Enzo Traverso | Foto: ULF Andersen/Gamma-Rapho/Getty/O Globo
O que me levou a ler o livro de Enzo Traverso não foi apenas o título referente a esse dossiê de resenhas sobre “novas direitas”. O fato de ele ser um dos poucos historiadores de ofício a estudarem o fenômeno e de fazê-lo com ferramentas típicas de historiador – a categoria “regimes de historicidade” – foi o que pesou na escolha. Las nuevas caras de la derecha (2021) é a tradução argentina de Les nouveaux visages du fascisme (2017). O título em francês retrata com maior fidelidade o conteúdo desse livro do historiador italiano, atuante na Holanda, França e nos Estados Unidos da América (EUA): a narrativa do processo de transição do fascismo ao pós-fascismo, vivenciada por europeus e estadunidenses nos últimos vinte ou trinta anos, e comunicada imediatamente após atentados terroristas na França, como o massacre do Charlie Hebdo.
O livro é um agregado de entrevistas concedidas ao antropólogo Régis Meyran, em Paris (2016), sobre temas correlatos, atravessados pelo conceito de “pós-fascismo”. O prólogo à edição castelhana, contudo, é inteiramente dedicado a outro conceito: “populismo”. As constantes referências à expressão durante as entrevistas e forte apelo dos estudiosos de Filosofia e História Política ao conceito (em sua visão, já enfraquecido academicamente) levaram-no, provavelmente, a dispender duas páginas para diferenciar populismo e “tendências regressivas solidamente arraigadas” na Europa e nos EUA no século XXI.
Na tipologia, curiosamente, Traverso o reintegra como categoria, quando afirma que o populismo argentino e peronista (nacionalista, messiânico, carismático, autoritário e idealizador do povo) difere dos “populismos reacionários” estadunidense (D. Trump) e francês (M. Le Pen e E. Macron). O primeiro distribui riqueza entre os pobres e os insere no sistema democrático. Os segundos são orientados pela entrega da nação “las fuerzas impersonales del mercado”. (p.21). O primeiro, acrescentamos, foi gestado no imediato pós-guerra em mundo bipolar. O segundo, reitera o autor, foi gestado na “era da globalização neoliberal”. O primeiro, por fim (como vários movimentos políticos do século XIX), pode continuar a ser designado “populismo”. O segundo, entretanto, deve ser tipificado como “pós-fascismo”.
O primeiro capítulo do livro – “¿Del fascismo al posfascismo” – é dedicado à definição dessa nova categoria. O que vemos nas duas primeiras décadas do século XX, segundo Traverso, não é um resíduo nem um prolongamento do fascismo, ou seja, não é o caso de se falar em “neofascismo”. Os fascismos clássicos (italiano ou alemão) eram antidemocráticos e os pós-fascismos (ao menos o de Le Pen) querem “transformar el sistema desde dentro” (p.27). Os fascismos clássicos eram estatistas, imperialistas e queriam criar uma “terceira via entre liberalismo e comunismo” e os pós-fascismos (ao menos o de Trump) são neoliberais. Os fascismos clássicos possuíam uma visão de mundo e um “modelo alternativo de sociedade”, enquanto os pós-fascismos (o de Trump é, novamente o exemplo) não tem programa ou se reduz a um “Make America Great Again”. Os fascismos clássicos estavam fundamentados em uma “ideologia forte” e o pós-fascismo, exemplificado por Macron, significa o “grau zero de ideologia”.
Com as sucessivas comparações, somos levados a definir o pós-fascismo a partir de traços ideológicos na esfera política, econômica e social: combate à democracia, defesa do livre mercado, ausência de projeto societário e de ideologia forte. Traverso, contudo, acrescenta uma marca diacrítica fundamental: “Lo que caracteriza al posfascismo es un régimen de historicidade específico – el comiezo del siglo XXI – que explica su contenido ideológico fluctuante, inestable, a menudo contradictorio, en el cual se mezclan filosofias políticas antinómicas.” (p.26).
A oralidade que marca o texto e a interrupção do entrevistador, provavelmente, o impede de detalhar esse novo “regime de historicidade”. Tomando como base o seu livro anterior (citado pelo apresentador, Régis Meyran), somos induzidos a compreendê-lo como um tempo sem futuro (horizonte de expectativas), algo que explicaria, inclusive, o caráter instável e contraditório das ideologias e as recorrentes antinomias em termos de “filosofia política” no interior dos movimentos e partidos. Esse auxílio, contudo, é insuficiente para relevar as contradições do próprio Traverso nas definições de pós-fascismos por meio de exemplos.
Afinal, se as antinomias são o caráter dos movimentos pós-fascistas, poderíamos rotulá-los como antidemocráticos? Se os fascismos italiano e alemão reuniam “corrientes diferentes, desde las vanguardias futuristas hasta los neoconservadores, de los militaristas más belicosos a los pacifistas muniquenses etc.” as antinomias deveriam continuar traço diferenciador dos movimentos e partidos do século XXI? Se as categorias “horizonte de expectativa” e “espaço de experiência” estão fundadas na ideia de continuidade passado/presente/futuro, porque afirmar peremptoriamente que as novas direitas do século XXI, exemplificadas na figura de Trump, não representariam uma continuidade histórica e nem uma herança com o fascismo histórico (mesmo que o sujeito citado não as reivindicasse conscientemente)?
O segundo capítulo – “Políticas identitarias” – expressa concepções de Traverso sobre o emprego da categoria “identidade”, acompanhada de suas críticas aos discursos identitários difundidos, principalmente, pela Frente Nacional (FN) e o “Partido de Indígenas de la República” (PIR). Sua ideia de identidade é remetida (entre outros referenciais) a P. Ricoeur – que lhe inspira na caracterização das identidades veiculadas pelos partidos de esquerda (ipseidade – identidade histórica) e de direita (mesmidade – identidade essencial). Em termos abstratos, Traverso elogia as políticas identitárias de esquerda que reivindicam o “reconhecimento”, ao passo que as de direita reivindicam a “exclusão”.
A esquerda radical (Traverso lamenta) nunca soube conciliar diferentes pautas identitárias, pondo o fator econômico (a classe) acima das identidades de raça, gênero e religião. Nesse sentido (ainda que de modo irônico, para Traverso), a nova direita representada pela FN, por exemplo, é mais eficiente, pois associa a defesa dos “blancos humildes”, manifestando, assim, a sua simpatia pela categoria interseccionalidade. Quanto às críticas às políticas de direita, estas não são nada genéricas. O laicismo, as identidades nacionais e étnicas difundidos pela FN são reacionárias (defensivas), ilógicas, antieconômicas e antissociais.
A melhor parte da discussão entabulada por Traverso, nesse capítulo segundo, está nas razões que ele aponta para esse reacionarismo. As políticas identitárias das novas direitas (que geram a exclusão de migrantes), o laicismo autoritário de Estado (que negam a cidadania plena aos ex-colonizados e que prometem o retorno à Europa anterior ao Euro) são produtos da própria República e do Colonialismo. Assim, não se pode acusar a FN de antirrepublicana, posto que as exclusões do tipo fazem parte da história da República francesa recente. Nesse trecho, quase que ouvimos Traverso declarar que não há (não houve) um germe ultradireitista. Foi a própria serpente (a República francesa) que pariu os identitarismos excludentes dos novos reacionarismos.
Aqui, vemos como o autor põe grupos de esquerda e de direita sob o mesmo solo – que gera as mesmas distorções. Ele avança ainda mais na indicação de semelhanças quando afirma que as “direitas radicais”, os “expoentes liberais e conservadores” não mais buscam “legitimar uma política” por meio da “ideologia”, que “se improvisa a posteriori”. Chega a empregar a expressão “pós-moderna” para tipificar esse traço do nosso tempo. Mesmo que esteja entre aspas, essa expressão não cabe na passagem.
Se ele admite a legitimidade política não ideológica como consequência de uma relação pós-moderna dos humanos com o tempo, as continuidades de ideias e práticas das novas direitas com as ideias e práticas de direitas do século XIX e XX não mais se sustentam. Se, ao contrário, ele reitera a interpretação das novas direitas dentro dos quadros de um novo regime de historicidade, a condição “pós-moderna” não faz nenhum sentido no seu texto.
Além desse deslise teórico, Traverso revela um misto de idealismo em relação à ideia de partido político, em prejuízo, inclusive da sua abordagem historicista (realista) sobre as novas direitas. A vida partidária, mesmo em tempo anterior ao século XXI, é marcada por estratégias de sobrevivência que resultam em diferentes comportamentos, desde a manutenção de um programa, passando pela captura dos eleitores, até a manutenção do poder, quando à frente do Executivo.
No terceiro capítulo do livro – “Antissemitismo e islamofobia” –, as questões identitárias ganham ainda maior espaço. O entrevistador parece determinado a extrair de Traverso uma crítica às definições dos termos em pauta e uma comparação entre os dois fenômenos, tomando-os em seus elementos aparentemente similares: o antissemitismo na primeira metade do século XX e a islamofobia no início do século XXI. O autor resiste várias vezes a compreendê-los como fenômenos simétricos e, implicitamente, a considerá-los “ideologias”. É certo, julga ele , que as afinidades existem: para os antissemitas dos anos 30 do século passado, judeus e bolchevistas eram um “outro” ameaçador, enquanto para os islamofóbicos, os mulçumanos e os terroristas islâmicos são um novo outro inimigo; o antissemitismo estruturava os ideais nacionalistas do início do século XX, enquanto a islamofobia estrutura os nacionalismos europeus do início do século XXI.
Essas similitudes, contudo, são menos expressivas quando observadas caso a caso, com destaque para a experiência francesa. Para Traverso, a “judeofobia” é combatida pelo Estado francês que, por sua vez, legitima a islamofobia. Os judeus estão integrados econômica, social e culturalmente, enquanto africanos e asiáticos e seus descendentes, mesmo nascidos na França, experimentam uma cidadania de segunda categoria. Nos anos 60 do século passado, ao lado dos negros, judeus marcharam em luta contra o racismo e pelos direitos civis. Hoje, organizações civis que congregam judeus confundem o Estado de Israel e comunidade judaica, oprimindo palestinos em suas próprias terras: “La memoria del Holocausto se há convertido en una religión civil republicana, en tanto que la memoria de los crímenes coloniales sigue negada o acallada, como en el caso de las controvertidas leyes de 2005 sobre el ‘papel positivo’ de la colonización.” (p.88). A emergência da islamofobia contemporânea, conclui o autor, não pode ser reduzida ao racismo clássico dos séculos XIX e XX ou ao fator imigração. O colonialismo entranhado na República é o que explica (na certeira expressão de Meyran) o “racismo de pobre” em vigor na França.
Observem que não apresentei nenhum senão ao capítulo terceiro e o mesmo ocorre com o quarto capítulo – “¿Islamismo radical o islomofascismo? El Estado Islãmico a la luz de la historia del fascismo”. Nele, novamente, Meyran tenta extrair de Traverso uma posição sobre a potência heurística da categoria (“islamofascismo”) e, consequentemente, sobre a validade de tipificar o Estado Islâmico (EI) com expressão do fascismo. Ele rechaça a proposição, embora reconheça semelhanças entre os fascismos italiano, alemão e francês e as ações do EI.
Elas estariam principalmente, nos contextos de emergência do primeiro e do segundo fenômeno (desestabilização da Europa pós Primeira Guerra Mundial e desestabilização de países árabes pós invasões soviéticas, estadunidenses e europeias no Iraque e Afeganistão, por exemplo) e no caráter conservador das suas revoluções (o emprego da tecnologia para propagandear uma sociedade “obscurantista”, baseada em um “passado imaginário”. As diferenças, contudo, superam as similaridades mais gerais, quando, segundo Traverso, o analista aborda os fenômenos diacronicamente e em suas particularidades.
hemos visto surgir fascismos en América Latina, es decir, fuera de Europa: ahora bien, estos se instalaron en el poder gracias al apoyo de los imperialismos, las grandes potencias. En Chile, uno de los peores regímenes fascistas latinoamericanos se instaló mediante un golpe de Estado organizado por la CIA. […] La fuerza del EI, al contrario, radica en el hecho de mostrarse ante los ojos de muchos musulmanes como un movimiento de lucha contra el Occidente opresor. Eso vuelve problemático definir este movimiento como fascista.
Fascismo é conceito histórico, não devendo ser usado como categoria analítica. Totalitarismo (de H. Arendt) é categoria analítica adequada ao exame do EI, mas limitada à sua natureza abstrata (de categoria), a exemplo da categoria nacionalismo. O nacionalismo fascista é cimentado pelo “culto ao sangue” (Itália) e “culto ao solo” (Alemanha) e o nacionalismo do EI é “universalista”; o fascismo (categoria ou conceito histórico?) do Chile foi apoiado pelo imperialismo estadunidense que combate agora as ações do EI; o fascismo da Itália e da Alemanha emergem como alternativa à democracia liberal, enquanto o EI emerge em território que nunca praticou a democracia; o fascismo da Itália e da Alemanha eram anticomunistas enquanto o EI nunca encontrou a resistência de “uma esquerda radical”.
Ao listar meia dezena de razões para não tipificar o EI como fascista, Traverso demonstra os perigos das conclusões sobre causas e consequências de fenômenos históricos com base apenas no emprego de categorias (sobre todo os tipos ideais). Ideologias são apenas uma variável. Não é a religião que explica o EI: “hay que estudiar l la relacion que existe entre Marx, el marxismo, la Revolución Rusa y el estalinismo […] resulta evidente que el EI no es la revelación del islan ni la única expresión posible del islam, pero si uma de sus expresiones […] la Inquisición no es la única expresión posible del cristianismo, !también existe la teologia de la Liberación”. (p.92) Traverso, por fim, deixa implícito que quando cientistas sociais e historiadores tomam a ideologia como causa eles enviesam os resultados. Quando estrategistas e políticos agem dessa forma, o prejuízo é em escala. Eles criam “espantalhos”, omitem o assentimento popular ao EI, o financiamento ocidental ao EI, a contribuição ocidental midiática à banalização da violência (adotada pelo EI), a instrumentalização das ideias de direitos humanos, liberalismo e democracia para exterminar os movimentos emancipatórios de povos africanos e asiáticos.
Nas conclusões do livro – “Imaginario político y surgimento del posfascismo” –, mais uma vez, o leitor perceberá a tensão entre o reiterar de uma tese (a falência das utopias do século XX, a exemplo do comunismo e do fascismo, dá vasão às investidas pós-fascistas, encarnadas pelas novas direitas e o terrorismo islâmico), a instabilidade da aplicação dos conceitos (o “modelo antropológico do neoliberalismo”, também referido como “idolatria do mercado”, é ou não uma ideologia dos últimos 20 anos?) e a atribuição de valor na causação das novas direitas (a extinção das ideologias do século XX, a precariedade socioeconômica de grandes segmentos populacionais, na Europa, Ásia e África ou os dois condicionantes simultaneamente?).
Da mesma forma, ainda na conclusão, Traverso consolidará, sinteticamente, as principais ideias que se propôs a defender durante a entrevista: 1. Novas direitas (ou direitas radicais) e islamismos não são fascistas; 2. Novas direitas e islamismos são “sucedâneos” reacionários (passadistas e xenófobos) das utopias do século XX; 3. Movimentos sociais e partidos políticos de esquerda (com suas iniciativas, ironicamente, dispersas em um mundo globalizado) não são capazes, no curto prazo, de preencher esse vazio utópico; 4. “Religiões cívicas” como o republicanismo francês pós massacre Charlie Ebdo e memorialismo anti-holocausto, respectivamente, acrítico e vitimista, são incompetentes como freios às novas direitas. Sua percepção de futuro, contudo, é otimista: “no hay inexorabilidade alguna. Pueden myy biente aparecer en cualquer momento mentes creadoras, dotadas de una poderosa imaginación, y proponer una alternativa, outro modelo de sociedad.” (p.116).
No início desta resenha, anunciei a razão da minha escolha: queria observar o que caracterizaria o trabalho de um historiador de formação e ofício que estuda o fenômeno das “novas direitas”. A resposta serve como avaliação geral do livro. Em Las nuevas caras de la derecha o noviço de história é beneficiado, talvez, pelo gênero textual (marcado pelos diálogos entre Meyran e Traverso) que elimina a organização lógica de um texto e (se o noviço aceita participar como observador) em benefício da liberdade de suspender a leitura e refletir sobre o lido sem perder o fio da meada (já que as questões ou temas se encerram ao final de uma ou duas intervenções do entrevistador).
Esse expediente possibilita a percepção das várias tensões que atravessam o livro e que ensinam de modo mais realista como trabalha um historiador que se ocupa do referido tema, obviamente, aos que estão predispostos a aprender: a tensão sobre as escolhas de variáveis para a comparação (sobre o que serve e o que não serve para fazer analogias, se mais as semelhanças, se mais as diferenças) e as justificativas políticas empregadas para fazê-lo; a tensão sobre a adequabilidade e a eficácia do emprego do conceito histórico e da categoria analítica; a tensão da escolha entre se comportar como historiador tipicamente historicista (examinando múltiplas variáveis e construindo contextos prováveis a partir de múltiplos pontos de vista) e um cientista social (empregando modelos/tipos e fazendo generalizações sobre sujeitos concretos a partir de categorias/abstrações); a tensão de perceber a oportunidade para problematizar uma situação concreta, mediante antinomias ou explicações unilaterais, e de encontrar o melhor momento para reiterar a sua tese sobre os estados de coisas nos quais estamos envolvidos no início do século XXI (Estado Islâmico, Trump, Le Pen): fenômenos pós-fascistas resultam do fracasso das revoluções do século XX e da crise do capitalismo como fornecedores de horizontes de expectativas para populações alijadas da globalização e vitimadas pelo colonialismo.
Sumário de Las nuevas caras de la drecha
- Prefacio a la edición castellana
- 1. Prólogo
- 2. ¿Del fascismo al posfascismo
- 3. Políticas identitarias
- 4. Antisemitismo e islamofobia
- 5. ¿Islamismo radical o “islamofascismo”? El Estado Islámico a la luz
- de la historia del fascismo
- Conclusión. Imaginario político y surgimiento del posfascismo
- Sobre el autor
Para citar esta resenha
TRAVERSO, Enzo. Las nuevas caras de la drecha. Buenos Aires: Titivillus, 2021. 234p. Resenha de: FREITAS, Itamar. As recentes direitas de um historiador. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/3237/>.
Menos Marx, Mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil | Camila Rocha
Camila Rocha | Imagem: Diplomatic
Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil, de Camila Rocha, resulta da pesquisa de doutorado em Ciência Política, desenvolvida na Universidade de São Paulo/USP e defendida em 2018. A pesquisa ganhou os prêmios de Tese Destaque USP no âmbito das Ciências Humanas e melhor tese pela Associação Brasileira de Ciência Política. Em 2021, após adaptações na estrutura e na linguagem, com vistas a atingir a comunidade leitora não especializada, o trabalho foi publicado pela editora Todavia.
A obra está organizada em introdução, três capítulos centrais, estes divididos em subcapítulos de número e extensão variável, e considerações finais. Nuclearmente no livro é o argumento de que a chamada “nova direita” brasileira constitui “contra-públicos” que se organizaram fora das estruturas tradicionais de poder; se afastariam da “velha direita” por serem críticos e não mostrarem-se tributários nem devedores da ditadura-civil militar; e resultarem de acomodações entre o ideário “ultraliberal”, no âmbito da economia, com perspectivas “conservadoras”, no campo das relações sociais, algo que o debate político corrente na mídia e imprensa tem tratado, por vezes, de maneira simplista e inadequada sob a expressão “pauta de costumes”. Leia Mais
“Não somos bandidos”: a vida diária de uma guerrilha de direita: a Renamo na época do Acordo de Nkomati (1983-1985) | Michel Cahen
O nascimento de Moçambique como país foi resultado de uma luta armada, chamada de “luta de libertação nacional”, guerra de uma década desenvolvida pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) contra a ocupação colonial portuguesa. A independência conquistada não trouxe paz aos povos moçambicanos. Logo foram estes arrastados para um novo e trágico conflito que, durante 16 anos, destruiu vidas, famílias e infraestrutura, bloqueando as condições de desenvolvimento do país que estava nascendo.1 Leia Mais
Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política | Norberto Bobbio
Não se passou muito tempo desde quando podíamos ouvir a pergunta: “Mas ainda existe a direita?”. Após a queda dos regimes comunistas, ouve-se aflorar com a mesma malícia a pergunta inversa: “Mas ainda existe a esquerda?” (p.63)
A discussão sobre o significado de direita e esquerda é algo muito presente em nossa contemporaneidade, sobretudo para brasileiros que vivem um momento de polarização política. Contudo, esta temática pode ser observada em tempos precedentes, a fim de identificar um alinhamento político e identificar os sujeitos com uns ou outros princípios. A epígrafe, a qual abre este trabalho expressa uma dúvida quanto a continuidade da existência da direita e da esquerda em diferentes períodos históricos, além de colocar a díade direita-esquerda sobre o escrutínio que visa identificar se os dois opostos realmente “não tem mais nenhuma razão para ser utilizada”2. É diante deste quadro que a obra de Norberto Bobbio se inscreve, ratificando o compromisso com a tentativa de estabelecer uma diferenciação entre direita e esquerda. Leia Mais
La derecha en la crisis del Bicentenario – HERRERA (RHYG)
HERRERA, Hugo. La derecha en la crisis del Bicentenario. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Diego Portales, 2014. 213p. Resenha de: BUSTAMANTE OLGUÍN, Fabián. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.32, p.147-151, 2015.
Los estudios sobre la derecha chilena cuentan con un vasto recorrido durante el siglo XX sobre todo en lo que refiere a sus ideas políticas y a su papel en la justificación del golpe de Estado de 1973 y la dictadura militar. Sin embargo, el libro que se reseña plantea un importante desafío para el estudio de la derecha en el Chile post-dictadura: repensar su falta de comprensión política. Al respecto, cabe señalar que si bien es cierto que algunos de sus representantes políticos poseen tribuna en los medios de comunicación, existe poco esfuerzo intelectual en sus intervenciones públicas lo que impide su inserción en el debate político actual. Todo ello, por cierto, puede verificarse en los innumerables adjetivos calificativos para referirse a los enemigos políticos.
En este contexto, el filósofo y director del Instituto de Humanidades de la Universidad Diego Portales, Hugo Herrera, nos presenta este libro precedido de varios artículos publicados en el diario La Tercera en calidad de columnista. Desde ya el título advierte una crisis en la derecha, una crisis intelectual producto de la falta de un discurso renovado, generando superficialidad a la hora del debate político en una sociedad chilena mucho más compleja y dinámica,2 a pesar de su primer gobierno en democracia con Sebastián Piñera (2010-2014). De ahí que el autor sostenga la nula articulación de una respuesta (o propuesta) a futuro. Las consecuencias de esta derecha desajustada (históricamente, a mi juicio) de la experiencia diaria de la realidad nacional y desterrar su diversa historia intelectual es lo que pretende ilustrarnos el autor. Leia Mais
Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil – CORDEIRO (EH)
CORDEIRO, Janaína Martins. Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. Resenha de: PAULA, Christiane Jalles de. Memória, história e mulheres de direita na ditadura no Brasil. Estudos Históricos, v.25 n.49 Rio de Janeiro Jan./June 2012.
Há uma corrente na historiografia brasileira que propõe a revisão das interpretações sobre o regime militar, e especialmente a da memória construída da resistência da sociedade brasileira à ditadura. Esse movimento tem trazido novos ângulos, fontes e objetos para a compreensão do Brasil no período de 1964 a 1985. O trabalho de Janaína Martins Cordeiro, originalmente dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), alia-se a essa corrente. Como bem realçou Denise Rollemberg no prefácio, um dos seus méritos é que avança ao propor uma interpretação original sobre a atuação de um grupo manifestamente a favor do regime instaurado em 1964: a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde). Por isso mesmo, não surpreende que o trabalho tenha sido agraciado com o Prêmio Pronex/UFF em 2009, que subsidiou sua publicação.
O livro Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil assume dois objetivos. O primeiro é a recuperação da memória das mulheres da Camde, buscando, ao fazê-lo, desmistificar a memória da resistência da sociedade brasileira, uma vez que é inegável a ressonância que os discursos anticomunistas dos grupos de mulheres tiveram em 1964. O outro é entender como esses grupos apoiaram e legitimaram o golpe e a ditadura. Este é o ponto que considero mais instigante e original, uma vez que compartilho da ideia de que só podemos entender um determinado período se nos debruçarmos sobre o jogo social, político e cultural jogado pelos segmentos sociais. O livro nos permite entrever o dinamismo do jogo do qual participaram as mulheres da Camde, embora, é preciso reconhecer, nem sempre as ambiguidades tenham sido sublinhadas, e se tenha tentado, antes, encontrar as coerências do grupo. De toda forma, o livro nos leva a entender, como diz Rosanvallon (2010: 76), “o modo por que os indivíduos e os grupos elaboraram a compreensão de suas situações; os rechaços e as adesões a partir dos quais eles formularam seus objetivos; a maneira pela qual suas visões de mundo limitaram e organizaram o campo de suas ações”.
Organizado em três capítulos, além da introdução e das considerações finais, o livro traz a história da Camde, os valores que forjaram a militância da entidade e, finalmente, a memória elaborada pelas militantes do grupo.
O primeiro capítulo retrata a história da Camde. Nele, a narrativa cronológica é subsumida ao tema da cultura política, o que enriquece a argumentação. Por isso mesmo, o capítulo trata das formas de organização política e das ações empreendidas pelo grupo. Há uma dupla intenção no estudo desses aspectos: compreender a ditadura e o universo simbólico do grupo. A autora nos persuade de que o grupo compartilhava uma cultura política caracteristicamente elitista, udenista, assistencialista e católica.
No capítulo 2 são apresentados os valores que nortearam a organização e a atuação da Camde. Chamando a atenção para como as mulheres do grupo fizeram uso das categorias da esfera privada (mães, esposas e donas de casa) na construção de seus discursos públicos, a autora nos traz um retrato das relações de gênero no Brasil, que mostram ser um elemento fundamental para a compreensão da participação do grupo na cena pública brasileira entre 1962 e 1974.
No capítulo 3 são analisadas as memórias elaboradas pelas militantes da Camde. Seus silêncios, suas recusas e as dificuldades para conseguir entrevistá-las – de 17 mulheres que foram encontradas e contactadas, só quatro se dispuseram a prestar depoimento à autora – expõem a força da construção da memória do silêncio. Partindo da elaboração de Pierre Laborie, para quem o silêncio sobre determinado evento pode estar relacionado à incompreensão no presente de um comportamento do passado, a autora, ao tratar os depoimentos, constrói a teia de adesões e rechaços que marcam a memória e a história de militância das mulheres que estiveram ligadas à Camde.
O trabalho de Janaína Martins Cordeiro suscita muitas questões. Nesta resenha quero chamar atenção para três em especial.
Primeira: como tratar de um grupo de militantes católicos sem considerar a centralidade do catolicismo como “visão de mundo” (Karl Mannheim, 1982), ou seja, entender que o catolicismo estrutura uma série de vivências ou de experiências que, por sua vez, constitui-se como base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos indivíduos. No trabalho, embora inúmeras vezes o catolicismo seja mencionado, acabou sendo pouco explorado enquanto base comum das vivências e experiências das mulheres da Camde.
Segunda: a democracia é um conceito polissêmico. Então, não seria preciso explicitar o conceito de democracia usado pela Camde? Vale lembrar que o catolicismo, já no século XIX, adotara politicamente a si mesmo como terceira via à democracia liberal e ao socialismo, que, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, passou a ser chamada de “democracia cristã”. Além disso, a “democracia” no catolicismo tem significado diverso daquele difundido pela democracia liberal-representativa. Não é por acaso que tanto o anticomunismo como o antiliberalismo são bases importantes do pensamento político católico.
Terceira: em vários momentos do trabalho o grupo é caracterizado como conservador. Por que não matizar este qualificativo, mostrando que, em algumas conjunturas, o grupo assumiu feição tradicionalista e, em outras, reacionária? Um investimento maior nas diferenças destes conceitos poderia nos dar indícios mais robustos dos porquês de algumas das escolhas e, principalmente, poderia realçar ainda mais as ambiguidades das mulheres da Camde.
Gostaria de finalizar ressaltando que estas considerações só reforçam a qualidade e a originalidade da interpretação. Trata-se de um livro que muito contribui para o atual debate sobre a ditadura no Brasil e que merece leitura atenta.
Referências
MANNHEIM, Karl. Structures of thinking. Collected Works Volume Ten. London: Routledge + Kegan Paul, 1982. [ Links ]
ROSANVALLON, P. Por uma história conceitual do político. In: Por uma história do político. Tradução de Christian Edward Cyrill Lynch. São Paulo: Alameda, 2010.
Christiane Jalles de Paula – Doutora em ciência política pelo IUPERJ, professora e pesquisadora do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil (christiane.jalles@fgv.br).
Extremismos Políticos de Direita | Locus | 2012
Este conjunto de artigos da revista Locus, fruto do colóquio Os extremismos políticos de direita: entre a tradição e a renovação realizado nos dias 29 e 30 de novembro de 2011 no ICS-UL, reflecte bem a mudança de perspectivas de análise sobre o fascismo e os movimentos e ideologias políticas de extrema direita de uma nova geração de historiadores. Por um lado, a perspectiva comparada consolida-se com modelo dominante, por outro, a perspectiva cronológica alargou-se o espectro de análise também. O fascismo vai assim sendo integrado com variante do pensamento e da acção política da direita autoritária do século XX.
No primeiro artigo, Fabio Chang compara a nova extrema direita em Portugal e na Argentina, utilizando a perspective conceptual do historiador britânico Roger Griffin, um dos grandes inovadores recentes da historiografia sobre o fascismo.
Segue-se um artigo de Leandro Pereira Gonçalves sobre o impacto na obra e accção de Plinio Salgado, do Integralismo Lusitano, dos católicos portugueses, e do próprio Estado Novo de Salazar. Particularmente importante na sua carreira política após a segunda Guerra mundial, quando regressar ao Brasil, após um breve exílio em Portugal. Este tema da origens e influências ideológicas também está presente no artigo de Paulo Archer sobre o Intergralismo Lusitano, muito marcado pela Action Française, e na contribuição de Nuno Simão Ferreira sobre Alberto de Monsaraz, um dos seus mais marcantes dirigentes.
Nos artigos de Gilberto Callil e de Odilon Caldeira Neto sobre o neointegralismo no Brasil, e de Riccardo Marchi sobre a Extrema Direita portuguesa, estão presentes os grandes dilemas de legitimação e construção da filiação dos grupos de extrema direita contemporânea: como se referenciar em relação ao passado fascista e às suas figuras mais importantes. Após 1945 Plinio Salgado recuperou o conceito de “democracia orgância” e cristã como demarção do “totalitarismo”, o que não deixou de ser um legado complexo para os grupos neointegralistas da transição democráticas. No caso da democracia portuguesa, a natureza de ruptura da transição e o trauma da descolonização foram factores importantes para explicar a fraqueza da extrema direita.
O imperialismo expansionista foi uma das características do Nacional Socialismo alemão e do Fascismo italiano, mas o papel relativo das colónias na ideologia e prática do Salazarismo e do fascismo italiano apresentaram diferenças significativas, como demonstra Piero Tessadori no seu artigo. O mesmo se poderia dizer das relações entre a Igreja Católica e estes dois regimes. No caso do Estado Novo de Salazar, o catolicismo conservador foi uma fonte de inspiração da Ditadura, reforçado pelo catolicismo do Ditador Oliveira Salazar, mas, como salienta Maria Inácia Rezola, no seu artigo, não podemos reduzir o Estado Novo português a um “Nacional Catolicismo”. Na sua longa duração, como bem sublinha Duncan Simpson na sua contribuição, existiram naturalmente algumas tensões, sobretudo a partir dos anos 60, com o desenvolvimento da Guerra colonial.
Entre fascismo histórico e extrema direita contemporânea os temas de polarização ideologica e de construção de novas identidades políticas vão variando e a “questão islâmica” constitui um exemplo desta dinâmica contextual. José Pedro Zúquete, autor de vários trabalhos sobre o populismo e a direita radical europeia, aborda este tema no seu artigo analítico e prospectivo.
Comparação, alargamento da escala diacrónica e contextual marcam assim este conjunto de artigos, representativos de uma inovação historiográfica sobre o tema do fascismo e da extrema direita na época contemporânea.
PINTO, António Costa. Editorial. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.18, n.1, 2012. Acessar publicação original [DR]
Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil – NEVES (ES)
NEVES, Lúcia Maria Wanderley (Org). Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010. Resenha de: SOUZA, Silvana Aparecida de. Direita para o social, esquerda para o capital. Educação & Sociedade, Campinas, v.32 no.117 out./dez. 2011.
Lançado em outubro de 2010, na 32ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), pela editora Xamã, com cuidadoso prefácio de Roberto Leher e apresentação de Eurelino Coelho, Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil é organizado por Lúcia Maria Wanderley Neves, professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV-FIOCRUZ) e coordenadora do Coletivo de Estudos de Política Educacional ligado àquela instituição. Com larga experiência e apoiada no referencial teórico marxista/gramsciano – a partir do qual tem desenvolvido um continuum de estudos e pesquisas em políticas e educação no Brasil, em suas relações com o processo permanente de reestruturação do modo de produção capitalista -, Lúcia Neves é autora, coautora e organizadora de diversos outros livros na área educacional.
Os demais autores do livro – André Silva Martins, Daniela Mot a de Oliveira, Ialê Falleiros, Marcela Alejandra Pronko, Marcelo Paula de Melo, Marco Antonio Carvalho Santos, Maria Teresa Cavalcanti de Oliveira e Vanja da Rocha Monteiro – integram o Coletivo de Estudos de Política Educacional coordenado por Lúcia Neves.
Tendo como recorte as relações superestruturais que produzem e reproduzem a alienação na sociedade capitalista, o título do livro per si já é bastante provocador e, por isso, um convite instigante à leitura.
Escrito de forma coletiva, seus autores, em uma demonstração de domínio do pensamento do italiano Antonio Gramsci, tratam do processo de formação e de atuação instrumental dos intelectuais orgânicos ou tradicionais, individuais ou coletivos1 na sociedade, sobretudo no momento histórico atual.
Para além do alto domínio conceitual e teórico, os autores demonstram, do ponto de vista histórico, a constituição e os determinantes do processo de propagação das ideias que fundamentam “a nova pedagogia da hegemonia”;, mais especificamente na sociedade capitalista contemporânea. Tratam do contexto da Guerra Fria, apontando um conjunto de ações desenvolvidas na época de ouro do capitalismo para efetivar uma verdadeira campanha cultural, cujo objetivo era difundir na intelectualidade ocidental não só a aceitação como a exaltação do “americanismo”; como modo de vida. O objetivo de tal campanha era fazer com que o poder de formação de opinião das massas que a intelectualidade detém se voltasse a favor do American way of life.
A partir daí, os autores listam uma série de instituições de natureza pública e/ou privada, criadas na América Latina e no Brasil, com o objetivo de orientar as políticas públicas, a tomada de decisão dos governos e constituir um quadro de servidores públicos de carreira formados a partir de uma concepção desenvolvimentista, mas, antes de tudo, anticomunista.2
Na década de 1970 teve início um processo de crise no interior do capitalismo que levou ao fortalecimento da doutrina neoliberal e que propiciou, em pouco tempo, a “mundialização do capital, com seus exorbitantes ganhos financeiros e suas desastrosas consequências no aprofundamento das desigualdades sociais”; (Neves, 2010, p. 66).
Data desse período a origem da Terceira Via, que se apresentou como alternativa indispensável para “suprimir o potencial de conflito dos primeiros regimes de direita radical (Thatcher e Reagan), eliminando a oposição ainda existente à hegemonia neoliberal”; (idem, ibid., p. 70), quando passou a ocorrer a formação de uma nova subjetividade coletiva que resultou em uma nova sociabilidade, que tem se traduzido em uma prática política da direita para o social e da esquerda para o capital.
Nesse contexto, o grupo, que é profícuo em cunhar expressões – condição que acaba por caracterizar sua forma bem humorada de produzir explicações que retratem sofisticadamente o real -, utilizando-se metaforicamente de um fenômeno da natureza, chama de “pororoca do novo mundo”; o encontro de correntes políticas distintas, à direita para o social e à esquerda para o capital, que atualmente se traduz na chamada Terceira Via.
A partir de então, os autores se propõem a explicitar os fundamentos teóricos que dão sustentação ao projeto neoliberal da Terceira Via no Brasil e, para tanto, realizam a análise dos princípios da “pedagogia da hegemonia”;. Para esta tarefa, selecionaram obras clássicas de vários teóricos, de diferentes áreas, que sustentam, com alguma diferença entre eles, que a atual fase do capitalismo se configura como um mundo novo. Isso está de acordo com a teoria do fim das classes e de que o trabalho não é mais categoria central para explicação da realidade e sim o conhecimento, a linguagem, a informação ou a cultura. Os teóricos analisados são: Alain Touraine, Adam Schaff, Robert Putnam, Peter Drucker, Boaventura de Souza Santos, Manuel Castells, Edgar Morin, Zygmunt Bauman, Michel Hardt e Antonio Negri.
Na última parte do livro os autores se ocupam da análise da influência dos “intelectuais coletivos”; com atuação na formação política e escolar da sociedade brasileira contemporânea, tendo escolhido para o estudo de caso a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), ambos pelo papel formador dos quadros intelectuais brasileiros, tanto para a área pública quanto para a privada.
No que diz respeito à FGV, que, desde sua criação em 1944, forma gestores para o setor público e para o campo empresarial privado, sua influência é extensa na definição de políticas públicas no país, pois muitos de seus professores e pesquisadores ocuparam e ocupam cargos importantes no governo federal; a Fundação, por intermédio de seus vários institutos, tem prestado permanentemente consultoria e assessoria econômica a governos brasileiros; possui vasta e diversificada linha editorial de revistas científicas, entre as mais conceituadas do país na área de Administração e Economia; organiza e realiza uma diversidade enorme de eventos, congressos e seminários nacionais e internacionais; nos últimos anos, cresceu sobremaneira sua atuação na prestação de serviços de consultoria para o setor privado, assim como na oferta de serviços educacionais (cursos de curta duração, de graduação e pós-graduação, nas modalidades presencial e a distância), formando gestores agora também para a chamada economia social, solidária ou ligada ao Terceiro Setor.
Já o IBASE foi inicialmente administrado por exilados e políticos cassados pela ditadura militar, que retornaram ao país com a anistia política de 1979, e tinha por principal objetivo prestar assessoria aos movimentos sociais comprometidos com a democratização do Brasil. No entanto, com o passar do tempo, seus objetivos foram mudando e hoje o Instituto atua, sobretudo, junto às organizações não governamentais (ONG) voltadas à prestação de serviços sociais para segmentos populacionais considerados “excluídos”.
Assim, a pesquisa demonstra que tanto a FGV quanto o IBASE, na condição de organizações da sociedade civil, atuam, cada uma a seu modo, como intelectuais coletivos na legitimação da nova pedagogia da hegemonia, de acordo com os preceitos da Terceira Via.
É com esta análise da influência dos intelectuais coletivos que os autores optam por terminar o livro sem tecer as conhecidas “considerações finais”, ou mesmo uma síntese, presente no encerramento da maioria de estudos dessa natureza. Porém, considerando que Direita para o social… constitui uma sequência articulada às discussões realizadas em trabalho anterior (A nova pedagogia da hegemonia), arriscaria dizer que a forma como o livro termina sugere que teremos uma espécie de trilogia, pois é sabido que o Coletivo de Estudos de Política Educacional continua cada vez mais bem articulado e está com nova pesquisa em andamento, que, norteada pelo mesmo referencial teórico, agora contempla a análise do chão da realidade escolar pública brasileira.
Enfim, o livro coordenado por Lúcia Neves se apresenta como uma referência importante para o debate da esquerda educacional brasileira, por sua relevância teórica, pela pertinência das relações que estabelece, mas, sobretudo, por não perder a perspectiva da ruptura com a lógica destrutiva do capital.
Notas
1. Antonio Gramsci entendia por intelectuais indivíduos ou organizações formadoras, organizadoras e/ou propagadoras, em diferentes linguagens, da cultura e das ideias que fundamentam uma determinada concepção de mundo e de classe. Portanto, em acordo com a conceituação gramsciana, um partido, um sindicato, a Igreja ou qualquer outra organização podem assumir, em qualquer momento, a condição de intelectual coletivo.
2. Observe-se que, de acordo com a teoria gramsciana, a sociedade civil pode dar certa direção às políticas públicas, por meio de organizações que se convertem em intelectuais coletivos, o que, em sua teoria de Estado, denomina-se “aparelhos privados de hegemonia”. No entanto o autor esclarece que a classe dominante tem melhores condições de fazer isso do que a classe que luta no plano contra-hegemônico (Gramsci, 2000).
Referências
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. [ Links ]
NEVES, L.M.W. (Org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005. [ Links ]
NEVES, L.M.W. (Org.). Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010. [ Links ]
Silvana Aparecida de Souza – Doutora em Educação e professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: souzasilvana@uol.com.br
Izquierdas y derechas en la mundialización – RUBIO (AN)
RUBIO, Enrique. Izquierdas y derechas en la mundialización. Montevideo: Banda Oriental, 2006. 142p. Resenha de: CABRAL, José Pedro Cabrera. Anos 90, Porto Alegre, v.15, n.27, p.407-410, jul. 2008.
Sob o título Izquierdas y Derechas en la Mundialización, o historiador e político uruguaio Enrique Rubio apresenta um ensaio que centra sua temática nas novas esquerdas ou as esquerdas progressistas que, a partir dos anos 2000, irromperam em vários governos nacionais do Cone Sul. O livro foca os desafios para essas esquerdas perante o processo de globalização e a necessidade de alternativas para enfrentar o modelo neoliberal representado pelas direitas na América Latina. Com esse objetivo, a obra se divide em seis capítulos.
No primeiro capítulo, Rubio analisa as implicações que a globalização apresenta para a esquerda latino-americana. O que se propõe, essencialmente, é discutir uma alternativa democrática ao processo de globalização. Para tal, parte do pressuposto de que a globalização é irreversível e, portanto, as estratégias de enfrentamento devem passar necessariamente pelo fortalecimento da democracia. Utiliza-se do conceito de altermundismo, de forma a identificar um movimento antiglobalização que, na sua concepção, implica um avanço, visto que esse conceito ultrapassa a mera oposição pelas vias da inovação em todos os terrenos.
Rubio aponta para a necessidade de se pensar uma nova ordem econômica mundial, que implicaria a transformação das instituições. nacionais e supranacionais, procurando seu pleno desenvolvimento, fortalecimento e uma efetiva democratização (isto tomaria mais envergadura nos organismos internacionais). A proposta tem como base a formação de uma articulação progressista internacional, que encontraria seu ponto de apoio no desenvolvimento de macrorregiões, como seria o caso do Mercosul. Dessa forma, segundo o autor, se articulariam iniciativas em redes que poderiam ter um alcance mundial.
No segundo capítulo, intitulado Estado de guerra y guerras culturales, o autor aborda a temática desencadeada (ou atualizada) a partir dos acontecimentos do 11 de setembro, no qual o Estado de Guerra contra o terrorismo trouxe, dos elementos fundantes da política exterior norte-americana, por um lado, a substituição do inimigo ideológico: do comunismo pelo terrorismo, associado ao islamismo, como a principal ameaça para a paz mundial. E, por outro lado, a justificativa dos inúmeros ataques e invasões aos países islâmicos.
Assim, o fundamentalismo, principalmente de base religiosa, tornou-se o alvo das atenções, legitimando a teoria do choque de civilizações. Rubio salienta que o fundamentalismo de cunho religioso é um dos grandes desafios para a esquerda progressista, na medida em que dificulta os processos de afirmação e consolidação da democracia.
Na terceira parte do livro, o autor analisa as crises ideológicas das esquerdas no mundo, com principal foco na América Latina. Rubio observa a vigência de uma nova agenda para a esquerda, que incorporou temáticas emergentes como as questões relacionadas ao multiculturalismo, ao multilateralismo, aos processos de integração regional, às guerras e às lutas pela paz, aos problemas críticos em matéria ambiental e ao enfraquecimento dos Estados nacionais, entre outros.
Essa nova agenda teria como base incontestável e central a questão democrática, entendida como a necessidade de aprofundamento da democracia em todas as relações sociais, como construção social ampla, como legitimação de direitos individuais e coletivos, e como aspiração de normas de convivência social eqüitativas e libertadoras.
Assim, o autor caracteriza o que, em sua opinião, se reflete no pensamento progressista: a democracia pela via da socialização do poder.
Dessa forma, o progressismo seria a única. opção política dentro da esquerda para efetivar essas aspirações democráticas, e também a única que pode combater a direita neoliberal no mundo globalizado.
Na quarta parte da obra, discute-se a questão do patrimônio comum, aludindo, assim, à parte substancial dos novos paradigmas da esquerda. Em primeiro lugar, a questão dos recursos naturais, seguida do conhecimento e das comunicações. Estes associados, por sua vez, como condições sine qua non para o aprofundamento da democracia. O que o autor parece esquecer é que precisamente esses em diversas formas e momentos . foram fatores determinantes de dominação e de dependência para os países latino-americanos.
Rubio considera que, a partir dos governos progressistas, se poderão democratizar essas problemáticas em favor das desigualdades sociais e econômicas.
Como quinto capítulo do livro, Rubio traz a temática da sociedade do conhecimento e pontua os novos desafios que essa apresenta para a esquerda. A mudança de paradigma é inquestionável, e o autor assinala, como a principal força produtiva, a questão do conhecimento. Conjuntamente com o conhecimento, a informação, a educação e a inovação passaram a ser as chaves para o desenvolvimento dos países do terceiro mundo. Esses temas tomaram um lugar privilegiado na nova agenda da esquerda latino-americana e, particularmente, na uruguaia, de onde Rubio fala, ocupando uma posição de destaque nas plataformas programáticas progressistas.
O último capítulo, intitulado La cuestión política, discorre sobre o papel do progressismo (como partido político de massas) como articulador. com a sociedade civil. Apresenta-se, por um lado, como a única. opção democrática conflitante com o neoliberalismo, induzindo a uma nova bipolaridade no cenário político uruguaio: a direita, representante das oligarquias e do neoliberalismo, e o progressismo, representante da democracia, da esquerda e dos setores democráticos e progressistas. Por outro lado, a articulação com a sociedade civil se produziria no âmbito dos movimentos sociais, os quais, independentemente de suas características próprias (gênero, etnia etc.), confluiriam com o progressismo na ampliação da democracia, fundamentalmente a partir da criação, implementação e colocação em prática de políticas públicas de inclusão social. Portanto, o papel dos novos movimentos sociais estaria atrelado à defesa dos paradigmas da nova esquerda: os paradigmas da liberdade, da eqüidade, da solidariedade e dos direitos cidadãos.
A obra de Rubio tem seu foco no progressismo uruguaio em particular, que o autor generaliza para o âmbito da América Latina.
As particularidades do continente fogem à obra, e ficaram postergadas na análise de Rubio, deixando uma lacuna a respeito do que o título do livro apresenta. Sua contribuição oferece uma visão do que essa nova esquerda progressista. uruguaia entende por desafios e também uma definida postura ideológica que diz respeito a essa nova realidade política do país. O progressismo uruguaio (e, da mesma forma Rubio) elabora um discurso híbrido que possibilita a interlocução dos atores sociais e políticos, confluindo permanentemente com o progressismo., tentando, assim, legitimar a agenda da nova esquerda.
José Pedro Cabrera Cabral – Doutor em História. Docente do Departamento de História da Universidade Federal do Tocantins. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq. E-mail: jpcabreracabral@yahoo.com.br.
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Con las riendas del poder. La derecha chilena en el siglo XX | Sofia Correa
Con variadas y sorprendentes afirmaciones se van a encontrar los ciudadanos interesados en leer el reciente libro de la historiadora Sofia Correa Con las Riendas del Poder, dedicado a estudiar la derecha chilena durante el siglo XX. Con un estilo excesivamente narrativo, la autora va construyendo la historia de la forma de “hacer política” de dicho sector político de la sociedad chilena.
Antes de iniciar el comentario crítico a la principal tesis expuesta en el libro, un breve apunte sobre el estilo utilizado por Sofia Correa. La narrativa historiográfica es una forma perfectamente válida de presentar los resultados de una investigación histórica destinada a tratar científicamente alguna problemática histórica, política o social que se desea conocer, comprender o analizar críticamente. La producción historiográfica es, desde hace ya bastante tiempo, el resultado de investigaciones científicas que tienen como objetivo explicar diferentes dimensiones del pasado histórico. En ello radica la diferencia entre la simple crónica histórica y el análisis científico de la historia. La historia para que alcance esa condición debe apuntar, por consecuencia, a explicar y no solo narrar. Para tal efecto, requiere de un método y/o de un modelo analítico. El libro de Sofía Correa carece de ambos. Leia Mais