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Introdução às ciências humanas – tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história – DILTHEY (V)
DILTHEY, Wilhelm. Introdução às ciências humanas – tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Trad. de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Resenha de: MERTENS, Roberto Saraiva Kahlmeyer. Veritas, Porto Alegre v. 57 n. 3, p. 223-226, set./dez. 2012.
Durante décadas, em nosso país, os estudos das ciências humanas (especialmente as sociais) se serviram das leituras de Marx ou de autores marxistas para compor massa crítica. Repertório criado, é preciso dizer que, ainda hoje, muitas das pesquisas nessa área continuam a receber orientação do referido paradigma. Sem querer apreciar a validade ou a aplicabilidade dessas matrizes em nosso momento atual (e da necessidade ou não de uma gradativa substituição por um novo paradigma para as humanidades), apenas ponderamos que, talvez pelo seu longo período de vigência, ficou inibido o interesse de pesquisadores e das editoras por outros autores representantes das demais linhas de pensamento. Sanando este débito, vemos alguns nomes e títulos clássicos da filosofia e das ciências humanas sendo traduzidos e publicados recentemente para o português do Brasil, entre eles está Wilhelm Dilthey (1833-1911) e sua Introdução às ciências humanas (1883).
Uma avaliação empírica nos permite indicar que o autor é pouco conhecido fora das rodas acadêmicas e precariamente estudado mesmo no interior delas, de sorte que a presente obra pode oportunizar um contato com as ideias deste filósofo, hermeneuta, psicólogo, historiador e pedagogo, que foi um dos primeiros a lançar um olhar lúcido sobre a inadequação dos métodos que elas importaram das ditas ciências naturais.
Para Dilthey, a metodologia das ciências naturais exerceria um efeito negativo sobre as outras, isso porque, por valer-se de compreensões hipotéticas (ou ainda, “hipostasiadas”), as ciências naturais posicionariam os objetos das ciências humanas tal como fazem com os objetos da natureza, interpretando-os como dados em sua mera aparência e duração. Desse modo, as ciências naturais (positivas) exerceriam uma ação “abstrativa” sobre o conhecimento acerca do humano. Tal ação seria decorrente da lida hipotético-positiva das ciências naturais, e tal lida oferece o risco de descaracterização da experiência humana na pauta das ciências que dela se ocupa. Nos termos do pensamento diltheyano, a ação das ciências abstrativas retira os “objetos” das ciências humanas do horizonte que lhes é próprio, na medida em que decompõe, esfacela e destrói o referido horizonte (a isso o filósofo chama de “desvivificação”).
Com essa descrição, central na Introdução às ciências humanas, a crítica às ciências abstrativas disparada por Dilthey abriu terreno para uma enxurrada de análises e desdobramentos que, em sua época (décadas finais do século XIX e iniciais do XX), chegaram a alçar até mais notoriedade do que as premissas de seu primeiro propositor. Spengler, Scheler e Spranger são apenas alguns nomes que, seguindo as pegadas de Dilthey, reforçam a premissa de que as ciências do homem, da sociedade e da história precisariam assentar-se em um solo que lhes garantisse fundamentação adequada (uma vez que esse embasamento, como já vimos, não poderia ser fornecido pelas ciências naturais, mas, antes, seria dado na humanidade das ciências do espírito).
Mas, o que, nesta tarefa de embasamento, chamaríamos de ciências da realidade histórico-social? Em que terreno se poderia lançar os alicerces das ditas ciências humanas? Onde se poderiam fundamentar as ciências do espírito de modo às mesmas não padecerem da mencionada “desvivificação”? A resposta do filósofo dada em seu livro não poderia ser mais simples: no próprio espírito, no horizonte humano, horizonte que Dilthey especifica com o termo vivência. “O ponto de partida é a vivência”. Tal sentença será repetida à exaustão ao longo das quase quinhentas páginas da obra em apreço.
Tomando por consideração as vivências (a própria vida dos fenômenos, realidade absoluta que garante a correlação entre a consciência e seus objetos em um contexto efetivamente histórico), Dilthey se serve do método hermenêutico para, com ele, reconstituir o laço que as ciências humanas possuem com o humano. Assim, uma fundamentação das referidas ciências ocorreria ao passo em que, hermeneuticamente, se possibilitaria um compreender acerca de como o conhecimento humano se faz desde o horizonte próprio ao espírito, sem que os procedimentos explicativos (abstrativos) do positivismo nisso interfiram.
O conceito de vivência, a clássica distinção entre compreender e explicar, ao lado de outros pontos que compõem bases para as ciências particularidades da sociedade e da história, são apresentados satisfatoriamente por um Dilthey ocupado em oferecer uma visão de conjunto das ciências do espírito, na conexão com uma ciência fundante necessária. Esta primeira parte da obra, por definir conceitos e métodos; delimitar o lugar autônomo das ciências da realidade histórico-social frente às ciências naturais; fornecer visões gerais sobre as ciências particularidades da sociedade e da história e distinguir entre as duas classes de ciência, é considerada por Max Weber (outro seguidor de Dilthey) o primeiro estudo sério no qual se aborda o problema metodológico das chamadas ciências humanas.
A obra, entretanto, não se limita apenas a uma apresentação deconceitos e temáticas acerca de pontos que o filósofo julgava impres-cindíveis no campo das ciências. Intuindo (semelhantemente ao Hegel da Fenomenologia do espírito) que toda ciência depende das condições de nossa consciência, Dilthey dedica a segunda parte da obra à interpretação da constituição definitiva da ciência histórica e, por meio dela, das ciências humanas em geral. Realiza-se, assim, a tentativa de fundamentar o estudo da sociedade e da história (como o subtítulo da Introdução anuncia). O que se presencia neste momento é, então, a análise dos fatos constituintes do núcleo das ciências humanas e sua correspondência com a história; história, esta, apreendida como manifestação da vida sob o ponto de vista da humanidade.
Ao longo das quatro seções que compõem esta segunda parte do livro, vemos Dilthey buscar a restauração de elementos da base histórico-material que constitui o conhecimento humano; base, essa, que teria sido tanto negligenciada pelo projeto crítico do kantismo, quanto pelo idealismo radical hegeliano. Ao retomar essas bases históricas, Dilthey tenta esclarecer que as vivências da consciência, e as visões de mundo que elas constituem em cada época, acabam por traduzir as concreções do espírito objetivo em um tempo. Isso explica a extensa narrativa historiográfica contida no tópico intitulado Metafísica como base das ciências humanas: seu domínio e sua decadência, na segunda parte do livro. No referido momento, o filósofo descreve e analisa visões de mundo dos povos antigos e de seu pensamento místico, os povos europeus modernos e seu estágio metafísico, e a dissolução da posição metafísica ante a realidade. Fica patente, ali, a admirável erudição do autor que dedica, além de leituras refinadas de Platão e Aristóteles, dezenas de páginas à filosofia medieval árabe, ultrapassando em muito as expectativas do leitor com formação filosófica média que, geralmente, não costuma ir além de notícias sobre Avicena e Averróis (fato que justifica o entusiasmo de Eugenio Imaz, seu tradutor para a língua espanhola, que reputa sua cultura “prodigiosa”, “oceânica”). Aspecto que, por si só, já é suficiente para legitimar a publicação do livro.
Avaliada sob o ponto de vista da tradução, a edição brasileira apresenta uma versão elaborada de maneira atenta à tendência dos estudos mais atuais da obra de Dilthey. Desse modo, mesmo a tradução da expressão alemã Geisteswissenschaften por “ciências humanas” (que poderia ser contestada em favor da literal “ciências do espírito”) encontra precedente nas traduções de língua inglesa e endosso junto a comentaristas especializados, que se inclinam a acatar que “ciências humanas” traz melhor a conexão de sentido da realidade histórica e social do que a nomenclatura “ciências do espírito”, na qual a noção de “espírito” facilmente pode sugerir erroneamente uma independência de homens reais. Não fosse esse argumento suficiente, a escolha se mostra editorialmente plausível, uma vez que cria maior identidade com o público de alguns dos cursos universitários brasileiros, dos denominados cursos de ciências humanas.
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens – Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Estuda o autor alemão Martin Heidegger desde o ano de 1995, tendo interesse também pela filosofia clássica alemã. Autor de Heidegger & a Educação (Autêntica, 2008). E-mail: kahlmeyermertens@gmail.com.
Filosofia e educação – DILTHEY (V)
DILTHEY, Wilhelm. Filosofia e educação. Organização de Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral. Tradução de Alfred Josef Keller e Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral. São Paulo: EdUSP, 2010. Resenha de: MERTENS, Roberto Saaiva Kahlmeyer. Veritas, Porto Alegre v. 57 n. 3, p. 219-222, set./dez. 2012.
No ano de 2010, foi lançado Filosofia e educação, coletânea de textos de diversas fases da obra de Wilhelm Dilthey (1833-1911)1. Diferentemen-te de Schopenhauer e de Nietzsche, o filósofo, psicólogo, pedagogo e histo-riador nascido em Wiesbaden (Alemanha) atuou principalmente no meio universitário alemão, o que explica o fato de ser pouco conhecido do gran-de público. Mesmo sem a notoriedade dos dois primeiros, seu pensamento ocupou um posto decisivo na confrontação das ideias positivistas trazidas à Alemanha pelas mãos de Taine e Spencer. Assim, no limite entre o século XIX e o XX, Dilthey encorpou, enérgica e entusiasticamente, o coro de críticas às ciências naturais e ao seu modelo positivo.
Os termos da crítica diltheyana consistem, de modo geral, na denún-cia que as ciências positivas atuam de maneira abstrativa. Deste modo, posicionam o fenômeno objetivamente, delimitam-no a ponto de abs-traí-lo de seu contexto específico, e questionam-no como um fato bruto. Para Dilthey, tal maneira de investigar é reducionista, pois, o método que supostamente obteria resultados válidos e legitimados pelo dado empírico, no fundo, promoveria um empobrecimento e, mais, um “esfacelamento” da experiência que garante o próprio conhecer pela ciência.
Tal avaliação deriva da evidência de que todo e qualquer conhecimento possível se assenta em vivências. Para Dilthey, vivência constitui a realidade absoluta da própria vida; sendo o dado resultante da interação da consciência com seu mundo. As vivências compreendem o mundo vivido, deste modo, qualquer tentativa de conhecer os fenômenos do mundo desconsiderando esta esfera vivencial incorreria no que Dilthey chamaria de “desvificação” do saber (ou o próprio esfacelamento supra referido).
1 Dilthey completa 100 anos de morte em 2011, meu esforço é não deixar o importante legado pedagógico-filosófico deste autor não passar sem uma lembrança (resenha).
Nesta sumaríssima apresentação da crítica de Dilthey à doutrina positiva e de sua influência nas ciências naturais, é possível entrever o quanto estas nos deixariam a um passo do fenômeno propriamente dito. Este quadro se agrava ainda mais quando implicado em outra classe de ciências: as do espírito, ou as ciências humanas. Dilthey percebe que também as ciências ditas humanas (em pleno viço no final do século XIX, após a queda dos idealismos filosóficos especialmente na Inglaterra, França e Alemanha), em seu modo de atuar, se servem do modelo das ciências naturais, ou seja, também atuam de modo abstrativo, desvivificado. Diante desta constatação, o filósofo entende tão necessário quanto urgente a fundamentação das ciências do homem, da sociedade e da história no solo que as vivências constituem. Dizendo de modo ainda mais claro: evitando o desvio que o método positivista consiste, Dilthey pretende enraizar as ciências da realidade histórico-social num solo compatível ao que há de humano em seu fazer.
Não seria incorreto afirmar que toda a obra filosófica de Dilthey tem, desde o início, a fundamentação das ciências particularidades da sociedade e da história como seu objetivo precípuo. Deste modo, desde os primeiros esboços programáticos de obra, passando pelos primeiros escritos até as extensões que formam a obra de maturidade, Dilthey tem em vista o referido propósito, tentando levá-lo a cabo de maneira variada e pouco sistemática.
Na coletânea em apreço, é possível encontrar extratos que caracte-rizam algumas dessas etapas. Os textos organizados por Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral ilustram bem o intuito do filósofo de fundamentar as ciências do homem, da sociedade e da história. São escritos que permitem uma visão, tão clara quanto o possível, do projeto diltheyano de uma “crítica da razão histórica” e do papel que os conceitos de história e hermenêutica possuem no interior dessas.
Dividida em duas partes, inicialmente temos o que se denominou Manifestações programáticas. Primeira das três seções (ou capítulos) desta divisão, encontramos aqui o prefácio à Introdução às ciências humanas (1883), obra que muitos especialistas consideram o trabalho de Dilthey, no qual a crítica às ciências abstrativas aparece em sua formulação mais explícita. O referido texto é, sem dúvida, um bom primeiro contato com a obra do filósofo, justamente por ser nele que o leitor conhece os conceitos-chaves daquela filosofia e os contextos nos quais eles se inserem. No mesmo capítulo, também é relevante o tópico Pensamento fundamental de minha filosofia. Com este, o próprio Dilthey enfatiza os pontos que entende importantes em seu pensamento. Daí, o filósofo fixar que: a inteligência não se perfaz isoladamente do indivíduo, dependendo, portanto, da vontade humana de conhecer; que a inteligência, como um dos atos possíveis da vida, existe apenas na totalidade que a consciência integra; que a inteligência é sempre plena e real para si, sendo, portanto, a filosofia a “ciência do real”.
A segunda seção dessa primeira parte é dedicada à Fundamentação teórica do conhecimento. Nessa, mais digna de destaque do que os tópicos de psicologia, é aquele intitulado Os fatos da consciência. No presente, vemos a premissa diltheyana segundo a qual “fatos da consciência são o único material de que são feitos os objetos” (p. 49), sobre esta proposição não só se tornaria possível a fundamentação das ciências particulares da sociedade e da história, quanto se legitima a hermenêutica como método para compreensão dos atos de consciência e de seus respectivos objetos.
Com a base oferecida por esses dois primeiros capítulos, o leitor pode passar ao terceiro: Vivência, expressão e compreensão. Tão interessante quanto às seções que fornecem conceitos, esta (tocante à prática da biografia) nos permite ver como o conceito de vivência e o de história se conjugam no universo diltheyano. É verdadeiramente revelador o tópico chamado Vivência e biografia, justamente pela importância que Dilthey dá, especificamente, à autobiografia. Para o autor: “A autobiografia é a forma mais instrutiva pela qual nos vemos confrontados com a compreensão da vida” (p. 245); ainda, “a apreensão e interpretação da própria vida passam por uma longa série de estágios” e, assim: “A explicação mais perfeita encontra-se na autobiografia em que o próprio eu apreende seu curso de vida de maneira tal que chega a adquirir consciência dos substratos humanos e das relações históricas que o envolvem” (p. 248). Uma leitura atenta do tópico em apreço tornará claro o quanto o conceito de história no conjunto da obra do filósofo é decisivo, mostrando que a vulgata orteguiana segundo a qual um homem não tem essência, mas que possui a história em seu lugar, depende de uma série de preparativos até galgar esta formulação.
A segunda parte do compêndio justifica o título de Filosofia e educação, dado por sua organizadora. Dividida em duas seções, é nessa que comparecem os conteúdos da pedagogia diltheyana. Em seu primeiro capítulo, Representação estética e hermenêutica do mundo histórico, o leitor encontrará textos da fase avançada do pensamento do autor, e escritos de estética circunvizinhos aos de psicologia (majoritariamente datados entre os anos de 1888-1910). Grifamos aqui o ensaio O nascimento da hermenêutica, oriundo do volume VII das Obras Completas de Dilthey. Este tópico se mostra elucidativo ao leitor interessado em hermenêutica, dado a expor como esta ciência se desenvolveu inicialmente entre os filólogos em sua prática de descrição e busca de fundamentação de suas regras, permitindo-lhe compreender e interpretar com segurança a cultura letrada. No referido, Dilthey expõe de modo cuidadoso o modo com que esta ciência se relaciona com a lógica, a teoria do conhecimento e as diversas metodologias das ciências humanas. Com a matéria aqui apresentada, o leitor pode não apenas conhecer a genealogia do pensamento diltheyano, quanto entrever a pertinência de outros hermeneutas (Heidegger, Gadamer, Figal) na história dessa ciência.
Conceito de vida, pedagogia e ética encima o último capítulo do livro. É ali que aparecem propriamente as reflexões sobre educação. O tópico Sobre a possibilidade de um sistema pedagógico com validez universal é o que melhor traduz as preocupações pedagógicas de Dilthey. Em linhas muito gerais, é possível encontrar neste ensaio traços fundamentais para um sistema da pedagogia, sistema para o qual o diálogo com a pedagogia de Kant lhe empresta as noções de teleologia, perfectibilidade e desenvolvimento. O referido tópico é inegavelmente uma contribuição oportuna para se pensar a educação em face da filosofia (ou uma filosofia na educação). A tradução desses escritos, por dar acesso a essas fontes ao leitor brasileiro, representa não apenas a alternativa de pensar a educação brasileira quanto a oportunidade de pensar uma educação em matrizes hermenêuticas, premissa que parece interessar à professora Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral, em seus trabalhos autorais.
Não resta dúvida que seja uma iniciativa louvável a publicação de uma seleta de textos de Wilhelm Dilthey, ainda mais quando essas escolhas permitem uma apresentação de suas ideias e a transparência às suas motivações. Observe-se, contudo, que alguns dos textos consignados no livro, parcialmente traduzidos, são oriundos de obras que, no mesmo ano (2010), foram vertidos integralmente para o português no Brasil, é o caso de: Introdução às ciências humanas, Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica e A construção do mundo histórico nas ciências humanas. Isso, no entanto, não é desdouro ao trabalho que, entre muitos méritos, possui o de conter aparatos críticos de bom nível assinados pela organizadora da edição. Tais escritos são contributos não apenas por apresentar os textos, mas por constituir uma introdução didática aos estudos de Wilhelm Dilthey, conjugando os comentários de especialistas autoridades como Georg Misch, Otto F. Bollnow e Theodor Wilhelm. Por tudo isso, Filosofia e educação é uma base ampla e significativa para a pesquisa do autor.
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens – Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.Estuda o autor alemão Martin Heidegger desde o ano de 1995, tendem interesse também pela filosofia clássica alemã. Autor de Heidegger & a Educação (Autêntica, 2008). E-mail: kahlmeyermertens@gmail.com
Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica – DILTHEY (V)
DILTHEY, Wilhelm. Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via verita, 2011. Resenha de: MERTENS, Roberto Saraiva Kahlmeyer. Veritas, Porto Alegre v. 56 n. 3, p. 187-190, set./dez. 2011.
Em 2011, celebra-se o centenário de morte de Wilhelm Dilthey (1833-1911). Para esta data, no Brasil e no exterior, editoras e universidades vêm se mobilizando, desde o ano passado, para organizar novas edições e eventos acadêmicos sobre o filósofo alemão. Associados à Fundação Fritz Thyssen em Colônia, Alemanha, tradutores de diversos idiomas vêm vertendo a obra para o inglês, o russo e o japonês. Também traduções para o português estão sendo preparadas no Brasil.
Em nosso país, trabalhos de diferentes fases da obra de Dilthey já foram traduzidos por editoras de expressão. Até o momento, o resultado dessas publicações é um desenho sincopado da produção do autor que foi, além de filósofo, hermeneuta, psicólogo, historiólogo e pedagogo. Com todas as lacunas, entretanto, tal política editorial ainda nos é mais favorável do que a situação de penúria que enfrentávamos até a presente data, quadro em que eram quase ausentes as traduções confiáveis de Dilthey. Sem o interesse de avaliar o estado da arte das pesquisas sobre Dilthey (tarefa ampla que não seria pertinente em uma resenha), nos limitamos a indicar que a flagrante carência de estudos críticos no Brasil (lacuna que, muito mais do que uma hipótese, é uma evidência empírica) fez com que o esforço de recepção do pensamento desse autor, em nosso país, se limitasse praticamente à aplicação do método diltheyano pelo historiador Octávio Tarquínio de Sousa na redação de suas biografias e, muito posteriormente, em alguns rodapés de José Guilherme Merquior.
Formada de trabalhos heterogêneos, é lugar comum indicar que a obra de Wilhelm Dilthey é assistemática desde sua juventude; mas, essa característica não nos impede de ver um interesse comum que perpassa todos os escritos do alemão. Consideremos, por exemplo, o ensaio Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica, que se trata de uma obra tardia, escrita entre os anos de 1892-94 e revista em 1907-08. Tal trabalho é costumeiramente lido ao lado dos escritos literários de Dilthey (sobretudo seu Vivência e poesia), tema que comparece na obra de maturidade do autor (final da década de 1880). Por apresentar as bases psicológicas e
teóricas do conhecimento do pensamento de Dilthey, o ensaio em questão também é utilmente recomendado como introdução à obra A construção do mundo histórico nas ciências humanas, de 1905 (o que não constitui nenhum anacronismo, haja visto as datas de redação e revisão do texto de psicologia). Toda essa equivalência deve-se ao fato das referidas obras terem o mesmo pano de fundo e motivação.
Com a derrocada dos idealismos no fim do século XIX, o que vemos é uma tendência ao positivismo. Ante a drástica crise de paradigmas que grassava, chegou-se a acreditar que apenas um recurso às ciências positivas poderia garantir o acesso a um conhecimento válido. Deste modo, a filosofia parecia não ter outra escolha senão subordinar-se à ciência, rejeitando sua vocação metafísica e tornando-se, pois, algo assim como epistemologia. Destarte, em uma época na qual a sociologia é criada e a antropologia e a psicologia avançam com vigor, traz perplexidade constatarmos que o saber pretensamente rigoroso de tais ciências se encontra atrelado aos princípios e métodos das ciências positivas.
Entendendo que o idealismo foi deposto, mas que o positivismo também não constitui solução, a resposta a essa falta de alternativa é dada por Dilthey de maneira combativa e entusiástica. No interior de sua “filosofia da vida”, especialmente nas bases lançadas em Introdução às ciências humanas (1883), o filósofo propunha uma fundamentação das referidas ciências num solo próprio ao espírito e, antes, denunciando a atuação abstrativa e autonomizante que ciências naturais exerciam sobre as humanas. Segundo Dilthey, as ciências abstrativas, em seu modo de agir, cindem o fenômeno da vida, convertendo-o em objeto. Tal objeto, porém, apareceria isolado num campo de investigação sem conservar seu nexo com a própria vida. Quer dizer, para que as ciências abstrativas possam apontar um fenômeno como objeto de pesquisa, é preciso que todo o contexto do mundo vivido (isto é, o horizonte em que se dá a realidade absoluta das vivências) seja negligenciado, daí Dilthey afirmar que a abstração “desvivifica” o conhecimento.
É com base nessa premissa que o filósofo estabelece a clássica distinção entre o fazer das diferentes ciências: as naturais, abstraindo o fenômeno de seu horizonte total, isolam-no, determinam-no e explicam-no, sendo seu conhecimento retirado do que estava implícito em hipóteses (literalmente, um ex-plicare); as humanas, por sua vez, tomariam (ou deveriam tomar) o fenômeno em seu horizonte de modo a abranger ou compreender (no sentido estrito do termo latino comprehensio) seu todo, seriam, portanto, compreensivas.
A tentativa de uma fundamentação das ciências humanas (espe-cialmente as sociais e as históricas) conserva, ao longo do tempo, suas principais características e pressupostos, sofrendo reformulações de
pouca monta. Isso é o que vemos na obra Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica, apontada como extensão do projeto hermenêutico diltheyano que apresenta os termos da psicologia descritiva analítica, no que tange a análise das vivências do saber, a amplitude da captação de seus objetos, os valores e propósitos aos quais correspondem à descrição e análise da atividade psíquica, pontos basilares aos estudos posteriores, referentes à constituição do mundo histórico.
Embora em forma de ensaio, a obra, em nove capítulos, aborda (com até mais didática do que outros escritos do mesmo autor), primeiramente, a tarefa de fundamentação das ciências do homem, da sociedade e da história pela psicologia; após, distingue a psicologia explicativa da descritiva analítica, a estrutura, o desenvolvimento de diversidade da vida psíquica.
Entre os referidos capítulos, chamemos atenção para o primeiro. Nele, Dilthey mostra a necessidade de uma fundamentação psicológica das ciências da realidade histórico-social, mas, antes, esboça a maneira com a qual atua a psicologia científica (apresentação que vale, extensivamente, para as ciências positivas). Além de nomear estudiosos do homem comprometidos com o modelo positivista (Spencer e Taine), Dilthey indica que a psicologia científica seria explicativa, lógico-causal, dedutiva, materialista e hipotética. Uma esclarecedora reflexão acerca do modelo hipotético, paradigmático das ciências positivas, é dada ao leitor, que passa a entender a hipótese não apenas como um componente metodológico do conhecimento, mas como uma “hipostasia do real”, obstáculo epistemológico que denuncia inconsistência no próprio modo de conhecer das ciências. Tal inconsistência é ilustrada pelo próprio Dilthey quando assevera que, no conhecer pela ciência, “somos banidos para o interior de uma nuvem de hipóteses, para as quais não há nenhuma esperança de que se possa comprová-las a partir de fatos psíquicos” (p. 28). Tal afirmativa nos mostra que mesmo a explicação da natureza dependeria de uma compreensão fundamentada no psiquismo.
Também digno de atenção é o capítulo dois, no qual, por meio da distinção entre a psicologia explicativa e a descritivo-analítica, apresenta-se a interface que a filosofia do século XVIII possui com a psicologia do XIX. Daí, Dilthey desfiar o roteiro que nos leva de Wolf a Kant e, deste, à psicologia de Drobisch, passando pela de Herbart e de Waitz.
Possuidor de muitas intuições luminosas ao longo de suas 152 páginas, o ensaio de psicologia de Dilthey nos reserva, em seu oitavo capítulo, a confirmação de uma suspeita que se insinuava desde o primeiro momento, a influência que o autor exerceu sobre os autores vinculados às ditas “filosofias da existência”. Ao ler a passagem transcrita logo adiante nesse tópico referente ao desenvolvimento da vida psíquica, se faz
possível imaginar o quanto as ideias de Dilthey constituíram êmulo aos estudos de Scheler, Heidegger e Jaspers: “Não se poderia compreender o desenvolvimento do homem sem a intelecção do nexo amplo de sua existência: sim, o ponto de partida de cada estudo do desenvolvimento é essa apreensão do nexo no homem já desenvolvido e a análise desse contexto” (p. 125). O que se delineia aqui é a missão assumida por alguns pensadores do século XX em reconhecer o que há de incomensurável na existência humana.
Sob o selo da Via verita (editora que, na contramão dos apelos mercadológicos, possui um projeto editorial que pretende viabilizar versões de textos de relevo para o pensamento filosófico no século XXI) e com tradução de Marco Antonio Casanova, a edição brasileira pode ser criticamente avaliada, aqui, sob o ponto de vista da tradução: constata-se que ela apresenta uma versão elaborada de maneira atenta à tendência dos estudos mais atuais da obra de Dilthey. Por isso traduzir a expressão alemã Geisteswissenschaften por “ciências humanas” (em vez da literal “ciências do espírito”), apoiando-se em traduções precedentes para a língua inglesa e encontrando endosso junto a comentaristas especializados que se inclinam a acatar que “ciências humanas” traz melhor a conexão de sentido da realidade histórica e social do que a nomenclatura “ciências do espírito” (na qual a noção de “espírito” facilmente pode sugerir erroneamente uma independência de homens reais). Deste modo, por suas opções e acuro terminológico, a tradução brasileira se mostra claramente superior à portuguesa, apresentada sob o título: Psicologia e Compreensão – Ideias sobre uma psicologia descritiva analítica (Edições 70).
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens– Doutor em Filosofia pela UERJ. Professor Adjunto naUniversidade Cândido Mendes (UCAM) e no Centro Universitário Plínio Leite. E-mail: kahlmeyermertens@gmail.com