Historiadores pela Democracia – O golpe de 2016: a força do passado | T. Bessone, B. G. Mamigonian e H. Mattos

RC Destaque post 2 11 Golpe de 2016

“A humanidade caminha Atropelando os sinais A história vai repetindo Os erros que o homem traz O mundo segue girando Carente de amor e paz Se cada cabeça é um mundo Cada um é muito mais”.

(Lenine, 2010) Dois mil e dezesseis. Ano marcado por muitas disputas narrativas acerca dos eventos históricos que ganharam relevo nos cenários brasileiro e mundial. Esses eventos se difundiram pela política, pela economia, pela educação, pela cultura; puseram em destaque as tensões que envolvem os três Poderes da República, que se tornaram o epicentro das disputas; expuseram as fragilidades institucionais e de conduta de vários segmentos de nossa sociedade; suas ressonâncias reverberaram no cotidiano de cada um de nós. Fantasmas de diferentes tempos evidenciam sua fertilidade e passam a amedrontar o presente; traumas e lacerações de nossa história irrompem novamente e insistem em doer. A história – ah, a história! Mais uma vez passa a ser responsabilizada pela instabilidade humana! Mas ela própria sabe-se fruto dessa ação e, como tal, traz consigo o germe da luta entre o instável e o perene; entre as tradições e o novo; entre o provisório e o eterno. Isso, por si só, a absolve de qualquer peso que a sobrecarregue.

Essa efervescência, contudo, traduz a inquietude gerada pela onda reacionária que insiste em se alastrar pelo nosso país e pelo planeta. Essa guinada retrógrada parece querer varrer nossa lucidez! A intolerância manifesta-se em diferentes territórios e sob variadas formas. Diferentes posições; variadas narrativas para descrever um enredo de tensões, para traduzir as fraturas na maneira de perceber a história recente. Afinal, a diversidade dos testemunhos acerca da história é quase infinita. Mas há elementos na história que se subvertem contra qualquer amarra ou controle que pretenda direcioná-la para uma interpretação que ameace contradizê-la em sua incontingência. Racionalidade e irracionalidade flertam entre si; ora enamoram-se, ora dilaceram-se em explícito combate. Leia Mais

Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil | Ivana Jinkins, Kim Doria e Murilo Cleto

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Examinar processos sócio-políticos “à quente”, em meio ao desenrolar das tramas, é um desafio posto aos historiadores dedicados ao chamado Tempo Presente, campo do conhecimento ainda alvo de fortes críticas, desconfianças e de sua própria precariedade, pois os que incursam nele podem estar munidos de perspectivas construídas anteriormente ao “agora”, mas desprovidos do conhecimento profundo sobre detalhes mais recentes. Embora Marc Bloch tenha, desde o século passado, comprovado que o presente pode e deve ser investigado pelos profissionais da história, ao desvelar as razões pelas quais, segundo ele, a França sucumbiu tão rapidamente ao nazismo em 1940 no seu icônico A Estranha Derrota, ainda existe resistência, dentro e fora do ofício, em reconhecer essa possibilidade e esse dever. Leia Mais

Impasses da democracia no Brasil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Resenha de: SZWAKO, José; SANTOS, Fabiano. Dos impasses aos desafios de reconstrução da democracia no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.3, Nov., 2016.

O contexto sociopolítico brasileiro pós-2013 colocou dilemas práticos e teóricos incontornáveis para nossas ciências sociais. Como chegamos até aqui? Quais atores, instituições e processos levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff? Dispomos ainda de categorias e dimensões de análise adequadas à complexidade desse evento? A sucessão presidencial foi legítima? Foi, ao menos, legal? Olhando para trás, o encanto de parte dos analistas com os protestos de junho de 2013 virou perplexidade, quando não o triste pesadelo, de muitos: haveria, porém, continuidade entre 2013 e 2016? E, mirando-se adiante: quais são os reflexos do Regresso (para lembrar o opúsculo de Wanderley Guilherme dos Santos)1 encarnado no golpe parlamentar de agosto de 2016 em nossa prática política?

Como se vê,não são poucas as questões a serem urgentemente por nós encaradas e respondidas. É no rol desses dilemas que se inscreve Impasses da democracia no Brasil, de Leonardo Avritzer. Escrito no final de 2015, o livro traz a marca das tensões sociais e partidárias, expressas de modo mais evidente no ranço antipetista e antigovernista dos protestos massivos de março, abril e agosto daquele ano; “o governo da presidenta Dilma Rousseff passa por uma forte crise da qual não é possível saber se sobreviverá” (p.109) – como de fato não sobreviveu. Na pequena resenha que se segue,tentaremos tirar proveito do conhecimento prévio do evento.

O ar de análise de conjuntura do livro não faz dele menor porquanto conjuga em estilo acessível política e teoria política. Isto é, visa dar respostas teoricamente adequadas a questões da ordem do dia vis-à-vis alguns dos diagnósticos disponíveis sobre a qualidade da democracia brasileira, especialmente os elaborados por Paulo Arantes e Marcos Nobre,que tendem a enfatizar supostos déficits democráticos.

Impasses é crítico de feição frankfurtiana. Sua postura não se rende às páginas das sempre evocadas insuficiências, sejam elas institucionais ou culturais, brasileiras. Se nosso sistema político tem falhas, e Avritzer tem hipóteses robustas para mostrá-las, cabe ao analista completar sua crítica,quer dizer,fazer o diagnóstico das limitações do sistema vigente impreterivelmente seguido das fissuras e alternativas também por ele trazidas à baila. Destrinchado ao longo do livro, o diagnóstico se distribui em cinco elementos, quais sejam:

i) os limites do presidencialismo de coalizão, isto é, a deslegitimação da forma de fazer alianças, característica da democracia brasileira desde 1994; ii) os limites da participação popular na política, que tem crescido desde 1990 e é bem-vista pela população, mas não logra modificar sua relação com a representação; iii) os paradoxos do combate à corrupção, que avança e revela elementos dramáticos da privatização do setor público no país, os quais terminaram por deslegitimar ainda mais o sistema político; iv) as consequências da perda de status das camadas médias que passaram a estar mais próximas das camadas populares a partir do reordenamento social provocado pela queda de desigualdade; v) por fim, o novo papel do Poder Judiciário na política[p. 9].

Avritzer articula em pente-fino essas dimensões de seu diagnóstico somando,no terceiro capítulo,as causas e efeitos do ciclo de protestos de 2013.Sob risco de simplificar seu argumento,poderíamos dizer que a imbricação de uma dinâmica institucional de alianças (fundamentalmente ambivalente dado que virtuosa e custosa) com a percepção de corrupção (generalizada porém enviesada em desfavor do Partido dos Trabalhadores) opera no sentido de deslegitimar, aos olhos de uma classe média reconfigurada devido às políticas distributivas pós-2003, o sistema político como um todo, mas, mais danosamente, o próprio PT.Ao par presidencialismo de coalizão e corrupção,é somada uma análise da limitação das formas institucionais de participação, que,embora tenham deixado sua marca em parte das políticas sociais, não chegaram a permear áreas estratégicas do Estado brasileiro,levando a uma dupla “ruptura” (p. 66) no campo das mobilizações do país – à esquerda e,como se nota desde 2013,também à direita.Complexo, esse diagnóstico é complementado por uma saída de tom republicano: ampliar, aprofundar e tornar mais eficaz a participação popular – um pacote institucional que, como hipótese e potência, melhoraria tanto um suposto déficit de representação quanto o combate à corrupção. “Assim, a primeira agenda importante de um processo de reorganização do sistema político poderia ser uma extensão da participação social para a área de infraestrutura com o objetivo de democratizar essas obras e torná-las mais transparentes” (p. 121).

Três tópicos nos parecem centrais na argumentação contida no livro, a saber, o presidencialismo de coalizão, a herança de 2013 e os paradoxos resultantes da política de combate à corrupção dos três últimos mandatos democraticamente eleitos.

Sobre o presidencialismo de coalizão, parece-nos que Avritzer adota e reproduz uma definição mais ampla do conceito, definição que acaba por imputar a esse modelo institucional um grande conjunto de vícios do qual a política brasileira seria vítima. Falamos de definição mais ampla porque,em verdade,o termo presidencialismo de coalizão, numa visão mais restrita e, a nosso ver, mais precisa, tal como utilizado na literatura institucionalista stricto sensu, denota tão somente a conjugação da separação de poderes,característica do sistema presidencial, com o multipartidarismo, comumente derivado da adoção do sistema proporcional para o preenchimento das cadeiras no Legislativo.

Aqueles que criticam nosso modelo institucional, chamado de presidencialismo de coalizão, estabelecem uma espécie indevida de relação de causalidade entre a dinâmica de tal modelo e uma prática política que não só corrói os princípios, digamos, programáticos dos partidos que lideram a coalizão governamental como, no limite, compromete a legitimidade do sistema institucional em seu conjunto (ver p. 38 e seguintes). Ora, segundo nosso ponto de vista, e nisso seguindo análises mais recentes sobre o presidencialismo de coalizão,2 nada autorizaria, de uma perspectiva conceitual ou empírica, colocar na conta do modelo fenômenos políticos complexos e reconhecidamente ruins, tais como corrupção, descrença popular e profusão de escândalos aproveitados, e não raro produzidos, pela mídia.

Aqui é fundamental discernir dois elementos que são frequentemente sobrepostos na análise política:atores e instituições.Embora empiricamente e em todos os casos seja difícil identificar onde um ou outro esteja preponderando no desdobramento da conjuntura política, não se pode inferir a legitimidade ou eficiência das instituições a partir do uso que delas fazem os principais atores em cena. Em nossa avaliação, o exemplo brasileiro recente mostra exatamente isto: desde fins de 2014, a cada passo da conjuntura, e à medida que as crises econômica e social se aprofundavam, as cúpulas do PMDB e do PSDB se articulavam e se utilizavam das regras do jogo tendo em vista construir as condições ótimas para a consecução do golpe parlamentar que redundou no impeachment. Nada inerente ao desenho institucional brasileiro permitiria prever um comportamento desestabilizador assim assumido, desde o resultado das eleições daquele ano, por uma oposição até aquele momento leal à democracia e por lideranças de um partido até aquele momento parceiro na coalizão.

Rótulo alternativo para o que vem ocorrendo na política brasileira é amalgamado na ideia de uma suposta crise de representação. É inegável a existência de insatisfação de parte significativa das elites judiciárias, midiáticas, empresariais e de setores importantes das classes médias com os marcos centrais da democracia tal como consagrados na Constituição de 1988. Todavia, concomitantes à expressão de tais sentimentos, a ampliação e a pluralização da capacidade de representação externa ao Congresso,mas no interior do Estado brasileiro,têm sido ressaltadas em diversos trabalhos atinentes às interações Estado-sociedade.3 Se a inclusão de temas e atores da sociedade civil nos processos decisórios é alvo de crítica, como bem mostra Avritzer no livro, isso não infirma o diagnóstico – pouco conhecido, diga-se de passagem – de que as políticas públicas têm sido, desde a redemocratização,cada vez mais interpeladas e modificadas por organizações e movimentos sociais. Em suma, a agenda de pesquisa mais atual sobre os efeitos da institucionalização da participação denota não a limitação, mas antes a indagação sobre a efetividade das instituições participativas no Brasil.4

Enfim, e não obstante a riqueza da análise de Avritzer, entendemos que nada há de conclusivo, seja em torno do diagnóstico da corrosão institucional inerente ao presidencialismo de coalizão e por ele supostamente produzida, diagnóstico de resto conveniente a versões legitimadoras do golpe parlamentar, seja ainda no que tange à existência de uma crise de representação afetando o quadro político institucional brasileiro.

Outro tópico central no ensaio de Avritzer consiste no impacto do ciclo de protestos de 2013 sobre o processo político brasileiro. Quanto a esse tópico, parece-nos fundamental notar, primeiramente, que os significados e raízes da convulsão social experimentada em junho de 2013 ainda estão para ser descobertos e explicados. Nesse quesito, fatores sociais e institucionais, entre os quais destacaríamos a atuação dos agentes repressivos do aparelho de Estado, se misturam, dificultando um diagnóstico claro e consistente do perfil dos manifestantes e, portanto, da manifestação em jogo. A contribuição de Avritzer, aqui, caminha no sentido de mostrar como operou uma espécie de quebra do monopólio exercido pelas forças civis e políticas de esquerda sobre a mobilização de rua em nosso país. O desafio, em nossa visão, é explicitar claramente em que medida aquela profusão de bandeiras e vozes realmente se articula com os vetores recentes e regressivos assumidos pela política institucional. Nesse sentido, Impasses se torna de saída leitura incontornável para quem quiser entender, por exemplo, se e como se entrelaçam 2013, a acirrada disputa presidencial de 2014 e o triste episódio do golpe parlamentar.

Por último, e no que entendemos ser um dos pontos altos de Impasses, a questão do combate à corrupção e dos poderes a ele ligados. A citação é longa, mas necessária e algo premonitória:

A forma como no primeiro semestre de 2015 o Poder Judiciário colocou o Executivo na defensiva com práticas políticas questionáveis, como o vazamento seletivo de informações da Operação Lava-Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações que têm como objetivo desestabilizar o campo político,mostra o perigo de uma solução para os impasses que não transite pelos poderes constituídos pelo voto popular [p. 116].

Tal intervenção, politizada e espúria, de agentes e instituições de controle, sejam ou não do Judiciário, frente a órgãos do Executivo e do Legislativo nos remete diretamente ao alerta imprescindível dado por Max Weber5 a seus contemporâneos da República de Weimar: ao funcionário público não cabe a disputa política nem a respectiva convicção. As alçadas do funcionário e do político profissional são distintas, assim como são distintas as responsabilidades estatuídas a cada posto. Que a política de seu país se tornasse refém da burocracia era um dos maiores temores de Weber – essa lição não pode ser hoje olvidada por aqueles que, como nós e Avritzer, entendem o potencial nefasto contido numa instância de poder que,em nome do combate à corrupção, atua de modo ilegal.

Ironicamente, se podemos falar de crise institucional de nosso modelo político, esta não emerge do presidencialismo de coalizão. A leitura de Impasses é mais uma confirmação,a nosso ver,de que graves distorções atingem o desenho mesmo de nossas instituições de controle, tal como inscrito na Constituição de 1988. Nesse particular, as recentes intervenções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),por exemplo, nas regras eleitorais e partidárias, bem como os ataques seletiva e partidariamente orientados do Ministério Público contra lideranças políticas ressoam uma das mais famosas preocupações madisonianas: quem controla os controladores? A ingerência administrativa sobre a disputa política exige não só sua crítica teórica. Exige, antes, a ação política daquele que é, ao fim e a cabo, o principal afetado pela instabilidade do jogo democrático judicialmente instilada e também o único soberano desse mesmo jogo: a vontade popular. Nesse sentido, e aprofundando uma pista dada por Avritzer, dois caminhos necessários e convergentes para a pacificação do Judiciário e das instâncias de controle no Executivo são o aprofundamento de mecanismos de controle tanto institucionalizados como externos às instituições.

A despeito das eventuais discordâncias interpretativas, Impasses se coloca como obra seminal nos projetos de reconstrução da democracia brasileira. A tarefa não será fácil, como não foi fácil a redemocratização consagrada na Carta de 1988. O primeiro desafio, certamente, passa pela responsabilização dos atores que desestabilizaram e usurparam a dinâmica democrática até aqui conquistada. No plano da disputa político-institucional, máscaras de atores que defendem um liberalismo douto requentado, quando não somente neoliberal, deverão ser reconhecidas enquanto tais.Já no plano da cultura política, o fenômeno é ainda mais complexo: o crescente fascismo das classes médias, alimentado não somente pela crise econômica mas também pelo Judiciário e por mídias hegemônicas, é realidade que julgamos imprescindível conhecer e combater. Em verdade, não é outra a questão maior que atravessa, além e aquém de Impasses, toda a obra de Leonardo Avritzer: a cultura política brasileira e sua contribuição para nossa história democrática – ou ainda democrática.

Referências

AVRITZER, Leonardo; Souza, Clóvis (Org.). Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Brasília: Ipea, 2013. [ Links ]

FREITAS, Andréa. O presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2016. [ Links ]

GURZA LAVALLE, Adrian; Szwako, José. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, v. 21, n. 1, pp. 157-187, 2015. [ Links ]

PIRES, Roberto (Org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea , 2011. [ Links ]

POGREBINSCHI, Thamy; Santos, Fabiano. “Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional”. Dados, v. 54, n. 3, pp. 259-305, 2011. [ Links ]

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso: máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994. [ Links ]

WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis: Vozes, 1993. [ Links ]

Notas

1 Santos, 1994.

2 Freitas, 2016.

3 Ver, entre outros, Pogrebinschi e Santos, 2011.; Avritzer e Souza, 2013Gurza Lavalle e Szwako, 2015.

4 Ver Pires, 2011.

5 Weber, 1993.

José Szwako – Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Fabiano Santos- Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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