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Saberes e poderes no universo ibérico: discursos da cultura escrita na modernidade (Séculos XVI-XIX) | Revista Maracanan | 2021
[PLAUTIUS, Caspar (fl. 1621)]. Nova typis transacta navigatio Novi orbis Indiae Occidentalis… nunc primum e variis scriptoribus in unum collecta… Authore… Honorio Philophono. [Linz], 1621 | Imagem: Christie’s
A partir da década de 1990 houve um significativo crescimento de pesquisas no âmbito da historiografia nacional e internacional voltadas à compreensão da cultura escrita na modernidade. Essas investigações têm abarcado o período compreendido entre os séculos XVI e as independências americanas, no raiar do século XIX, e problematizado a produção, a circulação, o uso e a conservação de manuscritos e impressos vinculados aos seus usos políticos, sociais, religiosos, pedagógicos, culturais tanto na metrópole quanto no território colonial. Intelectuais como Roger Chartier, Robert Darnton, Antonio Castillo Goméz, Fernando Bouza e Diogo Ramada Curto têm contribuído, sobremaneira, para o avanço do conhecimento e da compreensão acerca da circulação de ideias através de seus trabalhos sobre a história do livro e da leitura e da história da cultura escrita global, que interligam manuscritos, impressos e oralidade. Leia Mais
Visões da Morte / Revista Brasileira de História das Religiões / 2017
A chamada temática Visões da Morte apresenta um conjunto de artigos, com diversas abordagens temáticas e teórico-metodológicas, demonstrando a dinâmica das possibilidades de problematizações possíveis da morte na perspectiva histórica. Espaços dos mortos, ritos fúnebres, enfermidades e morte, luto e pesar, cemitérios, morte simbólica de dadas identidades são algumas das entradas temáticas dos textos que formam o presente volume.
Mortes físicas e simbólicas estão e estiveram presentes em distintas situações e condições sociais, como aquelas que mobilizam o interesse dos estudos dos artigos aqui apresentados. O tema morte é geralmente acionado pelos historiadores ao se realizar questionamentos sobre aspectos diversos das sociedades, isto é, as problemáticas de pesquisa acabam vinculando experiências de morte ou morrer com outras instâncias de vida social em universos culturais específicos. São variadas as compreensões das formas de morrer e de expressar a morte, de tal modo que esse tema, analisado historicamente, implica em considerar as mudanças vivenciadas pelos sujeitos em dado espaço e temporalidade, considerando ainda os elementos culturais e políticos que os constituem.
Nesta edição, a morte é percebida nas vivências das associações religiosas, nos (evidentes) locais de sepultamento, nas experiências sociais de sujeitos religiosos, nas diferentes expressões rituais, nos cuidados com enfermos, no tratamento do corpo morto, nos espaços dos mortos, na expressão escrita e literária, no cemitério como manifestação educativa e turística, nas identidades que (re)nascem e morrem, na morte social simbólica. A chamada temática traz um pouco destas variadas possibilidades de interpretações da morte através de análises de práticas religiosas, sociais e políticas e de manifestações de crenças e outras sensibilidades em torno da morte e do morrer. Atentos aos contextos em que se expressavam estas relações com a morte, os artigos reunidos abordam distintos espaços e expressões culturais, que vão do final do século XVII ao tempo presente.
Entendidos como “temas do sofrimento”, conforme Arlette Farge, os debates em torno da morte, na perspectiva histórica, percebem que “cada época, cada cultura, cada classe social ou grupo sexual tem palavras para clamar o escândalo, para dizer seu medo, para abafar sua mágoa”, considerando que sentimentos de “dor” e “pavor” podem ser expressos de diferentes formas, quer haja “familiaridade” com a morte ou não. A depender do contexto, a morte pode assumir diferentes sentidos, mas Farge questiona se “a morte é menos apavorante, menos escandalosa, menos triste por ser visível, presente, ritualizada”. Os sentimentos diante da morte ganham “formas, palavras, modos de expressão que têm implicações sociais e políticas e que pertencem plenamente à história”.1 Portanto, as diferentes visões e interpretações da morte implicam dadas práticas, ritos e crenças que precisam ser entendidas na sua historicidade.
Basicamente, é da morte ocidental e cristã-católica de que tratam os artigos aqui reunidos, vinculados a crenças e compreensões de ritos fúnebres, de espaços de sepultamento e de condições pós-morte da alma, seja como configurador de vivências específicas, seja como conformador de identidades contemporâneas.
Iniciamos com o artigo de Juliana de Mello Moraes, que analisa os atendimentos fúnebres promovidos pelas Ordens Terceiras de São Francisco aos seus irmãos em trânsito pelo Império atlântico português durante o século XVIII. A historiadora demonstra como estas associações cresceram e acumularam rendas neste período, a ponto de ampliarem o oferecimento de sepultamentos e ritos fúnebres ideais aos irmãos, especialmente em São Paulo e em Braga.
Em seguida, o artigo de Ane Mecenas está focado num contexto específico, o espaço de atuação de missionários para conversão de indígenas Kiriri no sertão da América portuguesa. A autora analisa os discursos de capuchinhos e jesuítas entre o final do século XVII e início do XVIII a respeito da morte e das práticas rituais fúnebres, demonstrando tanto as percepções dos missionários sobre as práticas e crenças da “gentilidade” sobre as enfermidades, como os esforços para o ensino dos significados dos enterramentos e das possibilidades do estado da alma após a morte.
Na sequência, o artigo de Claudia Rodrigues e Vitor Cabral analisa a dinâmica relação entre sepultamentos em espaço sagrado e a configuração das desigualdades sociais em uma paróquia rural do Rio de Janeiro, intitulada Santo Antônio de Jacutinga, no final do século XVIII e início do XIX. Os autores atentam para as hierarquias entre livres e libertos da freguesia, desejosos de sepultamento católico em espaços considerados mais (ou menos) sagrados, na desigual busca pela salvação da alma.
O artigo de Vera Lúcia Caixeta apresenta as atitudes diante da morte de sertanejos no norte de Goiás da primeira metade do século XX, a partir das memórias do francês Frei Audrin expressas no livro “Os sertanejos que eu conheci”, escrito nos anos 1940. Segundo Caixeta, na narrativa de Audrin, o sertanejo desponta como aquele que rezava em comunidade e contava com a proteção dos santos de devoção para o socorro na hora da morte.
O texto de Douglas Atilla Marcelino analisa a obra Redescobrindo o Brasil: a festa na política, de Marlyse Meyer e Maria Lucia Montes, que trata de uma interpretação dos funerais de Tancredo Neves. O historiador está interessado em analisar a representação do luto transformado em festa e sua relação com o imaginário político. A morte do presidente eleito, em meados dos anos 1980, marcaria a inauguração de um novo ciclo, no qual o povo redescobriria a si mesmo.
No artigo de Jenny González Muñoz, o foco está na relação entre cemitério (latino-americanos) e escola para a configuração de trabalhos de educação patrimonial que considerem aspectos memoriais e museais com vistas à conservação e preservação. Para a autora, processos educativos podem sensibilizar sujeitos a perceberem o cemitério como lugar de memória e identidade, importantes para a proteção dos bens culturais.
Nesta lógica de cemitério como evidência de memória e identidade, o artigo de Daniel Luciano Gevehr e Larissa Bitar Duarte aponta para a potencialidade de um cemitério específico da cidade de Jaguarão, extremo sul do Rio Grande do Sul, como referencial turístico. Para os autores, o turismo de necrópole pode dinamizar as interpretações sobre os cemitérios, entendendo-os como lugares de memória e de construção de determinadas características do passado daquela sociedade.
Concluímos a chamada temática com o artigo de Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho, que analisa a morte simbólica de pessoas transgêneras e ex-transgêneras na sociedade brasileira contemporânea a partir de suas narrativas, destacando a conversão e desconversão de corpo, sexo e gênero. O autor ainda aponta que os discursos de transfobia religiosa podem ser associados a violências como, por exemplo, o assassinato de travestis e sugere que o discurso de cura gay seja revertido em cura da homofobia, transfobia, travestifobia, lesbofobia, entre outros.
Termino esta apresentação com a esperança de que, sem temores e para não temer, os estudos históricos sobre a morte sejam prósperos e frutíferos no Brasil e que este volume seja inspirador aos leitores da Revista Brasileira de História das Religiões.
Mauro Dillmann – Universidade Federal de Pelotas
Agosto de 2017
DILLMANN, Mauro. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.10, n.29, sete. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
A alma e o corpo por escrito: literatura religiosa e médica, séculos XVI-XIX / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2017
Entre o século XVI e o início do XIX, a produção e difusão de livros e impressos ganhou significativa circulação entre a Península Ibérica e a América portuguesa. Textos de variadas ordens e objetivos, com diferentes origens editoriais, com múltiplos discursos – institucionais, científicos, biográficos, entre outros – foram produzidos com específicos objetivos. Entre eles, se encontravam tratados médicos, livros religiosos, catecismos, relatos de viagem, gazetas, dicionários, só para citarmos alguns exemplos entre aqueles utilizados como fontes pelos autores dos artigos que compõem este dossiê.
Muitas destas publicações tratavam de divulgar as percepções, tanto dos autores, quanto dos editores, sobre o corpo e a alma, mediante explicações para os elementos físicos e metafísicos, das características materiais e espirituais dos seres, das instruções para a saúde corporal e moral, numa relação marcada pela conjugação entre o racional e o transcendente em um espaço – o iberoamericano – onde predominavam fortemente influências religiosas católicas sobre experiências sociais, espirituais e políticas.
Na Europa ocidental, desde o início do século XVI, se pode verificar um eficiente mecanismo de difusão da literatura religiosa, tributário do espírito da Reforma Católica e das descobertas da anatomia divulgadas em publicações médicas. Não raro, estas produções dialogavam entre si, considerando que a disciplina da alma através do corpo era também um discurso recorrente e contemplado em ambas literaturas. Pelo menos até o decorrer do século XVIII, a literatura religiosa e a médica se apresentavam como modelos exemplares de leitura para diversos grupos sociais, uma vez que instruíam, ensinavam e formavam, a partir da idealização, sujeitos cristãos morais, virtuosos e saudáveis. Assim, textos religiosos e médicos, que remetiam às expectativas sociais dos leitores, foram produzidos com intuitos variados, dentre os quais se destacavam a salvação da alma após a morte e a vida saudável moralmente conduzida. Mas as recepções dos discursos textuais foram dinâmicas, na medida em que dependiam de particularidades culturais e sociais dos leitores e da materialidade e suporte dos escritos.
Assim, com diferentes objetos e problematizações, centrados entre os séculos XVI e XIX, os autores dos artigos deste dossiê acionam fontes textuais que se debruçaram sobre a alma e o corpo, buscando compreender, entre outros aspectos, o contexto de produção destes documentos, situando assim, as ideias, os discursos e os sentidos (re)construídos por autores, editores e leitores na sua historicidade própria e específica.
O texto da historiadora portuguesa Maria Marta Lobo de Araújo abre o dossiê, analisando os legados dos benfeitores das Misericórdias do Minho, Portugal, dos séculos XVII e XVIII, como elementos fundamentais para as práticas caritativas, com destaque para as esmolas dadas aos pobres, a assistência aos enfermos e as doações feitas com o propósito de assegurar a salvação de suas próprias almas.
Na sequência, o artigo de Leonara Lacerda Delfino, analisa concepções de enfermidade e cura através da causa mortis de escravos e libertos indicados em registros paroquiais de óbitos da Vila de São João del-Rei entre o final do século XVIII e início do XIX, destacando a apropriação do poder miraculoso de Nossa Senhora dos Remédios e de São Benedito, como entidades curadoras presentes nas acepções de solidariedade dos irmãos do Rosário. De acordo com a autora, a análise da documentação revela a concomitância de saberes médicos com as práticas mágicas do cativeiro.
Já o texto de Carlos Paz analisa discursos jesuítas sobre o consumo de bebidas por indígenas no Chaco, ao longo do século XVIII. Segundo o autor, os jesuítas compreendiam e relatavam as beberagens como um problema de saúde que corrompia o corpo da civitas cristiana, e, ainda, como um “espelho da alma” indígena, vinculada à barbárie e à indolência.
O artigo de Ane Mecenas analisa discursos religiosos sobre práticas de cura dos indígenas Kiriri no sertão da América portuguesa entre o final do século XVII e o início do XVIII. A partir de dois catecismos, escritos por um jesuíta e por um capuchinho, a historiadora destaca como, no trabalho de conversão, os religiosos descreveram as doenças que acometiam os indígenas e as práticas de cura empregadas.
O próximo texto é de Alexandre Varella e analisa o discurso médico de Juan de Cárdenas, presentes no livro Problemas y secretos maravillosos de las Indias, enfocando, especialmente, as orientações relativas à dieta alimentar dos espanhóis que viviam na América no final do século XVI. Para o autor, o médico Cárdenas procurava, a partir das regras alimentares não apenas evidenciar a presença de uma distinção social aristocrática na sociedade mexicana do final do século XVI, mas também a necessária busca por um sujeito ideal, que teria corpo de compleição sanguínea e colérica.
O texto de Jean Luiz Neves Abreu traz análises das prédicas para a saúde do corpo e a salvação da alma presentes em tratados de medicina e de teologia do século XVIII. O historiador busca, em especial, problematizar as relações entre a medicina e a religião no contexto luso-brasileiro, discutindo as aproximações e tensões entre os discursos médicos e religiosos relativos aos cuidados do corpo e aos sentidos das doenças produzidos no Setecentos.
No artigo de Juliana Gesuelli Meirelles, o foco está nas transformações das concepções de saúde e de medicina entre os séculos XVIII e XIX, a partir das mudanças políticas e culturais da sociedade luso-brasileira propiciadas pela reforma da Universidade de Coimbra. A autora destaca, ainda, a circulação de ideias a partir da criação da Impressão Régia do Rio de Janeiro, inserindo-a na política cultural e científica de D. João VI para a América portuguesa.
Encerrando o dossiê, o texto de Ricardo Cabral Freitas destaca a crítica à atividade confessional encontrada no livro Medicina Theologica, publicado em Lisboa, em 1794, apresentando-a como uma reivindicação de correntes filosóficas iluministas com vistas à reformulação das relações entre conhecimento médico e sociedade e à reparação de uma alegada decadência moral da população.
Por fim, cumpre dizer que ordenamos os textos em dois blocos. Se os quatro primeiros se encontram mais vinculados às análises de discursos produzidos sobre o corpo a partir de um viés religioso, os quatro últimos se detiveram mais em análises sobre os discursos médicos produzidos no século XVIII e no início do século XIX.
Neste dossiê, o leitor encontrará uma representativa mostra de investigações que vêm sendo realizadas por autores brasileiros e estrangeiros, que têm se dedicado a analisar, sob diferentes aspectos e enfoques teórico-metodológicos, a literatura religiosa e médica do século XVI ao XIX.
Uma boa leitura a todos!
São Leopoldo / Rio Grande, Inverno de 2017.
Eliane Fleck – Doutora em História (PUCRS), Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Mauro Dillmann – Doutor em História (UNISINOS), Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
(Organizadores)
FLECK, Eliane; DILLMANN, Mauro. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.9, n. 17, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]