Diccionario de protagonistas del mundo católico en México. Siglo XX | Gabriela Aguirre, Camile Foulard, Austreberto Martínez, Andrea Mutolo, Nora Pérez Rayón, Franco Savarino, Yves Solís, Valentina Torres Septién

Estoy convencido de que Gabriela Aguirre, Camille Foulard, Austreberto Martínez, Andrea Mutolo, Nora Pérez Rayón, Franco Savarino, Yves Solís y Valentina Torres Septién han logrado una obra de excelencia, llamada a ser un parteaguas en la historiografía mexicana del siglo xx en general y no solamente en torno a la Iglesia católica. Se trata de una “herramienta académica” —como gustan definirla sus creadores— que será imprescindible para cualquier persona que quiera estudiar la historia no sólo de la Iglesia, también de la sociedad, la economía, la política o la cultura mexicanas durante dicha centuria. Leia Mais

Dicionário de Ensino de História | Marieta de Moraes Ferreira e Margarida Maria Dias de Oliveira

Marieta de Moraes Ferreira e Margarida Maria Dias de Oliveira Fotos IHUFRJSIGAAUFRN
Marieta de Moraes Ferreira e Margarida Maria Dias de Oliveira | Fotos: IH/UFRJ/SIGAA/UFRN

Os dicionários temáticos são publicações de referência com significativa utilidade, uma vez que apresentam a sistematização de um conjunto de informações dispersas em diversas outras obras. É dentro desta lógica que, nos últimos anos, os dicionários de áreas específicas têm se multiplicado como ferramentas de pesquisa (Ferreira e Oliveira, 2019).

Composto por 248 páginas, o Dicionário de Ensino de História apresenta 38 verbetes relacionados à produção do conhecimento histórico sobre o ensino de História, escritos por 39 professores e pesquisadores brasileiros que, de alguma forma, dialogam com o Ensino de História, seja em suas pesquisas ou em suas atuações em Programas de Pós-Graduação. Leia Mais

Dictionnaire des concepts nomades en Sciences Humaines | Olivier Christin

Quisiéramos presentar de manera breve los que consideramos los aspectos más significativos de una obra que nos parece de gran importancia por su enfoque y por su concepción, y que creemos puede contener, además, indicaciones muy pertinentes para la práctica del análisis histórico y de las ciencias sociales —Sociología, Antropología y Ciencia Política de manera básica—, lo mismo que para ampliar el diálogo racional entre practicantes de esas disciplinas, y que por su enfoque puede significar un aporte en el proceso de formación académica universitaria en estos campos.

Los dos volúmenes de este Dictionnaire des concepts nomades1 que presentamos suman algo más de cuarenta entradas, cada una con su respectivo autor y una bibliografía final, de cerca de noventa páginas, de gran utilidad. El libro ha sido preparado sin improvisación ni premura, cuenta con una edición digna y se encuentra lejos de presentarse como “El” diccionario, por fuera del cual no habría salvación, sin que deje de ser la expresión de un preciso punto de vista. Leia Mais

Dicionário de Ensino de História | Marieta de Moraes Ferreira e Margarida Maria Dias de Oliveira

Composto de 38 verbetes, o Dicionário de Ensino de História é produto de um conjunto de profissionais que atuam junto aos programas de pós-graduação, em especial, do Mestrado Profissional de Ensino de História, o ProfHistória. Como destacado pelas coordenadoras, esse material foi “Elaborado visando subsidiar pesquisadores e professores nas suas variadas atuações de construção do conhecimento histórico” e acrescenta que ele “[…] objetiva chamar a atenção de pesquisadores de outros campos para as especificidades da historiografia, teóricos e áreas de diálogos do ensino de história” (FERREIRA; OLIVEIRA, 2019, p. 10).

Tende-se a acreditar que o dicionário é um material cuja finalidade é expressar o sentido de determinados termos. Entretanto, a dimensão enciclopédica do mesmo, ao menos em algumas áreas, já não é o mesmo. Não é de hoje que a produção desse tipo de material caiu no gosto dos historiadores. Temos como exemplos, alguns emblemáticos, a produção de Jacques le Goff e Jean Claude Schmitt, Dictionnaire Raisonné de l’Occident medieval, o recente Dicionário da escravidão e liberdade, organizado por Lilian Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, ou ainda, o Dicionário Crítico de Gênero, organizado por Ana Maria Colling e Losandro Antonio Tedeschi. O dicionário que é objeto dessa resenha, não se distancia dos que foram citados, a não ser por sua temática, o ensino de história. Leia Mais

Dicionário Gramsciano (1926‐1937) | Guido Liguori e Pasquale Voza

Organizado pelos italianos Guido Liguori e Pasquale Voza, o Dicionário Gramsciano se inscreve, sem demora, entre as obras de referência para os pesquisadores, do campo marxista ou fora dele, mas também como um incentivo para os iniciantes das obras do autor, a partir das expressões de Antonio Gramsci.

Publicado na Itália em 2009 e no Brasil em 2017, no octogésimo aniversário da morte do pensador marxista, conta com mais de 600 verbetes dispostos em 831 páginas. Com a colaboração de estudiosos de Gramsci, a produção é prova do vigor dos estudos desenvolvidos e pesquisas especializadas no autor1 e revela a importância do seu pensamento para compreender o nosso tempo, o momento extremamente complicado, em termos de contexto político regional e mundial. O seu léxico produziu fascínio por décadas e os adeptos das idéias desse importante intelectual e político do século XX comemoram a vinda desse importante manual. Leia Mais

Dicionário de trabalho e tecnologia – CATTANI; HOLZMANN (TES)

CATTANI, David; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre, Zouk, 2011, 494 p. Resenha de: LIMA, Raphael Jonathas da Costa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.12, n.2, Rio de Janeiro, maio/ago. 2014.

Organizado por Antonio David Cattani e Lorena Holzmann, o Dicionário de trabalho e tecnologia, publicado em 2011, já em sua segunda edição, tem como propósito capturar e reunir inúmeros aspectos que vêm configurando o mundo do trabalho e orientando um conjunto de mudanças cuja maior profusão passou a ser verificada na fase que se estende das últimas décadas do século XX ao início de século XXI. Obra de caráter coletivo e multidisciplinar, o dicionário contou com a contribuição de 62 especialistas de diferentes áreas, os quais se desdobraram na composição de 107 verbetes dedicados a sumarizar aspectos referentes à implementação da tecnologia ao trabalho. Trata-se da evolução editorial de uma obra originalmente publicada em 1997 com apenas cinquenta verbetes e sob o título Trabalho e tecnologia: dicionário crítico, renomeada em 2002 para Dicionário crítico de trabalho e tecnologia e, finalmente, em 2006, quando ganhou o título atual, reunindo 96 verbetes e incorporando outros autores.

Conforme a caracterização feita na apresentação, os organizadores do dicionário têm como finalidade principal oferecer uma obra capaz de dimensionar as grandes transformações no mundo do trabalho (resultantes de inovações tecnológicas, gerenciais e institucionais), o aumento do não trabalho/desemprego e seus efeitos danosos, segundo eles preocupações já bastante disseminadas entre acadêmicos, trabalhadores e suas organizações. Nesse sentido é que procuram apresentar um panorama o mais completo possível acerca de conceitos específicos unificados sob a alça das macrocategorias trabalho e tecnologia. Outrossim, em sua quase totalidade, o dicionário oferece ao leitor um material com extrema coesão, podendo-se mesmo perceber uma enorme uniformidade nos argumentos e também nas avaliações feitas pelos autores acerca dos efeitos identificados nos processos tratados por cada verbete. Ponto que pesa a favor do dicionário. Em outros termos, prevalece o argumento segundo o qual da conjugação entre (novos) processos de trabalho e formas inovadoras de tecnologia decorre, o mais das vezes, a precarização que de alguma forma atinge os indivíduos em seu espaço profissional com reflexos sentidos nas demais esferas do seu cotidiano, notadamente na familiar.

A constatação acima apontada, afinal, condiz com a argumentação (trivial, é verdade, mas fundamental) segundo a qual a precarização foi o efeito negativo mais percebido e discutido pelas análises que margearam o panorama que envolveu as modificações no mundo do trabalho, sobretudo, no último quarto do século XX, potencializadas por avanços produtivos e organizacionais configurados, dentre outras formas, pela constituição de clusters e distritos industriais espalhados por Europa, Estados Unidos e, finalmente, Brasil. Isso porque, historicamente, a implantação (e manipulação) de práticas inovadoras de organização da produção industrial tem sido associada à intensificação do controle, da vigilância e da exploração do trabalho, sucedidos estes pelo enfraquecimento da ação sindical, fenômeno por sua vez acompanhado da sistemática ameaça aos direitos e às conquistas dos trabalhadores, preocupações frequentemente presentes nesse debate.

Inovações emblemáticas, como a introdução por Henry Ford da linha de montagem movida a volante magnético, em sua fábrica de Highland Park, Michigan, nos Estados Unidos, em 1913 – entendida como um avanço sem precedentes na indústria automobilística, a despeito de ter se apropriado de princípios mecânicos já conhecidos – tornaram-se emblemáticas pelo que passaram a significar em termos de ordenamento social, organização e controle das forças sociais do trabalho pelo empreendimento capitalista em expansão (Beynon, 1995). Nessa época, origina-se o conjunto de processos reunidos sob o nome de fordismo, praticamente consensuais nas práticas empresariais subsequentes, até a sua crise, nos anos 1970. O dicionário contempla o fordismo com uma caracterização extremamente fiel ao que de fato veio a representar para a indústria: uma inovação simultânea no chão de fábrica e nas dimensões macroeconômicas e institucionais. Em consonância com um conjunto de práticas (racionalização, separação entre concepção e execução do trabalho e a individualização na prescrição e execução de tarefas) reunidas sob a nomenclatura de taylorismo (concebidas por Frederick Taylor), o fordismo avançou em sua finalidade de estabelecer um novo princípio de disciplinamento fabril e um novo mecanismo de extração de maisvalor via intensificação do trabalho.

O aparato de procedimentos técnicogerenciais aglutinados a partir da combinação fordismotaylorismo aparece de forma bem sistematizada no dicionário, assim como processos como o toyotismo, o just in time eo kanban, os quais constituem a fase posterior de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo. Essa etapa está mais relacionada à segunda metade do século XX, quando se instaura um regime de acumulação (flexível) caracterizado pelo fim do compromisso fordista e composto pelo amplo quadro de reestruturação produtiva que incluiu, além de alterações tecnológicas e na organização do trabalho, a reorganização de firmas, o estabelecimento do fluxo financeiro em rede e o deslocamento regional incessante de empresas, confirmando assim o princípio básico do capitalismo de buscar novos espaços para reinvestir seu capital excedente e reequilibrar sua taxa de lucros (Harvey, 2005).

O dicionário também caracteriza aqueles instrumentos concebidos como estratégias de resistência frente ao avanço avassalador das mudanças tecnológicas dentro das empresas. O verbete ‘ação sindical em face da automação’ mostra como o aperfeiçoamento técnico da produção visa fragilizar os trabalhadores, seja pelo seu ajuste ao princípio da polivalência, seja pela prática da redução de postos de trabalho. Em contrapartida, a ‘ação sindical em face da automação’ e a ‘greve’ se colocam como os dispositivos capazes de promover modificações nas relações de produção e, sobretudo, na estrutura de poder, usando a rigor os sindicatos como a forma institucional mais expressiva de ação coletiva com essa finalidade. E a processos particularmente problemáticos e polêmicos, como ‘degradação do trabalho’ e ‘divisão sexual do trabalho’, somam-se outros fenômenos, como ‘informalidade’, ‘tecnociência’, ‘teletrabalho’, ‘autogestão’ e ‘economia solidária’, que ajudariam a reduzir o fosso de poder que historicamente vem separando empresários e trabalhadores no seio da economia capitalista. Essas novas formulações conferem um caráter mais diversificado ao dicionário ao passo que são fortes provas de que os estudos sobre trabalho sempre se renovam pela incorporação dessas inovações gerenciais, organizacionais e tecnológicas inauguradas ano após ano.

Vale ressaltar que, logo na apresentação, os organizadores da obra destacam a centralidade da inovação tecnológica ao recordarem ser ela uma componente inquestionável do trabalho, uma vez que “produz artefatos e processos que, cada vez mais, passam a mediar o liame entre o homem e a natureza” (p. 12), não se entendendo essa relação exatamente como saudável, pois implica um progressivo sufocamento das forças sociais do trabalho. De fato, é inquestionável que, no decorrer do seu desenvolvimento histórico, o capitalismo vem procurando beneficiar o processo de trabalho (e não o trabalhador), almejando alcançar um maior grau de eficiência e de produtividade, sobretudo em detrimento do poder das organizações trabalhistas.

Portanto, cabe aqui superar a perspectiva histórica de enxergar unicamente a ruptura entre o par ciência/tecnologia e o conjunto de forças sociais e econômicas do qual faz parte. Esse entendimento de renovação na relação entre tecnologia e sociedade se manifesta no tratamento conferido pelos autores às sociologias da ciência, da tecnologia e, naturalmente, do trabalho, convergindo com a afirmação de Braverman (1987) de não se instituir um cenário de hostilidade à ciência e, por consequência, à tecnologia. Deve-se apenas questionar os seus empregos como instrumentos de criação, perpetuação e aprofundamento do fosso que separa classes sociais. Implica afirmar que a tecnologia não pode ser acusada de produzir relações sociais, em geral conflituosas e de subordinação, porque em sua essência ela é o resultado e não a causa dessas relações representadas pelo capital e que favorecem o processo de acumulação no seio da engrenagem capitalista. Pois bem, como ciência e tecnologia estão intimamente ligadas, o dicionário não poderia desconsiderar este fato e, como resultado, confere certa relevância a processos tais como ‘inovação’, ‘biopoder’ e ‘nanotecnologia’, enfatizando ainda a relação entre ‘tecnociência e trabalho’, ‘tecnologia e desenvolvimento’, de forma a evitar o determinismo tecnológico que caracteriza, em especial, a sociologia (do trabalho). Não obstante, ao lançar luz sobre a tecnologia e sua relação com processos científicos e inovadores, o dicionário não abdica de assinalar os fenômenos que, quase obrigatoriamente, surgem imbricados a essa dinâmica, a exemplo daqueles relacionados à saúde do trabalhador (‘ergonomia’, ‘ergologia’, ‘lesões por esforços repetitivos’ e ‘qualidade de vida no trabalho’).

Cabe aqui suscitar que, possivelmente, o único porém desse dicionário com cerca de 470 páginas é o fato de, em hipótese alguma, se tratar de uma obra orientada a iniciantes no assunto. Por outro lado, revela-se uma preciosíssima fonte de consulta para pesquisadores com relativa experiência e algum aprofundamento nos diversos debates colocados, o que justifica a aparente falta de didatismo que o material deixa transparecer em diversos momentos. Essa dificuldade é ligeiramente amenizada através da inclusão, ao final do manuscrito, de um índice por assuntos e verbetes, ferramenta extremamente útil à medida que permite fazer correlações entre os tópicos elencados e, comparativamente, atestar a maior ou menor ocorrência de cada um no seio do debate.

Não obstante tal constatação, esse dicionário temático, indiscutivelmente, é uma obra de grande utilidade para os estudiosos e interessados no tema e, desde já, ocupa a condição de item de consulta obrigatória em língua portuguesa. Ele permite não só compreender de forma sistematizada o percurso da degradação do trabalho no século XX como identificar os mais significativos instrumentos elaborados para mitigar seus efeitos. Igualmente, conforme salientam Cattani e Holzmann na apresentação a esta edição, almeja-se aqui oferecer uma obra capaz de transpor o caráter tradicionalista dos dicionários, satisfeitos apenas em disponibilizar ao leitor a gênese e o desenvolvimento histórico de conceitos. Conforme entendem, o que orientou a publicação foi a possibilidade de subsidiar o seu público alvo com os instrumentos capazes de qualificar as investigações que porventura estejam em curso. Nesse sentido, não se trata de um glossário repleto de definições desassociadas, mas de um preciso mapeamento a respeito das questões abordadas pelas mais renomadas publicações e evidenciadas durante os principais eventos científicos nacionais e internacionais.

Referências

BEYNON, Huw. Trabalhando para a Ford: trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística. 2. ed. Paz e Terra: São Paulo, 1995. [ Links ]

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3. ed. LTC Editora: Rio de Janeiro, 1987. [ Links ]

HARVEY. David. A produção capitalista do espaço. 2. ed. Editora Annablume: São Paulo, 2005. [ Links ]

Raphael Jonathas da Costa Lima – Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. E-mail: raphaeljonathas@gmail.com

Acessar publicação original

[MLPDB]

Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos (R)

 

Publicado pela editora Companhia das Letras, em 2018, o Dicionário da Escravidão e Liberdade conseguiu a façanha de reunir uma grande quantidade de especialistas para discutir um dos temas mais caros ao pensamento brasileiro: a escravidão. Embora o tema seja discutido em congressos e seminários, estes eventos nem sempre contam com esse quantitativo de especialistas. A reunião em torno do dicionário resultou em 50 textos críticos, escritos por 45 pesquisadores ligados a diversas instituições de ensino e pesquisa, que puderam conceituar a partir do assunto principal: a escravidão.

Os textos compõem um mosaico heterogêneo que apresenta o estado da arte produzido sobre a escravidão. O interessante é que o leitor pode apenas consultar os verbetes, como dicionário que é, ou poderá também relacionar os verbetes entre si, construindo pontes entre um assunto e outro, complementando-os. São possíveis algumas ligações. Logo de início, temos o verbete sobre o continente africano, que pode ser lido em conjunto com os verbetes sobre o tráfico e o transporte dos escravizados, temas que foram contemplados na escrita de Roquinaldo Ferreira, Luiz Felipe de Alencastro, Carlos Eduardo Moreira e Jaime Rodrigues. A caracterização dos africanos, contrariando a ideia de homogeneidade, teve atenção de Robert Slenes, Beatriz Mamigonian, Luiz Nicolau Parés, Eduard Alpers e Luciano Brito.

Lugares e espaços foram pensados por Marcus Carvalho, Flávio dos Santos Gomes e Carlos Eugênio Líbano Soares. A família escrava, o mundo materno, estão entre as temáticas discutidas por Isabel Cristina Reis, Lorena Féres da Silva, Maria Helena Pereira e Mariza Ariza. As leis que permearam a escravidão foram discutidas por Keila Grinberg, Hebe Mattos e Joseli Maria Nunes Mendonça. As teorias raciais, o associativismo negro e a imprensa negra foram o foco das informações de Petrônio Domingues e Lilia Moritz. Revoltas e movimentos foram verbetes escritos por João José Reis, Wlamyra Albuquerque e Angela Alonso, Jonas Moreira e Paulo Roberto. Amazônia e a escravização indígena, foram pensados por Flavio Gomes e Stuart Schwartz.

O trabalho escravo/livre e o pós-abolição foram verbetes escritos por Robson Luiz Machado, Walter Fraga, Marcelo Mac Macord e Robério Souza. Os aspectos da religiosidade foram destacados por Nicolau Parés e Lucilene Reginaldo. O processo educacional, as nuances culturais e a relação História e Literatura, foram escritas por Sidney Chaloub, Marta Abreu e Maria Cristina Cortez Wissenbach. Há ainda os ritos fúnebres que aqui foram escritos por Cláudia Rodrigues. São possibilidades que a leitura vai sugerindo. É um dicionário, não nos preocupemos com as teorias ou metodologias dos autores, essas se revelam nos verbetes.

Não é o primeiro dicionário a enfocar a escravidão. Em 2004, Clovis Moura, consagrado pesquisador e importante referência desse tema, publicou o Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, com 800 verbetes. Foi, na verdade, a última contribuição do historiador e sociólogo que dedicou boa parte de sua vida a discutir a saga heroica do escravo em inúmeros trabalhos. Em 2018, catorze anos depois, o público passa a contar com um novo instrumento para estudos nesta mesma temática. A escravidão e os seus desdobramentos mantêm a vitalidade das discussões como caminho fundamental para entender as diferenças sociais que atingem milhões de afrodescendentes no país.

O período da escravidão no país fez com que esse tema passasse a se desenrolar em toda História do Brasil. Em qualquer assunto que possamos pensar o Brasil, em algum momento, a temática irá perpassar atravessando como uma flecha. O período Colonial e Império viram de perto esses desdobramentos, e na República as consequências continuam sendo brutais para milhões de brasileiros. “Esse sistema que pressupunha a posse de um homem por outro só podia construir um mundo de rotina que se misturava com muita violência e explosão social. ” (Pg. 28).

Há diferenças circunstanciais entre os dois dicionários, e essas diferenças marcam a trajetória dos estudos da escravidão no Brasil. Clovis Moura construiu sua vasta obra fora dos quadros acadêmicos, embora sempre estivesse em constante diálogo com a academia, e como já vimos, sua bibliografia está presente na estante dos pesquisadores do tema. É bem provável que o autor tenha sido o último grande baluarte de uma safra de intelectuais que construíram seus conceitos sem necessariamente estarem ligados a uma Universidade.

O Dicionário da Escravidão e Liberdade já traz no título um indicativo de que mudanças profundas entre uma publicação e outra ocorreram. A partir dos anos 1970, o Brasil irá contar com um crescimento dos programas de pós-graduação, ganhando mais intensidade nos anos finais da década, que ainda estava sob uma brutal Ditadura Militar.

A presença destes programas propondo novas pesquisas, revisando outras e colocando em xeque saberes há muito cristalizados, teve como base a mudança metodológica, que propunha uma História problema a partir de novas abordagens e novos objetos, consistindo de análises apuradas em rica documentação depositadas em diversos arquivos. O trabalho sistemático de inúmeros pesquisadores que em muitos casos enfrentaram as diversas dificuldades, como falta de incentivo às pesquisas, arquivos desorganizados, documentos comprometidos e a insistente incapacidade de uma sociedade dar o devido valor ao profissional da História, forjaram uma gama de trabalhos que passaram a ser fundamentais para discutir, entre outros problemas, a desigualdade social com a grande diferença para os afrodescendentes.

O resultado dessa reviravolta vem logo nos anos 1980, com a chamada Nova História da Escravidão, em que passa a ser valorizada a ação protagonista do negro escravizado que a todo instante passa a ser também responsável pela construção de sua liberdade, atento às dinâmicas da sociedade que estava inserido, contrariando a imagem do escravo heroico e coisificado. Essa nova historiografia é, portanto, a linha que une os autores dos textos coordenados por Lília M. Schwarcz e Flávio Gomes.

São vários os desdobramentos que a escravidão apresenta para o estudioso e, neste sentido, nada mais importante que esse instrumento de estudo, porque embora seja uma obra recentemente lançada, ela já se configura como fundamental tanto para o público leigo, como os acadêmicos de história e de outras ciências. Os textos críticos do livro abordam os momentos iniciais no continente africano; a travessia atlântica; o convívio social na América Portuguesa; a religião e seus rituais; a cultura; as formas de trabalho; a formação dos laços parentais e o nascer, viver e morrer de homens e mulheres que vieram do lado de lá da África mãe, uma verdadeira viagem a tempos e espaços de um Brasil que teima em não se enxergar. Um dos pontos mais interessantes desta obra é enxergar como homens e mulheres escravizados contribuíram de forma decisiva com saberes que influenciaram na formação do cotidiano brasileiro nos mais diversos aspetos.

Revoltas e resistências estão presentes para sepultar de vez os argumentos da historiografia tradicional que viam o negro como passivo durante toda escravidão. Neste sentido, para além da fórmula popularizada pelos livros didáticos que consagraram o ciclo do açúcar, o Dicionário propõe conceituar a escravidão em outras regiões, como o Rio Grande do Sul, Goiás e Amazonas; ampliando o entendimento da relação entre indígenas, imigrantes europeus e escravos, enfatizando que, “os manuais didáticos insistiram numa escravidão africana que começava com o açúcar, passava pelo ouro e terminava no café. Talvez por isso as áreas de plantation de algodão, arroz e fumo, foram pouco estudadas no Brasil. ” (p.25-26)

Ricamente ilustrado, o conjunto das imagens foi organizado em dois cadernos distintos e Lília Moritz, observa que “é importante, pois, que o leitor atente não apenas para os títulos deixados originalmente por seus autores e que aparecem como legenda técnica juntos das gravuras, telas e fotografias, mas também para os comentários que elaboramos, buscando “ler as imagens”” (Pg. 44). O que é bastante positivo pois didaticamente funciona bastante no auxílio aos professores, por exemplo.

São ao todo 154 imagens divididas em dois cadernos: o primeiro caderno está logo depois da página 192, e o segundo inicia na página 352. Colocados logo após o início do texto crítico, fica desconfortante, porque nos leva de certa forma a suspender a leitura e a divagar nas imagens. É possível que fique melhor ao final do verbete, cremos assim que contribuiria para a fluidez da leitura. A opção de organizar em cadernos ficou interessante, imagens distribuídas ao longo dos textos críticos criaria a sensação de livro didático ou dicionário ilustrado, o que nos parece não foi intenção dos autores aqui.

O Dicionário da Escravidão e Liberdade terá um papel fundamental para acadêmicos em todos os níveis e cursos. Durante a graduação por exemplo, período em que paira uma dúvida sobre o que pesquisar, entre outras informações encontrará o graduando, conceitos sobre família escrava, formas de resistência ou as doenças que acometiam os negros escravizados, além de tantos outros temas. Também será um referencial, um ponto de partida para novas investigações.

Cito como exemplo instigador para novas pesquisas, o texto Associativismo Negro (Pág. 113) e Frente Negra (pg. 237). Nos dois, o autor discorre sobre como os negros no Pós-Abolição intensificaram frentes intelectuais sendo protagonistas em diversos momentos da sociedade republicana, seja em São Paulo ou Santa Catarina. Instiga no momento em que nos perguntamos, o que sabemos desses movimentos nas outras cidades? Quais foram os protagonistas? Como os jornais de Pernambuco, ou Alagoas, por exemplo, noticiaram estas frentes negras?

Quando a Lei Áurea completou cem anos, o quantitativo de publicações chamou atenção, fato que não mais se repetiu. No entanto, agora já podemos contar com editoras que se dedicam à causa negra no país, e paralelo a isto, há diversos núcleos de Pós-Graduações que desenvolvem as mais diferentes pesquisas e estudos. Desta relação surge por exemplo, este Dicionário elegantemente com prefácio de Alberto da Costa e Silva e capa desenhada por Jaime Lauriano, nos convida ao prazer da leitura.

Referências

Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos/Organização: Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (Orgs.) – 1ªed. São Paulo: Companhia das Letras. 2018.

MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.

SECRETO, María Verónica. Novas perspectivas na história da escravidão. Tempo, Niterói, v. 22, n. 41, p. 442-450, dezembro de 2016. Acesso em 23 de julho de 2020. https://doi.org/10.20509/tem1980-542x2016v224104

Vladimir Jose Dantas – Mestre em Geografia/Arqueologia pela Universidade Federal de Sergipe. Atualmente é Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: professorvladimir2017@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0510-248X.


Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). São Paulo: Companhia das Letras. 2018. Resenha de: DANTAS, Vladimir Jose. Lendo o Dicionário da Escravidão e da Liberdade. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.38, n.1, p.554-559, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

Indicionário do contemporâneo – CÁMARA et al (A-EN)

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. Resenha de MANZONI, Filipe.  Some possible journeys for reading the Indicionário do contemporâneo. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr., 2019.

É conhecido o diagnóstico, lançado por Flora Sussekind em 2013, de uma emergência de “formas corais” na produção literária brasileira, textos marcados pela “constituição de uma espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes” (SUSSEKIND, 2010). Flora nos diz ainda que nessas formas seria característica uma interrogação simultânea “tanto da hora histórica quanto do mesmo campo da literatura” (idem). Se nos for permitido o pressuposto de que a relação entre literatura e crítica não é de precedência mas de mútua contaminação, não é de impressionar que é contemporânea à emergência das “formas corais” a gestação de uma verdadeira “forma coral” da crítica, isto é, o trabalho de escrita do Indicionário do contemporâneo.

O projeto, bem como o processo de sua escrita, são deslindados na apresentação, “Um indicionário de nós”, assinado pelos quatro organizadores do volume, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Jorge Wolff e Mario Cámara: trata-se de uma coletânea de ensaios escritos e reescritos ao longo de quatro anos por múltiplos pesquisadores e críticos da América do Sul. O marco inicial desse encontro, um simpósio proposto para o X JALLA – Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana intitulado“Políticas literárias do contemporâneo”, parece ter sinalizado para essa zona de ressonância entre conceitos recorrentes e pontos comuns de inquietação que foram, conforme nos conta ainda a apresentação, gestados durante oito meses pelos catorze pesquisadores que assinam, coletivamente, o livro. Desse processo de mapeamento de afinidades, seis verbetes “que incidem de modo decisivo sobre o pensamento das artes e literaturas atuais” se estabilizaram como núcleos conceituais e deram corpo à versão final do volume: “Arquivo”, “Comunidade”, “Endereçamento”, “O contemporâneo”, “Pós-autonomia” e “Práticas inespecíficas”.

Dois pontos no Indicionário parecem falar a partir de umaindistinção entre as proposições teórico-críticas e a própria metodologia e construção da obra. Em primeiro lugar, desde seu título, encontramos a marca de uma profunda ambivalência: se o texto de apresentação evidencia a ambivalência do prefixo “in-” – que supõe “insubordinação, insatisfação, inquietação, independência” (CÁMARA; KLINGER; PEDROSA; WOLFF, p. 7) mas joga também com o significante “índice ao postular uma leitura-escritura indicial das linguagens e dos conceitos em cena” (idem) -, o volume como um todo parece levar essa ambivalência alguns passos além. De fato, a sobreposição de um “in-dicionário” a um “indício-nário”, ela mesma baseada na homonímia de dois radicais latinos “in-”, um de negação outro de direcionamento, poderia ser tomada como uma marca comum de todos os ensaios. Encontramos, a cada verbete, uma espécie genealogia aberta do conceito abordado, genealogia que esbarra sempre em sua própria incompletude e impossibilidade de fechamento – em um “indicionarizável”, portanto -, mas que nos leva a uma mobilização, isto é, a direcionamentos possíveis – ou indícios – que sobrevivem enquanto potência ou possibilidade.

O segundo ponto que caberia destacar é o quanto todos os tópicos propostos parecem falar não apenas dentro de seu próprio ensaio, mas também através da própria estrutura do livro. Desnecessário sublinhar, por exemplo, o quanto a discussão a respeito da “Comunidade” – em seu percurso que vai da retomada etimológica e filosófica de Roberto Espósito até a proposição de um ator político proposto enquanto “multidão”, via Antonio Negri, Michael Hardt e Paolo Virno, passando ainda, entre outros pontos relevantes, pela ontologia do “com” de Jean-Luc Nancy e pela comunidade que vem de Giorgio Agamben – está na base da própria proposição do “escrever com” que marca o Indicionário. A alternância de grupos fez com que os estilos pessoais de cada pesquisador não sejam mais do que vestígios suspeitos, não autorizados por nenhuma delimitação autoral: todos os textos (exceções feitas à apresentação, assinada pelos organizadores, e ao posfácio, assinado por Raúl Antelo) são potencialmente de todos os pesquisadores, isto é, de Antonio Andrade, Antonio Carlos Santos, Ariadne Costa, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Florencia Garramuño, Jorge Wolff, Luciana di Leone, Mario Cámara, Paloma Vidal, Rafael Gutiérrez, Raúl Antelo, Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda.

No que toca ainda aos itinerários propostos dentro de cada ensaio, novamente a metodologia parece dizer tanto quanto a proposição teórica a respeito de um modo específico de lidar com o “Arquivo”, tema que abre o Indicionário. Parece interessar, mais do que a figura do “leitor autoritário, organizador que procure dar um sentido fixo ao conjunto” (ibidem, p. 24), uma espécie subversiva de “leitor nômade”, que circula pelos textos “estabelecendo novas redes, abrindo os sentidos” (ibidem). Caberia observar que nesses trajetos alguns caminhos são mais recorrentes, dando uma impressão algo monadológica, na medida em que no interior de cada verbete parecem habitar os demais conceitos, em uma espécie de rede de associações potenciais.

É assim, por exemplo, no ensaio sobre o “Endereçamento”, em que, a partir de uma leitura da importância dos pronomes pessoais a partir da produção de Ana Cristina Cesar, encontramos uma ameaça ao estatuto autônomo da literatura (que ressoaria no verbete “pós-autonomia”), bem como a proposição do endereçamento como “problema epistemológico e ético de como ter acesso à alteridade, sem se fechar numa forma autorreferencial” (idem p. 107), o que nos levaria também ao tópico da comunidade, via Jacques Rancière e Nicolas Bourriaud.

Os percursos possíveis no Indicionário interessam, portanto, tanto quanto possam ser remontados, repensados, e reorganizados por esse “leitor nômade”, figura que abre ainda o ensaio sobre o “Contemporâneo”, a partir de uma desestabilização moderna do espaço institucional da arte, tópico que nos levará a uma leitura de diversas instalações artísticas, tomadas enquanto práticas inespecíficas (nome também do último ensaio do volume, no qual a proposição de um “campo estendido” de Rosalind Krauss se desdobra em ferramenta para a análise de diversas obras contemporâneas que ameaçam a estabilidade de um campo literário). É a partir desse tensionamento do campo literário e da representação do presente histórico que chegamos a uma potência de anacronismo em figuras como Nietzsche, Didi-Huberman ou Agamben, autores que farão do “contemporâneo” um arquivo aberto do histórico, uma zona de constante formulação, impasse e reformulação do histórico.

Caberia ainda ressaltar que, se o tom da proposta do Indicionáio parece, em diversos momentos, trazer uma noção panorâmica ou enciclopédica, em especial pela amplitude das implicações de alguns dos verbetes escolhidos, isso não se dá mediante o sacrifício da riqueza de detalhes. De fato, se nos voltarmos para as notas – somando-se as de todos os fragmentos, quase trezentas -. estas deslumbram pela riqueza de caminhos que se abrem em uma espécie de microscopia dos “indícios” que se permitem ler a partir das catorze bibliotecas que coabitam (e assinam) a obra.

Também parece resistir à planificação sob um argumento “panorâmico” a atenção dada ao que poderíamos chamar de uma das questões centrais, ou, ao menos, a mais recorrente dentro do Indicionário: os desdobramentos e reavaliações da noção de pós-autonomia. O ensaio específico, “Pós-autonomia”, faz um levantamento minucioso das diferentes acepções do polêmico conceito proposto por Josefina Ludmer em 2006, desdobrando suas múltiplas implicações em diferentes contextos que vão desde a literatura contemporânea sul americana, sua recepção crítica, as artes plásticas no presente, mas também a própria estabilização e pacificação de um conceito de “modernidade”. Encontramos ainda, juntamente com esse desdobramento das implicações críticas da questão, um levantamento de algumas das respostas polêmicas ao conceito que, em última instância, atenta contra a própria possibilidade de circunscrição de um campo que identifique um “literário” em oposição a um “não literário”, percurso que nos conduzirá por uma dupla reação: uma postura de retomada elegíaca de uma institucionalidade perdida ou ameaçada, a partir de teóricos como Antoine Compagnon ou Tzvetan Todorov; em contraposição a uma dinamização da ameaça a essa estabilidade institucional, em figuras como Jacques Rancière ou Bruno Latour.

É no centro dessa polêmica que se insere ainda o posfácio do livro, único ensaio assinado por um único autor, Raúl Antelo. O ensaio, originalmente uma conferência intitulada “Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia” apresentada no segundo encontro do grupo de pesquisa, em 2013, aparece aqui como “Espaçotempo”, e traz um segundo mapeamento da proposição de Ludmer da pós-autonomia (após uma raiz comum ao verbete “pós-autonomia” via Kant – Adorno), detendo-se na relevância do questionamento da autonomia nas teorias da esquerda italiana da década de 70 (discussão da qual Ludmer seria herdeira). Finalmente, após uma retomada da questão do espaçotempo e da quarta dimensão, percurso que vai desde Ouspensky até as clássicas investigações benjaminianas sobre o cinema e a aura na década de 30, chegamos a uma ressonância entre Ludmer e Benjamin, ponte especialmente contemporânea, já que sobrepõe duas polêmicas longes da pacificação. A partir do temor de alguns possíveis desdobramentos políticos nefastos da aceitação da pós-autonomia (que ressoam o temor benjaminiano da apropriação fascista da potência revolucionária do cinema), Raúl Antelo propõe, em um tom cuidadoso, uma renovação do “crédito ao conceito de autonomia, mesmo que em plano reconfigurado, digamos, an-autonômico” (ibidem, p. 252). Cabe ressaltar o quanto esse final, ou mais especificamente, esse prefixo de negação “an-”. Parece ressoar ainda o “in-” que dá título ao volume, em especial porque ao mesmo tempo que aponta para o estatuto aporético da questão – ou seja “in-dicionário” -, se abre enquanto espaço de apostas – ou seja, para os “indícios”.

Cabe, finalmente, nos permitirmos uma última palavra sobre um ponto que não pode ser deixado de lado quando nos referimos a essa empreitada crítica de tantos pesquisadores. E o que nos interessa ressaltar é precisamente o quanto essa ambivalência que vem desde o título do volume nunca se furta a manter aberto o contemporâneo como um espaço de apostas mais do que do esgotamento. Encontramos, por exemplo, no ensaio sobre “o contemporâneo” uma contraposição ao escuro catastrófico que se resguarda ainda à possibilidade de uma aposta nas sobrevivências, isto é, um pouco de Didi-Huberman contrabalanceando o peso de Giorgio Agamben. Encontramos, ainda, em toda a discussão sobre o “endereçamento”, uma via de escape do fechamento do moderno em um modelo autorreferencial e intransitivo (ou novamente autonomista) a partir de uma abertura ao outro, a uma investidura ainda possível em um pensamento da comunidade, um pensamento que se funda no impróprio, na impropriedade radical, o que, novamente, parece espelhar, mais que teoricamente, metodologicamente o dispositivo crítico do Indicionário.

Referências

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge (Org.). Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. [ Links ]

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. [ Links ]

LUDMER, Josefina. “Literaturas pós-autonomas”. In: Sopro Panfleto Político cultural. Trad. Flávia Cera. Desterro: Cultura e Barbárie, 2010, p. 1-4. Disponível em: <Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf >. Acesso em: 16 jul 2018. [ Links ]

SUSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados. O Globo, v. 21, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em <Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.html > Acesso em 15 de março de 2019. [ Links ]

Recebido: 27 de Abril de 2019; Aceito: 31 de Agosto de 2019

Filipe Manzoni. É Doutor em literatura pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutoramento sobre poesia contemporânea brasileira na Universidade Federal Fluminense e leciona literatura brasileira na Universaidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: manzoni@poetic.com

Acessar publicação original

[IF]

 

Dicionário Paulo Freire – STRECK et al (C)

STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. (Org.). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. Resenha de: ROSA, Carolina Schenatto da; SANTOS, Débora Caroline dos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Paulo Freire foi, sem dúvidas, um grande reinventor de palavras e um alargador de significados. Grande pesquisador do povo brasileiro e de suas formas de comunicação, esse sujeito, à frente de seu tempo, se apropriou das palavras atribuindo-lhes sentidos singulares e profundos, cujos estudo e reinvenção são necessários ainda hoje. No prefácio do livro Pedagogia da tolerância, Lisete Arelaro diz que “Paulo Freire tem um estilo único: é um irresistível contador de estórias e ‘causos’”. (ARELARO, 2018, p. 12). Também é um irresistível transformador de conceitos, pois escolhia com cuidado as palavras, trabalhava os sentidos, sua origem e, de forma autêntica e profundamente comprometida, conferia-lhes um significado particular.

Cleoni Fernandes, no verbete Gente/Gentificação diz que o autor foi “um inventor de sentidos produzidos com outras palavras” (2018, p. 235); foi um semeador e um cultivador de palavras com o dom de pronunciar novas realidades, como destacam os organizadores do Dicionário Paulo Freire, no início da apresentação da primeira edição. Leia Mais

Dicionário Nietzsche – GEN (CN)

GEN. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016. Resenha de: GRAGNOLINI, Mônica. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.38 n.3 set./dez. 2017.

Celebramos o aparecimento do primeiro dicionário sul-americano da obra de Nietzsche. A particularidade desse dicionário é que remete principalmente às interpretações sobre Nietzsche que tem sido feitas no Brasil, e mais especificamente no âmbito do Grupo de Estudos Nietzsche, criado e dirigido por Scarlett Marton. Com isso, o dicionário é também, ao mesmo tempo, um registro dos modos como tem sido recepcionado Nietzsche em uma parte do âmbito acadêmico brasileiro.

É necessário indicar que no Brasil pululam os nietzschianos, há diferentes grupos de pesquisa e interpretação em distintas universidades, com perspectivas diversas e às vezes antagônicas. A interpretação de Nietzsche, no país irmão, é apaixonante também para estudar o perspectivismo nietzschiano nas formas pelas quais sua obra tem sido recepcionada, o que dá conta do caráter plural de sua filosofia nos modos como é recepcionada. Há muitos “Nietzsches” no Brasil: aqui nos encontramos, nesse dicionário, com um Nietzsche que surge a partir do trabalho de pesquisa iniciado por Scarlett Marton, uma das reconhecidas referências internacionais da obra do pensador, membro do Groupe International de Recherches sur Nietzsche (GIRN). Em 1996 Marton funda “oficialmente” o GEN, e a revista Cadernos Nietzsche. Quem escreve nesse Dicionário as diferentes entradas são seus discípulos e pesquisadores, e, como assinalei antes, as vozes remetem às interpretações nascidas no seio desse grupo de trabalho, que edita sua primeira obra coletiva, afirmando desde o início que um grupo é mais que uma soma de individualidades.

Qual é a peculiaridade do GEN no âmbito dos estudos nietzschianos no Brasil? A introdução ao dicionário se encarrega de indicar o rigor investigativo do grupo: criado em 1989, e oficializado em 1996, o grupo dedicou-se desde o início à leitura das obras de Nietzsche de maneira sistemática e rigorosa. Como se aponta na introdução, Scarlett Marton iniciou o grupo no final dos anos 80, realizando uma série de seminários sobre Assim falava Zaratustra, que se estenderam por cinco anos, dedicados cada um deles, de maneira minuciosa, às partes da obra (incluindo o Prólogo). A partir daquele momento, o grupo começou a trabalhar a obra de Nietzsche com seriedade metodológica, em um Brasil em que, como em outras partes do mundo, Nietzsche não era bem recebido na academia. Era necessário, portanto, criar o “objeto de conhecimento Nietzsche” (p. 19), e estudá-lo de maneira rigorosa, para diferenciar o trabalho de investigação de outras aproximações à sua obra, e “romper com o diletantismo que caracteriza muitas interpretações de Nietzsche” (p. 19). Além disso, o GEN organiza semestralmente os Encontros Nietzsche, nos quais se discutem os trabalhos do grupo.

Os vocábulos estão indicados no original em alemão, e, além disso, estabelecem uma série de reenvios e correlações de um artigo a outro. As entradas são 156, e há 13 outras para a apresentação das obras de Nietzsche. Como se assinala na introdução, existem no Brasil muitas traduções diferentes da obra (não se realizou, como recentemente na Espanha, uma tradução completa da Kritische Studienausgabe), por isso o GEN pretende também oferecer um canon preciso para a tradução dos conceitos. Cada entrada implica uma abordagem genética e conceitual do termo na obra nietzschiana, e uma referência aos diversos modos como o termo é utilizado na obra de Nietzsche. O Dicionário se inicia com algumas páginas dedicadas à vida de Nietzsche, escritas por Scarlett Marton, e na sequência se apresentam as treze entradas dos livros. Marton destaca que Nietzsche não queria ser confundido, e assinala de que maneira diferentes ideologias se apropriaram de seu pensamento (do socialismo ao antissemitismo), fazendo recortes arbitrários de sua obra. Com relação às entradas das obras, assim como ocorre com os conceitos, são escritas por diferentes membros do GEN, e o característico dessas entradas é que a bibliografia indicada só remete às obras do autor do vocábulo, e a outros membros do GEN. Isso responde a essa ideia de rigor antes enunciada, e por isso só especialistas de um tema escrevem sobre esse tema, e remetem ao âmbito de discussão coletiva do GEN.

Como é a estrutura de cada entrada? Por exemplo, Scarlett Marton escreve a entrada “Vontade de potência” [Wille zur Macht] e assinala a primeira aparição do conceito em Assim falava Zaratustra, e a identificação do termo com a ideia de vida nesse momento. Nesse sentido, se vincula com “vontade orgânica”, e é própria de todo ser vivo. Marton assinala sua forma de proceder a partir da resistência a obstáculos, e indica como a Nietzsche interessava, no contexto das ideias científicas da época, tratar de descrever a passagem do inerte ao vital. Assinala, também, como logo após Assim falava Zaratustra começa a elaborar sua teoria das forças, e o conceito se amplia em relação a tudo o que existe, e não apenas ao orgânico. Analisa também como deve ser entendido na expressão o termo “Wille” e como deve compreender-se “Macht”. Assim, interpreta o conceito como tendência de toda força a efetivar-se, criando novas configurações. Indicam-se os textos de Nietzsche nos quais se pode encontrar referências ao tema, direcionando o leitor a outros vocábulos da obra, como “substância”, “hierarquia”, “força” etc., fazendo uma indicação bibliográfica apenas dos textos da própria Marton. Ou seja, as entradas são delimitadas, específicas, e contextualizadoras, e evitam a dispersão em uma bibliografia secundária volumosa, preferindo a especificidade no trabalho com os conceitos.

André Luis Mota Itaparica, Clademir Araldi, Eder Corbanezi, Eduardo Nasser, Emmanuel Salanskis, Fernando de Moraes Barros, Ivo Da Silva Jr., João Evangelista Tude de Melo Neto, Luís Rubira, Márcio José Silveira Lima, Scarlett Marton, Vania Dutra de Azeredo e Wilson Frezzatti Jr. são os autores das entradas do dicionário. Todos são do Brasil, com exceção de Emmanuel Salanskis, da França. O Dicionário Nietzsche pretende dar conta do trabalho de muitos anos do GEN, e do trabalho pioneiro e formador de sua criadora, Scarlett Marton. De alguma maneira, seus discípulos rendem homenagem a sua mestra, tornando patente o trabalho rigoroso de muitos anos em torno da obra de Nietzsche, bem como as impressões da maneira pela qual Scarlett Marton ensinou a ler Nietzsche a distintas gerações de estudantes, tanto no Brasil, como fora do Brasil.

*Resenha [também] publicada na Revista Instantes y Azares, Año XVI, Nros. 17-18, Otoño-Primavera de 2016, Buenos Aires, Argentina, pp. 288-290. Tradução de Márcio José Silveira Lima

Mónica B. Cragnolini – Professora da Universidade de Buenos Aires, Argentina. Correio eletrônico: mcragnolini@gmail.com.

Acessar publicação original

 

Pequeno dicionário de grandes personagens históricos | Karl Schurster e José Maria Gomes Souza Neto

Embora a datação convencional do Iluminismo se inicie com o final da Revolução Gloriosa e o início da Revolução Francesa, esta periodização não deve ser tomada de maneira rígida. O eixo é sempre um pouco antes e um pouco depois de 1750, estando, certamente, articulado em suas origens, à Revolução Científica do século XVII. Já o seu final pode ser visto entre a crise revolucionária e o fortalecimento do pensamento romântico (FONTANA, 1998; FALCON, 1997). Talvez fosse mais prudente se preferir falar em iluminismos no plural, ao invés de tê-lo como um movimento unificado. Segundo Kant, em seu ensaio: O que é o iluminismo, este seria “a libertação do homem de sua auto-imposta custódia”. Custódia para Kant era: “a inabilidade do homem para fazer uso de seu entendimento sem a direção de outrem” (CHENG, 2012, p.30). Kant se opunha, nesse sentido, à tutela estabelecida pela tradição por um lado e pela religião por outro. Em suma, a definição de Kant para a ilustração é a saída da minoridade, o caminho para servir-se de sua própria razão. (FONTANA, 1998)

Um dos mais importantes historiadores do iluminismo, Robert Darton, menciona que o antigo regime é posto contra a parede no século XVIII. Mas, antes mesmo de termos a Revolução Francesa – já se carregava muito de suas reflexões teóricas e de seus desdobramentos políticos. Assim sendo, palavras como razão, natureza, liberdade, felicidade e progresso davam sentido a um novo movimento intelectual, o das Luzes (DARTON, 2001). Influenciados pela revolução científica, os pensadores Iluministas, similarmente ao que aconteceu entre os filósofos pré-socráticos, os socráticos e sofistas, direcionaram a razão como elemento de compreensão do homem em sociedade. A própria noção de filósofo sofre uma mudança semântica, na qual os do iluminismo se põem numa posição de críticos e reformadores de sua sociedade. Embora a religião não seja de todo abandonada, os filósofos do iluminismo assumem uma posição mais secular, na qual o universo religioso desempenha papel secundário (CHENG, 2012).

Havia a concepção de uma natureza humana universal. Uma das preocupações dos historiadores iluministas era explicar os eventos históricos em termos da ação humana e não divina; conferir o verbete Voltaire, p.303-310. O iluminismo deu origem a uma forma de investigação histórica: desenvolveu a noção de que o presente era um momento de peso excepcional na História Mundial. A noção de que aquela época havia transcendido a período greco-romano, tão importante para os renascentistas. A História Clássica ainda era venerada, mas agora, a Europa moderna requeria graus de autonomia cultural. A História possuía uma função social para os iluministas e, geralmente, suas abordagens do passado serviam para condenar e para reafirmar a sua crença no progresso da humanidade. Assim, a abordagem era centrada no homem, padrões e crenças de sua própria época. A leitura do passado tinha como intenção promover a virtude provendo exemplos morais que deveriam ser imitados ou evitados (BENTLEY, 1997).

A leitura de um dicionário e, pode-se imaginar, todo o processo de sua confecção acaba por inspirar a essa já longa digressão sobre algumas das bases epistemológicas nas quais reside nosso impulso sistematizador do conhecimento. As fronteiras da razão humana a partir de então pareciam ilimitadas, a partir das quais os limites do progresso humano seriam incalculáveis. É nesse clima que a publicação da Enciclopédia (Encyclopedie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, 1751-1771 – Diderot e D’Alembert) se tornava uma sinédoque daquilo que se configurava, num sentido mais amplo, o próprio movimento iluminista. Entre 1751 e 1771 dezessete volumes foram organizados, nos quais estavam compilados todos os conhecimentos modernos de A até Z (DARTON, 2001).

No Pequeno dicionário de grandes personagens históricos, organizado pelos professores da Universidade de Pernambuco (UPE): José Maria Gomes de Souza Neto, Kalina Vanderlei Silva e Karl Schurster, após mais de duzentos anos do iluminismo, revisita-se, em quase quinhentas páginas, o impulso de se dedicar à sistematização do conhecimento. Neste caso, dedicado às trajetórias histórico-biográficas de personagens que tiveram papel significativo no desenrolar dos acontecimentos de seus próprios tempos e, muitas vezes, muito além da efeméride de sua própria vida. Numa empreitada como essa, torna-se quase inevitável a avaliação da relação entre trajetória biográfica e vetores de transformação socioculturais, como Karl Schurster e Leandro Couto Carreira Rincon fizeram na introdução, p.XXI-XXIII.

Em que medida o tempo de uma vida é importante para deixar marcas, por vezes indeléveis, no tecido da história? Um dos mais representativos historiadores do século XIX, Jacob Burckhardt, cuja concepção de história contrastava profundamente com o mainstream da historiografia de sua época, concedia pouco relevo aos personagens como reais agentes da transformação sociocultural, para o historiador suíço, os atores históricos eram não muito mais do que elementos representativos de uma época. Ainda que fosse assim, Burckhardt considerava uma espécie de relação entre o indivíduo e a comunidade e que um grande homem pode romper as forças estáticas que mantém a coesão cultural. São estes homens que emprestam movimento à dinâmica da História contra formas antiquadas de existência. Qual a importância de Michelangelo e Rubens para a arte do Renascimento, qual a relevância de Péricles e Alcibíades para os desdobramentos políticos da segunda metade do século V a.C.? A reposta está mais nas bases epistêmicas do conhecimento produzido por Burckhardt, pois o ponto de inflexão não era a trajetória desses homens, tornados já discurso pela própria narrativa de um Tucídides ou de um Giorgio Vasari, mas sim dos nexos mais profundos entre a cultura, o estado e a religião (MURRAY, 1998).

Os jogos de escala e propostas metodológicas da Micro-História italiana de Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi e, em certo sentido, os estudos seminais de Edward P. Thompson, nos levam a outra forma de História Cultural que toma personagens pouco ou nada conhecidos e suas trajetórias como ponto de partida para descortinar elementos mais profundos das comunidades em que esses indivíduos estavam inseridos. Era a inversão qualitativa da história dos grandes processos e transformações para uma compreensão mais capilar das mudanças sociais que, talvez, a história de lentes mais abertas não conseguia capturar (LIMA, 2006). E como esse novo dicionário, esse ainda epíteto de uma idade da razão se coloca após pelo menos duzentos anos de crítica e reflexão dentro da Historiografia?

Do ponto de vista da organização, o Pequeno Dicionário está organizado em seis partes, a saber: Parte I – Exploradores do infinito; Parte II – Cometas e seu brilho: os líderes políticos; Parte III – Pontes com o divino; Parte IV – Os demiurgos; Parte V – Heróis da resistência; Parte VI – Senhores da guerra. Dentro de cada uma dessas partes foram inseridos os verbetes. No total, o Pequeno Dicionário conta com oitenta deles. Cada uma dessas entradas é acompanhada ainda de um subtítulo explicativo adscrito e um epíteto de cunho metafórico, por exemplo, Homero: Poeta grego século VIII a.C. – O educador da Hélade; Martinho Lutero: Teólogo alemão, 1483-1546 – O reformador; Átila: Chefe huno, c.400-454 – O flagelo de Deus, e assim por diante. Cada um dos verbetes, em suas respectivas páginas vem acompanhados de uma ilustração que faz menção a de cada uma das personagens, geralmente por meio de um busto. Este elemento reforça o caráter juvenil do Pequeno Dicionário, tornando-o mais leve para a leitura. Essa mesma função é feita pela janela curiosidades, que surge sempre ao final dos verbetes, com um fato pitoresco ou complementar sobre a trajetória ou sobre o contexto da época de cada personagem.

Como o seu próprio título indica, trata-se de um pequeno dicionário, e dizer que ao invés de Homero poderiam ter escolhido Heródoto, Jung ao invés de Freud ou ainda Ella Fitzgerald no lugar de Billie Holiday seria uma chateação indesculpável deste ou de qualquer outro leitor. O melhor a se fazer é deixar se levar na forma leve em que as linhas de vida são perfiladas no Pequeno Dicionário.

Já tendo me estendido em demasia sobre o iluminismo no início deste comentário não retornarei a essa temática dentro dos verbetes, mas sim, por meio de dois outros para tentar mostrar um pouco dos encaminhamentos dados pelos autores, seja quanto às suas formas ou conteúdos.

O verbete sobre o dramaturgo e cidadão ateniense Sófocles (p.228-234), um dos maiores nomes do teatro grego antigo, é iniciado com uma afirmação categórica de Aristóteles em sua Poética; a que punha Édipo Rei, tragédia encenada por volta de 427 a.C., como a mais perfeita obra deste gênero teatral. E é desta forma que os autores tentam explicar a obra de Sófocles, por meio da leitura de Aristóteles. O terror e a piedade, elementos da kathársis convergem numa estética da recepção característica dos helenos, que acentua o fenômeno de purificação, tida pelo filósofo como uma das funções da tragédia Ática. De uma leve guinada, estamos tomando conhecimento da vida não apenas de Sófocles, mas também de outros dramaturgos gregos e de seus próprios contextos criativos, suas lutas nas batalhas intermináveis da Guerra do Peloponeso e disputas simbólicas, no Teatro de Dioniso, na Atenas do século V a.C.

Mais adiante, é possível deter o seu tempo em muitos outros verbetes, mas por que não entender um pouco sobre uma das figuras mais celebradas, mal compreendidas e apropriadas pela cultura popular, o samurai lendário Miyamoto Musashi (p.431-435). Após brandirem suas espadas em uma enorme batalha, o clã Tokugawa iniciou um período de governo centralizador e rígido, que só seria encerrado com a transição e processo de ocidentalização do Japão na era Meiji. Entremeios, surgia a figura de Musashi, misto de ronin e filósofo de sua arte com a katana. De livro tornado célebre por Eiji Yoshikawa a releituras da figura do samurai feitas por cineastas japoneses como Akira Kurosawa, Takeshi Kitano, Yoji Iamada, Hiroshi Inagaki e Takashi Miike, podese ter um lampejo de como a figura do samurai se tornou não apenas um elemento cultural japonês. Tornado ainda mais acessível na prática do Akidô, mas cultuado mundialmente, figura do imaginário, às vezes bastante romantizado, em torno desses homens da guerra e de seus códigos de conduta e honra absolutamente inflexíveis.

Uma das poucas ressalvas que se pode fazer ao Pequeno Dicionário são atinentes à forma. Em se tratando de uma obra de projeto gráfico-editorial bastante moderno, poder-se-ia investir em indicações bibliográficas dentro de cada um dos verbetes, ainda que apenas uma ou duas referências fundamentais, isto faria a pesquisa mais dinâmica e intuitiva. Outro elemento que pode ser mencionado é quanto à taxonomia utilizada para traçar uma divisão entre as personagens do dicionário. Creio que há um nível significativo de interseção entre os líderes políticos e os senhores da guerra, por exemplo. É claro que sempre há algo de arbitrário nas escolhas e as classificações, que quase nunca são perfeitas. No limite, é apenas uma ênfase na abordagem que poderia alocar Adolf Hitler em líderes políticos e não em senhores da guerra. Na verdade, a notória e nefasta personagem do século XX faria justiça a essa “dupla-inserção”.

O interesse pela obra, pelo ser humano, pelo tempo. Qual o significado de uma vida? Qual o padrão de julgamento que os historiadores podem utilizar para fazer esse tipo de avaliação? Quiçá, chegue-se à conclusão transitória de que vida é compreendida de sentidos, geralmente expressos por uma narrativa mais ou menos coerente e orientada em torno da qual reside um projeto. Se no relato autobiográfico, como disse Pierre Bourdieu, há a busca de se “tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva”, há o risco de se mergulhar numa espécie de ilusão retórica. Se na análise do historiador as ilusões de um percurso autobiográfico podem ser desfeitas, desveladas, então qual a natureza da narrativa que se poderia criar para as grandes personagens? Em que nível a memória, a análise histórica, o viés metodológico e as orientações teóricas desaguam num texto inteligível em relação à constância nominal, ao indivíduo cujo nome próprio assegura a existência dessa personalidade no devir temporal? (BOURDIEU, 1996 p. 183-191).

Essas são perguntas muito caras aos historiadores e qualquer resposta demandaria muito mais espaço do que se poderia dispor nesse trabalho cujas pretensões são declaradamente limitadas. Uma das melhores respostas, no entanto, foi dada por um sociólogo. Ao tratar da vida de Wolfgang Amadeus Mozart, Norbert Elias em nenhum momento mostra desprezo ou pormenoriza os fatos casuísticos da atribulada vida desse notável músico. Entretanto e, sem dúvida alguma, a sinfonia de Elias começa a ganhar corpo aos ouvidos dos historiadores quando se mostra interessado em como “Mozart só emerge claramente como um ser humano quando seus desejos são considerados no contexto de seu tempo” (ELIAS, 1994, p. 15). Porque, segundo o sociólogo, as realizações e os fracassos de Mozart surgem em um contexto em que a dinâmica entre os conflitos de padrões de classe são cruciais para o entendimento da vida do músico, em talvez entendê-lo como um “burguês outsider a serviço da corte” (ELIAS, 1994, p. 16). Assim, Elias afirma que: “É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo [… e do] modelo das estruturas sociais da época, especialmente quando levam a diferenças de poder” (ELIAS, 1994, p. 18-19).

Por fim, creio que o leitor terá em mãos, no Pequeno dicionário de grandes personagens históricos um notável exemplo desse esforço, a saber: de não se perder na ilusão e nos gracejos vazios do pitoresco e do riso fácil, como em uma deliciosa comédia de costumes de Martins Penna, e de tentar dar conta dessas mudanças das estruturas sociais, do habitus, que condicionam as ações e reações dessas personagens nos mais diferentes contextos sociais em que viveram (BOURDIEU, 2009).

A obra em questão que atenderá a um amplo público, especialmente alunos de ensino médio, dos primeiros períodos de graduação e ao público leitor em geral. Representa esse esforço iluminista e convida a todos a mergulhar nas trajetórias e em tempos pretéritos. Assim, se pode ir muito além de ler o verbete como um fim em si, mas utilizá-lo como a possibilidade de ser uma janela para novas pesquisas, para a possibilidade de deixar a história orientar a vida, de se ampliar como ser humano e, a cada vez que se cruzar esse rio ter a sensação da renovação, de viver em um mundo mais consciente da sua existência pela do outro. (RÜSEN, 2001)

Referências

BENTLEY, Michael. Introduction: Approaches to modernity: Western historiography since the enlightenment. In: __________. (Ed.) A Companion to Historiography. London: Routledge, 1997.

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. (O original é de 1980).

__________. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. e AMADO, J. (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1998.

CHENG, Eileen Ka-May. Historiography: An introductory Guide. London: Continuum, 2012, p.29-

DARTON, Robert. A eclosão das Luzes. In: __________ e DUHAMEL, Olivier. (Orgs.) Democracia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, p. 21-36.

FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 61-89.

FONTANA, Josep. História: Análise do passado e projeto social. Bauru: EDUSC, 1998.

LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escala, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UNB, 2001. Vol. I

Guilherme Gomes Moerbeck – Professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ Pós-doutorando do LABECA/MAE-USP. E-mail: gmoerbeck@yahoo.com.br


SCHURSTER, Karl; SOUZA NETO, José Maria Gomes de; SILVA, Kalina Vanderlei (Orgs.). Pequeno dicionário de grandes personagens históricos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. Resenha de: MOERBECK, Guilherme Gomes. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 163- 170, 2017. Acessar publicação original [DR]

Dicionário Histórico do Vale do Paraíba Fluminense | R. B. R. M. Cavalcante, Neusa Fernandes, Rosilene de Cássia Coelho e Carlos Wehrs

De onde veio a elite senhorial brasileira? De Portugal, claro. Mas não de Lisboa. Veio, isso sim, em grande parte, do Norte de Portugal e das ilhas açorianas. Na maioria, os fundadores das famílias que constituíram a aristocracia rural, da qual resultaram alguns influentes políticos que ainda hoje se destacam no cenário nacional, chegaram aqui com uma mão na frente e outra atrás, em busca da chamada “árvore das patacas”. À custa de muito esforço, obtiveram sesmarias, escravizaram indígenas e tornaram-se latifundiários, escravocratas e capitalistas, ou seja, “homens bons” no século XVIII. Quase todos seriam pessoas de escassas letras.

Quem duvida que procure ler o Dicionário Histórico do Vale do Paraíba Fluminense, publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras (IHGV) e pela Prefeitura Municipal de Vassouras, com o apoio da Nova Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, organizado pelas historiadoras Irenilda R.B.R.M. Cavalcanti, Neusa Fernandes e Roselene de Cássia Coelho Martins, com a colaboração de mais 21 pesquisadores, dentre os quais se destacam Antonio Henrique Cunha Bueno e Carlos Eduardo Barata, autores do Dicionário das famílias brasileiras (São Paulo, Editora Ibero-Americana, 1999). Leia Mais

Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales / 1770-1870 | Javier Fernández Sebastián

O segundo tomo do Diccionario político y social del mundo iberoamericano – Conceptos pol íticos fundamentales, 1770-1870, é resultado de mais uma etapa exitosa do projeto Iberoamericano de História Conceitual, ou simplesmente Iberconceptos. Trata-se de uma obra coletiva original e de grande fôlego, com impactos relevantes no âmbito das vertentes historiográficas de enfoque atlântico. Seus 10 volumes reúnem 131 ensaios escritos por quase uma centena de autores provenientes da América Latina, dos EUA e da Europa, demonstrando, logo de início, a magnitude de tal obra.

Inspirado no dicionário histórico de léxicos políticos e sociais alemãoGeschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland (1972-1997), o Iberconceptos tornou-se uma referência internacional para os subsequentes projetos de história dos conceitos em perspectiva transnacional criados na Europa, na Índia e no Extremo Oriente. Sem, contudo, reproduzir ipsis litteris o modelo do dicionário de O. Brunner, W. Conze e R. Koselleck, e adotando uma perspectiva transnacional, oIberconceptos aborda o universo histórico-linguístico do espaço Atlântico ibérico na sua transição para a modernidade , entre fins do século XVIII e meados do século XIX, quando, em razão de um modo distinto de experimentar e conceber o tempo histórico, se construiu “un nuevo régimen de conceptualidad” das experiências políticas e sociais, como salienta seu mentor e coordenador geral, Javier Fernández Sebastián, na Introdução ao Diccionario (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 30).

Na primeira fase do projeto, o historiador espanhol, professor de História do Pensamento Político da Universidad del País Vasco, reuniu setenta e cinco especialistas em história de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, México, Peru, Portugal e Venezuela, dividindo-os em nove equipes nacionais responsáveis por elaborar ensaios para dez conjuntos de conceitos. Além dessas equipes, coordenadores distribuídos por conceito ficaram responsáveis por juntar os resultados dos nove estudos de caso nacionais sintetizando-os num ensaio de caráter transnacional. O tomo I (Diccionario político y social del mundo iberoamericano – La era de las revoluciones, 1750-1850), publicado em 2009 e atualmente disponível para download na página oficial do projeto (http://www.iberconceptos.net), compõe-se dos seguintes verbetes:América/americanos, cidadão/vecino, constituição, federação/federal/federalismo, história, liberal/liberalismo, nação, opinião pública, povo/povos e república/republicanismo . O critério de seleção se justifica em função da centralidade desses termos para o vocabulário político da época. Seu caráter fluido e polissêmico permitia a estruturação de performances discursivas e projetos políticos por vozes e protagonistas antagônicos. Dessa forma, podemos afirmar que o projeto não aspira oferecer definições unívocas e normativas dos termos selecionados, mas enfatizar o viés polêmico e controverso dos usos linguísticos aparecidos na trajetória histórica dos conceitos. Por fim, oIberconceptos I organiza-se em volume único de mais de 1400 páginas, em que cada conceito representa uma seção do Diccionario , na qual um ensaio introdutório de caráter transversal e comparativo é seguido por outros nove estudos de caso nacionais.

Iberconceptos II traz algumas mudanças importantes em relação ao tomo anterior. A primeira delas se refere ao formato. Organizados não mais num livro único, nesse segundo tomo outros dez conceitos foram selecionados obedecendo aos mesmos critérios acima mencionados, mas distribuídos por volumes. São eles:civilização, democracia, Estado, independência, liberdade, ordem, partido, pátria, revolução e soberania . Como antes, para cada conceito há um estudo de caráter transversal de autoria dos coordenadores que apresentam uma síntese dos resultados das pesquisas de corte nacional. Não obstante, nesse último tomo noventa e oito autores dividiram o trabalho de ampliação da escala de investigação, chegado a uma dúzia de países e territórios, assim distribuídos: Argentina/Rio da Prata, Brasil, Caribe/Antilhas hispânicas, América Central, Chile, Colômbia/Nova Granada, Espanha, México/Nova Espanha, Peru, Portugal, Uruguai/Banda Oriental, Venezuela . Como se pode notar, além da inserção do Uruguai ao sul do continente e das áreas banhadas pelo mar do Caribe, incluindo o istmo Centro Americano e as Antilhas hispânicas, percebe-se a dupla denominação tradicional (Vice-Reino) e nacional para os territórios da Argentina, Colômbia e México. Isso reforça a ideia tão cara ao projeto, de que, embora por razões operativas um dos eixos doDiccionario responda a uma lógica territorial, o estudo da história política e intelectual em qualquer caso não coincide estritamente com os atuais marcos nacionais. Além disso, o Iberconceptos vem demonstrando o potencial da história dos conceitos no lidar com temas que estão para além dos limites do Estado-nação. Inscreve-se definitivamente entre as tendências historiográficas que se pretendem comparativas, conectadas ou globais, como a chamada “História Atlântica”, cujas múltiplas interconexões devem ser pensadas num sistema plural abarcando não somente as regiões anglófonas e francófonas, mas também hispânicas e lusas.

Quanto às mudanças ocorridas entre os dois tomos, um último aspecto a ser sublinhado é o ajuste no recorte temporal do projeto. Conforme notamos pelos subtítulos dosDiccionarios houve um deslocamento do marco 1750-1850 para 1770-1870. Fernández Sebastián justifica que havia uma certa insatisfação entre vários participantes do projeto com o ponto de partida em 1750, visto que, em geral, as transformações político-conceituais no mundo ibérico só chegaram a adquirir maior intensidade nas últimas três décadas do setecentos. Grosso modo , o novo marco inicial coincide com o momento auge da versão ibérica da Ilustração, bem como as chamadas reformas borbônicas e pombalinas, respectivamente, nas monarquias intercontinentais hispânica e lusa. Por outro lado, o encerramento da pesquisa em 1850 deixava em aberto processos cujo desenvolvimento pleno só ocorreria anos depois, com a implementação de novas instituições liberais e republicanas na maioria dos Estados-nações surgidos após a desintegração de ambos os impérios (DPSMI, Tomo II, Vol. 1, p. 32).

A leitura dos verbetes do novo Diccionario deixa claro que ao longo dessa periodização secular (1770-1870), os ritmos de mutação conceitual não chegavam a coincidir em todos os territórios. Contudo, não há como negar que determinados acontecimentos e conjunturas específicas (a exemplo da crise aberta pela invasão napoleônica na península ibérica em 1807/1808, ou os movimentos constitucionalistas do início da década de 1820, decisivos para as independências), quando observados em conjunto, evidenciam que entre os coevos despontava uma nova consciência temporal que ensejava redescrições conceituais “futurocêntricas”, ainda que o horizonte de expectativas oscilasse entre perspectivas positivas e negativas. Nesse sentido, Guillermo Zermeño observa, na síntese transversal do conceito revolução,que depois de 1820 consolidou-se a ideia de “revolución como cambio de orden irreversible” ao mesmo tempo em que “el futuro se vulve incierto e irreconocible”. Foi a partir desse momento, segundo Zermeño que emergiu uma filosofia do progresso, embora os agentes políticos da época buscassem sempre – sem êxito – encerrar o ciclo de revoluções, que mais parecia um espiral sem solução definitiva (DPSMI , Tomo II, Vol. 9, p. 46).

Sem sombra de dúvidas, as independências e o vocabulário constitucional a elas associado foram um divisor de águas do ponto de vista das mudanças políticas e conceituais. Como destaca Fernández Sebastián, o Diccionario reforça a tese de que, em poucas décadas, a semântica política de toda a área do Atlântico ibérico ingressou em profundos processos metamórficos. Porém, alerta que interpretar esse período a partir de categorias dicotômicas como tradicional x moderno requer cautela. As concepções e práticas surgidas do “turbilhão revolucionário” (como alguns contemporâneos costumavam chamar) não eliminaram por completo uma série de instituições e marcos interpretativos vigentes. Por mais significativo que fossem as transformações no domínio simbólico daquelas sociedades, cujas raízes culturais e experiências históricas eram em boa medida familiares e compartilhadas, a substituição radical de um universo de representações por outro não ocorreria do dia para noite. Sendo assim, Fernández Sebastián sugere que, para pensar o intervalo de tempo que vai de 1770 a 1870, talvez os historiadores devessem substituir a palavra “revolução” como signo de uma época de rupturas, por “transição”, pois no que concerne aos fenômenos político-semânticos, estes seriam processos complexos de situações híbridas de transição. Nas palavras do próprio autor, “suponen no sólo coexistencia y solapamiento entre ‘lo viejo’ y ‘lo nuevo’, sino algo más importante, paradójico y sutil: procesos complejos a través de los cuales la tradición engendra la novedad” (DPSMI, Tomo II, Vol. 1, p. 40).

Isso é o que ocorre, por exemplo, com o conceito de Estado . Annick Lempérière, no seu ensaio transversal, explica que foi no âmbito da crise decorrente das invasões napoleônicas à península ibérica e das revoluções de independência, que surgem nos mundos iberoamericanos novas concepções acerca do Estado. Segundo a autora, no caso hispânico, a vacatio regis foi condição essencial para que o Estado deixasse de ser visto como objeto de propriedade do príncipe e retornasse à condição de sujeito com direitos e vontade própria. Não obstante, a representação metafórica docorpo , dominante no Antigo Regime, na qual o príncipe era a cabeça e os vassalos em seus distintos estados e estamentos os membros, não sofreu de súbito um abandono; ao contrário, constituiu-se um importante legado para a nova era política (DPSMI , Tomo II, Vol. 3, p. 26). O Estado que se transforma em sujeito (ou seja, que existe sem o príncipe, contudo, que tem poder), projeta uma concepção abstrata de que qualquer comunidade política possa atuar e defender-se no âmbito interestatal frente a outros Estados. É sob esta noção que se operará um conceito pactista de retroversão da soberania aos pueblos ,fundando aquilo que Lempérièrechama de “concepción federalista hispanoamericana del estado”, motor da fragmentação da monarquia espanhola e da formação de novas entidades nacionais (DPSMI , Tomo II, Vol. 3, p. 30).

Assim sendo, chegamos a uma importante questão abordada por Javier Fernández Sebastián na Introdução, e sobre a qual o Diccionario como um todo contribui para pensar: de que forma teria o mundo iberoamericano colaborado para a construção da modernidade? Esta obedeceria a um padrão único de desenvolvimento, ou não? Desde início do Oitocentos, consagrou-se na historiografia a ideia de uma modernidade ideal e normativa centrada nas trajetórias britânicas, francesa e norteamericana, que haveria funcionado como uma espécie de farol para os habitantes das demais regiões do globo, incluindo-se os ibéricos tidos como uma espécie de “não contemporâneos” do avanço civilizacional produzido naqueles países. Assim, supostamente proviria daqueles centros um único repertório conceitual, político e constitucional capaz de produzir em larga escala as transformações dos últimos séculos. Essa visão historiográfica, explica Fernández Sebastián, possuía raízes históricas nas disputas teológico-políticas e nas guerras de religião entre católicos e protestantes desde o século XVI, quando não só a Europa se dividiu em tais disputas como elas se prolongaram para a América. Quando em fins do século XVIII e início do XIX a hegemonia protestante foi reforçada discursivamente pelos ilustres representantes das Luzes, o mundo ibérico se viu excluído do cânone cultural (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 49). Os estereótipos negativos acumulados contra os espanhóis e portugueses acabaram sendo reforçados, em parte, por suas próprias elites político-intelectuais quando estas se defrontaram com a tarefa de “reformar” o império ou fazer “progredir” a nação; ou pelos colonos americanos, que em certos contextos das lutas de emancipação não poupariam críticas à Espanha e Portugal como incapazes de imitar o modelo do “clube das nações civilizadas”, como demonstra João Feres Jr. no ensaio transversal sobre o conceito decivilização (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 98).

Para Fernández Sebastián, não há dúvidas da contribuição do Atlântico Ibérico na construção da modernidade, entendida em linhas gerais como um novo marco simbólico e um novo vínculo social, uma nova legitimidade política, bem como uma nova maneira de vivenciar o tempo histórico (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 30). Compartilhava com os demais quadrantes do mundo ocidental uma espécie de “globalización/atlantizaciónconceptual”, operada mediante um intenso tráfico cultural, de conceitos e experiências políticas, cujas dimensões amplas e multilateral nos permite considerar seu período de transformações como o de autênticasrevoluções atlânticas . Nesse sentido, afirma:

A despecho de tales barreras y estereotipos, todo indica que en la segunda mitad del setecientos el tráfico de lenguajes e ideas se intensificó enormemente en las dos orillas del Atlántico. A este respecto, es oportuno subrayar que el sistema atlántico no es simplemente un plexo de rutas comerciales oceánicas para la circulación de bienes y de personas: junto a los seres humanos y a las mercancías ordinarias, circularon – con especial intensidad durante la era de las revoluciones – muchos libros, periódicos e impresos de todo tipo; y con ellos, argumentos, noticias y conceptos (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, pp. 49-50).

A nosso ver, aqui reside um dos pontos fortes do Iberconceptos em geral, qual seja: sua compreensão do sistema atlântico como um laboratório conceitual de interações recíprocas, sobretudo a partir das últimas três décadas do setecentos e intensificado nas primeiras do Oitocentos com a difusão do vocabulário político-constitucional alimentado pela crise das monarquias ibéricas e os subsequentes movimentos de independência. Nesse contexto, os processos de circulação de ideias e traduções de textos políticos, longe de resultar em alguma forma de homogeneização e unificação semântica dos discursos políticos, na verdade produziu uma diversificação de sentidos que buscavam responder a situações comunicativas variadas e a desafios específicos (DPSMI , Tomo II, Vol. 1, p. 53). Sendo assim, mais do que pretender esgotar o léxico do mundo iberoamericano entre 1770 e 1870, a base criada pelos Diccionarios (tomos I e II) garante um solo fértil para projetos futuros que busque enveredar por unidades de análise cada vez mais amplas, seja no sentido espacial, social ou linguístico. Nesse último caso, as análises de campos semânticos permeados pelo cruzamento de um conjunto amplo de conceitos, metáforas, linguagens e discursos podem se valer do caminho aberto por este projeto.

Rafael Fanni – Universidade de São Paulo, São Paulo – SP, Brasil. E-mail: rafaelfanni@gmail.com


FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (Dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales/ Universidad del País Vasco, 2014. Tomo II, en 10 vols. Resenha de: FANNI, Rafael. Iberconceptos II, 1770-1870: tempos e espaços da “atlantização” dos conceitos. Almanack, Guarulhos, n.10, p. 502-506, maio/ago., 2015.

Acessar publicação original [DR]

Diccionario político y social del mundo iberoamericano. Conceptos políticos fundamentales/1770-1870 | Javier Sebastián Fernández

El Diccionario político y social del mundo iberoamericano II. Conceptos políticos fundamentales, 1770-1870, o Iberconceptos, es resultado de la ambiciosa labor emprendida por el Proyecto Iberoamericano de Historia Conceptual, más conocido por su abreviación Iberconceptos. Dirigido por Javier Fernández Sebastián. El colectivo, integrado por más de un centenar de académicos, presenta los resultados de sus investigaciones en el segundo tomo del lexicón. Inspirado esencialmente en el marco teórico y metodológico propuesto por la escuela de Historia de los Conceptos, cuyos orígenes encontramos en el trabajo de Reinhart Koselleck, Otto Brunner y Werner Conze, el Diccionario es la más clara manifestación de la relevancia que ha cobrado en tiempos recientes la Begriffsgeschichte o historia conceptual en los países de hablas española y portuguesa en América y Europa. Leia Mais

Il Dizionario delle scienze e delle tecniche di Grecia e Roma – COLACE et al (RA)

COLACE, P. Radici; MEDAGLIA, S. M.; ROSSETTI, L.; SCONOCCHIA, S. (Ed.). Il Dizionario delle scienze e delle tecniche di Grecia e Roma, 2 vols. Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina. Pisa-Roma: Fabrizio Serra, 2010. Resenha de: D’ALESSANDRO, Tonia. Revista Archai, Brasília, n.9, p.141-151, jul., 2012.

Quando, ao dirigir o olhar para a antiguidade, se fala de ciência e de técnica e se procura configurar as suas dinâmicas de desenvolvimento ou explicitar as suas conquistas mais significativas, respeitando um modelo hermenêutico que mantém viva a separação das ciências da natureza das ciências humanas, em geral, a atenção foca-se, de forma quase exclusiva, em poucas disciplinas, as que fazem rigorosamente parte dos parâmetros convencionais do saber positivo. A tal propósito, não se pode deixar de recordar o já distante e poderoso Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines de Daremberg e Saglio (Paris, 1877-1919), cujo corte marcadamente positivista induz os autores a dar relevo apenas ao que responde aos requisitos de uma investigação pura e abstratamente ligada às ‘Ciências da natureza’; noções, mecanismos, definições, termos técnicos, extrapolados do contexto geral em que se encontram inseridos, são analisados com extrema precisão, mas são apenas fragmentos ou restos sem sentido de um saber mais vasto e articulado, que poderiam ter sido iluminados, mas de cujo contexto não há, contudo, nenhum vestígio. Mais próximo de nós é o The Encyclopedia of Ancient Natural Scientists. The Greek Tradition and its many heirs (P. T. Keyser e G. L. Irby-Massie eds., Londres, 2008), que usa um elenco, alfabeticamente disposto, de autores que se ocuparam de ciência; não se dá nenhuma atenção àquele background mínimo feito de interesses múltiplos, hábitos, crenças, usos, questões teóricas, disciplinas pouco definidas que dialogam entre si, necessário para um tratamento orgânico e coerente do que era a ciência e do que representava na antiguidade. No que diz respeito especificamente à tecnologia, parte-se do trabalho pioneiro de R. J. Forbes, Studies in ancient technology (Leiden, 1955-1964) até ao interessante Oxford Handbook of Engineering and Technology in the Classical World (J. P. Oleson ed., Oxford, 2008). Com isto, não se pretende absolutamente desvalorizar o extraordinário trabalho de escavação de especialistas autorais em cada âmbito da ciência antiga, quer-se só realçar que considerar um facto assente uma separação rígida de Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften e ter em conta apenas a história das ciências naturais, as técnicas, os artefactos, os instrumentos que Gregos e Romanos aperfeiçoaram, significa não conseguir penetrar no sentido dessa ciência, não transpor o limite da mera, acrítica, recolha e organização cronológica de eventos, dados, autores; significa renunciar a entrar na mentalidade destes povos, nos seus modos de ver e entender o mundo e, enfim, renunciar a apreender “a importância central que a ciência e a técnica tiveram”nas civilizações clássicas.

No Dizionario delle scienze e delle tecniche di Grecia e Roma, coligido por Paola Radici Colace (Univ. de Messina), com Silvio M. Medaglia (Univ. de Salerno), Livio Rossetti (Univ. de Perúgia), Sergio Sconocchia (Univ. de Trieste), a perspetiva e os objetivos mudam e a história das ciências entrelaça-se com a história humana. Esta obra imponente, a meio caminho entre o dicionário e a enciclopédia, chega ao leitor como um quid novi no panorama historiográfico nacional e internacional dos estudos científicos sobre o mundo antigo, quer porque o vê sob vários aspetos quer, principalmente, pela estrutura metodológica da obra, ou seja, pela superação daquela característica sectorial, unilateral e histórico-evolucionista, que desde sempre contradistinguiu o modo como se via o pensamento técnico-científico grego e romano. Os estudiosos que idearam o projeto e que intervieram diretamente na redação de muitos lemas, conseguiram compor, com base numa recolha considerável de informações sobre autores, textos, práticas, processos produtivos, um quadro sinóptico, criticamente fundado, do caminho percorrido pelas ciências e pelas técnicas nas sociedades antigas e do valor que tiveram nelas, sem descurar a interação com o húmus intelectual, cultural, sociopolítico e económico que, nesses séculos, as sustentou. Eles não se limitaram a organizar o material visando a mera recognição dos protagonistas da ciência antiga ou as invenções extraordinárias que o seu génio produziu, nem dirigiram a atenção somente para a aparição de modelos hermenêuticos do mundo natural e humano canonicamente reconhecidos como pertencentes ao território das ciências positivas. Junto a notícias sobre a vida e as obras de personagens famosos ou desconhecidos à maioria do público, a um exame das problemáticas e dos tópicos metodológicos que caracterizam a sua investigação, a uma análise dos instrumentos e dos conceitos, encontram-se no Dizionario pesquisas minuciosas sobre a cultura popular, sobre a arte, sobre a literatura, disciplinas que se intersectam na antiguidade, quer com os chamados saberes técnico-científicos quer com aquele background feito também de superstições, crenças e práticas religiosas de que se alimentavam os Gregos e os Latinos (vejam-se, por exemplo, as entradas Mântica, pp. 656-60, Sonho revelador, pp. 931-3, Pseudociência e crenças, pp. 881-3, feitas por F. Cuzari, ou então, Astrolatria, pp. 204-7, ao cuidado de C. Lupini). Folheando as páginas densas dos dois volumes que constituem o Dizionario, encontramo-nos face a uma exploração a 360 graus da ciência antiga, em que cada lema – no interior do qual se aprecia o trabalho preciso, meticuloso, de análise lexical feito diretamente a partir das fontes – que faça referência a um autor, a uma disciplina, a um instrumento ou a uma técnica produtiva, inserido numa sequência alfabética, acompanhado de notas e de uma bibliografia peculiar, se torna paradigmaticamente representativo dos esforços feitos pelos antigos para explicar racional e globalmente o mundo da physis e de quem a habitava e para poder, se for o caso, intervir sobre ele.

A aspiração a permanecer fiéis ao espírito, à estrutura e às intenções da investigação dos Gregos e dos Romanos conduziu os autores do Dizionario à recusa a encerrar em âmbitos disciplinares apertados as múltiplas formas em que a ciência deles  se declina e a isolá-la, ao retirá-la daquele grande território a que pertence e de onde se origina: o da experiência vivida. Inúmeras disciplinas nasceram, como sabemos, das exigências da realidade quotidiana destes povos, uma realidade que abrange  ocupações ligadas à terra, à navegação, ao cuidado e à criação de animais, à identificação dos segredos das plantas, à procura de soluções para reduzir ou eliminar os sofrimentos, fazer frente às guerras ou às calamidades naturais, mas também ao cultivo do que pode tranquilizar e alimentar a mente: poesia, música e filosofia. Por conseguinte, no Dizionario, a consciência da impossibilidade de reduzir a uma só dimensão qualquer discurso sobre a ciência e sobre a técnica antigas levou os redatores a alargar o espectro das áreas disciplinares comummente tomadas em consideração. Estas tornam-se vinte e nove precisamente pela inclusão de assuntos que, em geral, se inserem no campo das ‘ciências humanas’ e de temas que dizem respeito a agricultura, agrimensura, alimentação, arquitetura, cosmética, fisionómica,  geografia, hidráulica, mineralogia, náutica, arte bélica, pneumática, toxicologia, veterinária, sectores aos quais se atribui dignidade équa aos que sempre a tiveram, tais como, astrologia, botânica, cosmologia, direito, física, lógica, matemática, mecânica, medicina, música, ótica e zoologia. Por um lado,  como se pode facilmente verificar, dedica-se atenção a todos aqueles ‘saberes’ que derivam da especialização e diferenciação progressiva das technai, isto é, daquelas artes que, partindo de um uso empírico e utilitarista, com o tempo atingirão um estatuto pleno de cientificidade, serão ensinadas e se tornarão objeto de tratamento científico; por outro  lado, não se negligenciam aqueles outros ‘saberes’ normalmente pouco investigados pelos historiadores da ciência grega e romana, considerados não nobres, ou, como prefere dizer Rossetti, insensíveis “a níveis altos de racionalização”. Trata-se especificamente  daquele conjunto de conhecimentos, de habilidades profundamente ancoradas na vida quotidiana,  que nunca atingirão o estatuto de ciência e que  eram objeto de trabalhos práticos, de manuais, de prontuários, com objetivo didático ou divulgativo, transmitidos de geração em geração, sobre os quais achamos notícias também nas obras dos poetas e dos trágicos, ou então, num tratadozito qualquer  (que com muita sorte chegou até nós inteiro) ou  em compilações tardias. É exemplar o caso dos  Geoponica – uma espécie de “suma do pensamento agronómico antigo”–, em vinte livros, cuja primeira redação, atribuível a Cassiano Basso, deveria ser  colocada por volta do século vi (E. Lelli, p. 586). Uma empresa editorial de tão vastas proporções e de tão profundo conteúdo científico  certamente não se poderia realizar a não ser através do contributo de um válido e numeroso grupo de  investigação constituído por peritos em sectores  específicos do pensamento científico antigo. O risco de uma deformidade na redação das entradas, no  que concerne ao conteúdo e ao método, presente precisamente pelo estilo diferente e pelo campo  diversificado de interesses de cada colaborador, foi eliminado pela sapiente direção dos organizadores que, sem sacrificar a sensibilidade científica de cada um deles, conseguiram salvaguardar a coerência  e a unidade da obra. Isso revela-se com grande  evidência na construção equilibrada dos lemas e na convergência do trabalho de todos para um projeto inspirador comum: dar uma imagem da ciência e da técnica grega e romana, ao mesmo tempo histórica e crítica, aderente à mentalidade e à vida dos antigos.

Num projeto tão ambicioso, que com as suas 421 entradas promete um tratamento completo  dos aspetos que conotam as técnicas e as ciências antigas e dos seus resultados, sente-se contudo a ausência de fichas, que talvez encontrassem um lugar preciso no Dizionario, dedicadas a noções tais como arte, corpo, techne, cor. Quanto à arte, se é verdade que se trata amplamente da arquitetura e que se faz um pequeníssimo aceno à pintura, não se menciona de todo a escultura, que na antiguidade tem uma relação íntima com a matemática, a anatomia, as técnicas de manufactura dos materiais, etc. Algumas indicações interessantes sobre as metodologias de pesquisa dos antigos poderia ter sido obtida de lemas que não foram tidos em conta, tais como  experimento/experimental, dado que uma certa forma de experimentação, mesmo que ocasional, se encontra  na ciência grega e romana; encontramos vestígios dela na medicina já no Corpus Hippocraticum, na física, na ótica, na pneumática e em outras disciplinas. Maravilha-nos também, face a uma vasta recognição de máquinas, mecanismos e instrumentos, o silêncio sobre o calculador de Antikyithera (cuja descoberta se cita demasiado rapidamente no ensaio de V. Tavernese, Fortuna e valutazioni della scienza e della tecnica antiche nel pensiero medioevale, moderno e contemporaneo [Fortuna e avalia ções da ciência e da técnica antigas no pensamento medieval, moderno e contemporâneo ], p. 1338) e sobre o  mesolábio de Eratóstenes. Analogamente, um tratamento mais amplo dos cientistas de relevo indubitável para o crescimento de algumas ciências particulares, tais como, só a título de exemplo, Amónio de Alexandria, Antígono de Niceia, Astrâmpsico, Porfírio de Tiro, Trasilo de Alexandria, teria maiormente satisfeito a curiositas que impele o leitor para o assunto declarado, isto é, ciência e técnica.

Escolher a organização por lemas torna certamente os volumes fáceis e rápidos de consultar e distribuí-los por estudiosos de competência  comprovada é garantia de exame preciso e aprofundado do seu conteúdo. Todavia, a grande margem de ação deixada aos autores de cada entrada, que em geral é uma ótima pré-condição para enfrentar qualquer pesquisa, revela-se por vezes uma faca  de dois gumes. Se considerarmos, por exemplo, a  entrada Medicina,  quem escreve, antes de entrar  no busílis da questão, detém-se por algum tempo em problemáticas de carácter geral, certamente  interessantes e derivadas de estudos cuidadosos e profundos, mas que, na verdade, não têm grande  relevância para o assunto tratado. Começa-se com um excurso sobre a cultura latina, que se formou  em modelos gregos, continua-se com um elenco da documentação relativa a algumas das disciplinas mais significativas  (astronomia, astrologia, etnografia)  para tentar provar a interconexão existente, também neste caso, entre a era grega e a latina. Uma ligação que se torna mais evidente em âmbito médico. Estaríamos, portanto, à espera de um exame bem mais aprofundado e alargado das características peculiares da iatrich è techne, sobretudo a partir das suas origens helenistas. Mas aqui a análise apresenta-se pouco penetrante, limitando-se o colaborador a uma escassa apresentação de alguns aspetos da medicina grega. Após ter realçado as relações de dependência da medicina egípcia e a sua autonomia de quaisquer elementos mágico-religiosos, ele esboça alguns  aspetos gerais da medicina hipocrática, evidenciando nela o nascimento de algumas especializações  (fisiologia, anatomia, ginecologia). Pelo contrário, com mais amplidão e de maneira precisa e bem  circunstanciada, o autor fala da medicina romana – considerada quase um decalque da grega, pelo menos até ao século i – e dos seus caracteres essenciais, chamando a atenção não só para a formação da  linguagem m é dica, em grande parte vestígio da helenista e, por isso, “ponto de vista privilegiado para um estudo da língua latina”(p. 678), mas também para os contributos doutrinais e críticos de Celso, Escribónio Largo e para a centralidade da obra de Galeno, promotor e defensor da doutrina hipocrática. A ficha está cheia de reenvios para as entradas (cerca de 46) do Dizionario em que se trata mais amplamente dos protagonistas da medicina greco-romana e de algumas noções específicas que constituem o seu esqueleto. Vejam-se, por exemplo, as entradas Anatomia  (pp. 109-12),  Fisiologia  (pp. 544-8),  Terapêutica médica e veterinária (S. Sconocchia, V. Scipinotti, pp. 973-6), Cirurgia (S. Sconocchia, D. Monacchini, pp. 304-12), que englobam as subsecções: C. celsiana, Gli interventi chirurgici, Un intervento di litotomia secondo la descrizione di Celso [ C. Celsiana, As intervenções cirúrgicas, Uma intervenção de litotomia segundo a descrição de Celso ]. Também se poderia citar a  Veterinária (V. Scipinotti, pp. 996-1007), considerada um autêntico ensaio sobre o assunto. Em cada uma destas entradas, aprecia-se especialmente a tentativa, bem conseguida, de conjugar a recognição de dados, autores e textos  com relevos de tipo metodológico, histórico e ético. Todavia, convém dizer que uma análise detalhada e maiormente incisiva teria servido certamente para melhorar as fichas dedicadas a Díocles de Caristo (F. Fiorucci, pp. 373-4), Herófilo (refiro-me, em especial, ao pequeníssimo § 3., s. v. medicina, realizado por D. Crismani, pp. 455-6), e mesmo a Galeno (D. Crismani, D. Monacchini, pp. 554-6), pois algumas das conquistas metodológicas, teóricas e práticas de tais médicos infelizmente ficaram embotadas. Sobre as pesquisas destes médicos recebemos claramente informações maiores do que as que aparecem nas fichas que lhes são destinadas, ao lermos outras  entradas para as quais somos conduzidos seguindo as indicações do Glossário, o qual cumpre plenamente a tarefa de exaltar os nexos entre os diversos campos de investigação e a de enfrentar cada assunto ou noção de maneira transversal. Apesar disso, alguns temas são só esboçados, outros são ignorados.  Refiro-me, sobretudo, às investigações levadas a  cabo tanto por Herófilo quanto por Díocles sobre  as perturbações mentais 1 e sobre os sonhos 2, além de sobre as inovações que ambos introduziram no campo do vocabulário médico e sobre os protocolos diagnósticos, prognósticos e terapêuticos que  adoptaram. No que diz respeito a Galeno, segundo as finalidades do Dizionario, talvez fosse oportuno evidenciar as íntimas inter-relações entre diet ética, ética e política. Mas só pequenas referências, quase de fugida, se fazem à psicologia e à psicopatologia e não se fala absolutamente do que Galeno sabia de lógica, de geometria e de arte 3. Mais ainda: apesar de se tratar com amplidão das pesquisas e das ‘demonstrações’ efetuadas pelo médico de Pérgamo no campo da anatomia e da fisiologia normais e patológicas e de se voltar bastantes vezes à prática da dissecação e da vivissecção, não se dá o merecido relevo àquele método de investigação, na verdade introduzido  por Herófilo – como bem evidenciou L. Radici (s. v. Herófilo de Calcedónia, §. 2, pp. 454-5) –, fundado em procedimentos baseados num experimentalismo de tipo quantitativo. Um tema, este, que galvanizou o interesse de numerosos estudiosos a partir de  Claude Bernard que, na sua Introduction à l’ étude de la médecine expérimentale (Paris, 1865), considera Galeno o pai “de la méthode expérimentale ”, dando razões para esse atributo. Também se poderiam  mencionar os estudos de J. S. Wilkie, Galen’s experiments and the origin of the experimental method (D. J. Furley e J. S. Wilkie, Galen on respiration and arteries, Princeton, 1984, pp. 47-57), de A. Debru (L’ éxperimentation chez Galien, W. Haase ed., ANRW, vol. 37.2, Berlin, 1993, pp. 1718-56) ou de M. D. Grmek (Il calderone di Medea. La sperimentazione  sul vivente nell’antichità, Bari, 1996).

A presença das chamadas  defaillances  não  invalida, todavia, o valor e o conteúdo científico  do Dizionario porque, consultando as entradas, na grande maioria dos casos se fica positivamente maravilhados pela riqueza e qualidade das informações, pela subtileza das análises e da abordagem metodológica. Normalmente, os assuntos examinados são tratados de forma meticulosa, as interpretações são passadas pelo crivo crítico e os instrumentos filológicos são sabiamente empregues para desambiguar dados, formas de saber e atividades, ou para fazer luz sobre os efetivos contributos teóricos e/ou práticos de alguns autores aquando da afirmação e do progresso também daquelas ciências não codificadas que começaram a desenhar-se como tais no denso tecido da cultura antiga.

Particularmente apreciável, do ponto de vista estratégico para a composição e distribuição dos  conteúdos, é o escamotage dos frequentes reenvios, técnica feliz, graças à qual o material pesquisado é retirado do seu isolamento, construindo-se uma espécie de trama que liga os assuntos dotando-os de unidade e continuidade e, ao mesmo tempo,  aumentando de maneira exponencial o acervo de  informações disponíveis para quem quer aprofundar ou clarificar os seus aspetos específicos. Em  tal sentido, poder-se-ia dizer, com razão, que cada página do Dizionario pretende constituir uma espécie de mapa intertextual que o próprio leitor desenha: este não recebe passivamente as informações, mas pode (servindo-se também do guia imprescindível e profícuo oferecido pelo Glossário), em função dos próprios interesses ou das curiosidades que quer  satisfazer, dirigir a investigação e decidir das etapas do seu percurso de pesquisa. Pensemos na entrada Matemática (F. Marcacci, pp. 662-5), onde se percebe realmente o proveito que se obtém em termos de profundidade de análise, de unidade conceptual,  até de originalidade dos conteúdos, da organização reticular de que falámos. Ao delinear e discutir  as características gerais de tal disciplina, as suas  distinções internas e diferenciações progressivas,  as relações que possui com a filosofia, os âmbitos de pesquisa que a distinguem, os problemas ligados à periodização, a autora frequentemente insere  links para outros lemas em que se trata mais clara  e pormenorizadamente de filósofos e cientistas,  noções, conceitos, disciplinas, temas que têm a  ver com a matéria examinada. Obtém-se no conjunto um quadro muito articulado e analítico dos  desenvolvimentos do saber geométrico e aritmético e desenvolve-se no leitor a ideia de uma comunhão específica e interdisciplinaridade dos saberes.

Portanto, são duas as vantagens que a escolha organizativa inteligente dos links oferece: uma de natureza epistemológica, dado fornecer grandes  quantidades de notícias e conhecimentos, a outra axiológica, pois se finalizam todos os discursos à  definição, compreensão e conservação não fragmentária de um património cultural de inestimável valor.

São exemplares, em relação a este último aspeto, algumas macro-entradas, autênticos ensaios de dez/vinte ou mais páginas, não destituídas de valor pelo modo como se recuperam fontes descuradas ou não adequadamente interpretadas da literatura de sector, também ela em mais do que uma ocasião  amplamente discutida, de onde a abertura de perspetivas hermenêuticas insondadas. Por exemplo, tais são as entradas:  Astrologia, que se completa com  as correlativas  A. literatura da Grécia e de Roma,  A. metáforas, A. compêndios e compilações, A. manuscritos, A. léxico. (P. Radici Colace, pp. 207-20), Astronomia (C. Santini, pp. 220-38), Cosmologia (L. Rossetti, pp. 330-56), Direito (G. Crifò e L. Rossetti, pp. 376-95), Geografia (P. Janni, pp. 558-78), Caça (O. Longo, pp. 263-77), Construção Pública nas suas diversas especifica ções, C. comemorativa, C. comercial, C. privada, C. pública, C. desportiva e recreativa (P. Radici Colace, S. Pirrotti, pp. 406-526), Ó tica (S. M. Medaglia, pp. 752-62).

Assim, lendo, por exemplo, a entrada Execução musical (S. Grandolini, pp. 457-70), inicia-se uma viagem ideal que percorre a história da poética antiga a partir de Homero, em que, com abundância de pormenores, com uma análise minuciosa apoiada nas fontes, a autora nos informa da idade, do sexo dos cantores, dos lugares, da ocasião, da decoração cenográfica, da situação histórica, do roupeiro, até das diatribes entre poetas; além do mais, liga a  mudança de gosto musical e as inovações métricas e rítmicas à invenção de novos instrumentos de  acompanhamento ou à modificação dos velhos.

Por conseguinte, não é um mero elenco de teorias, instrumentos, descobertas, mas sim um exame antropológico, crítico e histórico onde teorias, instrumentos e descobertas ganham sentido e finalidade. Um interesse análogo suscita a entrada Náutica (P. Janni, pp. 715-28), um campo pouco conhecido e explorado pelos cultores da tradição clássica. Graças a uma recognição precisa dos subsídios que provêm das descobertas arqueológicas, da iconografia, das fontes literárias, da fotografia subaquática, etc.,  somos projetados para o mundo fascinante dos métodos de construção das embarcações, mas também para o das viagens, da geografia, da política, da  guerra, da economia, para ver como estes âmbitos estão inseparavelmente ligados e como cada um  deles pode apresentar material idóneo para fazer  luz sobre os outros.

Agrada-nos também a já citada entrada  Astronomia (C. Santini, pp. 220-37), particularmente atrativa pela riqueza de temas, teorias, personagens, textos analisados, onde se v ê claramente o conhecimento do autor de literatura técnico-científica grega e sobretudo latina. Com mão certa, e prestando  a devida atenção às fontes literárias, filosóficas,  científicas, às ligações entre os conhecimentos  próprios do mundo greco-latino e os dos outros  povos, Santini reconstrói histórica e criticamente a evolução do saber astronómico das suas simples e, se se quiser, ambíguas expressões, até à aquisição de uma organização sistemática apoiada em bases matemáticas. Nas páginas densas em que se articula a entrada, nunca se perdem de vista a complementaridade entre a Astronomia e a esfera humana,  nem a aspiração didática e/ou divulgativa que  conduz alguns dos que foram, de certo modo e por várias maneiras, seus protagonistas, nem, por fim, se negligenciam as diversas conotações e valências que tal disciplina ganha no encontro com culturas específicas e formas de poder político particulares. Passamos, assim, por uma astrometeorologia, uma astronomia filosófica literária, científica, em suma, uma astronomia que serve o poder, que “de ‘literária’ se torna ‘cortesã’”(p. 237).

De grande valor é a entrada Farmacologia (S. Sconocchia, D. Monacchini, M. A. Cervellera e M. Baldini, pp. 486-518), onde, após alguns esclarecimentos sobre o significado do termo – impostos pelas valências não unívocas que pharmakon e pharmakeia adquirem no tempo e em diversos contextos –, graças a um meticuloso trabalho de escavação efetuado sobre as fontes antigas, do Corpus Hippocraticum até Celso, Escribónio, Plínio o Velho, Marcelo Empírico et al., e também sobre as recolhas de  simplicia, sobre os receitários e as receitas de medicamentos, se realiza uma atenta e precisa classificação e descrição da natureza, do uso e do valor terapêutico dos medicinais extraídos do mundo vegetal, do  reino mineral e animal; portanto, passa-se depois a analisar alguns tipos de medicamentos compostos, para acabar nos Realien farmacêuticos, representados pelos laboratórios e pelas oficinas utilizadas para a preparação dos fármacos e sobre os contentores onde eram conservados.

Não se pode deixar de evidenciar também a perspetiva de investigação original que caracteriza os artigos dedicados à Filosofia, em geral pouco considerada em estudos científicos, mas omnipresente na cultura antiga. Além da explicação e focalização de algumas noções fundamentais – partindo do  próprio termo-conceito  Filosofia  (L. Rossetti, pp.  522-31) até ao de Lógica (F. Marcacci, pp. 641-6), que teve no tempo múltiplas conotações antes de especializar-se, no pensamento moderno, em formas bem diversificadas – muita atenção é dedicada aos grandes protagonistas do pensamento grego e latino. Viaja-se do Orfismo aos Pré-socráticos, de Platão a Aristóteles a Epicuro, a Lucrécio, Plotino, Séneca, Agostinho, nos quais a inspiração filosófica se entrelaça com a inclinação para tratar temáticas ligadas ao mundo das ciências. Em especial, as fichas que dizem respeito a Platão (L. Rossetti e P. Tarantino, pp. 836-43), Arist ó teles (L. Rossetti, F. Marcacci e M. Vegetti, pp. 185-92), e também a Tales (L. Radici, F. Marcacci e L. Rossetti, pp. 961-6) e Zen ão (L. Rossetti e F. Marcacci), dividem-se numa série de subsecções organizadas por autores diversos e, longe de serem um mero seco repropor, à maneira dos manuais, dados biográficos, conceitos que são o fundamento das doutrinas dos citados filósofos, ou um elenco esquemático dos contributos que deram ao desenvolvimento das ciências, como seria de esperar de um Dicionário, representam uma releitura do significado completo da investigação destes mestres antigos, reconstruída pari passu, sector por sector, segundo várias angulações e diferentes pontos de vista. A estrutura ‘coral’ (usada com sucesso também nas entradas não filosóficas como, por exemplo, na já citada Farmacologia) parece-nos uma carta bem jogada. De facto, finalizada a leitura da ficha inteira, não se sente nenhuma desarmonia entre as partes, tem-se antes pelo contrário a impressão de estar  no centro de um debate vasto e aceso – do qual se fornecem as coordenadas textuais e críticas –, em que nenhum conhecimento pode ser tomado como definitivo; além do mais, toma-se consciência de que algo de novo, que afasta dos costumeiros clichés, se pode ainda descobrir e dizer acerca de personagens tão estudadas.

Uma prova do sucesso de tal abordagem metodológica é, em especial, a entrada Aristóteles, já antes referida, onde o Estagirita é apresentado num modo que não encontra igual na literatura corrente. O relevo dado à sua metodologia e à organização dos âmbitos de pesquisa; a identificação dos antecedentes e dos objetivos do seu trabalho; o papel central que o filósofo atribui ao Direito comparado e à matemática; a atenção aos seus escritos de  carácter jurídico; a inserção das investigações lógicas e científicas num plano de compreensão global do mundo humano e natural, são  só alguns dos  momentos de um exame do pensamento aristotélico levado a cabo de maneira problemática e crítica. O discurso dos autores, que passa por momentos de grande originalidade, está particularmente atento  a não desarticular as reflexões de Aristóteles do  ambiente em que se formou e a descontaminá-lo  também das revisitações dos seus discípulos diretos ou daqueles imediatamente sucessivos.

Neste caso, como em outros em que a disciplina tratada se distribui por diversos especialistas, percebe-se a peculiaridade da organização do Dizionario, que pretende harmonizar a sensibilidade científica de cada autor e, ao mesmo tempo, salvaguardar a coerência interna das entradas. Empresa não fácil, que pediu a direção atenta dos quatro estudiosos que orientaram os trabalhos; todos, tecelões críticos e perspicazes, conseguiram fazer convergir estrategicamente no Dizionario os resultados de anos de pesquisa de uma fecunda équipe de connaisseurs da literatura técnica e científica grega e romana; hábeis também na construção balanceada dos lemas e na sua uniformização ao projeto comum inspirador:  apresentar o saber científico greco-romano na sua totalidade, unidade e progressiva diferenciação  em disciplinas propedêuticas à s que nós hoje encontramos como possuidoras de um estatuto e de uma identidade próprias, “construir um quadro do desenvolvimento integrado do pensamento científico e técnico”(p. 10). Integração que não quer dizer dissolvência das ciências na cultura geral dos antigos, devida à precariedade e à imprecisão dos seus confins, mas sim religação a essas relações que se fundam em novas bases, abrir o caminho a novas investigações, vencer a preguiça intelectual que  encontra conforto e sossega com o já dado, no já dito, nos esquemas impostos por uma tradição que no fundo já não tem sentido.

Se procuramos as provas de como uma tal  atitude dá concretamente frutos preciosos e duradouros, basta considerar uma das mais importantes conquistas epistemológicas do Dizionario, ou seja, a revalorização, bem documentada, da dimensão  científica contida na filosofia pré-socrática muito  frequentemente marginalizada pelos historiadores  da ciência. De Tales (L. Radici, F. Marcacci, L. Rossetti, pp. 961-6), unilateralmente apresentado pelos filósofos como o archegos sophos (Arist. Metaph. A, 3983 b20) que identifica na matéria os princípios de todas as coisas (b7) e pelos cientistas como  astrónomo e matemático, graças a uma recognição meticulosa das fontes até ao corrente pouco analisadas, foca-se o alcance filosófico e o sentido global de uma investigação com múltiplos aspetos, de um saber complexo que se desenvolve num ambiente  que ainda não tem ideia das especializações disciplinares. Discurso análogo vale para Anaximandro, Anaxímenes, Empédocles, Anaxágoras, Demócrito e para todos os Pré- socráticos, intelectuais com  interesses variados, que estudam cosmologia e astronomia, meteorologia, medicina, matemática, que são inventores e defensores de teorias destinadas a sobreviver por muito tempo, mas sobretudo são sophoi, que progressivamente irão idear técnicas  lógico-retóricas e estratégias de comunicação idóneas à defesa da validade do modelo interpretativo da realidade que propõem.

Embora corram o risco de suscitar perplexidade naqueles leitores não participantes do trabalho, que se formaram com a ideia do escasso peso científico das teorias dos Eleatas, o lugar relevante que os autores do Dizionario atribuem a estes filósofos é amplamente justificado pelos interesses que estes tiveram em relação a temáticas que concernem ao mundo da natureza, à matemática, à medicina, à  astronomia, à cosmologia, à meteorologia, que foram para os antigos aspetos plenamente integrantes da cultura de um  sophos, tal como o é a construção  de um discurso que pretende apresentar-se como  científico. De facto, os Eleatas começaram a definir estruturas argumentativas e artifícios lógico-retóricos finalizados à demonstração da validade/ verdade das próprias teses e a torná -las inatacáveis. O poeta e filosofo Xenófanes (D. Panchenko, pp. 917- 9), observador perspicaz da realidade natural e dos fenómenos celestes, pressupõe, com base em dados evidentes, que a arché – isto é, aquilo de onde tudo provém e para onde tudo regressa – é a terra; procura encontrar explicações plausíveis para a sua grandeza e posição, esforça-se por dar conta dos eclipses, do nascer e do pôr do sol, das fases lunares, da formação das nuvens. Parm é nides (L. Rossetti, F. Marcacci, pp. 779-82), recordado como o primeiro filósofo que  raciocina sobre o ser e como pai do princípio de não-contradição, escreve o seu poema Sobre a natureza usando uma concatenação de deduções e conclusões, prelúdio de um pensamento demonstrativo de tipo apodíctico. Como se pode verificar por uma leitura direta do que ficou da sua obra e de uma tradição de segunda m ã o, o Eleata não desdenha ocupar-se de cosmologia: de facto, cria a hipótese de uma terra no centro do universo, procura explicações sobre  como esta é iluminada e aquecida pelo sol, deteta faixas climáticas, interroga-se sobre o fenómeno da luz lunar e, em geral, sobre quais são as relações existentes entre o nosso planeta e os outros corpos celestes. Parménides, como se verifica por uma  inscrição encontrada durante as escavações de Eleia em que ele é indicado como o ouliades physikos, é também m é dico – o epíteto oulis iatros é atribuído a outros médicos da mesma cidade que viveram em épocas sucessivas, algo que até poderia induzir a  pensar que fora precisamente Parménides o primeiro a introduzir na sua comunidade tal disciplina – e  sente particular interesse pelos problemas ligados à reprodução humana e às condições que predispõem a ter, ou não, uma caracterização sexual bem definida. Poder-se-ia, talvez, considerá-lo pioneiro daquela especialização médica que hoje chamamos de genética, como sugere L. Rossetti? Zenão (L.  Rossetti, F. Marcacci, pp. 1028-30), inventor da  dialética segundo Hegel, cujos paradoxos encontraram lugar na história da matemática, porque  com base numa certa leitura levantam dificuldades ligadas quer à noção pitagórica de número quer à de pluralidade, parece ter dado início a uma perda de fisicalidade de tal disciplina e a uma reflexão sobre as grandezas infinitesimais. Melisso (F. Marcacci, p. 683) usa de maneira consciente e controlada “regras de inferência para uma argumentação apodíctica”, como se deduz dos fragmentos 7 e 8. Para provar a absoluta indivisibilidade e unicidade do ser, em cujo domínio faz reentrar também a natureza, serve-se de um tipo inovador de raciocínio fundado em teses contra a evidência dos factos, que não encontrará decerto a aceitação de Aristóteles.

Mesmo os três ensaios que encerram o Dizionario s ã o dignos de nota. A estes é confiada uma função ‘arquitectónica’, no sentido que têm a tarefa de ligar criticamente o conjunto de informações  apresentadas.

  1. Rossetti, no seu Nas origens da ideia ocidental de ciência e técnica (pp. 1291-315), afastando-se por alguns aspetos da communis opinio, que atribui a Platão e a Aristóteles a distinção entre ciência e técnica e a organização do  saber em  âmbitos específicos com  margens metodologicamente bem  nítidas, encontra na reflexão dos Pré-socráticos  “os núcleos originários da formação das ciências”. Exemplar é o caso de Demócrito, autor de muitíssimos tratados, que vão da geografia, à medicina, à música, à pintura, etc., cuja composição certamente requereu “competência especializada e uma ideia de ciência precisa”. Se andarmos um pouco  para trás no tempo, encontramos Hecateu, discípulo de Anaximandro que, embora tivesse herdado conhecimentos dos predecessores, tende a marcar as distâncias entre o seu saber especializado e as narrações ridículas dos Helenos (fr. A 1.1 Jacoby), e ainda Anaximandro, Anaxímenes, “especializados em fornecer um saber sobre o mundo no seu conjunto”e sobre os seus variados aspetos particulares.

Não só. Daquelas fontes que nos legaram um Tales amante da geometria, que trabalha com ângulos, retas e  triângulos, um Parménides que fala de esfera, um Anaximandro que cria uma terra de forma cilíndrica, deduz-se claramente como “uma matemática, uma geometria, começaram a constituir-se já durante  o século  vi  a.C.”. Dentro de uma construção bem  articulada e precisa do ponto de vista histórico e crítico, Rossetti encontra e passa pelo crivo todos aqueles indícios que levam a pensar que “a ideia  de ciência e de técnica ganha forma na época dos Pré-socráticos”. De facto, isso seria provado pela  invenção da prosa e a publicação de textos em  que se procura dar conta do próprio saber e/ou de habilidades profissionais especiais, pela valorização da escrita no couro, recurso seguro para a construção de uma comunidade científica, pela tendência a certificar as próprias teorias ou a invalidar as de outrem, pela afirmação de um pensamento abstrato, pela produção de doxai em conflito. Fora do terreno batido é também o percurso que o nosso estudioso faz da chamada passagem do mito ao logos e a discussão sobre as relações entre as ciências egípcia, babilónica e grega.

  1. Radici Colace, em Metáforas da ciência e da técnica (pp. 1317-22), detém-se brevemente sobre a função das metáforas e do falar por meio de imagens que, nascidas no seio da linguagem comum ou das artes pobres, refluem para a científica. Carregada de valências epistemológicas e técnicas, desta última escorrem depois, com significados análogos ou diferentes, para os vários âmbitos da cultura grega e romana, sobrevivendo por vezes em época cristã. Quase de relance, a estudiosa enfrenta o problema espinhoso do uso metafórico do vocabulário médico a nível político e de como esse pode representar uma chave hermenêutica segura para a compreensão de passagens cruciais de algumas tragédias. Exemplos paradigmáticos de vocábulos que são colonizados pelos mais diversos âmbitos do saber, destinados, sem quererem, a unir “mundos incrivelmente distantes”, são pithos, chalcheus, demiurgos, originariamente pertencentes ao mundo “do artesão e do trabalhador braçal”; mas pode-se pensar também no termo diktuon, rede de pesca, inserido até na “macrometáfora da conquista das almas no Evangelho”.

Da transmissão e fortuna da ciência e da  técnica grega e latina ocupa-se V. Tavernese, em  Fortuna e valorização da ciência e das técnicas antigas no pensamento medieval, moderno e contemporâneo (pp. 1323-43). Nas suas páginas o estudioso empenha-se num trabalho complexo de reconstrução do percurso feito pelas ciências e pelas técnicas  antigas, passando pela cultura árabe até aos nossos dias, através da menção de posições de alguns filósofos e cientistas. A multiplicidade e parcialidade dos modos de entender e avaliar as conquistas técnico-científicas dos antigos depende, a seu ver, de métodos interpretativos viciados pela ideologia e pelos “nexos especulativos”; obstáculos, estes,  superáveis pelo “desenvolvimento do conhecimento histórico-crítico da literatura científica e técnica  antiga”e pelos principais problemas teoréticos,  necessários “a uma melhor compreensão do papel da técnica no mundo moderno e contemporâneo”. Seguramente lúcida, finamente articulada e de clara matriz filosófica é a análise levada a cabo por Tavernese, embora não contemple um aprofundamento daquela relação interessante que se tem entre a  técnica antiga, as suas descobertas e os usos que deles se fizeram em laboratórios científicos e nas  oficinas de épocas sucessivas. Além disso, é indubitavelmente suportado e partilhável no seu incipit o juízo, acima citado, acerca da necessidade de  potenciar os conhecimentos relativos à literatura  técnico-científica; todavia, a asserção peremptória, como coda ao ensaio sobre a utilidade de tais conhecimentos para uma melhor compreensão do mundo moderno e contemporâneo, talvez necessitasse de alguns esclarecimentos pois poderia ser entendida por um leitor pouco experiente como o reflexo de um modo de pensar anti-histórico, há muito superado, que acaba por privar o pensamento científico antigo da própria autonomia e unicidade. De outros lugares, e há mais tempo (Momigliano, Finley, Lloyd, Cambiano), convida-se a receber uma perspetiva  de investigação que visa compreender e valorizar  o saber científico dos antigos pelo que era por si mesmo, irredutivelmente outro em relação à ciência e à técnica do mundo moderno e contemporâneo.

O Dizionario  é acompanhado por um índice  completo das entradas (pp. 17-20), um  Glossário (organizado por P. Radici Colace, pp. 1187-274, de cuja utilidade e função se falou), uma vasta bibliografia de cerca de 4000 títulos, que inclui muitos dos mais recentes estudos sobre o pensamento científico antigo (pp. 1039-185) e uma apresentação sintética dos autores, dos seus interesses e dos lemas que  cada um escreveu (pp. 1275-88).

Para terminar,  é verdade que por vezes se  sente uma espécie de desequilíbrio entre certas  entradas, no que diz respeito aos conteúdos e às  modalidades da análise, mas é também verdade que a grande maioria delas corresponde plenamente às linhas programáticas do  Dizionario. Alguns lemas  de um certo relevo, como se disse, não foram tomados em consideração, outros foram enfrentados de maneira sintética, outros ainda poderiam até  fazer surgir dúvidas acerca da pertinência da sua  inserção na obra. Por outro lado, o Dizionario deixa-se apreciar por toda uma série de características, sobretudo pelo fatigante e preciso trabalho de  arranjo, recolha e discussão crítica de fontes dificilmente identificáveis ou adequadamente valorizadas noutros lugares, pela riqueza e complexidade dos  temas tratados, pela distância de quaisquer formas de esquematismo expositivo rígido sem  pathos, que nos trabalhos científicos costuma levar a tratamentos pouco empáticos. Talvez não encontremos definições nítidas e precisas, que são o estigma  da matriz à ‘dicionário’; talvez devamos procurar,  consultando mais do que uma entrada, detalhes  técnicos ou aprofundamentos que não sobressaem no lema destinado; faltará também aquela descrição simples e linear das descobertas e dos instrumentos de teor positivista que tanto agrada a alguns leitores. Facto está que, pelo contrário, teremos ampla liberdade de ação na pesquisa, seremos solicitados a ir além do que se pode encontrar no Dizionario, que mentaliza e educa a interpretar a ciência e a técnica como uma atividade entre tantas outras,  teóricas e práticas, às quais os antigos se dedicavam e que se podem redescobrir e compreender só se não forem setorizadas e se não realizarem abstrações e extrapolações deletérias e anti-históricas; seremos encorajados a seguir um método de investigação  histórico e crítico que, permanecendo ancorado na experiência vivida pelos Gregos e Romanos, na sua cultura geral, proceda pelo percurso acidentado de constituições e transmissões, em várias formas, de ‘saberes’ originariamente destituídos de quaisquer  pretensões de cientificidade, até chegarem ao  estatuto de ciência. Por todos estes aspetos e por aqueles evidenciados anteriormente, o  Dizionario pode considerar-se um reference-work imprescindível no que diz respeito à ciência e à técnica antigas, válido seja qual for a formação, o interesse específico ou a intenção de quem o usa.

Notas

  1. Para Herófilo, cf. frag. 211, H. von Staden, Herophilus: The Art of Medicine in Early Alexandria, New Haven 1989. Díocles fala expressamente de frenite, melancolia e mania, cf. frag.s 38, 39, 40, 41, 42, 43, 96, 110, M. Welmann, Die fragmente der sizilischen Aerzte, Berlin, 1901. Cf. também Ph. van der Eijk, Diocles of Carystus: a Collection of the Fragments with Translation and Commentary, 2 voll., Leiden 2000-2001, n. 72 vol. 1 e vol. 2, pp. 144-148.
  2. Em Herófilo encontra-se uma bem precisa e detalhada teoria dos sonhos. Cf., Diels, Doxographi Graeci = Aet. Plac. V, p. 416. Para Díocles de Caristo, veja-se frag. 141 Welmann.
  3. No que diz respeito aos conhecimentos de Galeno nestes campos, cf. K. Kalbfleisch (ed.), Galen. Institutio logica, Leipzig, 1896; De usu part., C. G. Kühn, Claudi Galeni opera omnia, Leipzig 1821-1833 (reed. anastática Hildesheim 1997), III, 830; De med. meth., Kühn, X, 36; De opt. corp. nostr. const., Kühn, IV 743- 745; De Plac. Hipp. et Plat., Kühn, V, 449, 2-3.

Tonia D’Alessandro – Università di Bari.

Acessar publicação original

 

Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin – ARÁN (B-RED)

ARÁN, Olga Pampa. Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin. Córdoba, Argentina: Ferreyra Editor, 2006. 284p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena Cruz. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.2, São Paulo July/Dec. 2012.

Se Aurélio define dicionário como um “conjunto de vocábulos duma língua ou de termos próprios duma ciência ou arte, dispostos alfabeticamente, e com o respectivo significado […]” (grifo nosso), a proposta de um dicionário da teoria de Mikhail Bakhtin poderia se apresentar como a expressão da repetibilidade, do reiterável, da “explicação” monológica de termos. E ainda: se o léxico é apenas um dos aspectos do texto/enunciado/discurso na concepção bakhtiniana, sempre seria bastante complexa a tarefa de reunir o vocabulário do Círculo numa obra, com a finalidade de compreender o significado de cada termo ou conferir-lhe certa estabilidade de sentido. Fiel ao pensamento bakhtiniano, contudo, o diálogo está presente em todos os verbetes deste Nuevo Diccionario: com o autor/autores do Círculo, com o leitor, com diferentes comentaristas e críticos ao redor do mundo, ora com a teoria e/ou crítica literária, ora com a filosofia, a linguística, a psicologia, a antropologia…

O Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin, publicado por Ferreyra Editor, Córdoba, Argentina, é dirigido e coordenado por Pampa Olga Arán, doutora em Letras Modernas e professora de Teoria y Metodología del estudio literario na Escuela de Letras da Facultad de Filosofía y Humanidades na Universidade Nacional de Córdoba. Arán esclarece, no Prólogo, que houve uma primeira edição, em 1998, mas que esta é uma nova versão, fruto do trabalho desenvolvido por ela, com a ajuda de Candelaria de Olmos – mestre em Sociosemiótica no Centro de Estudios Avanzados e chefe de Trabajos Prácticos de Semiótica na Escuela de Letras da Universidade de Córdoba, e uma equipe de investigadores, jovens em sua maioria. As diferentes vozes que se articulam no desenvolvimento dos 55 termos selecionados da obra bakhtiniana estão distribuídas entre as assinaturas de Pampa Olga Arán (13 verbetes), Candelaria de Olmos (8) e Lucas Berone – mestre em Sociossemiótica (9), responsáveis, assim, pela redação de mais da metade dos verbetes; os restantes são trabalhados pela equipe. O projeto contou ainda com o apoio econômico do Centro de Investigaciones de la Facultad de Filosofía y Humanidades e da Secretaría de Ciencia y Técnica.

A obra apresenta uma bem cuidada bibliografia de referência final, dividida em bibliografia específica de textos de Bakhtin; bibliografia específica de textos de Bakhtin e seu Círculo; estudos críticos e biográficos sobre Bakhtin; seleções bibliográficas; publicações periódicas; endereços URL. A seguir, breve notícia biográfica de todos os autores-colaboradores e o índice final dos termos.

Nas palavras da organizadora, “la forma de entradas múltiples y de recorridos simultáneos parece ser la que mejor se adecua al pensamiento abierto e inconcluso de Bajtín para quien nunca había sido dicha la última palabra”. Excelente justificativa, sobretudo ao mencionar as entradas múltiplas e as recorrências simultâneas, porque os termos da obra remetem constantemente uns aos outros, além de apontar para fora de si mesmos. Há mais: todos se inter-relacionam, não há como definir um sem que se defina sua ligação com os demais, constituem um sistema de pensamento “aberto e dinâmico”, em processo, e dependem de uma compreensão responsivo-ativa – de ao menos duas consciências. É por isso que as várias leituras da obra bakhtiniana, e ainda de seus críticos e comentadores, como é o caso deste Nuevo Diccionario, são sempre bem-vindas (ainda que seja para refutá-las, o que não é este caso).

Não há uma justificativa no Prólogo quanto à seleção dos termos. Por exemplo, os verbetes argumentoconhecimentocronotopodialogismogêneros discursivosparódiatexto, na realidade apresentam diferente relevância na obra do Círculo. Isto é, percebemos que não se trata de uma seleção de conceitos-chave para a compreensão da obra bakhtiniana, antes da seleção de noções que, naquele pensamento, assumem sentido e relevo particular.

A escolha do gênero parece ainda estar motivada pela epígrafe: “mi predilección por las variaciones y por heterogeneidad de términos en relación con un solo fenómeno” (Bajtín “De los apuntes de 1970-1971” Bakhtin, From Notes Made in 1970-71). Nesse sentido, lembramos que o problema terminológico na obra do Círculo não se atém apenas a essa predileção por variações e heterogeneidade de termos, expressa na epígrafe. Na realidade, a isso se acrescentam as traduções desconcertantes, surgidas no Ocidente a partir da década de 1960, publicadas fora da cronologia em que foram redigidas, muitas vezes refletindo e refratando teorias do espaço-tempo correspondente. Brandist, para quem a terminologia do Círculo, e especialmente aquela de Bakhtin ele mesmo, é muito particular e tem uma pluralidade de conotações, lembra que há termos como stanovlenie, que conheceu dez diferentes traduções no inglês, aparecendo de quatro formas distintas num mesmo ensaio. Isso também ocorreu de diferentes formas nas traduções para o francês, italiano, alemão, espanhol e português. É só pensarmos na possível confusão que poderia se formar em torno do vocábulo extraposición/exotopia, presente no Nuevo Diccionario. Constando do Prefácio de Tzvetan Todorov, na edição francesa de Estética da Criação Verbal, é o termo que ocorre na primeira tradução – do francês – que tivemos no Brasil. Paulo Bezerra, ao traduzir diretamente do russo, vai substituí-lo por distância ou distanciamento, com uma bela justificativa para isso na Introdução.

Independente dessas questões, ou talvez até por elas mesmas, este Nuevo Diccionario pode (e deve) ser lido como um hipertexto, que organiza cada um dos verbetes com uma introdução, apresentando o sentido mais geral do conceito na obra do Círculo. A partir daí, o autor rastreia a noção nas obras em que é encontrada, muitas vezes seguindo a ordem cronológica, e oferece ao leitor uma visão de como o conceito vai se estabelecendo ou se complementando (ou até se modificando) ao longo de todas elas, caso dos gêneros discursivos, por exemplo; ou então, como o Círculo restringe sua utilização a umas poucas obras, como é o caso de hibridación ou grotesco. No geral, há ainda uma conclusão mais ou menos avaliativa da fecundidade heurística da noção.

Alguns colaboradores são mais explícitos nos comentários e apreciações do conceito e estendem-se em aproximações com outras teorias. A meu ver, essa interação é extremamente enriquecedora. A esse respeito, o verbete sentido/significado, cuja autoria é de Analía Gerbaudo, é exemplar. Inicialmente, a autora já adverte da riqueza dos “aportes teóricos’ bakhtinianos tanto para a literatura como para a linguística. E aí, enquanto faz uma tomada panorâmica da questão sentido/significado na obra do Círculo, vai aproximando (e distinguindo) essa conceituação de outras, sobretudo de teóricos contemporâneos do Ocidente, como J. Derrida, Blanchot, o Barthes tardio, e mesmo Benjamin. Consciente está, porém, do desacordo entre os críticos dessas possibilidades de confrontação, pois conclui apresentando-nos, num breve balanço, especialmente a posição de comentadores bakhtinianos, como Ponzio, Zavala, Stewart, Morson e Holquist a esse respeito. Justifica-se, porém, com trecho do próprio Bakhtin, quando fala da “infinita heterogeneidade de sentidos” nos Apontamentos de 1970-1971: “La redujimos tremendamente mediante selección y modernización de lo seleccionado. […] Estamos empobreciendo el pasado y no nos enriquecemos nosotros mismos”. Desperta a curiosidade intelectual de nós, leitores, na comprovação das potencialidades de tais diálogos.

Convém assinalar que o referido problema de tradução eventualmente dificulta até nossa leitura de brasileiros, ainda que espanhol e português sejam línguas tão próximas. É o que pode ocorrer ao buscarmos o termo discurso. À primeira vista, o Diccionario não trata desse conceito essencial na obra do Círculo… Mas aí nos damos conta da existência do verbete palabra/discurso, assinado por Cristian Cardozo. E evocamos o conhecido ensaio de Voloshinov: no francês, Le discours dans la vie et le discours dans la poésie, Contribution à une poétique sociologique; no espanhol, La palabra en la vida y la palabra en la poesia. Hacia uma poética sociológica; na recente tradução para o português organizada pela equipe de Valdemir Miotello, A palavra na vida e discurso na arte. Introdução ao problema da poética sociológica. No entanto, palabra/discurso estão muito mais próximas no espanhol, diferentemente do que acontece em português (e também parece ser o caso do russo slovo). A partir de uma definição mais geral do termo na obra do Círculo, atribuindo-lhe inclusive a responsabilidade de conceituar toda a obra bakhtiniana como “una larga reflexión sobre ‘la vida de la palabra’ y sus modos históricos y sociales de producción de sentido, apropiación y refración” (p.203), o autor conclui o verbete com a importante afirmação de que “para estudiar la palabra como discurso no se la puede cosificar…” (p.211).

Em alguns momentos da consulta do Diccionario encontramos analogias intrigantes, como a de Candelaria de Olmos ao afirmar que Bakhtin parece substituir o binômio saussuriano langue/parole pelas relações dinâmicas entre gênero/enunciado: “a pesar de ser individual e irrepetible, el enunciado tiene un carácter social, mientras que el género – lejos de ser un sistema abstracto y normativo – , se presenta como un reservorio de reglas más o menos flexibles según el caso, elaboradas a lo largo de su uso, en situaciones histórico-sociales concretas” (p.138). Ou, ao consultarmos o verbete texto, também de responsabilidade de Olmos, constatamos a falta de referências importantes para a compreensão bakhtiniana do conceito, na medida em que a autora não busca o diálogo com as importantes obras de autoria disputada Voloshínov/Bakhtin, que poderiam enriquecê-lo… Por outro lado, há aí o posicionamento crítico frente à noção, situando-a em oposição ao estruturalismo ou ao pensamento sistêmico de Lotman, destacando a perspectiva polêmica bakhtiniana e apontando-lhe uma possível ambiguidade: “Hay que decir, pues, que la definición bajtiniana de texto es, cuanto menos, ambigua y que si en un sentido el término funciona como sinónimo del de enunciado; en otro, es su opuesto diametral y señala más bien, la materialidad del fenómeno (impresión, reproducción, etc). Esta ambigüedad es particularmente notable en ‘El problema del texto en la filología, la lingüística y otras ciencias humanas”. Sem dúvida, a compreensão responsivo-ativa do leitor deve levá-lo a refletir a esse respeito, instaurando novo diálogo com as obras do Círculo.

Cabe ainda um breve comentário sobre o verbete dialogismo, de importância primordial no pensamento bakhtiniano, muito bem organizado e de grande utilidade para o estudioso da linguagem (entre outros). Assinado pela coordenadora da obra, Pampa Olga Arán, de início apresenta uma visão cronológica de seu desenvolvimento e das várias ocorrências na obra do Círculo para, ao final, defini-lo como um “postulado que al condensar el imaginario de la dinámica histórica y social, atraviesa todos los conceptos, los une y les otorga sentido”.

Concluindo, apenas alguns poucos comentários: como esperado em obras coletivas, há diferentes profundidades e perspectivas na exposição e apreensão dos conceitos, o que de nenhum modo invalida o Diccionario. Em termos de complementação, a obra ganharia bastante – e também o estudioso de Bakhtin e seu Círculo, se houvesse a correspondência de cada um dos verbetes com outras línguas (o francês e o inglês); mas esbarramos aí novamente no problema da tradução. Por fim, é preciso destacar que livros organizados ou redigidos por especialistas brasileiros da obra bakhtiniana, como Beth Brait, Carlos A. Faraco, Irene Machado, Gilberto de Castro e Cristóvão Tezza foram consultados e fartamente citados.

Enfim, o Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin revela-nos, antes de tudo, a penetração e a vitalidade da teoria do Círculo no país vizinho e, especialmente, na Universidade Nacional de Córdoba. Mas se, como nos diz Bakhtin, “um enunciado sempre cria algo novo”, na luta constante pela compreensão, este Nuevo Diccionario permite enriquecimento e mudança de todos nós, leitores/autores. Vale a pena! 

Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP/FAPESP, São Paulo, São Paulo, Brasil; mhcpist@uol.com.br.

Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano | Javier Fernández Sebastián

Não seria exagerado dizer que o Diccionario político y social del mundo ibero-americano, dirigido por Javier Fernández Sebastián, constitui-se em uma das iniciativas de trabalho coletivo mais ousadas e meritórias das últimas décadas no campo da história do mundo ibérico e americano entre os séculos XVIII e XIX. Diante da atual profusão de incentivos à produção histórica sobre o período, alavancada pelas comemorações dos bicentenários das Independências na América e do translado da Família Real portuguesa para o Rio de Janeiro, o presente volume pode ser considerado um dos seus mais sólidos produtos. Primeiramente, por reunir pesquisadores de vários países, do Novo e do Velho Mundo, no projeto internacional El mundo atlántico como laboratorio conceptual (1750-1850) – ainda em andamento, e do qual este é um primeiro volume de resultados –, apostando na elaboração coletiva da reflexão histórica, infelizmente ainda pouco comum na nossa área de maneira geral. Mas a maior prova da importância e pertinência do projeto está, sem dúvida, na sua atual capacidade de gerar novas e pulsantes demandas historiográficas. O que significa dizer que hoje, quando se fala em história dos conceitos, é impossível não se remeter ao volume.

A problemática geral do volume – discutida por Fernandez Sebastián na preciosa introdução à obra – parte da teoria de Reinhart Koselleck que, de forma fecunda, consolidou caminhos de análise da profunda mutação no universo léxico-semântico verificada no período anunciado, a qual evidenciava grandes transformações políticas, institucionais e mentais em curso no mundo ocidental. A síntese desse processo está na sua concepção de nascimento da “modernidade”, caracterizada fundamentalmente pela percepção, entre os coevos, de uma ruptura temporal em relação ao passado e abertura de possibilidade de futuro como um tempo marcado por instabilidade e incerteza. Sua base era a crise de legitimidade das antigas monarquias, e mesmo da História como campo capaz de ensinar pelas experiências do passado, ou seja, como “mestra da vida”.

Se tal “terremoto conceitual” foi amplamente analisado para a Alemanha (e parte da Europa meridional e América do Norte) no magistral dicionário histórico de léxicos políticos e sociais do qual o próprio Koselleck foi um dos organizadores – o Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, publicado na década de 1980 em nove volumes – , sua análise global para o mundo ibero-americano era uma tarefa de fôlego ainda a ser feita. Nesse sentido, a presente obra tanto demonstra a vitalidade das assertivas koselleckianas para se pensar transformações estruturais em curso na Espanha, em Portugal e em seus antigos domínios, como enfatiza sua unidade no mundo occidental, numa perspectiva de interconexões. Nas próprias palavras de Fernández Sebastián, um dos objetivos da obra é:

ensayar uma verdadeira historia atlântica de los conceptos políticos. Una historia que tome em cuenta el utilaje conceptual de los agentes – individuales y colectivos – para lograr así una mejor comprensión de sus motivaciones y del sentido de su acción política (p.25).

Dimensão atlântica que, cada vez mais valorizada pela historiografia nos últimos tempos, tem como grande mérito romper com as fronteiras estabelecidas pelas historiografias nacionalistas desde o século XIX, em especial daninhas para análise do período em que as definições e soluções dos novos Estados fizeram parte de um processo de luta política em curso. O que para o caso brasileiro é ainda pior, haja vista que a construção do discurso da sua excepcionalidade, de um “Império entre repúblicas”, remonta ao próprio Oitocentos e continua a ser uma fonte de retroalimentação de desavisadas análises, a despeito de sua desconstrução crítica por parte de recentes trabalhos historiográficos. Um dos possíveis perigos das abordagens que privilegiam a história atlântica, o de se não respeitar os problemas específicos dos processos que se pretende ver em sintonia, é rechaçado pelo Diccionario, pois que a análise de cada contexto político permite o estabelecimento, bem como a problematização, da relação entre o geral e o particular. Ainda assim, é fato que partir da concepção de uma unidade atlântica pode encerrar outros questionamentos, como veremos adiante.

A escolha dos conceitos aqui tratados partiu de algumas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, do esforço em abandonar definições excessivamente normativas que, concebidas posteriormente, ainda impregnam de um ideal valorativo muitas das palavras aqui analisadas. Daí a ênfase na discussão dos seus significados coevos, bem como dos usos que os homens fizeram delas, ambos tensionados pela profunda reviravolta que se viveu no mundo ibérico, sobretudo, após os anos de 1807-1808. Entendendo que discurso e prática políticos são indissociáveis, poder-se-ia falar em uma verdadeira “guerra” de palavras como uma das dimensões da própria política, cuja esfera ampliava-se significativamente nas décadas aqui tratadas.

Nesse sentido, os termos selecionados justificam-se por terem sido fundamentais no vocabulário político da época, ou seja: sem cada um deles, toda a arquitetura argumentativa encontrar-se-ia comprometida. No entanto, a despeito de se considerar que os coevos se serviram de novas linguagens, sabedores de que as antigas apenas parcialmente lhes serviriam na busca de soluções à crise que se desvendava diante de seus olhos, a obra não se propõe a entender os conceitos como parte de um conjunto coerente, canônico e articulado de significados, aos moldes das proposições consagradas por John Pocock e Quentin Skinner. Ao contrário, é exatamente a fluidez e polissemia dos termos, sua apropriação por vozes e protagonistas de projetos políticos dissonantes, que são tidas como pontos de partida centrais para sua análise. Referenda-se assim, a não menos sugestiva definição koselleckiana do que são conceitos: palavras que unificam em si diversos significados, ao mesmo tempo “concentrados de experiência histórica” e dispositivos de antecipação de soluções futuras. A essa amplitude semântica soma-se um nível de generalização/abstração dos mesmos termos que, servindo a uma grande variedade de usos e interpretações, tendem a uma forte ideologização.

À luz de tais definições, dez foram os conjuntos de conceitos considerados fundamentais e prioritários na composição do volume: América/ americanos, cidadão/vecino, constituição, federação/federal/federalismo, liberal/liberalismo, nação, opinião pública, povo/povos e república/ republicanismo. A cada um deles foi dedicado um capítulo que contém uma síntese transversal e comparativa das transformações ocorridas nos termos para o mundo ibero-americano, além de nove textos de referência, um para cada espaço geográfico ou país previamente selecionado. Estes últimos, longos verbetes, foram na sua grande maioria elaborados por especialistas na história das Independências e serviram de base para elaboração das sínteses. O que, de fato, se pode chamar de um investimento de pesquisa coletivo.

Foram elaborados verbetes para: Argentina (Rio da Prata), Brasil, Chile, Colômbia (Nova Granada), Espanha, México (Nova Espanha), Peru, Portugal e Venezuela. Ou seja, a área contemplada é extensíssima, o que mais que justifica a enorme abrangência do Diccionario. A edição traz também um apêndice cronológico para cada um desses espaços, o que muito ajuda o leitor em função da profusão com que os acontecimentos políticos espelham o turbilhão de alternativas e soluções então colocadas em prática. Mas não há como negar que a ausência da América central (incluindo Cuba), banda oriental, Alto Peru (Bolívia) e Paraguai pode ser lamentada. O que, sem dúvida, tem mais relação com o estado da arte das pesquisas e volume de desenvolvimento das historiografias de cada um dos países, do que com a concepção de história que informa o presente volume. O mesmo pode-se dizer sobre o fato das análises se centrarem nos centros urbanos, tratando muito mais do universo dos crioulos do que de grupos indígenas e de africanos e seus descendentes, cuja inserção no processo político foi inegável ainda que seus discursos e práticas tenham sido menos analisados, e que suas trajetórias sejam mais difíceis de reconstruir historicamente.

A despeito do Diccionario seguir a periodização da “modernidade” proposta por Koselleck (1750-1850), há aqui o cuidado em se marcar que ela se trata apenas de uma referência geral. É notável como para o mundo ibero-americano, a maior ruptura política ocorrerá a partir dos anos de 1807 e 1808, como desdobramento dos acontecimentos que impedirão o monarca tradicional de governar na Espanha, e farão com que a Família Real portuguesa tome a direção de seus domínios americanos. O que pode ser claramente visto nas análises de cidadão, constituição, federalismo, nação, opinião pública e povo. Também fica evidente que muitos dos conceitos tendem a uma maior radicalização na década de 1810, e serão dotados de maior moderação a partir das seguintes que, não à toa, coincidem com a maioria das tentativas de consolidação dos novos Estados independentes na América.

Análises bastante profícuas dos conceitos levam em conta os termos/ideias correlatos a ela. É o que se pode ver claramente no texto sobre federação/federal/federalismo, cuja síntese transversal é de autoria de Carole Leal Curiel. A princípio, esses termos aparecem nos discursos coevos somente após 1810, mas a opção feita também pelo rastreamento da dupla conceitual de confederação/federação, bem como da problematização em relação à questão da (des)centralização que existe desde fins do século XVIII nos Impérios ibéricos, mostra-se muito profícua para no seu desvendamento. Nesse sentido, ainda que tais conceitos tenham sido ainda mais prioritários para as repúblicas ibero-americanas, os problemas que eles evocam tiveram importância central também nos debates que permearam as trajetórias das monarquias brasileira, portuguesa e espanhola.

De todos os termos, marca-se uma possível especificidade para América/americanos, cuja análise abre o volume. Como bem questiona João Feres Júnior em seu artigo transversal, em termos teóricos, ambos poderiam ser considerados “contraconceitos”: primeiro, pelo fato do seu uso ter sido valorizado em oposição às antigas metrópoles, ganhando muita força nos anos de consecução das Independências; além disso, haja vista sua decadência em termos políticos, sobretudo a partir da década de 1830, com a consolidação nacional dos novos Estados (quando todos os outros termos demonstram terem se transformado em essenciais para o debate político). No entanto, é pena que a análise não tenha valorizado a dimensão identitária contida no termo “americano”, a qual dialoga com vários dos vocábulos que passaram a definir os vínculos de pertencimento dos indivíduos e sua relação com os projetos políticos em disputa em cada um dos espaços geográficos aqui analisados. Assim já o demonstraram, de maneira profícua, os trabalhos de José Carlos Chiaramonte para o caso das tensões entre os termos “rioplatense”, “hispanoamericano” e outros termos provinciais (questões devidamente incorporadas por Nora Souto no verbete do Diccionario dedicado à Argentina), bem como os de István Jancsó que tratam de sua importância para se entender as rupturas presentes no processo de construção nacional no Brasil. Nessa chave, trata-se de lugar comum a afirmação de que a América portuguesa teria mantido sua unidade após a Independência, ao contrário da espanhola (Feres, p.64); as clivagens identitárias permitiriam se entender como “pernambucanos”, “baianos”, “maranhenses”, etc., que poderiam ser mais ou menos associados com “americanos”, além de revelarem as disputas políticas endêmicas à unidade nacional do Brasil. Raciocínio, em linhas gerais, válido também para toda a América espanhola.

O universo das tensões entre ibero-americanos e peninsulares logo fica explícito nas pujantes análises dos vocábulos constituição e nação. Na primeira, o texto transversal de autoria de José Portillo Valdés, evidencia com acuidade como a utilização do conceito é chave para entendê-las. Assim o faz analisando como, desde meados do século XVIII, predominava na Espanha, e igualmente em Portugal (conforme os verbetes do próprio Portillo e de Nuno Gonçalo Monteiro, respectivamente), uma percepção da necessidade de reformas para se corrigir o desajuste político e econômico de ambos os Estados no âmbito europeu. A economia política seria vista como um desses instrumentos, e o apego à constituição um “antídoto” para se evitar os posteriores acontecimentos revolucionários. Desde então, a percepção da desigualdade entre espanhóis e portugueses de distintos hemisférios é fortemente sentida; mas revelar-se-á especialmente contundente diante da necessidade de se pensar um arranjo constitucional comum após a instalação das Cortes de Cádis, em 1810, e das de Lisboa, em 1820 – já que constituição passava, cada vez mais, a ser sinônimo de projeção de novos governos. Nas décadas seguintes, seu sentido de disciplina social, com o intuito de tornar o Estado presente, acabaria por se sobrepujar ao anterior, evidenciando o sentido de moderação que o uso do termo viria a adquirir.

Na análise do vocábulo nação a percepção dos conflitos em torno dos projetos políticos em disputa são ainda mais evidentes. Conforme salientado na síntese de Fábio Wasserman, desde meados do século XVIII é possível delinear um sentimento dúbio, vivido de forma distinta em ambos hemisférios e expresso pela tensão no uso dos termos nação e coroa: se na Península os letrados deixavam evidente existirem diferenças entre o reino e suas conquistas, na América tal sentimento seria vivido com certo desconforto, e alimentaria iniciativas de defesa das especificidades locais, de “patriotismo crioulo” (p. 856-7). Com a ressignificação do conceito a partir de 1808, e a difusão de uma concepção unitária de nação, associada à soberania e à definição de novos pactos políticos, os embates no seu uso passam a ser imprescindíveis na definição das alternativas políticas. De forma bastante precisa, a América portuguesa (analisada no verbete de autoria de Marco Antonio Pamplona) não é aqui tratada como exceção em função da associação entre monarquia e nação que, mais do que continuidade, aquela pôde ser aqui lida como uma recriação. À exemplo do que ocorre com constituição, mesmo antes da década de 1830 já era possível observar-se em nação a perda do sentido de soberania popular, e uma ênfase na sua associação com um esforço de institucionalização e consolidação do poder.

Movimento semelhante ocorre com os termos cidadão/vecino. O primeiro sofre profunda politização a partir dos acontecimentos de 1808, ainda que o ritmo das mudanças tenha sido muito mais rápido na América do que na Península, conforme analisado por Cristóbal Aljovín de Losada (p.183). Na primeira, é digno de nota como o desafio da cidadania enquanto paradigma universal de direitos e de igualdade perante a lei possui uma série de questões que passam por clivagens raciais, em toda parte presentes. Mas o conceito traz em si mesmo ambiguidades, sendo uma delas a incorporação de diferenças pautadas pelas desigualdades entre direitos civis e políticos durante praticamente todo o século XIX – pouco analisadas por Losada, mas já profundamente discutidas, para o caso francês, por Pierre Rosanvallon em mais de uma de suas obras. Desse modo, não nos admira que tenha sido possível a definição de quem eram os cidadãos mesmo em um Império escravista como o Brasil. Obviamente que suas contradições, pensadas no âmbito da modernidade, continuariam a ser evidentes.

A análise dos termos povo/povos e opinião pública nos remete diretamente a clivagens na construção dos projetos políticos. É notável a duração mais curta na utilização do termo povos, sua maior abrangência na América espanhola logo após os desdobramentos das Cortes de Cádis, e sua associação com projetos de autonomia local e corte federal. A predominância do vocábulo no singular, no entanto, passa a ser efetiva nas décadas seguintes, conforme salienta Fátima Sá e Melo Ferreira na síntese transversal. Nesse sentido, opinião pública, expressão que ganha imensa expressão após a crise de 1808 (na América portuguesa, sobretudo, após 1820), é inicialmente utilizada para se defender os direitos dos mesmos povos. Mas veja-se como já nos anos 1820 ela é predominantemente evocada como “rainha do mundo”, fonte de legitimidade para defesa de posicionamentos políticos diversos. Nas décadas seguintes, no entanto, sua utilização também traz uma desconfiança ou perda de entusiasmo em relação à sua força inicial transformadora, com o termo associando-se igualmente a visões pejorativas.

É o texto transversal de autoria de Noemi Goldman que insere a opinião pública numa perspectiva altamente instigante. Partindo das análises de Elías Palti, a autora a insere no universo intelectual da época, discutindo como a defesa de unanimidade, representada de forma paradigmática pela evocação de “uma verdadeira opinião”, não era estranha aos coevos no século XIX (p.988). Ao contrário, ela está inserida num verdadeiro afã pela criação de assertivas e verdades objetivas que pudessem guiar a construção do futuro; ao menos, assim se imaginava possível, obviamente. Isso nos faz pensar no enquadramento geral de praticamente todos os conceitos aqui analisados, cuja polissemia só viria a comprovar a importância dos embates em torno dos significados por eles expressos.

O sentido de projeção de futuro que o uso das palavras coloca a nu nesse momento é especialmente desvelado na análise do termo liberalismo. É possível que seja esse o conceito que mais carrega o peso de uma tradição histórica normativa que impede, muitas vezes, a apreensão de seus significados específicos e coevos. Por essas razões, a síntese transversal assinada por Javier Fernández Sebastián salienta elementos especialmente significativos para sua compreensão: de como o termo contemplava, no momento em que ganha evidente sentido político (a partir de 1808), um respeito à tradição monárquica, e não sua completa negação; mas, ao mesmo tempo, serviria à afirmação de um governo representativo que pretendia a “regeneração” da Península e a construção de novos Estados na América. É notável que o ideal de “triunfo da civilização” e a crença no progresso que o mesmo termo viria a contemplar, fossem alvo, especialmente a partir da década de 1830, de clivagens marcadas pelas novas filosofias da história, com a ascensão de projetos que falassem em nome de uma maior moderação. Sem dúvida é essa uma chave para compreensão dos próprios “partidos” que, muitas vezes equivocamente, são por toda parte classificados como “liberais” e “conservadores” em função de imputações anacrônicas. Sua relevância para observarmos, por exemplo, a eclosão do chamado “Regresso conservador” brasileiro num universo mais amplo da Ibero-américa é evidente (perspectiva de análise para a qual desconhecemos quaisquer outros estudos para além das conexões aqui estabelecidos a partir do verbete de autoria de Christian Lynch).

Isso nos remete à questão das comparações, e do quanto elas podem ser válidas na perspectiva adotada pelo Diccionario. É igualmente Fernandez Sebastián que, na introdução, destaca a importância dos estudos comparados para se romper com uma historiografia nacional, tanto por meio da observação de um substrato comum na cultura política no mundo ibérico e americano, como pelas diferenças contextuais que explicariam diversidades de usos e de significados dos conceitos (p.31). No entanto, o mesmo autor é consciente de riscos dessas aproximações: por exemplo, o de valorizar os principais traços de cada país concebendo-os como distintos e específicos em relação a outros e, dessa forma, reforçar bases de historiografias nacionais (p.41, nota 14). É verdade que essa tendência aparece em alguns textos da obra, mesmo em algumas das sínteses transversais que foram pensadas justamente como uma forma de evitá-la; mas o resultado geral, construído sob o desafio de uma história comum, compensa amplamente sua ocorrência.

Diante disso, vale retornar ao tema da unidade atlântica. Ao defender um único processo revolucionário, global, a obra se volta contra uma definição apriorística de centro e periferias como categorias prévias para entender clivagens entre os espaços ibérico e americano. No entanto, sagazmente também se faz a ressalva de que tais ideias podem ser adequadas ao propósito da obra, ao menos quando elas se converterem em parte do próprio imaginário dos atores estudados, das representações mentais que constituem o presente objeto de estudo (Fernandez Sebastián, p.697). Em função disso, pode ser aparentemente banal a crítica ao tratamento homogêneo demais que aqui se dá a uma imensidade espacial, marcada por complexas e desiguais relações nos mais de 300 anos de colonização da América. Só nos arriscamos a seguir avante nessa ponderação, diante dos vários indícios que o pujante Diccionario nos oferece quanto aos diversos sentidos de modernidade no Novo e no Velho Mundo.

As análises dos termos história e república, especialmente, nos conduzem a tais questionamentos. Quanto ao primeiro, Guillermo Zermeño Padilha, autor da vigorosa síntese transversal, parte da premissa de que o termo é, em si mesmo, um conceito de temporalidade, e nos apresenta uma irretocável discussão historiográfica sobre sua relação com a construção da modernidade como uma ruptura temporal. Ao analisar os usos do vocábulo, arrisca marcar uma diferença estrutural na emergência de seus significados entre a Europa e a Ibero-américa. Na primeira, eles se articulariam a um processo de reflexão interna dos letrados, autorreferente em relação ao seu passado e consequentemente ao seu futuro – é notável como nos verbetes sobre Espanha e Portugal, de autoria de Pedro José Chacón Delgado e de Sérgio Campos Matos, respectivamente, as independências da América não parecem exercer nenhuma influência na ressignificação do conceito. No Novo Mundo, no entanto, o uso da palavra não resulta de algo imanente, e seu futuro se apresentaria, nas palavras do próprio Zermeño, “como um cheque em branco ao portador” (p.576). Seguindo sua cautelosa análise, seria mesmo excessivo afirmar que na Ibero-américa não teria existido um campo de “espaço de experiência” aos moldes koselleckianos; mas a tarefa de edificação dos novos Estados nacionais, aliada à negação/incorporação do passado colonial, teve, evidentemente, impasses particulares. O que serve para explicar a sensação de desconforto no esforço de construção de histórias locais americanas, desde meados do XVIII, e mesmo na emergência de crítica à condição colonial que, no mesmo período, extrapolavam a ela.

O termo república igualmente explicita grande parte dos desafios impostos aos coevos quanto à construção do futuro. Conforme analisado por Georges Lomné a partir dos verbetes específicos, é um equívoco associar seu uso apenas a uma forma de governo, conforme praticaria a historiografia posteriormente e que, no caso do Brasil, persistiria em vê-lo apenas como uma completa exceção. O que significa dizer que, nem mesmo onde acabariam por vigorar sistemas republicanos, o sentido do termo não se impõe necessariamente desde sempre – veja-se como no caso da Ata Constitutiva dos “Estados Unidos Mexicanos”, em 1824, o termo usado é “federação” e não “república” (conforme demostra Alfredo Ávila p.1339). Em, Portugal, de outro modo e na mesma época, se podia falar da “monarquia como a melhor das repúblicas” (Rui Ramos, p.1361). A matização do modelo norte americano como base para o significado do termo vem associada à exploração de sua associação aos sistemas representativos opostos à democracia, com a defesa da importância que a invenção republicana ibero-americana teve na sua ressignificação em todo mundo ocidental. Talvez por isso, Lomné não enfatize suas representações vinculadas às leituras e imagens da antiguidade, conforme destacam Gabriel Di Meglio (p.1272) e Alfredo Ávila (p.1333), para os casos da Argentina e do México, respectivamente.

A chave da projeção republicana como utopia de futuro é uma das mais contundentes para que se revalorize as clivagens estruturais entre esses mundos unidos pelo Atlântico. Vale dizer que várias das análises dos conceitos aqui apresentadas apontam para evidentes diferenças na sua utilização nos distintos hemisférios, conforme já indicado por nós. No entanto, república carrega para os americanos uma questão de fundo, que se generaliza amplamente em meados do século XIX: o da sua incompletude. Era dessa forma que Juan Batista Alberdi, em 1852, e uma vez derrotado Juan Manuel Rosas na Argentina, sustentava que:

la república deja de ser una verdade de hecho em la America del Sur, porque el Pueblo no está preparado para regirse por esse sistema (Apud Di Meglio, p.1278) Ou seja, para além da dimensão utópica comum à modernidade ocidental, faz-se presente um sentido de travamento em sua efetivação, por condições objetivas que, de uma forma ou de outra, remontam à história da América, dos seus homens e da sua sociedade. Não é de se espantar que mesmo o “progresso” pudesse aparecer, por vezes, como “decadência” (Zermeño, p.568), ao lado da sempiterna esperança de se alcançar os melhores frutos da civilização. Noção não apenas dos coevos, mas que engendrou raízes na modernidade pelas nossas bandas do mundo. Questão que, como outras, a magnitude do presente Diccionario nos permite pensar.

Andréa Slemian – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: slemian@unifesp.br


SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano. Madrid: Ministerio de Cultura, 2009. Resenha de: SLEMIAN, Andréa. Unidade e diversidade das experiências políticas no mundo iberoamericano: Iberconceptos, 1750-1850. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 160-167, jan./jun., 2012.

Acessar publicação original [DR]

Dicionário dos Historiadores Portugueses – Da Academia Real das Ciências até ao final do Estado Novo – MATOS (LH)

MATOS, Sérgio Campos de (Coord). Dicionário dos Historiadores Portugueses – Da Academia Real das Ciências até ao final do Estado Novo. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2015. Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História, v. 62, p. 193-197, 2012.

1 Excelente ideia a de produzir um dicionário deste teor. Já existem noutros países europeus, Espanha, França ou noutros países mais distantes como o Brasil. Mas o dicionário português apresenta numerosas singularidades. Ser on-line, até agora este tipo de obras tem sido editado em papel. Também é novidade ser lançado no site da Biblioteca Nacional de Portugal uma obra em construção, os e-books costumam editar-se completos, este produto virtual assemelha-se às antigas edições em fascículos. Por enquanto tem só 30 entradas e listas das futuras entradas agrupadas por historiadores, temáticas, instituições e revistas. São essas listas que permitem compreender um pouco melhor o sentido da construção da obra, que anuncia como ponto de partida a Academia Real das Ciências e como ponto final o dia 25 de abril de 1974. As fronteiras são discutíveis. Na minha opinião ou se começava em Fernão Lopes ou em Alexandre Herculano, tal como têm sido as escolhas de outros países: em França, Christian Amalvi (2004) optou por principiar em Grégoire de Tours, em Espanha (2002) optou-se por 1840.

2 Mas intrigante e pouco claro é o ponto final: 25 de abril de 1974, data do final do Estado Novo. O que se entende por isso? Incluem-se os historiadores já existentes nessa data, ou seja que tinham obra publicada até então? Uma rápida leitura da lista dos nomes on-line mostra que não. Será em função da carreira universitária? Ou o doutoramento? Também não se acerta. Continuam a ser evidentes as ausências, além de tal não se coadunar com o critério anunciado de incluir autodidatas e personalidades de diferentes formações e não só académicos, o que, sendo sempre adequado, ainda o é mais quando se conhece o poderoso filtro ideológico e político que foram as instituições universitárias durante o Estado Novo. Mas tendo incluído Álvaro Cunhal, dever-se-ia incluir também Mário Soares, autor de As Ideias Políticas e Sociais de Teófilo Braga, com prefácio de Vitorino Magalhães Godinho (Centro Bibliográfico, Lisboa, 1950). Aliás a obra de Álvaro Cunhal, As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média, só consta como editada em 1975, no Catálogo da BNP e é pena que a edição clandestina anterior não esteja depositada na BNP. O interesse de homens políticos pela escrita histórica, que explica a inclusão de vários outros nomes, é uma tradição portuguesa, que se deve valorizar hoje, face à «transmutação» atual de gestores tecnocratas em políticos, com demasiada frequência falhos de cultura histórica.

3 A grande notoriedade posterior a 1974 parece explicar a presença de autores que não tinham quase nada publicado no domínio da historiografia até o dia 25 de abril de 1974 e só depois daquela data, às vezes vários anos mais tarde, é que vieram a publicar obras de vulto de natureza histórica. O crivo não foi pois a relevância científica das obras publicadas antes de 1974, critério que é evidente não ter sido aplicado. O critério da morte terá sido o que explica uma dessas presenças, a de João Bénard da Costa, segundo me foi explicado pelo coordenador. Mas mesmo seguindo esse critério, continuam as ausências. Não constam Rómulo de Carvalho, Ana Maria Alves, César de Oliveira, Sacuntala de Miranda, Maria Ioannis Baganha, Jill Dias, António Candeias, entre outros. O critério da morte, adotado no caso francês, para evitar a tendência hagiográfica, podia até ter a vantagem de rejuvenescer o dicionário português. Estando prevista a sua conclusão em 2015, estarão excluídos desta obra 41 anos de produção historiográfica portuguesa! Por acaso trata-se, como é geralmente sabido, de um período de intensa renovação da historiografia e das ciências sociais em Portugal. Mas mesmo entre os autores clássicos encontrei uma lacuna inexplicável: como se pode omitir José Acúrsio das Neves autor da História das Invasões Francesas?

4 Uma boa ideia foi incluir os historiadores estrangeiros que escreveram sobre a história de Portugal, aliás bem poucos, mas também houve aqui esquecimentos importantes, recordo apenas H. E. S. Fisher, Rebecca Catz ou ainda Lucia Perrone que não constam, mantendo-se aqui a falta de um critério de escolha compreensível. E eis que se descobre nova indefinição: será que não se inclui a historiografia sobre as antigas colónias?

5 Autores estrangeiros prestigiados que estudaram a história colonial portuguesa em África, como Herman Bauman, Beatrix Heintze, David Birmingham, Allen Isaacman, Douglas Wheeler, René Pélissier, Basil Davidson não constam, embora várias das suas obras tenham sido editadas nos anos 50, 60 e início de 70. Foram fundamentais nesta área, numa época em que entre os portugueses quase só funcionários do Estado Novo escreviam sobre a África dita «portuguesa», sobretudo no que se refere aos séculos XIX-XX.

6 E como explicar também a reduzida presença de brasileiros, cuja produção sobre a história colonial portuguesa no Brasil é enorme? Consta Novais, cujo primeiro livro data de 1975 (portanto fora do período demarcado), mas não se avistam vários autores, alguns bem anteriores, como Tarquínio de Sousa, Alice Canabrava, E. Viotti da Costa, Carlos Guilherme Mota, entre tantos outros. Infelizmente o francês Abade Raynal escreveu o célebre livro O estabelecimento dos portugueses no Brasil (1770) antes de 1779, data da criação da Real Academia das Ciências.

7 Em relação à Asia, como se pode omitir Donald F. Lach, autor do notável livro Asia in the making of Europe (1.ª edição1965, reeditado 1971), em que se dedica a Portugal diferentes capítulos em cada um dos 4 volumes desta grande obra? Como ainda não se traduziu este livro magistral? Pannikar, autor de Asia and western dominance – a survey of Vasco da Gama epoch of Asian History (1959), também não está previsto. Só me tenho referido a autores com obra dentro das balizas atuais deste dicionário, ainda que as considere questionáveis. Talvez Gaston Perera, historiador do Sri Lanka, que estudou a ocupação portuguesa no seu país, em obras recentes, tendo falecido subitamente em 2011, pudesse também ser incluído…

8 A dificuldade em excluir a produção de 38 anos de intensa vida científica ou intelectual torna-se evidente quando se consultam as duas únicas entradas temáticas já existentes, História de Arte e História Cultural, a bibliografia referida é num caso posterior a 1979 e no outro a 1990. E naturalmente que a baliza temporal também ultrapassa largamente 1974 nas biografias e bibliografias ativas e passivas de algumas das principais entradas já existentes.

9 Consultando a lista das instituições, encontram-se as Faculdades de Letras e de Direito, mas aqui também as ausências surpreendem, não constam nem o ISCEF (predecessor do ISEG), nem sequer o GIS, predecessor do ICS, nem a Faculdade de Economia de Coimbra, nem o ISCTE (a comemorar este ano os 40 anos de existência). Quanto às revistas, só constam revistas fundadas antes de 1974, mas está indicado como termo limite do âmbito em consideração a data de 2011-2012, quando elas ainda existem. Porém, nenhuma das novas revistas que surgiram nesse período estão incluídas: a Revista da História das Ideias, a Revista de História Económica, a Ler História, entre outras. Ainda mais estranha é ausência da Revista de Economia, que antes de 1974 publicou estudos importantes de história.

10 Face às balizas temporais adotadas surpreende menos que ao mencionar as fronteiras da história com outras ciências humanas, se não refira nem a sociologia, nem a ciência política, embora já existissem com nome camuflado. O regime estado-novista tinha os seus gostos (des-gostos) linguísticos e semânticos. É mais um lapso.

11 Na apresentação on-line conclui-se que o dicionário será acrescentado regularmente com novas entradas e poderá beneficiar com sugestões críticas dos seus leitores. Aqui ficam as minhas. No que me diz respeito, embora o meu primeiro livro, que é o texto também da tese de doutoramento, tenha sido publicado em 1971, e tenha tido grande impacto e embora tenha vários artigos publicados em revistas estrangeiras e portuguesas prestigiadas antes do 25 de abril, e já então fosse professora universitária, espero e prefiro estar viva em 2015 e continuar a escrever e a publicar a meu gosto, a estar morta para ser incluída no dicionário, o que mesmo assim seria incerto… Desejo também nessa altura festejar os longos anos de José Manuel Tengarrinha, alguns bem menos de José Sasportes, de Maria Beatriz Nizza da Silva, e meus também. Todos nós com obra publicada antes de 1974 somos ainda demasiado jovens para este dicionário desatualizado de 41 anos. O dicionário espanhol, publicado em 2002, avançava até 1980, e mesmo assim foi criticado por não se prolongar mais. Bem equilibrada e transparente foi a opção do Dicionário Histórico de Economistas Portugueses, organizado por José Luís Cardoso, incluindo na sua seleção dos economistas aqueles que tivessem completado 70 anos à data da publicação. Útil também salientar que o critério de relevância científica, em detrimento de funções universitárias, administrativas, políticas ou outras, presidiu a essa escolha, assim como a prioridade dada à análise da obra científica, reduzindo a parte biográfica, em geral já retratada em outras obras de referência. O que também não constituiu norma comum nas entradas já disponíveis neste dicionário.

12 Não há nenhuma referência a um motor de busca por nomes ou temas, de forma a cruzar informação. Seria desde já útil. Quem se interessasse por António Sérgio poderia encontrar a referência à polémica com Mário de Albuquerque, referida por Ana Leal Faria, mas que não mereceu a atenção de Romero de Magalhães, com ou sem razão, essa não é a questão. Esperemos que, no que parece ser o primeiro dicionário virtual do mundo neste domínio, esta funcionalidade seja introduzida rapidamente. Não o fazer seria um desperdício dos novos meios tecnológicos. Um contrassenso. Mais um.

13 Sem qualquer sombra de dúvida, este dicionário merece ser revisto, remodelado com base em critérios transparentes e naturalmente atualizado – prolongando-o até o final do século XX, para não constituir uma ocasião perdida de prestar um excelente serviço à comunidade científica, evitando um considerável desperdício de meios humanos e financeiros, e podendo vir a contribuir para uma boa imagem nacional e internacional das instituições envolvidas, a Biblioteca Nacional de Portugal e o Centro de História da FLL-UL.

Miriam Halpern PereiraProfessora catedrática emérita do ISCTE-IUL e investigadora do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. E-mail: miriam.pereira@iscte.pt

Acessar publicação original

Diccionário Biográfico Español (1808-1833), de los orígenes del liberalismo a la reacción absolutista – NOVALES (LH)

NOVALES, Gil, Alberto, Diccionário Biográfico Español (1808-1833), de los orígenes del liberalismo a la reacción absolutista. Madrid: , Fundación Mapfre (Instituto Cultural), 2010. (3 volumes + CD interativo). Resenha de: PEREIRA, Miriam Halpern. Ler História, n.62, p. 197-199, n. 62, 2012.

1 O autor é um prestigiado especialista das origens do liberalismo em Espanha. Doutorou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Saragoça, tendo continuado a sua carreira na Alemanha, Estados Unidos e, ao regressar a Espanha, após um período de alternância entre as Universidades de Madrid e Barcelona, acabou por estabilizar na Universidade Complutense. É atualmente professor emeritus desta Universidade. Dirige desde 1983 a revista Triénio- Ilustración y liberalismo.

2 A sua obra mais recente é o Diccionário biográfico español (1808-1833), de los orígenes del liberalismo a la reacción absolutista, fruto de mais de três décadas de investigação. Este culminar de uma vida de labor científico insere-se numa obra em que o interesse pela origem do liberalismo espanhol foi acompanhada desde longa data pela valorização do papel do indivíduo na história. Principiando por uma abordagem clássica no estudo sobre Joaquim Costa (tese defendida na Faculdade de Direito da Universidade de Saragoça), desde cedo sucedeu-lhe uma abordagem prosopográfica no amplo estudo sobre as Sociedades Patrióticas, inovadora análise sobre a sociabilidade política: Las Sociedades Patrióticas (1820-1823): Las Libertades de expresión y de reunion en el origen de los partidos políticos (Madrid, 1975, 2 vols.). Alberto Gil Novales veio a Lisboa, creio que pela primeira vez a uma reunião científica, quando participou no colóquio O Liberalismo na Península Ibérica na 1ªmetade do século XIX, a primeira de um conjunto de intervenções em colóquios portugueses que viria a realizar nos anos subsequentesSeria extremamente interessante ouvi-lo agora falar-nos sobre esta sua recente obra, que inclui um CD interativo, permitindo dois tipos de pesquisa, uma simples pesquisa alfabética, e um tipo de pesquisa livre, pela palavra ou pelo nome no conjunto da obra.

3 O objetivo do Diccionário é, retomando palavras do autor «refletir as vidas, ideias, vicissitudes e aspirações dos nossos compatriotas de aqueles anos e dos não-espanhóis que estavam em contacto próximo com eles». Conhecer as vivências de um indivíduo ajuda a compreender não só as suas ideias, como as suas atitudes. A rede de relações sociais, de parentesco e de amizade, os altos e baixos do percurso individual esclarecem comportamentos porventura menos previsíveis. Estudo biográfico e estudo da sociedade em que viveu o biografado completam-se e cruzam-se nesta obra.

4 Esta monumental obra inclui 25.000 notícias biográficas, de todos os que tiveram um papel relevante, por pequeno que tenha sido, durante o reinado de Fernando VII. Recorde-se que durante este reinado tiveram lugar acontecimentos decisivos na história de Espanha: a Guerra da Independência, correspondente ao que em Portugal tem a designação de invasões francesas, as Constituições de Cádiz e de Bayonne, a independência das colónias sul-americanas e o Triénio Liberal. Trata-se de uma obra elaborada pelo autor ao longo de 35 anos. Foi sendo precedida de publicações parciais, colocando-se à disposição da comunidade científica e do público interessado sucessivos conjuntos já em si muito valiosos. Os Dicionários do Triénio Liberal (em colaboração, 1991), Dicionários biográficos de Extremadura (1998) e o aragonês (2005), precederam este grande marco da historiografia espanhola.

5 O período abrangido não se cinge às balizas temporais anunciadas, naturalmente há personagens que nasceram no século XVIII e outros que só desapareceram na década de 70 do século seguinte. Nestas notícias biográficas, intercaladas de algumas pequenas biografias mais alargadas (como é o caso de General Álava, Flórez Estrada, Riego, entre outros) estão presentes dominantemente homens. A presença feminina é menor do que se poderia desejar, nas palavras do autor, mas a época não permite mais.

6 Permitiu sim ao autor percorrer os diversos estratos da sociedade espanhola. Desde os burgueses e pequeno burgueses, capitalistas, empresários, comerciantes, industriais, viajantes, proprietários, lavradores, homens do campo, artesãos, operários, toureiros, oficias do Exército e da Marinha, guerrilheiros, conspiradores, agentes de polícia, espias, ladrões, bandidos, e até escravos residuais. O clero também está presente – frades e sacerdotes, bispos, algumas freiras milagrosas – assim como a aristocracia, a família real (recobrindo três reinados, Carlos IV, Fernando VII, José I), os altos funcionários administrativos, os chefes políticos, os deputados, das províncias e das Cortes, o corpo diplomático estrangeiro residente no reino e o espanhol em funções no estrangeiro, os jornalistas, os escritores, os poetas, os atores e atrizes de teatro, os artistas, os homens de ciência, os juristas e os eruditos, num desfile colossal de personagens que permitem reconstituir a trama social desta época. Não só todas as regiões de Espanha estão presentes, mas também gente das Américas e de outras zonas do mundo. Naturalmente que todas posições ideológicas, religiosas e políticas estão presentes nesta magnífica obra. Para sua realização, a enorme erudição e o profundo conhecimento desta época pelo autor foi determinante na meticulosa e inteligente análise de grande variedade de fontes, entre as quais se contam: registos paroquiais, guias vários, atas de sociedades, colégios e instituições de ensino, ordens religiosas e de igrejas seculares, imprensa, folhetos, correspondência privada.

7 O Dicionário biográfico encontra-se disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, onde, face ao reduzidíssimo intercâmbio cultural luso-espanhol, entendi dever colocar à disposição do público português o exemplar que me foi oferecido, guardando para mim unicamente o CD, dada a inexistência de um serviço de documentos audiovisuais nesta instituição.

Miriam Halpern PereiraProfessora catedrática emérita do ISCTE-IUL e investigadora do CEHC, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. E-mail: miriam.pereira@iscte.pt

Consultar publicação original

 

Dicionário Crítico do feminismo – HIRATA (CP)

HIRATA, Helena; Laborie, Françoise et alDicionário Crítico do feminismo. São Paulo, Editora UNESP, 2009. Resenha de: ABREU, Maira. Dicionário crítico do feminismo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 36, Jan./Jun. 2011.

Publicado originalmente em francês1 e traduzido no ano de 2009 para o português, o Dicionário crítico do feminismo vem preencher uma importante lacuna no Brasil. Primeira obra do gênero editada no país2 oferece um panorama – numa linguagem clara e acessível a não especialistas – dos grandes temas do movimento feminista (aborto e contracepção, violências, família, etc.), polêmicas e conceitos centrais desse movimento (igualdade x diferença, patriarcado), além de interpretações feministas de algumas categorias (dominação, desemprego, trabalho, cidadania, poder).

São 48 verbetes formulados, em sua grande maioria, por autoras/es francesas/es, entre as quais um grande número de sociólogas, baseados numa bibliografia predominantemente francófona, embora em diálogo com outras produções. A proposta não é “colocar em ordem alfabética um conjunto de conhecimentos adquiridos”, ou seja, o Dicionário não tem a pretensão de contemplar toda a pungente produção teórica sobre o tema já produzida– proposta pouco factível – mas, “transmitir uma nova grade de leitura”, tornando “metodologicamente visível a sexualização do social e seus efeitos”, e colocando no centro do debate “a problemática da dominação entre os sexos e suas consequências” (13).

No Brasil, a pretensão de “transmitir uma nova grade de leitura” ganha outra dimensão. Por motivos que caberiam ser investigados e que pertencem a múltiplos fatores históricos, culturais, intelectuais e institucionais da constituição do campo de “estudos de gênero” no país, aqui foram privilegiadas teorias desenvolvidas nos países anglo-saxões. Deve-se ter em mente que há sempre um conjunto complexo de mediações de natureza diversa na constituição dos aparatos teórico-conceituais, que são elaborados no bojo de disputas políticas e em simbiose com as tradições intelectuais, históricas e políticas de um determinado contexto. É por isso que a “diversidade de sotaques” nas ciências humanas é fundamental para o cosmopolitismo das ideias (Ortiz, 2002). Assim, um dos méritos da publicação do dicionário no Brasil é de permitir um maior contato, em português, do público brasileiro com alguns debates feministas franceses, abrindo meios para um diálogo entre essas produções teóricas. As escassas traduções da produção feminista francesa para o português, aliada à preponderância do inglês como “segunda língua”, tornou a referida produção pouco acessível a um público mais amplo no país, mesmo se tratando de estudantes da área de ciências humanas.

As especificidades do contexto francês suscitaram uma produção teórica com características bastante distintas em relação, por exemplo, aos Estados Unidos. Os conceitos “relações sociais de sexo” (rapports sociaux de sexe) e “modo de produção doméstico” são exemplos de contribuições teóricas do feminismo francês. Esse quadro conceitual pode causar certo estranhamento em parte das/os leitoras/es brasileiras/os mais acostumados a outros referenciais teóricos e conceituais.

Alguns verbetes são fundamentais para compreender o contexto teórico/político feminista francês, entre os quais destacamos: “diferença dos sexos”, “igualdade”, “movimento feminista”, “patriarcado (teorias do)”, “sexo e gênero”, “universalismo e particularismo”.

A escolha dos temas abordados também é bastante significativa do contexto de elaboração da obra. Chamam a atenção, por exemplo, verbetes como “paridade”, “diferença sexual” e a ausência de outros como “gênero” e “queer“. Destaca-se também um grande número de verbetes relacionados à temática trabalho (“trabalho”, “ofício, profissão, bico”; “categorias socioprofissionais”, “desemprego”, “divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo”, “emprego”, “flexibilidade”, “saúde no trabalho”, “sindicatos”, “trabalho”, “trabalho doméstico”, etc.), que parece refletir em parte temas de interesse do grupo que organizou a obra. Segundo o esclarecimento no prefácio, essa obra é fruto da atividade do Grupo de Estudos sobre Divisão Social e Sexual do Trabalho (GEDISST-CNRS) que ganhou o nome de Gênero, Trabalho, Mobilidades (GTM)3 em 2005 (16).

Em análise comparativa com outros dicionários congêneres produzidos nos Estados Unidos percebe-se que no Dicionário em questão são poucos os verbetes relacionados à “sexualidade”. Brigitte Lhomond ressalta que alguns debates relacionados à temática que deram lugar a “vívidas polêmicas nos países anglo-saxões” restaram marginais na França – como, por exemplo, prostituição, pornografia, sadomasoquismo dentre outras práticas sexuais (234). O fraco interesse por alguns debates que polarizaram feministas estadunidenses, como pornografia e políticas sexuais em geral, é uma questão ressaltada em outras obras . Para Lilian Mathieu (2003:45-46), diante do pouco interesse das feministas francesas pela discussão sobre prostituição, a presença de dois verbetes sobre o tema no Dicionário seria um “fato excepcional”. Cabe ressaltar que é o único verbete com esse formato. O primeiro, escrito por Claudine Legardinier, define a prostituição como “uma organização lucrativa, nacional e internacional de exploração sexual do outro” (198) e critica a expressão “trabalhadoras do sexo” que legitimaria “a ideia de que a mercadoria sexo se tornou um dado indiscutível da economia moderna” (200). Por outro lado, Gail Pheterson, autora do segundo verbete, define a prostituição como uma instituição de regulação das relações sociais de sexo, procurando mostrar que há um continuum de trocas econômico-sexuais entre homens e mulheres, no qual a prostituição seria somente uma de suas modalidades (203-204).

No prefácio da obra, as organizadoras esclarecem que as análises que concebem a prostituição como um trabalho e aquelas que a definem como uma violência constituiriam, na França, pontos de vista irredutíveis e por isso a opção de apresentar duas rubricas contraditórias (15).4

Ainda sobre os verbetes, uma outra observação pertinente para o público brasileiro é que alguns estão bastante presos ao contexto francês, como “sindicatos”5, por exemplo.

Em relação ao referencial teórico predominante no Dicionário, cabe fazermos alguns comentários. Françoise Collin, no verbete “diferença dos sexos (teorias da)”, enfatiza a importância da ideia de universalismo, vinculada às tradições cultural, filosófica e política herdadas do racionalismo iluminista, para o feminismo francês. Em “universalismo e particularismo”, Eleni Varikas reconstrói as origens da noção de universalismo e assim resume um dos dilemas da discussão para o feminismo:

O interesse geral está tão associado a uma visão homogênea e uniforme do ‘corpo’ político que qualquer expressão de particularidades é imediatamente tida como suspeita de um particularismo ameaçador do princípio da universalidade dos direitos, que fundou a sacrossanta República (269).

Embora o verbete “movimentos feministas”, de autoria de Dominique Fougeyrollas-Schwebel, enfatize a clivagem entre feminismo radical, marxista e liberal, essa não foi a divisão mais importante dentro do MLF (Mouvement de Libération des Femmes) na França (Picq, 1993 e Kandel, 2000). A polarização entre feminismo universalista e diferencialista, que dividiu MLF e provoca vivas polêmicas até os dias atuais, abordada por Collin no verbete acima mencionado, é fundamental para o feminismo francês. O Dicionário se insere claramente dentro de uma perspectiva universalista para a qual, como define Collin, a diferença que caracteriza homens e mulheres seria em si mesma insignificante e “sua importância determinante e socialmente estruturante é um efeito das relações de poder” (62).

Por tudo isso, pode-se perceber o distanciamento do Dicionário daquilo que ficou conhecido como “french feminism“. Essa categoria, muito utilizada por acadêmicas anglófonas, engloba um conjunto de elaborações influenciadas pela psicanálise lacaniana e outros autores/as pós-estruturalistas, cujos principais nomes seriam Helene Cixous, Julia Kristeva e Luce Irigaray, e que têm, em maior ou menor medida, afinidades com as ideias da corrente diferencialista do feminismo francês.6

Outra particularidade do feminismo francês foi a importância do marxismo na sua constituição. Ao contrapor os movimentos feministas europeus ao contexto norte-americano Fougeyrollas-Schwebel enfatiza que nos primeiros “a relação com os partidos de esquerda é essencial e a dialética de inclusão-exclusão é permanente” (148). Como nos lembra Teresa de Lauretis, a ideia de que as mulheres não constituem um “grupo natural”, cuja opressão seria o resultado de sua natureza física era compartilhada por diversas feministas de contextos diversos, “ainda que na Europa essa compreensão tenha precedido o feminismo, na América anglófona ela frequentemente seguiu e foi resultado de uma análise feminista do gênero” (Lauretis, 2003).

As militantes do MLF eram provenientes, em grande medida, de organizações de esquerda, embora a relação de muitas dessas com esses agrupamentos fosse de oposição e até mesmo de ruptura. As elaborações teóricas feministas na França se deram em constante debate com a teoria marxista, e é nesse contexto que devem ser compreendidos alguns dos seus conceitos e propostas. Uma das correntes que surge no seu bojo e que tem significativa influência do marxismo é o feminismo materialista. Essa perspectiva, que teve pouca divulgação e impacto no Brasil, mas cuja penetração foi significativa na França entre pesquisadoras de ciências humanas, particularmente sociólogas (Giraud, 2004:109), desponta em diversos momentos do Dicionário. Essa corrente surge no interior das mobilizações feministas francesas no final dos anos 1970, e se articula inicialmente em torno da revista Questions féministes, tendo como marca um posicionamento antiessencialista. A crítica ao naturalismo proposta consiste não somente na compreensão do caráter cultural das noções de feminilidade e masculinidade, mas, de maneira ainda mais radical, na afirmação de que as diferenciações sociais entre os sexos não preexistem logicamente às relações sociais que as engendram. Estão entre as propositoras dessa perspectiva Christine Delphy, Nicole-Claude Mathieu, Monique Wittig, Paola Tabet, Colete Guillaumin, entre outras. As duas primeiras autoras colaboraram com o Dicionário, e suas contribuições são expressamente mencionadas ao longo da obra, assim como as de outras autoras citadas. O primeiro parágrafo do verbete “divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo”, de Danièle Kergoat, sintetiza algumas das contribuições desse referencial:

As condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino biológico, mas, sobretudo, construções sociais. Homens e mulheres não são uma coleção – ou duas coleções – de indivíduos biologicamente diferentes. Eles formam dois grupos sociais envolvidos numa relação social específica: as relações sociais de sexo. (67)

No Brasil, é muito difundida a ideia de uma certa equivalência entre teorias pós-modernas e uma perspectiva antiessencialista, como se a segunda só pudesse ser fruto da primeira posição. É interessante notar que os referenciais antinaturalistas vêm, em grande medida, nessa obra, de autoras de outras perspectivas teóricas. Além disso, percebe-se até mesmo uma certa reticência, por parte de algumas autoras, em relação às teorias chamadas de “pós-modernas” ou “pós-estruturalistas”. Collin faz referência ao “pouco impacto” dessa perspectiva na França (64). Para Danielle Juteau essas teorias ocultariam frequentemente “as relações sociais fundadoras das categorias de sexo” (93). Para Nicole-Claude Mathieu nessas teorias “os aspectos simbólicos, discursivos e paródicos do gênero são privilegiados em detrimento da realidade material histórica das opressões sofridas pelas mulheres” (228).

Uma polêmica que perpassa o Dicionário já mencionada na introdução como uma das grandes controvérsias do livro é sobre o uso da categoria “gênero”. O termo é frequentemente descrito como “de origem anglo-saxã” (15), “muito utilizado nos meios anglo-saxões” (93). Para Françoise Collin, o termo “importado dos Estados Unidos e traduzido por ‘gênero'” não seria de “uso habitual” na França (59). Sabe-se que o conceito não teve aceitação imediata na França, mas, apesar das controvérsias, foi progressivamente incorporado. Embora seja de uso menos frequente que “relações sociais de sexo”, o termo aparece em diversos verbetes. Múltiplas são as razões para que o conceito não tivesse uma aceitação imediata na França – e aqui não me limito às argumentações presentes no Dicionário. Para algumas autoras, o uso do termo “gênero” seria não só inapropriado como desnecessário. Um primeiro motivo, dentro dessa argumentação, é que “gênero” seria um estrangeirismo desnecessário, chegando ao ponto de considerá-lo como “tão somente um anglicismo irritante” (Ozouf e Sohn apud Offen, 2006). Delphy nos alerta para o que ela considera ser  uma certa “hostilidade irracional contra aquilo que é visto como uma ‘importação do exterior'” (177) existente na França. Embora algumas objeções ao uso do conceito de gênero na França se enquadrem nessa argumentação, há oposições de outra ordem que comentaremos ligeiramente a seguir.

Algumas leituras apontam para o caráter intraduzível do termo “gender” para o francês. Há inclusive uma recomendação oficial de 2005 da Comissão Geral de Terminologia e Neologismo (França) para o uso de termos franceses equivalentes ao termo “gender“, considerando que não há necessidade linguística que justifique a substituição de “sexe” por “genre“.[7] Nicole-Claude Mathieu, no verbete “sexo e gênero”, menciona algumas outras objeções ao uso. Para algumas autoras, a distinção entre sexo e gênero, uma vez que compreenderia uma dicotomização entre biológico e cultural, acarretaria uma reificação da biologia, ocultando, assim, seu caráter ideológico e histórico. Para outras, o conceito de gênero eufemizaria as relações de poder e a ideia de antagonismo social correspondente a um sistema de exploração e dominação. Mas percebe-se que em muitos momentos as categorias “gênero” e “relações sociais de sexo” são utilizadas como sinônimos, sem que isso implique necessariamente um posicionamento teórico. Como enfatiza Delphy

não mais que outros termos de Ciências Sociais, os termos ‘patriarcado’, ‘gênero’ ou ‘sistema de gênero’, ‘relações sociais de sexo’ ou ‘relações sociais de gênero’, ou qualquer outro termo suscetível de ser empregado em seu lugar, não têm definição estrita e tampouco uma com a qual todos estejam de acordo (177-8).

Essa obra constitui um bom “guia” para uma viagem por alguns dos conceitos e propostas de um movimento teórico-político que revolucionou o século XX. Mas, trata-se de um dicionário, como procuramos mostrar, profundamente ancorado numa certa tradição teórica feminista francesa. O quadro teórico utilizado, a bibliografia que serviu de referência, os verbetes escolhidos são resultado de um contexto teórico/político particular. O caráter situado dessas elaborações, como de qualquer outra, não pode ser esquecido. Mas isso, de forma alguma, tira a pertinência da edição da obra no Brasil. Esperamos que a viagem dessas teorias ao país traga novos elementos para os debates brasileiros.

Referências

Code, Lorraine. (org.) Encyclopedia of feminist theories. Londres/Nova York, Routledge, 2000.         [ Links ]

Delphy, Christine. L’invention du “French Feminism”: un démarche essentielle. Nouvelles Questions Féministes, Paris, vol. 17, nº 1, 1996, pp.15-58.         [ Links ]

Gambe, Sara. (org) The Routledge Companion to Feminism and Postfeminism. Londres, Routledge, 2001.         [ Links ]

Giraud, Véronique et alii. Fonde en théorie qui n’y a pas hierarchie de domination et de lutes. Entretien avec Christine Delphy. Mouvements, nº 35, Paris, La Découverte, setembro-outubro de 2004, pp.119-131.         [ Links ]

Gubin, Eliane; Jacques, Catherine. (orgs.) Le siècle des féminismes. Paris, Éditions de l’Atelier/ Éditions Ouvrières, 2004.         [ Links ]

Hirata, Helena; Laborie, Françoise et alii. Dictionnaire critique du féminisme. Paris, PUF, 2004 (edição ampliada).         [ Links ]

Kandel,Liliane. Sur la difference des sexes et celle des feminismes. Les Temps modernes, nº 609, Paris, Gallimard, junho-julho-agosto 2000, pp.283-306.         [ Links ]

Lauretis, Teresa de. When lesbians were not women. Labrys, études féministes, número especial, setembro 2003. Site: http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/special/special/delauretis.htm [visitado em 10/07/2010]         [ Links ].

Louis, Marie-Victoire. Lettre à Danièle Kergoat – GEDISST [14/09/1999]. Site: http://www.marievictoirelouis.net/document.php? id=354&themeid=336 [visitado em 30/01/2011]         [ Links ].

Mathieu, Lilian. Prostituées et féministes en 1975 et 2002: l’impossible reconduction d’un alliance. Travail, genre et societé, nº 10, Paris, La Découverte, 2003.         [ Links ]

__________. The debate on prostitution in France: a conflict between Abolitionism, Regulation and Prohibition. Journal of Contemporary European Studies, vol. 12, nº 2, Routledge, agosto de 2004, pp. 153-163.         [ Links ]

Ortiz, Renato. A diversidade de sotaques: o inglês e as ciências sociais. São Paulo, Brasiliense, 2002.         [ Links ]

Picq, Françoise. Liberation des femmes. Les années-mouvement. Paris, Seuil, 1993.         [ Links ]

Spender, Citeris. Routledge International Encyclopedia of women.Global women’s issues and kwowledge. Londres/Nova York, Routledge, 2000.         [ Links ]

Varikas, Eleni. Féminisme, modernité, postmodernisme: pour un dialogue des deux cotés de l’ocean. Futur Anterieur, 1993. Site: www.multitudes.samizdat,net/spip.php?rubrique334 – visitado em 5/03/2007.         [ Links ]

__________. Penser le sexe et le genre. Paris, PUF, 2006.         [ Links ]

Notas

1  A versão brasileira é uma tradução da 2ª edição da obra publicada na França em 2004. A principal modificação em relação à edição anterior, de 2000, é a inclusão de dois verbetes: emprego e lesbianismo.
2  Nos Estados Unidos há diversas publicações do gênero, ver, por exemplo: Code, 2000; Spender, 2000; Gambe, 2001.
3  “Genre Travail Mobilités” é apresentado no site do grupo como uma equipe do laboratório CRESSPPA (Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris) centrado nas questões do trabalho numa perspectiva de análise de gênero. Para maiores informações, ver site http://www.gtm.cnrs.fr/
4  Para se ter uma ideia das polêmicas envolvidas na elaboração desse verbete, cito um trecho da carta de Marie-Victoire Louis a Danièle Kergoat recusando o convite para escrever um verbete sobre o tema no Dicionário e explicando os motivos dessa posição: “Participar deste dicionário, conjuntamente com esta pesquisadora [Gail Pheterson], cujas posições eu conheço após diversos anos, significa que nossas duas “análises” pertencem ao mesmo debate de ‘ideias’. E seriam da mesma natureza. Eu considero, de minha parte, que um texto legitimando um sistema de dominação proxeneta que – depois de séculos, frequentemente em acordo com os Estados – justificou o aprisionamento, a negação de direitos, os estupros, as violências, as torturas, os assassinatos praticados depois de séculos sobre as mulheres, as crianças e adolescentes dos dois sexos – mas também cada vez mais sobre os homens – não tem seu lugar num projeto de dicionário feminista” [www.marievictoirelous.netdocument.php?id=354 – visitado em 30/01/2011].
5  O verbete “sindicatos” começa, sem especificar o contexto ao qual se refere, com a seguinte frase “Em 21 de março de 1884, a lei Waldeck-Rousseau põe fim à lei de Le Chapelier (1791), permitindo a formação de sindicatos profissionais de operários e de trabalhadores de escritório” (236).
6  Sobre a ideia de “french feminism” ver Delphy (1996) e Varikas (1993).
7  Para consultar o documento, ver anexo do livro de Eleni Varikas, Penser le sexe et le genre (2006).

Maira Abreu – Doutoranda em Ciências Sociais – Unicamp, E-mail: mairabreu@yahoo.com.

Acessar publicação original

[MLPDB]

Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores – CASTRO (TES)

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, 477 p. Resenha de: NARDI, Henrique Caetano. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.3, Rio de Janeiro, nov. 2010.

A obra de Michel Foucault ganhou um renascimento bibliográfico impulsionado pelos eventos que marcaram os 20 anos de sua morte, em 2004, ano do lançamento do livro de Edgardo Castro na Argentina que aqui apresento. O autor é doutor em Filosofia pela Universidade de Fri-burgo (Suíça) e professor de História da Filosofia Contemporânea na Universidade de San Martín (Argentina). É também pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) da Argentina, agência de fomento equivalente ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

A obra recebeu uma tradução cuidadosa em 2009, o que já é um primeiro mérito a destacar no texto. O livro é apresentado pelos revisores técnicos (Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan), assim como pela tradutora (Ingrid Müller Xavier) como um ‘motor de busca’ que ajuda a percorrer a vasta obra de Foucault e sua preciosa e complexa caixa de ferramentas conceituais.

Não se trata de um motor de busca genérico e cabe aqui apresentar ao leitor as primeiras notas técnicas sobre o trabalho. O autor adverte que não se trata de uma obra exaustiva e que os crité-rios de inclusão dos verbetes (entradas) obedecem a uma leitura pessoal. Edgardo escolheu guiar o leitor nos aspectos menos conhecidos e menos explorados da obra de Foucault, apresentando, por exemplo, informações úteis para superar dificuldades linguísticas em relação aos termos em grego, assim como os autores menos conhecidos que Foucault cita. Obviamente ele não deixa de lado os conceitos e temas centrais e os pilares de sustentação da obra, os quais, por sua vez, ganharam espaço destacado no livro e, na minha leitura, compõem a parte do livro que é a mais rica em análise e a mais interessante para o leitor iniciante.

Como motor de busca, eu teria algumas críticas tanto em relação à edição original em espanhol, assim como à tradução para o português. A crítica se dá pela escolha do autor em referenciar os termos para edições em francês dos livros de Michel Foucault. Ou seja, se o leitor quiser buscar na fonte os termos ou conceitos apresentados terá de comprar edições em francês, algumas, inclusive, que não estão mais disponíveis, como, por exemplo, a edição em quatro volumes dos Ditos e escritos (1994) em francês que agora só é vendida na versão em dois volumes (2001). Em minha opinião, este objetivo da obra que se dedica a informar a localização de termos e autores não acrescenta muito ao que já está disponível nos Ditos e escritos publicados em francês, pois estes apresentam um índice remissivo e de autores exaustivo que orienta o leitor de forma mais eficaz que o proposto por Edgardo. A edição em português poderia ter corrigido este problema, mas não o fez. Outro alerta importante ao leitor é que o livro, como já assinalei acima, foi pu-blicado em 2004 e não incorpora os seminá- rios publicados na coleção Hautes Études, da Gallimard/Seuil, posteriores a 2003, fato este apontado pela tradutora. Não foram incluídos, portanto, os seminários: Sécurité, Territoire, Population (2004), Naissance de la Biopolitique (2004), Le Gouvernement de Soi et des Autres I (2008) e Le Gouvernement de Soi et des Autres II: le courage de la verité (2009).

Em comparação com outras obras de introdução e apresentação dos conceitos de Michel Foucault, o livro de Edgardo é o mais extenso dis-ponível em português. O livro de Judith Revel (2005), Michel Foucault: conceitos essenciais, editado pela Claraluz – tradução do livro Le vocabulaire de Foucault (2002), por exemplo, tem somente 33 entradas (verbetes); o livro de Edgardo tem 294 entradas (verbetes).

As grandes qualidades do livro estão na visão panorâmica da obra. Ele permite tanto ter uma compreensão extensa da caixa de ferramentais conceituais deixada por Foucault, assim como montagens preciosas de citações que marcam o percurso do autor. Edgardo adverte de que sua obra (p. 15) não deve ser vista a partir de um texto com ponto final, mas um ponto de partida para uma obra coletiva, um convite para explorar o trabalho de Foucault.

O estilo do texto do livro é relativamente uniforme, o autor propõe inicialmente uma breve introdução do conceito e na sequência encadeia uma série de citações relativas ao mesmo que aparecem em diferentes momentos da obra de Foucault, assim como os relaciona a outros conceitos/temas. Este formato torna a leitura um pouco truncada, mas, ao mesmo tempo, permite que acompanhemos as torções conceituais ao longo da obra, as quais tornam material a ideia de escrita como experiência, ou seja, como Foucault afirmava, a escrita tinha, para ele, a função de transformação, ele escrevia para não ser o mesmo.

Referências

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, v. I, II, III e IV. Paris: Gallimard, 1994. [ Links ]

______. Dits et écrits, v. I e II. Paris: Gallimard, 2001. [ Links ]

______. Sécurité, territoire, population. Paris: Ga-llimard, 2004. [ Links ]

______. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2004. [ Links ]

______. Le gouvernement de soi et des autres I. Paris: Gallimard, 2008. [ Links ]

______. Le gouvernement de soi et des autres II: Le courage de la vérité. Paris: Gallimard, 2009. [ Links ]

REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. [ Links ]

______. Le vocabulaire de Foucault. Paris: Ellipses, 2002. [ Links ]

Henrique Caetano Nardi – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: hcnardi@terra.com.br

Acessar publicação original

[MLPDB]

Abecedário: educação da diferença – CORAZZA (ER)

AQUINO, Julio Groppa; CORAZZA, Sandra Mara (Org.). Abecedário: educação da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2009. Resenha de: MENEZES, Antonio Basilio Novaes Thomaz de. Abecedário: educação da diferença. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.35 n.2, p.323-326 maio/ago., 2010.

Vocábulo da língua portuguesa, abecedário significa alfabeto: um “conjunto de signos gráficos, letras e diacríticos utilizados para representar os sons de uma língua”, ou, ainda, na forma vernacular, “qualquer sistema de signo gráficos, visuais ou sonoros”, de acordo com o Dicionário Larrousse. Isto por si só bastaria para enunciar todo o conteúdo pressuposto no título, não fosse o livro um esboço da construção coletiva e individual de todo um vocabulário inerente àquilo que lhe complementa o significado com a expressão educação da diferença. Entretanto, não se trata aqui de mais uma simples coletânea que reúne textos de diversos autores ou uma coleção de vocábulos e temas dispersos agrupados num volume. Trata-se, antes de tudo, de uma obra, um constructo que traduz, na decomposição da ordem vocabular, a composição da multiplicidade, dos múltiplos significados dos verbetes e do próprio léxico, daquilo que emerge cifrado como a composição de muitas vozes, no desafio de uma nova forma de pensar a educação.

A referência à forma típica dos dicionários, inclusive daqueles específicos à Filosofia e à Educação, revela uma inversão do significado do termo abecedário, subvertendo o estatuto estabelecido na sua própria lógica de ordenação. Heterogênea e heterotópica, a série alfabética das noções, dos conceitos e dos temas rabisca as primeiras letras daquilo que se experimenta como educação da diferença frente à concepção modal da educação vigente.
A capa negra com letras brancas apresenta o Abecedário na forma invertida de um espelho refletido nas letras negras das suas páginas brancas. Seus detalhes gráficos em cinza e em vermelho apontam para a norma e seu avesso, seja num retângulo cinza destacando o prefixo ab, neste caso prefixo da ausência na ordem do alfabeto, seja nas letras em vermelho que singularizam a educação da diferença. Isto que, na última capa às costas do volume, já prenuncia “33 autores imaginando e fabulando em 46 verbetes, as questões: O que é a educação? O que é a pedagogia? O que é pensar?”.

Urdidura em rede, a coletânea dos temas que lhe servem de conteúdo desenha um labirinto cujo descentramento das diferentes formulações constitui um ponto de fuga no quadro dos postulados teóricos. Neste, o pensamento se lança livre, formando constelações de noções e conceitos em torno do que se pode chamar de um plano projetivo da educação pela diferença. As questões apontam marcos de referência, sem qualquer pressuposto de identidade, numa cartografia de imaginações e fabulações que descrevem a leitura como um espaço da produção do pensamento.

A leitura do Abecedário constitui um desafio para o leitor que caminha pelas primeiras letras e se introduz na dinâmica de construção do pensamento. O livro produz novas séries de sentidos, configurados no uso dos parênteses, por exemplo, em verbetes como: “(o) Fora”, “(o) Que é a Filosofia?”, “(o) Que é a Pedagogia?”, “(o) X da questão”, que correspondem às diferentes formas de subversão do código ou de elisão da ordem na gramática do significado em verbetes como “Regimento (escolar)”, “(des)Territorialização” ou “(trans)Valoriz- ação do magistério”.

O livro exige do leitor colocar-se na condição da criança que, frente ao fascínio quase mágico das letras, põe-se a brincar com elas, não fossem elas imaginações e fabulações experimentadas como conceitos nas diferentes dimensões do seu conteúdo. O Abecedário tem como precondição de leitura a liberdade de pensar.

Universo tridimensional das constelações de noções e conceitos que lhe dão volume à perspectiva da educação da diferença, a obra compõe as peças de um quebra-cabeça nos seus diferentes modos de montar. Tomada sob o eixo tríplice das suas questões centrais, a perspectiva da diferença é aquela do múltiplo, daquilo que se lhe apresenta como superfície e se lhe configura como dado, expectativa ou probabilidade de um significado. O Abecedário resiste à redução dos cânones, incapsulável na sua totalidade fragmentada.

Muitas são as matrizes encontradas na construção da obra: Filosofia, Literatura, Semiótica, cinema… Desde a inspiração do título, no “Abécédaire” de Deleuze, cujo pensamento perpassa a obra, até as vozes recorrentes de Nietzsche, Platão, Bergson, Foucault, Espinosa, que ressoam em algumas páginas; bem como nas passagens ocasionais por Kafka, Barthes, Pessoa, Borges, Pasolini e Artaud, apenas para citar algumas notas; o livro mostra a sua originalidade na dodecafonia da sua composição. Antes, daquilo que num primeiro movimento nos parece inaudível.

Uma após a outra as letras se sucedem no Abecedário, e os verbetes multiplicam-se, incitando as imaginações às novas fabulações. Há uma superfície na qual se organizam os enunciados dispersos. Auto-organização da vida, da matéria do pensamento… Há, na forma de interação das partículas, uma correspondência entre os diferentes níveis de organização da matéria e aqueles que são possíveis na leitura do livro.

As questões centrais do livro (“O que é a educação?”; “O que é a pedagogia?”; “O que é pensar?”) divisam o horizonte de um enquadramento teórico, matriz histórica do pensamento educacional e fundamento da sua concepção moderna. As perguntas pelo significado da Educação e da Pedagogia como propostas do seu conteúdo remetem à distinção destas em fins do século XIX e início do século XX, tal como aparece, por exemplo, em 1885, no “Cours de pédagogie theórique et pratique”, de Gabriel Compayré. Deste modo, a pergunta pelo significado de ambas recoloca a questão do caráter da Educação como formação e da prática que define o ensino como ato pedagógico na sua acepção genérica.
De outro modo, na esteira da tradição consolidada, a divisa da educação da diferença produz a ruptura com a épistèmé moderna, quando no seu próprio quadro de definições coloca a pergunta pelo significado do pensar: “O que é pensar?”. A pergunta se põe à própria condição do pensamento como exercício e de invenção da Educação como esforço de criação do novo. Ela parte da existência do pensamento na Arte, na Ciência e na Filosofia, possibilitando, por um lado, interferências, repercussões e ressonâncias; ressaltando, por outro lado, as especificidades dos saberes, suas questões e condições próprias. Exercício do pensamento… Jogo de adivinha… Experimento mental… Afinal… O que o livro tem a dizer?

A composição da obra corresponde às variações possíveis em torno da leitura e aproximações do que se pensa diferença. Fragmentos da criação de um mosaico, totalidade fragmentada, possibilidades de séries e séries de possibilidades, o Abecedário se define nos modos de usar.
Lê-lo é colocar-se sob a perspectiva da exterioridade, do exercício do pensar a educação da diferença, a partir dos encontros, das conexões, das intercessões, das articulações e dos agenciamentos, tanto no domínio educacional quanto em conceitos, noções e elementos de outros domínios.

A leitura constitui-se num jogo probabilístico; dentre muitos, uma possibilidade de se estabelecer uma gramática própria ao Abecedário, a partir das suas redes de relações. Estas que relacionam os conceitos aos vocábulos do pensamento; as áreas de vizinhança aos outros domínios do saber; os substantivos à produção da materialidade do processo; as adjetivações à expressão das especificidades, às aproximações; e, por fim, os próprios verbos, a todo o processo da criação. Assim, a gramática fragmentada articula na forma da sintaxe vocabular a instância da criação de novos significados, assinalados em verbetes como “Rizoma”, cujo conceito aponta para o duplo aspecto do modelo e decalque transcendente, da configuração da identidade simultânea ao processo imanente da produção da diferença e da singularidade no domínio educacional.

Paralelo aos conceitos, a mesma gramática permite áreas de vizinhança nas quais as intercessões reverberam nos verbetes, a exemplo de “Plano” e “Zero”, oriundos de outros domínios, estabelecidos numa nova perspectiva, em torno de problemas específicos postos em relações topológicas e de variação de posições. Ei-los então, os conceitos de “Plano” e “Zero”, que atravessam o domínio da educação naquilo que concerne à prática e à vivência.

De outro modo, verbetes como “Sala de aula”, “Universidade”, “Máquina”, “Xerox” denunciam os substantivos na materialidade das práticas, daquilo que se faz por materializar a produção de objetos ou de um sistema d objetos que compõem o quadro da Educação. Emolduramento de uma percepção da realidade, aos substantivos se seguem as adjetivações como forma de sintaxe do que se apresenta e decorre da materialidade dos objetos em sistema, isto é, os referenciais da identidade avaliados na superfície em que se encontram, a exemplo dos verbetes “Sociedade de controle”, “Tecnologia educacional”, “Metodologia do ensino”, “Formação de professores”, “Inclusão escolar” etc.
A gramática fragmentada dos verbetes possibilita ainda uma leitura na direção daquilo que o Abecedário indica como “Zona de variação contínua”, de diferentes forças que interagem, constituem e atravessam o espaço da produção. Outros verbetes, como “Univocidade do ser”, “Geologia da moral” e “Esquizoanálise” são expressão de agenciamentos e conexões sobre aquilo que o pensamento suscita na prática educacional, por meio de novas aproximações, que permitem vislumbrar a perspectiva da diferença.

Assim, na diferença e na repetição dos verbetes, encontram-se os verbos “Aprender”, “Brincar”, “Ensinar”, fragmentos centrais nesta gramática de leitura processos afirmativos que caracterizam a singularidade no cerne da criação, daquilo que se reúne em torno da educação da diferença: devir.

Antonio Basilio Novaes Thomaz de Menezes – Editor da Revista Saberes: Filosofia e Educação. É chefe do Departamento de Filosofia, professor do Programa do Pós-Graduação em Educação, membro do Grupo de Pesquisa Fundamentos da Educação e Práticas Culturais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: gpfe@ufrnet.br

Acessar publicação original

Diccionario Enciclopédico de la Medicina Tradicional Andina. Del Noroeste Argentino al Conurbano Bonaerense – PALMA et al (C-RAC)

PALMA, Néstor Homero (Director); TORRES, Graciela F.; SANTONI, Mirta E.; FONTÁN, Liliana Madrid de Zito. Diccionario Enciclopédico de la Medicina Tradicional Andina. Del Noroeste Argentino al Conurbano Bonaerense. Salta: Instituto de Investigaciones en Antropología Médica y Nutricional, 2006. 279p. Resenha de: LOZA, Carmen Beatriz. Chungara – Revista de Antropología Chilena, Arica, v.41, n.2, p.313-315, dic. 2009.

Un notable vacío sobre medicina tradicional sudamericana se reconoce y completa en el Diccionario Enciclopédico de la Medicina Tradicional Andina del Noroeste Argentino al Conurbano Bonaerense. Desde la Argentina, dos biomédicos y un grupo de estudiosos nos ofrecen un importante catálogo de 476 entradas con noticias sobre materiales minerales, animales y recursos humanos; además de especies vegetales empleadas con fines medicinales por los terapeutas indígenas, particularmente los médicos itinerantes kallawayas, en el Noroeste de la Argentina (cf. Palma et al. 2006:33-270).

El diccionario está compuesto por tres cuerpos distintos pero complementarios, para aportar a la antropología y suministrar información histórica del fenómeno cultural de la medicina tradicional, a pesar de la ausencia de reconocimiento en los medios académicos oficiales argentinos. El primer cuerpo es una presentación y una introducción para exponer los lugares donde se recogió la información; además, entrega elementos explicativos sobre las “teorías” etiológicas presentes en la nosología médica tradicional andina, a partir de una terminología exclusivamente biomédica. El segundo cuerpo, de mayor volumen, está compuesto por un total de 476 entradas que no sólo son noticias sobre recursos medicinales, sino también sobre patologías (p.ej., alseduras, quedao, mala fuerza); patologías culturales (p.ej. ojeadura, ojeo, sopladura, susto); expertos (p.ej. kallawaya, curandero, curandero particular, camposino) y otros conceptos (p.ej. flechado de la casa). Algunas de las entradas se caracterizan por presentar un sentido unívoco, lo cual es signo de simplificación. Así, sahumerio no sólo es el “conjunto de elementos vegetales, animales, minerales y biológicos de carácter terapéutico que se queman en el acto terapéutico” (Homero Palma et al. 2006:193). Habría que agregar que sahumerio es la designación genérica de todos aquellos expertos que muñidos de un brasero realizan curaciones en el ámbito de las enfermedades, los padecimientos y los infortunios. Ahondar en la diversidad de sentidos, en los matices y en los contrastes del espacio geográfico de estudio habría enriquecido este cuerpo del diccionario. En esa línea, era necesario eliminar la categorización de cada noticia. Por ejemplo, la coca no sólo puede ser categorizada en farmacología, pues sus usos rituales y alimenticios son amplísimos en el mundo andino. Al mismo tiempo, los autores debieron ponerse de acuerdo en el tipo de noción conceptual que primaría a lo largo de la obra. La ambigüedad radica en el empleo simultáneo de sistema médico (cuyo paradigma está en crisis a pesar de su funcionalidad) y medicina folklórica (ampliamente superada en los estudios andinos).

Un anexo documental es el tercer cuerpo, conteniendo 193 noticias extractadas de la Historia del Nuevo Mundo (1653) del jesuíta Bernabé Cobo (1580-1657)1 (Cobo 1964 [1653]. Sin lugar a dudas, el extracto cumple varios objetivos: En primer lugar, facilitar a los estudiosos un compendio de la voluminosa obra de Cobo, cuya edición es antigua y de difícil acceso, a pesar de las reediciones que le sucedieron después del siglo XIX. En segundo lugar, se documenta que ciertos materiales habrían “caído en desuso o no han sido introducidos en el Noroeste Argentino”. Tal documentación se hace veladamente, pues es el lector quien debe constatar y confrontar el listado de los autores con el de Cobo, en vista de la ausencia concreta de especificaciones sobre los cambios operados en el empleo de productos medicinales (cf. Palma et al. 2006:227-270).

La comprobación de que en el Noroeste Argentino existe un vigoroso sistema médico no oficial de raigambre andino, que sería una opción al Sistema Nacional de Salud Argentino, da nacimiento al Diccionario Enciclopédico. Por esa razón, los estudiosos indagan en el vasto territorio de la puna jujeña, salteña y catamarqueña; en los valles Calchaquíes en jurisdicción de las provincias de Salta, Tucumán, Catamarca y la selva Tucumano-Oranense (desde el norte de la provincia de Salta, Jujuy y norte de la provincia de Tucumán), localidades del conurbano bonaerense y el Departamento de La Paz en Bolivia (Palma et al. 2006:20).

Según los autores, es necesario comprender un “complejo sistema de ideas de naturaleza heterogénea”, para entender los sistemas médicos andinos tradicionales. Tales sistemas corresponderían a la concepción mítica del número, al poder de la palabra, pues las prácticas terapéuticas están intrínsecamente relacionadas con los signos, los objetos potentes y la magia. Más aún, no deja de estar vigente el concepto topográfico de la enfermedad, las patologías cuya etiología puede adscribirse a la teoría de las emanaciones (p.ej. Pilladura de la tierra2 y la aicadura3). Obsérvese, entonces, que las enfermedades mentales tanto la locura (psicosis y neurosis) como el retraso mental (oligofrenias endógenas y exógenas) son la derivación secundaria de otra patología: consecuencia de un susto, de lapilladura de la tierra, del robo del alma por el Diablo o de una brujería (Palma et al. 2006:26).

La distinción entre aquellos principios que rigen a los sistemas médicos constituye el motivo principal de la introducción del libro. Quizá la centralidad otorgada a ese tema permita explicar la carencia de especificaciones concretas acerca de dos cuestiones fundamentales: la unidad de estudio y las unidades de análisis. Son escasas las infomaciones sobre los límites no sólo conceptuales sino también empíricos de su tarea. Explorando cada una de las noticias se deduce que alguna información proviene de entrevistas y de observaciones de campo, pero la gran mayoría de los datos son transcripciones de estudios secundarios provenientes de una bibliografía antropológica, etnográfica y médica andina.

En ese sentido, habría sido de mucha utilidad la consulta de varias obras, por ejemplo, la obra fundacional del antropólogo francés Louis Girault: Kallawaya: guéris-seurs itinérants des Andes; recherches sur les pratiques medicinales etmagiques ([1984], 1987), pues es lamas ambiciosa recolección publicada sobre vegetales, materiales animales, minerales y recursos humanos utilizados por los kallawayas entre 1956y 1965.Las 1.134 noticias recogidas por Girault habrían, por un lado, alimentado el diccionario con relación a los usos de esos elementos para la prevención y curación de las enfermedades; por otro lado, habrían permitido a los autores realizar comparaciones acerca de las aplicaciones específicas verificadas en los contextos culturales de la actual Argentina y, sobre todo, aprovechar de los elementos que ofrece Girault para identificarlos. Destaco este aspecto, porque la descripción material de los elementos en cada noticia es un componente omitido en el Diccionario enciclopédico donde únicamente presentan el identi-ficador nominal, enfatizando después en los empleos terapéuticos generales (Girault 1984)4. Por ejemplo, la Jaientilla conocida popularmente como piedra bezoar es presentada como si se tratara de un material homogéneo. Mientras que los especialistas indígenas la diferencian, según su propia taxonomía, entre masculinas y femeninas por su forma, coloración y tamaño, de tal suerte que los elementos descriptivos son esenciales para comprender su función preventiva y curativa (Loza 2007).

Reproducir una parte del texto de Cobo es una elección que debió justificarse y explicarse de manera contundente. El lector no tiene información para comprender que las 193 noticias extraídas de la Historia del Nuevo Mundo (1653) no reproducen la totalidad de los recursos de uso medicinal señalados por el jesuíta. Las noticias que aparecen en el diccionario apenas significan el 36,8% de un total de 524.

Además, el lector carece de elementos para entender que Cobo no es el único autor que realizó una recolección en las Indias de los siglos XVI y XVII. Es importante aclarar que la publicación de la Historia del Nuevo Mundo, de difusión europea a fines del siglo XIX, no incentivó de manera contundente los estudios de farmacopea. Es más, a nivel local los estudiosos se dedicaron a trabajar sobre la materia, de manera independiente y solitaria, a medida que sentaban presencia las grandes expediciones oficiales y que éstas se convertían en el centro de intereses públicos, políticos y comerciales de las élites europeas. No se olvide que la historia natural y la medicina formaban parte de múltiples intereses para controlar tanto la naturaleza como la sociedad.

Igualmente, está ausente de la bibliografía el texto del siglo XVIII de un médico criollo, Gregorio de Losa Ávila y Palomares ([1783], 1983), que ejerció en Potosí. Esta fuente hubiera sido de mucha utilidad no sólo para cotejar con la información que ofrece Cobo, sino también para conocer los productos que circulaban desde la Argentina hacia Potosí y que De Loza tuvo la oportunidad de conocer. Recuérdese que este autor ofrece una colecta de 206 noticias (Losa Ávila y Palomares 1983 [1727-1780]). De igual manera, habría sido útil la publicación de un autor anónimo que en Charcas escribió entre 1790 y 1815, sobre productos medicinales, muchos de los cuales se utilizaban en Argentina, quien también acopió noticias, sumando un total de 290 elementos para la curación de 268 enfermedades citadas (Anónimo 1989 [1790-1815]).

El aporte del Diccionario Enciclopédico es esencial, pues ofrece explicaciones de las particularidades locales en los usos preventivos y curativos de los remedios que los médicos tradicionales utilizan en la Argentina. La terminología local volcada en el diccionario es prueba de la riqueza de los aportes de varias tradiciones médicas. Esta contribución es una invitación para realizar una colecta sistemática a nivel andino, en el marco de una presentación dentro de las lógicas tradicionales que no necesariamente fuercen una traducción conceptual o terminológica. Labor que es urgente ante la acelerada desaparición de los terapeutas tradicionales, en una época en que asistimos a una arremetida de la biomedicina que empieza a hegemo-nizar en materia de políticas públicas; que intenta, por así decirlo, desplazar la esencia por el signo.

Notas

1 cf. Luís Millones-Figueroa (2003).

2Agarrar la tierra, pilladura de la tierra: concepto patológico que comprende el mal denominado “agarrar la tierra”, tiene como fundamento la separación del alma del cuerpo. No obstante, constituye una patología diferente del susto (Palma et al. 2006:37).

3 Acción y efecto de aikar o k’aikar. El término hace referencia a la violación de un tabú o prohibición, y descubre una patología de neta implicancia pediátrica, ya que se involucra en ella a los niños. La gravedad de esta patología radica no sólo en los signos clínicos, sino también en la interpretación que hacen los adultos respecto de las causas mágicas que les atribuyen (Palma et. al. 2006:37).

4 Texto que es reproducido en 1987 bajo el título Kallawaya: Curanderos Itinerantes de los Andes; Investigación sobre Prácticas Medicinales y Mágicas. Louis GiraultfTvaducido por Carmen Bustillos; Rene Alcocer. Institut Francaise de Recherche Scientifique pour le Développement en Coopération, 670 p., La Paz.

Referencias

Anónimo 1989 [1790-1815] De la Naturaleza, Calidades y Grados de Arboles, Plantas, Flores, Animales y otras cosas Exquisitas y Varas del Nuevo Orbe del Perú y para más Claridad por el Orden de A.B.C./Transcripciónpaleográficay estudio por Gregorio Loza-Balsa; epílogo por Alberto Laguna Meave. Sociedad Geográfica de La Paz, La Paz.        [ Links ]

Cobo, B. 1964 [1653] Historia del Nuevo Mundo/Estudio preliminar del Padre Francisco Mateo de la Compañía de Jesús. 2 tomos. Biblioteca de Autores Españoles desde la Formación del Lenguaje hasta Nuestros Días. Atlas, Madrid.        [ Links ]

Girault, L. 1984 Kallawaya: Guérisseurs Itinérants des Andes; Recherches sur les Pratiques Medicinales et Magiques. Institut Francaise de Recherche Scientifique pour le Développement en Coopération (Mémoires de l’Orstom), París.        [ Links ]

Losa Ávila y Palomares, G. de 1983 [1727-1780] De los Árboles; Frutos; Plantas; Aves y de otras cosas Medicinalestiene este Reyno [versión paleográfica, estudios y análisis por Gregorio Loza-Balsa]. Sociedad Geográfica de La Paz, La Paz.         [ Links ]

Loza, C.B. 2007 Develando Ordenes y Desatando Sentidos. Un Atado de Remedios de la Cultura Tiwanaku. Imprenta Sagitario, La Paz. }        [ Links ]

Millones-Figueroa, L. 2003 La historia natural del padre Bernabé Cobo. Algunas claves para su lectura. Colonial Latin American Review 12:85-97.         [ Links ]

Palma, N.H., G.F Torres, M.E. Santoni y L Madrid de Zito Fontán 2006 Diccionario Enciclopédico de la Medicina Tradicional Andina del Noroeste Argentino al Conurbano Bonaerense. Instituto de Investigaciones en Antropología Médica y Nutricional, Salta.        [ Links ]

Carmen Beatriz Loza – Directora de Investigación del INBOMETRAKA, La Paz, Bolivia. E-mail: lozaquipu@yahoo.es

Acessar publicação original

[IF]

 

Dictionnaire de la colonisation française | Claude LIauzu

Entre as muitas obras recentes que tratam do passado colonial da França, o Dicionário da colonização francesa destaca-se pela abrangência das temáticas e análises, numa época de grandes debates no campo desta história. Falecido no ano da publicação deste dicionário, o grande historiador Claude Liauzu o organizou com a preocupação central de valorizar a seriedade na determinação dos fatos e respeitar a pluralidade das interpretações. Ele introduz o volume « A colonização em questões » (p. 9-25) expondo suas ambições e limites.

Os grandes embates que ocupam a fábrica da história colonial na França dos séculos XIX e XX, e sua eventual instrumentalização pelos poderes políticos, torna o assunto atual. Claude Liauzu e sua equipe de dezenas de colaboradores (entre os quais pesquisadores oriundos dos países antigamentes colonizados) decidiram encarar o desafio, afirmando a necessidade de oferecer aos leitores pontos de referência seguros a partir dos quais eles possam definir uma opinião informada no fogo cruzado das « guerras de memória ». Daí a forma de dicionário. São setecentos e setenta e cinco entradas que dizem respeito a pessoas, eventos, mas também categorias de análise histórica. « Tempos fortes », que antecedem sequência alfabética, estabelecem a periodização do assunto. Dezoito mapas e uma bibliografia (dividida tematicamente), no fim da obra, além de diversos índices (de pessoas, lugares e temas, disponíveis na internet) ajudam o leitor a se situar. Os nomes que, nos textos, remetem a artigos próprios são assinalados por asterisco e setas associam outros relacionados.

São tratados aspectos variados, destacando-se a definição do próprio título « colonização » com vários desdobramentos: etimológicos (« colônia », p. 200-201, e « colônia penal » p. 201) ; sociais e políticos como o dossiê « colonos – brancos pobres e ´franceses majorados » (p. 202-210) com várias seções, inclusive o « colono visto pelo colonizado » ; geográficos, mostrando as dimensões políticas, em cada região em que atuou, América, África, Ásia, Próximo Oriente ; culturais, revelando os diversos olhares sobre o fenômeno, « escola colonial » (p. 258), « a escola do colonizado » (p. 259-263), « professores primários » (p. 381), « estudantes colonizados » (p. 280), e mesmo as prestigiosas instituições acadêmicas como a « Escola francesa do Extremo Oriente » (p. 263), focada em aspectos tocando diretamente à historiografia. « As colônias na escola » (p. 265) complementada pelo dossiê « criança e propaganda colonial – Convencer os jovens da metrópole » (p. 269) e o artigo « Propaganda colonial oficial » (p. 538-539), expõe a maneira como a colonização foi ensinada pelos manuais e outros meios de divulgação, desde a criação da escola pública, laica, gratuita e obrigatória, pelos próprios governos da IIIa. República, que promoviam ambas.

« Escritores e colonização » trata da literatura acerca deste fenômeno, seguindo uma entrada rápida sobre o papel de editoras como as Éditions de Minuit, que publicaram grandes textos de combate contra a colonização, em particular A questão, de Henri Alleg, denunciando a tortura utilizada pelo exército francês durante a guerra – que não dizia seu nome – da Argélia. Enfim, « palavras e colonização », (p. 482), « migrações e colonização » (p. 470). « República e colonização – Relações ambíguas » (p. 552-557), faz objeto de um dos numerosos dossiês analíticos que pontuam a obra, com um subtítulo « colonização e civilização », onde são tratados os grandes traços do discurso dominante a respeito do assunto. Outro dossiê, « Capitalismo e colonização. Um debate » (p. 168-172), mostra como se articulam império e prosperidade na metrópole, ao longo dos séculos. « Cristianismo, missões e colonização » (p. 185-191) seguido de « Cristianismo e descolonização » (p. 191-193) focam no papel dos religiosos, numa empresa estatal cuja fase republicana foi marcada pelo anti-clericalismo.

Outros conjuntos de artigos poderiam assim ser singularizados, particularmente em torno dos artigos-dossiês que propõem uma síntese sobre dado assunto, tentando equilibrar o tratamento dos diversos espaços geográficos que, através de quatro continentes, sofreram a marca da empresa colonial francesa : por exemplo, a Nova Caledônia (p. 501-505), complementada por outros artigos como « religiões da Oceânia », (p. 551) « Oceânia » (p. 506-507) « Novas Hébridas Vanuatu » (p. 505) e assuntos, às vezes esquecidos, como o de Moruroa, atol onde os franceses efetuaram seus experimentos nucleares (p. 481).

Em « Raça » incluindo « a política das raças », « racismo » (p. 545-548), Liauzu, autor do maior número de entradas, evoca um campo que detalhou no seu notável estudo Raça e civilização. O outro na civilização ocidental (Paris: Syros, 1992). Ao lado dos artigos esperados sobre a « escravidão – quatro séculos de história da colonização » (p.272-277) e sua abrogação, com a figura emblemática de Victor Schoelcher (p. 579), os autores não se furtam a mencionar eventos recentes, como a Lei Taubira (2001), que confere ao tráfico negreiro o estatuto de crime contra a humanidade (« Comitê para a memória da escravidão » p. 210) e a mal afamada lei de 2005, posteriormente abrogada sob pressão dos meios acadêmicos e mais amplamente cidadãos, que pretendia obrigar ao ensino dos « aspectos positivos » da colonização francesa (p. 533).

Os autores utilizam conceitos atuais como os « lugares de memória » (p. 409-413), complementado em « imaginário e espaços » (p. 364-366), e lugares, simplesmente, inclusive presídios famosos (« Poulo Condor », no Vietnam, p. 536) ou manifestações físicas importantes como o « Mediterrâneo » (p. 460), ou ainda espaços situados no tempo como o artigo « O Magreb na véspera da colonização – Blocagens e tentativas de reforma ». (p. 437-440), ou « o grande deserto do Sahara » (p. 568).

Entre os assuntos tratados em si podem ser citados como exemplos as grandes temáticas do « povoamento » (p. 527), « campesinato » (p. 524), « industrialização » (p. 379), assim como conceitos: « negritude » (p. 495), « nacionalismos » (p. 488). As posições das grandes forças políticas são detalhadas (« Internacional Comunista » (p. 383); « OAS » (p. 506) « FLN » (p. 299) com seus desdobramentos: « chefes históricos », « Federação de França do FLN »; « Pan-africanismo » (p. 514). Personalidades de destaque como Ahmed Messali Hadj, nacionalista argelino do século XX, Ho Chi Minh (p. 359) ou Solitude (p. 586) heroina da resistência ao restabelecimento da escravidão nas Antilhas são tratados com particular cuidado assim como as « resistências à conquista » (p. 557) e grandes rebeliões, como a Kanak, em 1878 (p. 393) ou a insurreição em Madagascar de 1947 (p. 435) e as diversas organizações (partidos e movimentos armados, mas também confrarias e outras) de resistência dos povos colonizados pela França. Entre os personagens mencionados, pode-se destacar os resistentes à colonização, inclusive franceses como Camille Pelletan que denunciava no seu jornal, A justiça, a maneira como as autoridades republicanas francesas impunham sua civilização « por meio de canhões » (p. 526). Em obra póstuma de Claude Liauzu, História do anti-colonialismo na França do século XVI a nossos dias (Paris: Colin, 2007), este aspecto ganha vulto.

Obviamente, aspectos econômicos da empresa colonial estão presentes : as companhias que recebiam concessões da potência colonial (p. 213-216), « cultura de seringueira na Indochina » (p. 358) etc. Também é tratada a dimensão propriamente militar, os métodos de conquista e administração – « governo colonial » (p. 315-319) ; « ministério das colônias » (p. 472-473) – de vastos espaços e populações numerosas em âmbitos geográficos diversos e longínquos, embora nenhuma predominância seja dedicada a estes assuntos clássicos. No entanto, menciona-se aspectos peculiares como, sob o título « Marinha, Marinheiros – o seu papel na expansão colonial » (p. 444), evocando a situação difícil destes, muitas vezes oriundos de territórios colonizados. O maior destaque é dedicado aos conflitos de descolonização, sobretudo na Argélia, que se desdobra em dois dossiês: « guerra de Argélia – Uma guerra que não diz seu nome » (p. 321-335) e « guerra de Argélia e liberdades – Estado de sítio e poderes especiais » (p. 340); para garantir o equilíbrio no tratamento, há também : « Guerra de Indochina – A primeira guerra de descolonização» (p. 341-350).

Aspectos culturais têm, em compensação, muito destaque, desde « festas » (p. 297), « canção » (p. 179), como testemunho da cultura popular, refletindo preconceitos sob os apetrechos do exotismo, mas também nas dimensões de resistência como o anti-militarismo. Famosos artistas são retratados, como Josephine Baker (p. 130-131), cujo sucesso revelou visões metropolitanas da coisa tropical, por assim dizer, e influenciou numa mudança, surpreendentemente recente, nas mentalidades. « Fotografia – a colocação em imagens das colônias » (p. 529), « pintura orientalista » (p. 510) e « Cinema » (p. 194-200), tratam tanto de documentos fotografados encenados ou não, documentários e ficções, mostrando também os esforços de alguns autores para romper com os clichês coloniais, como o premiado « Indígenas », de Rachid Bouchareb (Cannes 2006). A literatura abrange as representações, inclusive populares, como a personagem bretã « Bécassine e suas aventuras coloniais » (p. 140) mas também as produções de criadores de horizontes diversos : literatura da África negra, magrebina, da Nova Caledônia, da Polinésia, « Indochina : edição e literatura » (p. 374) e enfim, « literatura e colonização » (p. 421), seguida de um artigo curioso : « literatura, romance policial e descolonização » (p. 422), mencionando sobretudo obras recentes que tratam de episódios de repressão na própria metrópole contra pessoas oriundas das (ex)colônias.

Muitos atores da descolonização, em várias áreas, literatura e política em particular, fazem parte do elenco biografado: como Leopoldo Sedar Senghor (p. 584), Albert Memmi (p. 461-462), Aimé Césaire (p. 176), desaparecido recentemente. Eles dividem páginas com autores franceses cuja obra e engajamento lhes estão ligados ou opostos: SaintJohn Perse (p. 572), Jean Paul Sartre (p. 578), Céline (p. 174), Camus (p. 163-164), André Malraux (p. 441). Outros autores, cuja obra fez evoluir consideravelmente os instrumentos do pensar da coisa colonial, são mencionados, por exemplo, Marcel Mauss (p. 458), Jean Dresch (251), Cheikh Anta Diop (p. 183), Frantz Fanon (286) e Maxime Rodinson (p. 565), além de revistas como « Presença africana », que marcou as gerações da descolonização fazendo « a ligação com os intelectuais franceses » (p. 538), bem como editores como François Maspéro (p. 455) que abasteceu os militantes anti-colonialistas com obras de Castro, Ho Chi Minh, Basil Davidson e tantos outros.

Entre as dimensões culturais, poderia se singularizar a questão das línguas criadas pela própria colonização « pidgin » (p. 532), « petit nègre » (p. 527) , « pataouète » (p. 523) e « sabir » (p. 568), assim como seu impacto sobre o francês : termos próprios à história colonial ou por ela gerados como « força negra » (p. 302) « spahis » (p. 587) « méharistes », os policiais do deserto (p. 461); ou ainda « bled » palavra oriunda do árabe falado na Argélia que passsou na língua francesa para designar o campo ; « bidonville » (clássica tradução de favela), cuja origem é marroquina ; « béké », termo das Antilhas, até hoje empregado para os descendentes de plantadores ; « cafre » termo utilizado na ilha da Réunion para designar as populações mestiças (p. 160).

O artigo « folie et psychiatrie » (p. 302) evoca a obra pioneira de Frantz Fanon e a recém formada sociedade franco-argelina de psiquiatria, cujo primeiro congresso (2003) consagrou o reconhecimento científico dos traumas resultantes da colonização e guerras de libertação. O dossiê « Saúde » (p. 575-577) trata da epidemiologia, mas sobretudo do imaginário e da justificação da exploração colonial apresentada como compensada pela assistência primária à saúde das populações colonizadas:« Institutos Pasteur » (p. 381) ; « Médicos » (p. 459) « quinine » (p. 544). Os autores do Dicionário não hesitam em abordar assuntos difíceis como o dossiê sobre « mestiçagens e uniões mistas – Da marginalidade à pluralidade incontornável » (p. 465-470); « homossexualidade » (p. 361); « corpos – realidades e imaginários » (p. 223-227) « prostitutas » (p. 539), ao qual corresponde o artigo «masculinidade colonial » (p. 454-455). Embora haja um dossiê importante « mulheres – elas também têm uma história » (p. 287- 295) associado ao artigo « moças – Um novo tipo social nascido da colonização » (p. 387-389), sua presença, esparsa em outras entradas, inclusive biográficas (poucas), é discreta.

Em suma, Dicionário da colonização francesa é uma obra que prima pela coragem dos autores, abrangência e atualidade dos assuntos e sobriedade benvinda no tratamento.

Christine Rufino Dabat – Professora do Departamento de História da UFPE.


LIAUZU, Claude (Dir.). Dictionnaire de la colonisation française. Conselho científico: Hélène d’Almeida Topor, Pierre Brocheux, Myriam Cottias, Jean-Marc Regnault. Paris: Larousse, 2007. Resenha de: DABAT, Christine Rufino. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 266-271, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

Dicionário Crítico Câmara Cascudo | Marcos Silva

Desde o primeiro momento em que me deparei com o Dicionário Crítico Câmara Cascudo e, depois, à medida que o lia – ou melhor, saboreava cada página – uma pergunta se impunha: que outro escritor brasileiro poderia ser comparado a Câmara Cascudo, seja pelo volume de livros publicados, seja pela impressionante contribuição que deu aos mais diferentes campos do conhecimento? Que outro mereceria a organização de um dicionário para reunir e explicar sua produção intelectual? E, apesar de alguns nomes me ocorrerem, nenhum parecia superar o norte-rio-grandense, tal o inegável impacto de seu trabalho para a cultura brasileira. Como poucos, Cascudo introduziu no cenário nacional o testemunho de uma experiência sertaneja e a cosmovisão de um mundo nordestino, até então muito pouco conhecido e geralmente ignorado pela elite intelectual do país.

A vasta bibliografia de Câmara Cascudo (1898-1986) contabiliza cerca de uma centena de obras e se encontra espalhada pelos campos da história, da etnografia, da antropologia, da literatura, da crítica literária, da cultura popular, da religião, da geografia e, principalmente, do folclore. Como se não bastasse, há ainda um importante detalhe: seja qual for o tema estudado, o texto cascudiano prima por ser também literário. O escritor norte-rio-grandense desenvolveu ao longo de sua produtiva vida intelectual um estilo muito próprio, cujo ponto alto é justamente uma especial habilidade no trato com a linguagem, que resulta sempre em um texto sedutor, leve e singular, pontuado de imagens e de expressões poéticas que encantam o leitor e aliviam com muita sensibilidade a aridez da informação documental. Leia Mais

História das mulheres no Brasil – DEL PRIORI (RIHGB)

DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico (Org.). Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade – biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. MOTT, Luiz. Homosexuais da Bahia. Dicionário biográfico, século XVI-XIX. Salvador: Grupo Gay da Bahia, 1999. Resenha de: MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.167, n.430, p.319-327, jan./mar., 2005.

Teresa Cristina de Novaes Marques – Doutora em História Social pela UnB. Professora Adjunta pela mesma Universidade.

Acesso apenas pelo link original

[IF]