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O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista – LUKÁCS (FH)
LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider. 1 ed. São Paulo Boitempo, 2018. 733p. Resenha de: SILVA, Edson Roberto de Oliveira. O jovem Hegel de Lukács: por uma redenção da dialética. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.51-507, jan./jun., 2020.
György Lukács é considerado o maior filósofo marxista do século XX. Nasceu em Budapeste no dia 13 de abril de 1885, em uma Hungria que, no período, fazia parte do território integrado ao Império Habsburgo. Graduou-se na Universidade da mesma cidade, doutorou-se em Direito e Filosofia em 1906 e 1909, respectivamente. A produção e desenvolvimento filosófico do jovem Lukács — de 1910 a 1923 influenciou nomes conhecidos como Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Ernest Bloch e pensadores da famosa Escola de Frankfurt, como Theodor W. Adorno.
O livro O Jovem Hegel e os Problemas da sociedade capitalista (2018), de Lukács faz parte da coleção A Biblioteca Lukács, coordenada por José Paulo Netto, e se tornou o sétimo título do filósofo húngaro publicado pela editora Boitempo. A obra foi traduzida diretamente do alemão por Nélio Schneider e teve revisão técnica de Netto e Ronaldo Vielmi Fortes.
A coleção Biblioteca Lukács tem como missão fazer a divulgação do pensamento do filósofo húngaro. Entretanto, não é de hoje que o pensamento lukacsiano é divulgado no Brasil, tanto por traduções como por elaborações críticas. Sua filosofia foi intensamente divulgada na década de 1960 por três intelectuais de grosso calibre — Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e J. Chasin — efetuando traduções e em elaborações críticas. Entre as obras de Lukács traduzidas e divulgadas por Konder e Coutinho estão: Ensaios Sobre Literatura (1964); Introdução a uma Estética marxista (1978), títulos esses publicados pela Editora Civilização Brasileira.
O desenvolvimento filosófico de Lukács tem como proposta, desde seus primeiros escritos marxistas, fazer um debate renovado com a filosofia clássica, principalmente a alemã, na qual ele buscava fazer “ao nível da crítica” a “análise histórica e sistemática das modalidades de conhecimento e interpretação do mundo constituídas pela cultura burguesa” e “determinar o estatuto histórico-filosófico do marxismo” instaurando uma “crítica macroscópica da totalidade da cultura burguesa” (NETTO, 1978, p.14). Netto (1978) dará destaque para duas obras do filósofo húngaro onde se encontram as críticas sistemáticas à cultura filosófica burguesa: O jovem Hegel, a qual nos propomos apresentar a partir dessa resenha, e Destruição da Razão: de Schelling a Hitler (NETTO 1978, p.15). O intérprete nos alerta que a crítica à filosofia burguesa do pensador húngaro não somente se propõe a apontar suas limitações, mas, também, resgatar Hegel da instrumentalização mistificadora elaborada pelos ideólogos fascistas — se empenhando em “resgatar os conteúdos humanistas e democráticos do pensamento burguês anterior 1848” (NETTO, 2011, p.8). Desta forma Lukács, desde História e Consciência de Classe, é considerado um renovador do pensamento marxista.
O livro, O jovem Hegel, é dividido em quatro partes que são compostas por momentos do desenvolvimento filosófico de Hegel partindo das diferentes localidades em que o filósofo alemão viveu: Berna (1793-1796), denominado como o período republicano de Hegel; Frankfurt (1797-1800), no qual o filósofo deu início ao desenvolvimento do método dialético; e Iena, que se divide em mais dois períodos: o primeiro (1801-1803), no qual há a vinculação e a defesa ao idealismo objetivo; e o segundo (1803-1807), momento que mostra os últimos percalços que Hegel trilhou para culminar em sua primeira produção amadurecida, original e de peso, A Fenomenologia do Espírito.
O plano de fundo d’O jovem Hegel é a Revolução Francesa e os ecos no pensamento germânico. O interesse do filósofo alemão, como nos alerta Lukács, estava voltado para entender a sociedade civil burguesa [bürgerlicheGesellschaft]. O húngaro mostrará que a influência da revolução burguesa na sua totalidade — isto é, Revolução Industrial e a revolução política para a instauração de um Estado-nação —, interessava à Hegel e foi determinante para a formação de seu posicionamento filosófico e político.
No curto espaço de tempo que Hegel esteve em Berna, Lukács analisa o início do seu desenvolvimento filosófico, desmistificando as interpretações feitas de sua filosofia nesse período, que tendem a culminar, muitas vezes, na redução e vinculação de suas elaborações a um “reacionarismo” tratando-o como absolutista e vinculando-as unilateralmente com a “teologia”. O húngaro nos mostra que, em primeiro lugar, as vinculações políticas de Hegel nesse período sempre estiveram voltadas para a ala da esquerda democrática do Iluminismo e que teciam críticas ao Iluminismo alemão, pois os “absolutistas feudais e seus ideólogos tentaram muitas vezes se aproveitar de determinados aspectos deste movimento para seus próprios fins” (LUKÁCS, 2018, p. 68). Hegel via a “antiga república citadina (polis) não como um fenômeno social do passado”, mas como a constituição de “um modelo eterno, ideal não alcançado para uma mudança atual da sociedade e do Estado” (LUKÁCS, 2018, p. 69, grifos nossos). Em segundo, aponta que a filosofia de Hegel não teve vinculação teológica, pelo contrário, Lukács argumenta que o alemão é um crítico do sectarismo do cristianismo primitivo (LUKÁCS, 2018, p. 71), e se interessava por seitas posteriores. Hegel, segundo seu estudioso, trata o cristianismo como uma religião “positiva” a qual “constitui um esteio do despotismo e da opressão” (LUKÁCS, 2018, p. 85).
A ligação de Hegel à filosofia kantiana, principalmente de Crítica da razão Prática, é, segundo Lukács, de extrema importância para a vinculação de sua filosofia à realidade. O filósofo alemão vê que tanto os problemas sociais como os morais vinculam-se aos problemas da práxis, mostrando que a base de sua filosofia é a “reconfiguração da realidade social pelo ser humano”. Lukács escreve que Hegel vai além de Kant, posto que este último investiga os problemas morais do ponto de vista do indivíduo. Para Kant o fundamental é a consciência como um fato moral, em contraponto a isso “o subjetivismo do jovem Hegel, direcionado para a prática, é coletivo e social desde o início. Para Hegel, é sempre a atividade, a práxis da sociedade que constitui o ponto de partida e também o objeto central da investigação” (LUKÁCS, 2018, p. 73).
Já nos três anos de Frankfurt, Hegel, segundo Lukács, irá reestabelecer criticamente algumas das suas concepções filosóficas, entre elas a sua elaboração de positividade. Nesse momento, a “positividade” será vista como “um sinal de que o desenvolvimento histórico já ultrapassou uma religião, e que ela merece ser destruída e inclusive tem de ser destruída pela história” (LUKÁCS, 2018, p. 329). Essas novas formulações também servirão de base para os “primeiros embriões do método de Fenomenologia do espírito” (LUKÁCS, 2018, p. 177). Lukács nos expõe que todo esse desenvolvimento do período de Frankfurt é atrelado com as constantes variações na história da Revolução Francesa, porém suas concepções republicanas revolucionárias permanecem as mesmas do período de Berna. O húngaro realça que é nesse momento que se revela a diferença da produção filosófica hegeliana, pois, enquanto em Berna Hegel elaborava suas concepções histórico-filosóficas partindo de um único fato relevante para a história universal, a Revolução Francesa, após Frankfurt, o alemão passa a dar igual importância para o desenvolvimento econômico da Inglaterra. Assim, ambos os eventos passam a ser elementos fundantes para a sua concepção de história e noção de sociedade. “O problema”, diz Lukács, “referente ao modo como a estrutura absolutista feudal da Alemanha deve ser modificada pela Revolução Francesa aflora para Hegel dali em diante não como questão geral da filosofia da história, mas como problema político concreto”. (LUKÁCS, 2018, p. 171).
Lukács diz que a filosofia de Hegel incorpora as “problemáticas sociais e políticas” e que estas “se convertem em filosóficas de modo sempre imediato” (LUKÁCS, 2018, p. 172). Como consequência disso, passou a tomar “consciência, portanto, do antagonismo entre dialética e pensamento metafísico primeiro como antagonismo entre pensamento, representação, conceito etc. de um lado, e vida, de outro” (LUKÁCS, 2018, p. 173). Esse processo teria feito parte de um projeto de reconciliação filosófica de Hegel entre os “ideais humanistas do desenvolvimento da personalidade e os fatos objetivos e imutáveis da sociedade burguesa” que, segundo o filósofo húngaro, irão conduzir Hegel “a uma compreensão mais e mais profunda primeiro dos problemas da propriedade privada e depois do trabalho como inter-relação fundamental entre indivíduo e sociedade” (LUKÁCS, 2018, p. 175). Esse desenvolvimento das concepções de Hegel culminará em uma tentativa de sistematização no fim do período de Frankfurt, o que também prepara Hegel para uma crítica profunda ao idealismo subjetivo e para a separação da filosofia de Schelling frente a de Fichte.
Em Iena, onde Hegel passa um pouco mais de seis anos, de 1801 a 1807, é que surgirão as suas elaborações de juventude mais profundas. É o período em que o jovem filósofo acertará as contas com a filosofia clássica de seu tempo, Kant, Schiller, Fichte e, somente em Fenomenologia do espírito, com Schelling — obra que sela definitivamente o rompimento com as colaborações filosóficas entre ambos, e faz com que este último se coloque como um combatente frente a dialética hegeliana. Em Iena temos dois períodos, o primeiro, de 1801 a 1803, é marcado fortemente pela defesa de Hegel ao idealismo objetivo. Para tanto, o filósofo inicia sua parceria com Schelling demonstrando a diferença da filosofia deste com a de Fichte onde, o último, é colocado como um agnóstico (LUKÁCS, 2018, p. 342), motivo que colocou Hegel como defensor da filosofia schellinguiana e revelou a ambos que ali nascia uma nova formulação filosófica por parte de Schelling. Nesse processo, Lukács aponta que Hegel combateu o individualismo abstrato da ética elaborando uma crítica mais concreta, dessa forma o filósofo alemão “não se limita mais a examinar problemas isolados da ética kantiana que tem uma problemática coincidente com a sua, mas submete toda a ‘filosofia prática’ do idealismo subjetivo a uma análise crítica abrangente” (LUKÁCS, 2018, p. 391).
A filosofia hegeliana, segundo o húngaro, é histórica desde as primeiras elaborações de Berna, porém essa concepção só entra em cena após as “renúncias às ilusões jacobinas de renovação da Antiguidade”. É nesse momento que Hegel se depara com os “problemas da dialética da sociedade burguesa moderna”, isso faz com que se constitua, no seu pensamento filosófico, um problema central e latente de “conexão dialética entre o desenvolvimento histórico e a sistemática filosófica”. Dessa maneira Hegel tem a possibilidade de levantar contra Fichte uma crítica a suas concepções de “liberdade independentemente das leis objetivas da natureza e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 410. Lukács mostra que o historicismo de Hegel segue uma concepção que não significa uma glorificação do passado, pois esse seria a visão do historiador romântico que apareceu na Alemanha “sob a influência publicística da contrarrevolução”, disseminando a “concepção de que a ‘organicidade’ das formações históricas e do desenvolvimento histórico exclui a vontade consciente dos homens de mudar seu destino social” e, além disso, também defendem que “a ‘continuidade’ do desenvolvimento histórico é francamente contrária à interrupção da linha de desenvolvimento já iniciada” (LUKÁCS, 2018, p. 411. As concepções de Hegel nesse momento já se apresentam como um prelúdio para a sua primeira síntese filosófica de peso sistematizada em Fenomenologia do espírito A Fenomenologia do espírito de Hegel é colocada por Lukács como uma obra seminal do pensamento filosófico alemão e marca uma virada nas coordenadas do desenvolvimento não só da filosofia hegeliana, mas de todo pensamento moderno. É no segundo momento de Iena, 1803 a 1807, que Hegel iria amadurecer suas diferenças filosóficas com Schelling, as quais foram reduzidas pelo primeiro apenas à questão do método, mas que o húngaro enfatiza que a diferença se apresenta “também em todas as questões da filosofia da sociedade e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 559). A concepção filosófica-histórica de Hegel, a partir de Lukács, vai na contramão da visão moderna, pois na filosofia hegeliana não existe “estado de espírito”, assim há uma diferença em relação a “posição histórica do tempo presente” (LUKÁCS, 2018, p. 594). Em Iena, o filósofo húngaro diz que “a Revolução Francesa e sua superação (no triplo sentido hegeliano) por Napoleão constitui o ponto de inflexão decisivo da história mais recente” e que entra em contraposição com a visão posterior do velho Hegel que a “Reforma assume a posição central na história da era moderna que em Iena Hegel havia atribuído à Revolução Francesa e a Napoleão” (LUKÁCS, 2018, p. 595).
O filósofo húngaro atribui à Fenomenologia a sistematização entre as categorias de mediação, reflexão etc. mas considera as categorias de alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfrendung) como pontos centrais do desenvolvimento dessa obra, ambos os termos derivados da tradução do termo inglês “alienation” para o alemão – termo esse que foi utilizado na economia-política inglesa, quando se tratava da venda de mercadoria e, também, pela “teoria do contrato social para denominar a perda da liberdade original, a transmissão, a exteriorização da liberdade original à sociedade originada pelo contrato”(LUKÁCS, 2018, p. 689). A categoria de alienação não foi usada exclusivamente por Hegel na filosofia clássica alemã. Lukács exibe que Fichte já a tinha utilizado para mostrar que um “objeto posto” constitui uma alienação do sujeito e o próprio objeto é concebido como uma “razão alienada”. O estudioso do filósofo alemão aponta que, na Fenomenologia, há três níveis de apresentações da categoria de alienaçãoo primeiro faz menção à relação entre sujeito-objeto, e vincula toda produção humana, o trabalho, à “atividade social e econômica do homem”; o segundo nível a alienação é o que se apresenta na sua forma capitalista, e que, mais tarde, será desenvolvido por Marx como categoria fetichismo (LUKÁCS, 2018, p. 691); no terceiro nível é um momento que passa pela alienação, ou seja, como “coisidade (Dingheit) ou objetividade (Gegenständlichkeit)” que é a “forma em que, na história da gênese da objetividade, esta é apresentada filosoficamente como momento dialético na trajetória do sujeito-objeto idêntico de volta a si mesmo, passando pela ‘alienação’” (LUKÁCS, 2018, p. 692).
Lukács se esforça em sistematizar historicamente o envolvimento de Hegel com o seu tempo histórico e demonstrar o reflexo desse tempo em sua filosofia. Dessa forma o húngaro não faz uma biografia de Hegel, mas um tratamento histórico-sistemático olhando a “filosofia como parte importante do movimento total da história” (LUKÁCS, 2018, p. 21). Graças ao trabalho de tradução de Nélio Schneider, a divulgação do pensamento de Lukács — que se iniciou na década de 1960 com Konder, Coutinho e Chasin — ganha ainda mais volume e temos a oportunidade de ter em mãos um trabalho histórico-filosófico que contribui para o desenvolvimento do marxismo no Brasil de forma fecunda e dialética pois essa obra tem a capacidade de desmistificar a filosofia de Hegel e, com uma leitura atenta, absorver o método dialético que ali se explicita.
Referências
LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider.1º ed. São Paulo Boitempo, 2018.
NETTO, José Paulo. Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa. Lisboa: Seara Nova, 1978.
NETTO, J. Paulo. Introdução: Sobre Lukács e a Política. In. LUKÁCS, György Socialismo e democratização – Escritos políticos 1956-1971. 2º ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.
Edson Roberto Silva – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP), mestrando na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis, estado de São Paulo (SP), Brasil. Atualmente é bolsista CAPES. e-mail: edoliviera89@gmail.com.
[IF]História, Dialética e Diálogo com as Ciências: a gênese de Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr. (1933-1942) – IUMATI (RBH)
Como produzir uma grande obra de pensamento em um contexto periférico? É com essa pergunta que Paulo Teixeira Iumatti abre o seu História, dialética e diálogo com as ciências: a gênese de Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. (1933-1942), livro originado de sua tese de doutorado, produzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP) e concluída em 2001. De saída, cabe destacar a potência que o qualificativo “contexto periférico” dá à pergunta, pois afasta dela o idealismo próprio às posições que frisam o talento superior do indivíduo ou àquelas que acreditam numa espécie de circulação mundial igualitária de ideias. Já aqui a dimensão materialista, tão ao gosto do seu objeto, aparece com discreta precisão. Leia Mais
Martinha versus Lucrécia. Ensaios e entrevistas, de Schwarz, Roberto-Schwarz-(NE-C)
SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. Ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Resenha de: QUERIDO, Fabio Mascaro. Colapso da modernização. Roberto Schwarz e a atualização da dialética à brasileira. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.97, Nov, 2013.
A figura intelectual de Roberto Schwarz (1938) dispensa grandes apresentações. Filho de imigrantes vienenses, crítico e ensaísta bastante (re)conhecido, sua trajetória permite observar de um ângulo privilegiado – do ponto de vista dos vencidos de hoje e de ontem – as experiências da esquerda intelectual brasileira, desde a aposta algo otimista nos desdobramentos da radicalização política do início da década de 1960 até o atual estágio destrutivo do desenvolvimento capitalista, já num contexto de “colapso da modernização”. A abrangência temática, passando por diferentes esferas da vida cultural, assim como a originalidade de sua filiação dialética, fizeram da obra de Roberto Schwarz um testemunho ativo das transformações e reviravoltas do pensamento crítico brasileiro, em suas diversas tentativas de se reinventar à luz das condições de possibilidade de um presente determinado.
Por isso mesmo, seu mais recente livro, Martinha versus Lucrécia – que reúne quase duas dezenas de ensaios e entrevistas do autor no último decênio -, constitui uma bela amostra de uma crítica dialética afinada com seu “tempo-de-agora”, capaz de articular num só processo de reflexão as novas aparições de sua matéria básica (no caso, a matéria brasileira) e a meditação sobre as formas de abordagem teórica dessa matéria. Com efeito, se os ensaios retomam temas que há muito constavam no repertório do autor – sobretudo a interpretação de Machado de Assis e a presença teórica constante de Antonio Candido -, o fazem sob nova chave histórica, acompanhando, por assim dizer, os desdobramentos da ordem capitalista contemporânea. O método dialético afiado permanece, mas adquire novas tonalidades, à altura da ruptura de época, que altera significativamente os termos da oposição entre local e universal – o que já se pode notar no primeiro texto, “Leituras em competição”, no qual as divergências entre leituras nacionais e estrangeiras da obra de Machado de Assis são postas à prova das novas características do desajuste entre a particularidade brasileira e a pretensa universalidade da experiência europeia transformada em modelo histórico.
A compreensão deste verdadeiro “sentimento da dialética” que a experiência brasileira colocava em cena, e da qual Machado foi um “mestre” em sua capacidade de formalização literária, apresentava-se para Roberto Schwarz – desde os tempos de estudante de Ciências Sociais, quando participara ativamente das reuniões do Seminário d’O Capital – como oportunidade histórica para o desenvolvimento de um ensaísmo dialético estreitamente vinculado às transformações de sua matéria particular (o próprio Brasil), cujas características de atraso em relação à norma-padrão não significavam um simples desvio ou exceção, pronto a ser superado por uma “viravolta iluminada”, mas, sim, parte constituinte e indispensável à reprodução da ordem capitalista global. O “progresso” já estava em marcha, e a condição de subdesenvolvimento era já o próprio futuro no presente, reincorporando em novas formas aspectos aparentemente insuperáveis do passado. “Os meninos vendendo alho e flanela nos cruzamentos com semáforo não são a prova do atraso do país, mas de sua forma atroz de modernização.”1
Como já havia demonstrado em seus trabalhos anteriores, a função do narrador nos romances de Machado de Assis posteriores à “reviravolta machadiana” (título do penúltimo ensaio2), mais concretamente após a publicação do célebre Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1880, era justamente articular um novo dispositivo formal (não realista) capaz de forjar uma percepção realista das dissonâncias e ambivalências das classes dominantes no Brasil do século XIX, as quais “lideravam” a desagregação do progresso burguês na periferia do sistema, e “afastavam do padrão moderno – mas não da modernidade sem padrão – a nossa gente de bem”3. A acuidade dialética era inequívoca, pois, com esse arranjo formal, “o narrador machadiano realizava em grau superlativo as aspirações de elegância e cultura da classe alta brasileira, mas para comprometê-la e dá-la em espetáculo”, ridicularizando-a aos olhos do superego europeu4. No plano histórico-concreto, demonstrava-se então que “os proprietários [brasileiros] participa[va]m intensamente do progresso contemporâneo, mas isto graças às relações antiquadas em que se apoia[va]m, e não a despeito delas, e menos ainda por oposição a elas, como imaginaria o senso comum”5.
É por este motivo que, no fim das contas, as ideias liberais-burguesas estavam e não estavam no lugar na sociedade brasileira periférica do século XIX, conforme reafirma Roberto na conferência “Por que ‘ideias fora do lugar’?”6, proferida em Buenos Aires, em 2009, na qual o crítico sustenta – na contramão das críticas de Maria Sylvia de Carvalho Franco e de Alfredo Bosi – que o título aludia, à época, mais a uma sensação comum de desajuste e dissonância do que a uma opinião ou prognóstico do autor, uma vez que, no limite, as “ideias têm sempre alguma função, e nesse sentido sempre estão no seu lugar”7.
Para entender a realidade brasileira, em sua conexão com a ordem mundial, mas também em suas singularidades mais ou menos irredutíveis, era preciso, portanto, na ótica de Schwarz, restabelecer o primado do objeto (no dizer de Adorno, tema exclusivo de uma das entrevistas do livro8), configurando uma dialética aberta – avessa às formalizações sistemáticas – e que opera por meio de totalizações provisórias. Entre processos sociais globais e objetos estético-culturais não há, no pensamento de Roberto, qualquer forma de sociologismo, tampouco de determinismo causal. Há, isto sim, complexos de relações expressivas (como diria Walter Benjamin) entre domínios diversos, e às vezes opostos, da vida social e das mudanças culturais, que se “internalizam” reciprocamente e, assim, “ficam articulados por dentro”9. A sua própria forma de exposição sugere um olhar duplo: de “dentro” e de “fora”, como se cultura e relações capitalistas, ou, em outras palavras, civilização e barbárie, fossem uma só totalidade dialética em movimento.
Trata-se, no limite, de encontrar nos pequenos fragmentos da cultura – através dos artifícios da crítica imanente – indícios analíticos do processo social, num constante vaivém dialético entre mediações de diversos níveis. Daí o seu ensaísmo inconfundível, no qual os temas vão reaparecendo e sendo retomados com novas configurações no interior dos textos. A impressão de redundância representa, antes, uma escrita certeira, não linear, que, se não escapa às vezes a certo hermetismo, quase sempre flui como uma espécie de composição dialética em ato. Basta ver, por exemplo, suas análises da prosa ensaística de Gilda de Mello e Souza, em que – ao sustentar teoricamente a análise formal, imanente da autora – compõe ele próprio uma prosa que é também uma amostra de tal método crítico, cujo papel ativo na determinação do objeto não anula – muito pelo contrário – o seu primado materialista.
A preocupação com as tensões entre a escrita e o objeto abordado, entre forma de exposição e conteúdo, preocupação que atravessa o ensaísmo de Schwarz, revela não apenas a precariedade do objeto, senão também a precariedade da própria escrita, motivo pelo qual o autor é impelido a realizar um significativo esforço de autorreflexão, num esplêndido exemplo daquilo que Fredric Jameson denominou “autoconsciência dialética”, dispositivo necessário para a manutenção do caráter crítico e atualizador do marxismo.
Mas “autoconsciência”, no caso, era nada mais nada menos do que a consciência permanente de que o ponto de vista do crítico, além de “universalmente” anticapitalista, está situado na periferia do sistema, impondo desafios extras, além dos materialmente já conhecidos, ao mesmo tempo que abre um novo leque de possibilidades no âmbito da reflexão crítica sobre a ordem burguesa moderna. Dos elos mais débeis da reprodução global do sistema capitalista, com todas as mazelas que lhes correspondem, aparecem com maior nitidez e agudeza as perversões e os limites do “progresso”. Não por acaso, e a obra de Roberto Schwarz (bem como a de seu mestre Machado) é uma prova concreta disso, a perspectiva da periferia estimulou respostas intelectuais e artísticas ousadas, difíceis de visualizar situando-se sob o ângulo da linha evolutiva do progresso dos países centrais. Uma pequena “vantagem do atraso”, meramente intelectual ou simbólica, mas que em certa medida serviu para antecipar alguns dos rumos assumidos pelo capitalismo contemporâneo, quando a fratura social não é mais privilégio da periferia.
Desde algumas décadas, com a terceira revolução industrial e o consequente esgotamento dos paradigmas da modernização e do desenvolvimentismo, novas dificuldades surgiram no espectro do pensamento crítico e da esquerda intelectual. (A propósito, ver o ensaio do próprio Roberto sobre a – não – atualidade de Brecht, baseado no argumento de que, no contexto contemporâneo, a “verdade” não aparece na vida social com a mesma nitidez dos tempos do poeta e dramaturgo alemão). Neste contexto, salta aos olhos a necessidade de um novo diagnóstico de época, cuja realização depende de uma “atualização” da reflexão teórica em função do presente, uma “atualização” que, cancelando todo compromisso com a modernização capitalista, encontra nas experiências da periferia um prelúdio trágico da nova ordem: a flexibilidade (leia-se: precariedade) e a informalidade não são uma novidade para nós.
Por isso, é como se o “presente [fizesse] ver no passado sobretudo o prenúncio do impasse atual, impugnando as evidências externas do progresso”10. Pois agora, de uma vez por todas, “o jogo entre informalidade e norma perdeu o vetor temporal, ligado às promessas da modernização. A informalidade não está vencida, a norma não está no futuro, ou, ainda, a norma é que pode ser coisa do passado, enquanto a informalidade se instalou a perder de vista”11 – como diz Schwarz ao comentar os poemas de Francisco Alvim (“Um minimalismo enorme”12). Bem entendido, desde a emergência dos tempos da assim chamada globalização, “para desconcerto geral da esquerda, a modernização agora se tornava e reiterava a marginalização e a desagregação social em grande escala”13, afirma o crítico numa das três entrevistas inseridas no livro (“Agregados antigos e modernos”14). Da dialética da malandragem com seus contornos de uma via alternativa de modernização chega-se, enfim, à marginalidade entranhada num “estado de exceção permanente”.
Como observa muito bem Roberto Schwarz no ensaio “Prefácio a Francisco de Oliveira, com perguntas”, a própria trajetória intelectual de Chico de Oliveira, da Crítica à razão dualista (1972) ao Ornitorrinco (2003), reflete os andamentos do congestionamento histórico do desenvolvimentismo como solução para os problemas estruturais do país, no espectro das brechas propiciadas pela modernização e pela segunda revolução industrial. Se, no primeiro trabalho, embora desmontasse criticamente o dualismo cepalino e, por conseguinte, os esquemas etapistas do marxismo oficial (pcb), ainda restava alguma esperança nas possibilidades da luta nacional contra o subdesenvolvimento, o segundo ensaio, em espírito de anticlímax, “reconhece o monstrengo social que, até segunda ordem, nos transformamos”15: o “ornitorrinco”, este “bicho que não é isto nem aquilo” que veio a se tornar o “país do futuro”. Neste contexto, “o subdesenvolvimento deixa de existir, mas não as suas calamidades”16.
O longo ensaio sobre o livro de Caetano Veloso (“Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo”17), previsivelmente o mais comentado nos âmbitos midiáticos, é peça-chave da composição desta argumentação, à medida que desvela um processo concreto de aceitação deliberada dos termos da “nova ordem mundial” em sua versão periférica, refletindo os ressentimentos subsequentes ao fracasso do “percurso democrático de modernização”18. Para Schwarz, o valor literário da obra de Caetano, publicada em 1997, encontra-se na capacidade de descrever, mais de três décadas depois, a atmosfera de esperança e de ebulição (e, claro, também de ilusões) da radicalização política e estética em Salvador (e no Brasil) nos anos que precederam 1964. Mas tal valor reside também, desde que o texto seja lido como uma “dramatização histórica” – o que inclui uma “boa dose de leitura a contrapelo” -, na análise da maneira como Caetano vai acertando os pontos com a normalização e o “horizonte rebaixado e inglório do capital vitorioso”19.
É no espectro deste “inconsciente político” – que vai da esquerda à direita – que sobressai a versão carnavalizada (tropicalista) de uma modernização que, sobretudo após o golpe de 64, seguiu o rumo dos imperativos do mercado (acrescida de boa dose de violência política), abandonando de vez as promessas que pareciam acompanhá-la. Se a nossa modernidade é isso que está aí, o caminho em direção ao mercado, assim como o abandono das esperanças políticas anticapitalistas, era quase inevitável, intensificando-se até chegar ao auge (neo)liberal a partir da década de 1990.
No caso de Caetano, o fracasso da esquerda ganhava ares de alívio, sendo antevisto como estímulo à libertação dos mitos dos revolucionários, com sua fé disciplinada na “energia libertadora do povo”. A sensação era de ruptura com uma prisão mental, algo um tanto análogo ao culto pós-modernista da falência dos grandes projetos intelectuais e artísticos mais ou menos engajados. E para facilitar o trabalho de “desconstrução”, Caetano generalizava “para a esquerda o nacionalismo superficial dos estudantes que o vaiavam, bem como a idealização atrasada da vida popular que o Partido Comunista propagava”20.
Com uma leitura bem particular (para dizer o mínimo) de Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, Caetano levou adiante um processo de reavaliação radical do passado recente, visualizando nas decepções do personagem intelectual Paulo Martins o clímax da desintegração definitiva da aliança entre intelectual e povo – argumento que lhe bastava para comprovar a necessidade de se abandonar o engajamento e as “ilusões” de outrora, inserindo-se nas questões de real importância, sediadas no mercado. Noutras palavras: “A desilusão de Paulo Martins transformara-se em desobrigação. Esta a ruptura, salvo engano, que está na origem da nova liberdade trazida pelo tropicalismo. Se o povo, como antípoda do privilégio, não é portador virtual de uma nova ordem, esta desaparece do horizonte, o qual se encurta notavelmente”21. O antagonismo cede lugar ao desejo de conciliação, que não recuou nem mesmo diante do desafio de legitimar a ditadura civil-militar implantada em 1964, “contra a ameaça do bloco comunista”, como diz o próprio Caetano22. Daí em diante, a adesão ao discurso dos vencedores transformava-se em fato consumado, adesão, aliás, que permanece dando o tom cada vez mais conservador das posições políticas do compositor.
Pois bem: destas análises contemporâneas de Roberto Schwarz, que mantêm e, de certa forma, ampliam o nível de acuidade crítica que sempre lhe foi característico, sobressalta a ideia-básica – que também pode ser encontrada nas reflexões mais recentes de Chico de Oliveira ou de Paulo Arantes – de que um novo diagnóstico de época pressupõe, acima de tudo, a atualização da tradição dialética à brasileira, dotando-a de condições teóricas, intelectuais e políticas para confrontar os novos dilemas que emergiram no atual estágio de reprodução social e cultural do sistema. Melhor dizendo: tratar-se-ia de se repassar os lugares-comuns da tradição crítica brasileira, como a ideia da construção nacional interrompida, por um prisma teórico e político à altura das inflexões do presente (mais uma vez, seria preciso questionar: “Que horas são?”).
Pois o “colapso da modernização” (Robert Kurz) e de suas brechas históricas significa, ao mesmo tempo, um esmaecimento de um padrão (e/ou norma) histórico que, de fato, nunca passou de uma “inspiração”, ou melhor, “aspiração” política, intelectual e cultural de nações de desenvolvimento capitalista tardio, da periferia da ordem global. Hoje em dia, quando o estado de exceção parece permanente até mesmo em alguns países ditos centrais, a periferia continua periferia (“Martinha [continua estando] para Lucrécia como o Brasil para os países adiantados”23, donde a filiação machadiana do título24). Porém, agora, também a periferia está completamente sitiada pelos preceitos da forma-mercadoria e dos seus paradoxais “sujeitos monetários sem dinheiro” (outra ideia de Robert Kurz retomada criticamente por Schwarz). Com efeito, o cenário se complica ainda devido ao caráter difuso e à aparente ausência de classes sociais potencialmente antagônicas, as quais se revelam como que emboladas na vala comum das “águas geladas do cálculo mercantil” (Marx).
O pensamento de Roberto Schwarz, que jamais se furtou a tomar como matéria decisiva os imbróglios do presente (“O crítico precisa ter a atualidade bem agarrada pelos chifres”, como disse Walter Benjamin, citado pelo autor25), constitui uma preciosa – se não indispensável – contribuição para a revitalização da teoria crítica e o alargamento do horizonte político das classes subalternas no Brasil e no mundo, que ainda aguardam, a partir dos múltiplos focos de lutas de resistência (como os mutirões e as lutas por moradia popular, abordadas nos dois textos sobre temas da arquitetura26), um novo despertar histórico. Este protagonismo do presente, que Roberto Schwarz visualiza na obra de seu amigo Michael Löwy (“Aos olhos de um velho amigo”27), caracteriza um pensamento em consonância com a realidade realmente existente, mas voltado também para a “imaginação” dialética das potencialidades emancipatórias imanentes dirigidas ao futuro.
Notas
1 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 164. [ Links ]
2 Ibidem, pp. 247-79.
3 Ibidem, p. 272.
4 Ibidem, pp. 271-3.
5 Ibidem, p. 275.
6 Ibidem, pp.165-72.
7 Ibidem, p. 170.
8 Ibidem, pp. 44-51.
9 Ibidem, p. 72.
10 Ibidem, p. 136.
11 Ibidem, p. 136.
12 Ibidem, pp. 111-42.
13 Ibidem, p. 178.
14 Ibidem, pp. 173-83.
15 Ibidem, p. 152.
16 Ibidem, p. 157.
17 Ibidem, pp. 52-110.
18 Ibidem, p. 75.
19 Ibidem, p. 110.
20 Ibidem, p. 90.
21 Ibidem, p. 79.
22 Cf. ibidem, p. 108.
23 Ibidem, p. 44.
24 A crônica “O punhal de Martinha”, publicada por Machado de Assis em 1894, e que serve de inspiração ao título dado por Schwarz, está reproduzida como apêndice no livro (pp. 307-10).
25 SCHWARZ, op. cit., p. 157.
26 “Saudação a Sergio Ferro” (pp. 215-22) e “Um jovem arquiteto se explica” (pp. 223-31).
27 Ibidem, pp. 207-14.
Fabio Mascaro Querido- Doutorando em Sociologia no IFCH-Unicamp e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir – RANIERI (TES)
RANIERI, Jesus. Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, 176 p. Resenha de: MARTINS, Maurício Vieira. Revista Trabalho/ Educação e Saúde, v.11, n.2, Rio de Janeiro, maio/ago. 2013.
A relação existente entre o pensamento de Marx e o de Hegel sempre foi tema que dividiu os estudiosos do marxismo. Dentre as várias posições que se delinearam a este respeito, podemos citar a de Louis Althusser, que entendia que o corpus teórico marxiano deveria ser expurgado do pensamento de Hegel, para que ele encontrasse finalmente sua cientificidade mais genuína. Na outra ponta do debate (embora sem polemizar explicitamente com Althusser), temos a contribuição de György Lukács, que afirmava que, apesar de suas incontornáveis diferenças frente a Hegel, Marx absorveu de modo crítico alguns temas presentes no mestre de Jena.
O livro de Jesus Ranieri, Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir se filia claramente a esta última tendência. Já na Apresentação de seu trabalho, Ranieri é transparente ao reconhecer que sua leitura de Hegel deve muito às indicações presentes no Lukács tardio, especialmente em sua grande obra da maturidade, Para uma ontologia do ser social (que dedica um extenso capítulo precisamente a um balanço do legado hegeliano para o marxismo).
Sendo assim, Ranieri visa sobretudo recuperar aqueles elementos presentes em Hegel que se mostrem fecundos para uma teoria social de escopo mais amplo, ainda que para isso seja preciso proceder a uma crítica dos aspectos mistificadores igualmente presentes no filósofo alemão. Com este intuito, Trabalho e dialética enfatiza a compreensão hegeliana do mundo como uma processualidade permanente, que não se deixa capturar por uma visão estática da realidade (visão que ainda marcaria mesmo um filósofo tão proeminente como Kant). Com efeito, em Hegel, “a medida da reflexão é a certeza de que o mundo muda e de que a mudança exige um método capaz de acompanhar o movimento de mutação que, em si mesmo, já representa um universo de conexões” (p. 70).
Se é verdade que o primado do devir sobre o ser já havia sido afirmado há séculos por um filósofo como Heráclito, é igualmente verdadeiro que Hegel extrai consequências de fundo de tal compreensão, que se corporificam em sua abordagem propriamente dialética. Destarte, para poder formular adequadamente o devir mundano, é necessário um método que se liberte das antinomias excludentes dentro das quais se movia a tradição filosófica anterior, como essência e aparência, forma e conteúdo, necessidade e acaso etc. Libertação que vem a ser, aliás, outra das grandes contribuições de Hegel enfatizadas por Ranieri, como mostra sua análise das determinações-da-reflexão (Reflexionsbestimmungen, categorias desenvolvidas na Ciência da Lógica hegeliana). Muito resumidamente falando, tais determinações nos mostram o trânsito contínuo entre aquelas mencionadas categorias que haviam sido formuladas de modo dicotômico pela tradição filosófica anterior. Tendo sua origem mais remota no esforço de apreensão do mundo pela consciência sensível, as determinações-da-reflexão, quando corretamente apreendidas, findam por mostrar sua referência ao ‘outro’ do fenômeno isolado: “o conteúdo da ‘consciência sensível’ devia ser, em princípio, o puro singular, mas ele (o conteúdo) é dialético, já que força o singular, no seu excluir de si o outro, a referir-se ao outro, depender dele e, assim, ir além de si mesmo.” (p. 54).
Além da compreensão da realidade como um devir permanente e da correta visualização das determinações-da-reflexão, há que se destacar, ainda, o pensamento de Hegel sobre o trabalho humano como extremamente fecundo para as bases de uma teoria social consistente. De fato, Hegel foi um dos primeiros filósofos a mostrar a descontinuidade introduzida pelo trabalho no mundo natural. Nas argutas palavras do próprio filósofo: “…a ferramenta não possui ainda nela mesma a atividade. É coisa inerte, não retorna [zurückkehren] a si mesma. Obrigo-me a trabalhar com ela. Tenho a astúcia [List] de introduzi-la entre mim e a coisidade externa, a fim de poupar-me e de suprir com ela minha determinação e utilizá-la” (p. 80).
A partir destas indicações, Ranieri mostra que o trabalho humano introduz categorias de finalidade num universo que era antes dominado apenas por relações causais. Este é o núcleo fecundo para uma teorização acerca do ser social, que encontra no trabalho o protótipo mais antigo, incessantemente modificado, de sua constituição. Porém, prossegue Ranieri, o erro de Hegel foi ter projetado a teleologia de fato existente no trabalho para a história como um todo, o que o levou a acreditar numa espécie de teodiceia que supõe que existem finalidades ocultas no transcorrer da história humana: “o idealismo errou ao não compreender que a teleologia (a posição conforme a fins) não existe em outra esfera a não ser aquela do trabalho humano” (p. 116).
O texto aborda também a célebre dialética do senhor e do escravo, momento em que fica evidente o talento de Hegel em mostrar a tensão reflexionante dos papéis inicialmente assumidos por cada um destes personagens: apesar do exercício de sua dominação, o senhor passa a depender cada vez mais do trabalho do escravo para poder se relacionar com a natureza (p. 110). Já nos capítulos finais de seu livro, Ranieri discute como Marx simultaneamente se apropriou e transformou alguns dos mencionados núcleos temáticos desenvolvidos por Hegel.
Apenas como exemplo de tal procedimento, destaquese que o método de exposição marxiano – objeto de tantas controvérsias entre os especialistas – tem inegavelmente uma dívida com Hegel, mas dele se diferencia, já que: “para Marx, expor corretamente significa fundar, para a qualificação correta dos elementos componentes do objeto, uma teoria das abstrações racionais” (p. 147). Aqui, o primado cabe ao esforço de captura das determinações singulares do objeto que está sob análise (e não mais à sua referência mediatizada ao Espírito, princípio motor e culminância da dialética hegeliana). É a partir deste entendimento que se torna possível visualizar, por exemplo, as características do trabalho abstrato – que se desenvolve plenamente apenas na sociedade capitalista – como categoria que se articula ao capital, passando a presidir a lógica contraditória de desenvolvimento desta mesma sociedade. É por esta razão que o “método marxiano leva em conta que a determinação última da realidade é propriamente uma contradição real e não simplesmente um movimento lógico de autoconstituição do conceito (…), tal como é concebida a dialética em Hegel.” (p. 155).
Por fim, cabe o registro acerca de uma questão conceitual quase ausente na bemvinda contribuição de Ranieri. Referimonos ao que Marx certa vez nomeou como o “aspecto negativo do trabalho”, intimamente entrelaçado à sua positividade. Numa passagem decisiva dos Manuscritos de 1844, mesmo reconhecendo a grandeza da teorização de Hegel, Marx nos alerta: “Hegel se coloca no ponto de vista da Economia Política moderna. Concebe o trabalho como a essência do homem, que se prova a si mesma; ele só vê o aspecto positivo do trabalho, não seu negativo” (Marx, 1985, p. 190).1 Ora, este último aspecto está estruturalmente ligado ao estranhamento vigente na sociedade capitalista, ao esvaziamento das capacidades humanas em favor do capital. Assim é que Marx formula o trabalho em sua bivalência: se ele é o fundamento do processo do tornarse homem (destacando-o de sua determinação natural), é também, e ao mesmo tempo, fonte cotidiana de alienação e de mortificação dos trabalhadores. Garimpando mais nos referidos Manuscritos, veremos que há um conceito mais amplo que o de trabalho (Arbeit), que vem a ser o de atividade (Tätigkeit) consciente. E Marx visa claramente expandir esta dimensão da atividade consciente; daí sua insatisfação com o fato de que “até agora toda atividade humana era trabalho, isto é, indústria, atividade estranhada de si mesma” (Marx, 1985, p. 151). Reencontramos esta crítica à unilateralidade do trabalho também em A ideologia alemã, quando Marx sustenta, sem meias palavras, que a “revolução comunista se dirige contra o modo da atividade até nossos dias, elimina o trabalho…”. É apenas neste momento que ocorre a “transformação do trabalho em autoatividade” (Marx e Engels, 2009, p. 56 e p. 59).2 Ora, tais afirmações seriam ininteligíveis se não levássemos em conta as considerações anteriores, referentes à crítica marxiana à negatividade também presente no trabalho. Entendemos que o texto de J. Ranieri se beneficiaria de um desenvolvimento conceitual desta contraditoriedade real. Vale lembrar que, no campo marxista contemporâneo, autores ilustres como Moishe Postone chegam a sustentar que “a análise marxiana do capitalismo (…), não é levada a cabo do ponto de vista do trabalho, mas se baseia mais propriamente numa crítica ao trabalho no capitalismo” (Postone, 2006, p. 59).3
Como se vê, neste ano de 2013 (que marca os 130 anos do falecimento de Marx), o pensamento do filósofo continua nos interpelando nas mais variadas dimensões de nossa experiência mundana. O texto de Jesus Ranieri ilustra de forma eloquente a fecundidade de uma obra.
Notas
1 Marx, Karl. Manuscritos: economía y filosofía. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 190, grifos nossos. Notemos que o próprio Jesus Ranieri traduziu para o português estes densos Manuscritos, aqui publicados pela Boitempo Editorial.
2 Marx, Karl; Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 56 e p. 109, respectivamente.
3 Postone, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación social. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 59. Não concordamos com a íntegra do argumento de Postone, mas ele é relevante para o ponto aqui sob exame.
Maurício Vieira Martins – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: mauriciovieira9@gmail.com
[MLPDB]Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história – MÉZÁROS (TES)
MÉSZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo, Boitempo, 2011. 370 p. Resenha de: NEVES, Renake Bertholdo David. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9, n.3, nov. 2011.
O mais novo livro do filósofo húngaro István Mészáros lançado pela Boitempo, na coleção Mundo do Trabalho, tem como escopo fundamental demonstrar a relação dialética descoberta por Marx entre estrutura social e história, objeto de relevância primordial para as ciências humanas e sociais.
Mészáros faz uma apurada e erudita análise da relação contida na metáfora base-superestrutura, isto é, a relação fundamental entre o modo de produção, a base material da sociedade, e a consciência social, manifesta em suas diversas formas – arte, religião, moral, política etc. O autor evidencia a concepção dialética expressa no modelo de base e superestrutura, refutando as acusações de ‘determinismo econômico’ imputado a Marx, e mostra que a metáfora deve ser entendida como uma totalidade cujas partes não estão simplesmente interconectadas, nem são igualmente importantes: formam um todo estruturado, com uma ordem interna adequada e uma hierarquia determinada, ainda que, em conformidade com o caráter intrínseco a um complexo dialético, devam ser apreendidas como dinamicamente em mutação.
O autor deixa claro que, na concepção dialética de Marx, cada elemento da vida social teve de ser explicado em termos de sua gênese e transformação histórica. Reconhece a importância do famoso ‘Prefácio’ de 1859 à Contribuição à crítica da economia política, admitindo que ele traz uma avaliação concisa da relação entre base e superestrutura, mas também recorre largamente aos Grundrisse ea O capital a fim de fundamentar seu argumento.
O filósofo explicita que não existe correspondência mecânica entre a materialidade e as ideias, mas uma interrelação dialética tripla que constitui o intercâmbio entre base e superestrutura: primeiro, as relações de produção conformam a estrutura econômica da sociedade; segundo, sobre essa base material, erige-se uma superestrutura jurídica e política; por fim, o terceiro fator essencial nesse intercâmbio é constituído pelas diversas “formas ideológicas” que se arquitetam como “formas sociais determinadas de consciência e, como tais, correspondem à superestrutura jurídica e política” (p. 127).
O exame da evolução da superestrutura jurídica e política ganha destaque nessa análise sobre a relação entre a estrutura material e as formas de consciência. Mészáros sublinha que essa forma normativa se desenvolve como tal apenas em sociedades que se diferenciaram em classes, e não pode ser confundida com a ‘superestrutura’ em seu sentido primordial, sendo uma forma historicamente específica de superestrutura e que adquirirá proeminência a partir do advento do sociometabolismo do capital.
A superestrutura jurídica e política é definida, ao mesmo tempo, como um regulador do intercâmbio social e um “usurpador a serviço dos usurpadores da riqueza social” (p. 99). O aporte de Mészáros sobre o tema joga por terra o mito capitalista do Estado mínimo, do laissez-faire, pois apresenta categoricamente como o Estado no capitalismo alcançou sua preponderância no curso do desenvolvimento da produção generalizada de mercadorias e da instituição prática de relações de propriedade adequadas à manutenção desse tipo de produção da riqueza social, não podendo deixar de prescindir de seu caráter centralizador e burocrático, que a tudo invade, para garantir a reprodução ampliada do capital, inclusive por meio do aparato militar. A origem do Estado moderno, constata Mészáros, não é resultado de uma determinação material supostamente unilateral – explicação bastante usual nas concepções marxistas vulgares -, mas se constituiu dialeticamente por meio de sua necessária interação recíproca com a base material do capital. Portanto, o Estado não apenas foi moldado pela estrutura material da sociedade, mas também moldou (e molda) a acumulação do capital, assumindo a função de ser a estrutura de comando geral do sistema do capital diante da incontrolabilidade da dinâmica centrífuga de uma produção que subsome o valor de uso ao valor de troca e que está sempre orientada para a acumulação.
Mészáros defende que a continuidade da normatividade da superestrutura jurídica e política é radicalmente inconciliável com a ideia de emancipação comunista; isso não significa que na sociedade dos ‘produtores associados’ seja possível a ausência de uma normatividade, pois o recuo progressivo das barreiras naturais exige a intervenção crescente dos fatores superestruturais, porém de maneira autoconsciente, não na forma alienada dos sistema do capital. A superação do Estado é, portanto, condição necessária, entretanto não suficiente, para a transição rumo a uma sociedade socialista. Caminho que não é fácil, sustenta Mészáros, em face dos exemplos das sociedades do Leste Europeu, onde o Estado se reconstituiu mais poderoso do que nunca.
Por sua vez, a relação entre base e superestrutura não pode ser dissociada de outra ideia cara ao filósofo lukácsiano: a de uma ontologia do ser social permeada por uma teleologia do trabalho. O autor assinala que o fundamento estrutural de todos os processos sociais “é a objetividade trans-histórica das determinações ontológicas sociais” (p. 49), uma vez que o metabolismo social é radicado no metabolismo entre humanidade e natureza. E nesse metabolismo, o trabalho cumpre a função de mediação ativa, sempre com um pôr teleológico. Contudo, o materialismo histórico, alerta Mészáros, só pode conceber a “teleologia objetiva e com fim aberto do trabalho em si” (p. 55), e jamais pode invocar a ideia de uma progressão de estágios ‘logicamente necessária’ no desenvolvimento histórico real. Esse foi um dos grandes equívocos manifestos nas concepções idealistas da história, que acabaram por tratar a teleologia em geral como uma forma de teologia, elaborando suas explicações em termos de ‘causas finais’, identificando-as com a manifestação do “propósito divino na ordem da natureza” (p. 55). A refutação dos pontos de vista idealistas do processo histórico, no entanto, se deterá com maior apuro em um capítulo dedicado às filosofias da história de Kant e Hegel, cuja teleologia do processo histórico está carregada de aspectos teológicos, mas tributários das limitações de um horizonte social determinado – a ascensão do modo de produção capitalista -, e não de um quadro teológico conscientemente assumido, como era o caso em santo Agostinho, Joaquim de Flora ou Friedrich Schlegel. Mészáros mostrará como os sistemas teleológicos desses pensadores são incompatíveis com a teleologia presente no pensamento marxiano, incidindo em uma teologia que congela a história em um ponto do tempo ‘ideologicamente conveniente’, auto-legitimando a sociedade burguesa: a história é “trazida para um fim”, em vez de representar o quadro explicativo de toda a teoria, como o é em Marx. O principal fio condutor da crítica dessa teleologia da história apologética do capital será o excelente exame sobre a fusão entre necessidade natural e necessidade histórica realizada por esses filósofos e também pela economia política. Tal síntese, como demonstra a análise de Mészáros, transforma aquilo que é historicamente específico em algo alegadamente natural, tornando eterno o “controle social metabólico do capital” e dando ao capitalismo um caráter supra-histórico. O autor, contudo, faz questão de pontuar que esses pensadores empreenderam a apologia do capital na fase ascendente do modo de produção capitalista, quando, apesar do impacto alienante que ele ocasionou sobre as diversas esferas da vida humana, houve o maior progresso produtivo de toda a história até então e uma extensão da igualdade e liberdade a todos os indivíduos – mesmo que apenas formalmente -, ao mesmo tempo em que o antagonismo de classes não era tão agudo. Tal apologética é muito distinta daquela perpetrada por cientistas e filósofos que vêm realizando suas investigações e reflexões já na fase descendente do sociometabolismo do capital, uma vez que, nesse último caso, a apologia é realizada contra todas as evidências das contradições insolúveis e dos antagonismos de classes explosivos desse modo de produção. Mészáros assinala que a “busca da verdade” é abandonada em detrimento da defesa dos interesses de reprodução e acumulação do capital.
O autor pondera que o conceito de mudança estrutural que exprime uma visão histórica aberta, em direção a um futuro “estruturalmente alterável”, sobre a base das determinações estruturais objetivas do desenvolvimento em desdobramento em si, é absolutamente incompatível com o ponto de vista do capital.
O ser humano, assinala Mészáros, torna-se sujeito histórico no desenvolvimento progressivo de sua capacidade para superar os graves obstáculos da necessidade, seja ela natural ou “histórica autoimposta”, alienante. É nesse processo de autoconstituição do sujeito ativo da história que se pode identificar o processo histórico de transformação emancipadora da humanidade de que falava Marx.
O grande confronto histórico de nosso tempo enfrentado todos os dias pelos sujeitos históricos é o antagonismo estrutural fundamental entre capital e trabalho. A defesa da transformação emancipadora que desmistifica criticamente o fetichismo do capital só poderia surgir em um momento determinado, no início da fase descendente do desenvolvimento do sistema do capital. A ordem reprodutiva societal alternativa possui uma fundamentação objetiva, constituindo sua viabilidade a partir das “potencialidades positivas necessariamente malogradas do capital”, como o tempo disponível proporcionado pela incrível produtividade do trabalho que o capitalismo engendrou, mas que não pode ser realizado como um ‘reino da liberdade’ num sistema que se orienta pela acumulação cega.
O estudo de Mészáros responde não apenas a uma preocupação teórica fundamental para as ciências humanas e sociais. O empenho em apresentar como se dão as determinações histórico-sociais, de demonstrar a diferença entre aquilo que é particular e universal, e entre o que é especificamente histórico e aquilo que é trans-histórico (e de que nada há no que se refere ao mundo dos homens que possa ser tomado como supra-histórico) também vem suprir outro anseio, pois a apreensão do movimento histórico real possibilita importante arma para a “necessária intervenção emancipadora” dos seres humanos. A referência à 11ª tese sobre Feuerbach de Marx, aliás, será constante ao longo de todo o livro: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.
Renake Bertholdo David das Neves – Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: renake@yahoo.com
[MLPDB]Dialética negativa – ADORNO (NE-C)
ADORNO, W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: GATTI, Luciano. Exercícios do pensamento. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.85, 2009.
A fama de certos livros costuma induzir o leitor a enganos. A Dialética negativa, publicada originalmente em 1966, poderia ser muito bem recebida no Brasil como a consumação da obra filosófica de Theodor W. Adorno. A aura de obra difícil, reforçada por décadas de inacessibilidade em língua portuguesa, seria uma preparação condizente com o posto de obra-prima. Tal fetiche poderia naturalmente justificar-se em diversos elementos que, de fato, se encontram no livro. Os leitores familiarizados com outros textos do autor não terão dificuldade em encontrá-los, embora alguma suspeita não faça mal a quem folheia o livro pela primeira vez. Os interessados, por exemplo, na gênese das idéias de Adorno saberão rastrear temas que remontam àquelas primeiras conferências do início da década de 1930, sobre “A atualidade da filosofia” e sobre a “Idéia de história natural”. Nestes trabalhos programáticos, com as quais um jovem e pretensioso filósofo estreava na cena universitária alemã, delineava-se o confronto do panorama da filosofia contemporânea, herdeira, segundo Adorno, do idealismo alemão, com uma noção ainda bastante vaga de filosofia materialista, inspirada nos escritos de juventude de Walter Benjamin. Essa intenção de realizar uma crítica imanente da filosofia idealista alemã, avaliando-a pelas suas próprias pretensões, de modo a extrair, nesta crítica, uma concepção bastante singular de materialismo, certamente pode ser reencontrada na Dialética negativa.
Os leitores da Dialética do esclarecimento, por sua vez, reconhecerão elementos da caracterização do estágio mais avançado do capitalismo como um sistema de dominação social que teria colocado fora de campo as esperanças marxistas de realização da filosofia numa sociedade justa. A Dialética negativa poderia ser considerada, então, um aproveitamento desse diagnóstico de época para um minucioso acerto de contas com a tradição filosófica. Um rápido percurso pelo sumário do livro indica ao leitor o confronto de Adorno com disciplinas da tradição – filosofia prática, filosofia da história e metafísica – e com a ontologia heideggeriana. Do ponto de vista da impossibilidade de uma sociedade justa, as ambiciosas construções do pensamento idealista são desmascaradas como falsas. Segundo esse diagnóstico emprestado da Dialética do esclarecimento, a história da filosofia se reverteria, por fim, em uma história de ideologias.
Os interessados nos trabalhos materiais de Adorno, ou seja, naqueles inúmeros ensaios em que trabalhou a especificidade dos objetos mais diversos, da crítica musical à sociologia empírica, talvez busquem na Dialética negativa uma espécie de fundamentação filosófica do ensaísmo adorniano, fazendo eco à idéia corrente de que a filosofia teria alguma prioridade epistemológica perante a crítica de arte ou as ciências humanas. No Prefácio ao livro, Adorno, contudo, adverte contra este posicionamento da Dialética negativa em relação a seus trabalhos materiais. Nada seria mais estranho a uma filosofia materialista do que tal hierarquia entre pensamento e material histórico ou empírico.
As circunstâncias de elaboração do livro fornecem outros indícios contra supostas continuidades entre este livro e o restante da produção intelectual de seu autor. Escrito a partir de conferências apresentadas no Collège de France no início da década de 1960, cada uma das partes do livro foi apresentada e discutida em cursos ministrados por Adorno na Universidade de Frankfurt, ao longo dos anos de 1960, em auditórios ocupados por centenas de pessoas. Seu autor não era apenas um professor universitário, mas também uma personalidade pública no cenário da reconstrução alemã do pós-guerra. A expressiva audiência de seus cursos não era indício apenas da penetração da teoria crítica entre os estudantes, em particular no movimento estudantil alemão, mas também da permeabilidade do pensamento de Adorno à discussão pública das questões que estavam na ordem do dia. A Dialética negativa surge então como documento de um exercício intelectual único, construído no confronto reiterado com as exigências do tempo presente. Lê-lo a partir de teses formuladas em circunstâncias históricas diversas trairia o esforço da teoria crítica em compreender seu próprio tempo. O confronto com a tradição filosófica levado a cabo por Adorno, ausente em sua obra de juventude, também não pode estar vinculado de antemão às teses sombrias da Dialética do esclarecimento, mas deve abrir-se à experiência intelectual a qual ele convida.
O livro que finalmente chega às mãos do leitor brasileiro no aniversário de quarenta anos da morte de seu autor, com tradução cuidadosa de Marco Antônio Casanova e revisão técnica de Eduardo Soares Neves Silva, possui uma posição própria, sem prejuízo da reelaboração de questões que percorrem uma vida de trabalho intelectual. A ocasião deve ser saudada como a possibilidade de transformação da recepção de Adorno no Brasil, ainda fortemente marcada pela Dialética do esclarecimento. Muitos dos ensaios traduzidos por aqui costumam ser lidos e interpretados na chave deste livro. Esta tradução da Dialética negativa, por sua vez, tem o potencial de alterar tal situação, ensejando uma redescoberta de seu autor. Em relação ao livro de 1947, escrito em parceria com Max Horkheimer durante os anos de exílio nos Estados Unidos, o título da Dialética negativa, já indica algo novo. O “negativo” da dialética é inseparável da questão da sobrevivência da filosofia, com a qual Adorno abre a introdução: “A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu seu instante de realização” (p. 11). Esta tese deve ser entendida como a formulação de um diagnóstico de época que não apenas possibilita, mas também exige este exercício do pensamento configurado historicamente no embate da Dialética negativa com a tradição filosófica.
A diferença em relação à Dialética do esclarecimento é grande. Neste livro, a tese da autodestruição do esclarecimento, levada a cabo por um desenvolvimento histórico que conduzira a humanidade a um estado de barbárie, colocava o pensamento crítico diante de uma aporia, pois o conluio de pensamento e dominação social minava a possibilidade da crítica, a qual, contudo, era exercida conscientemente por seus autores. O Prefácio de 1969 para a reedição do livro adverte para a suspensão (mas não interrupção) daquele diagnóstico de época, segundo o qual o capitalismo tardio caminhava para um sistema integrado de dominação. A compreensão do mundo atual nos países avançados como uma trama de dominação formada por mercado, Estado, burocracia e meios de comunicação de massa, que impede o colapso do sistema e sua superação em uma sociedade justa, mantém-se atual no pós-guerra. A guerra do Vietnã, o macarthismo e a corrida armamentista comprovariam essa atualidade. A diferença em relação ao livro da década de 1940 está em que tal diagnóstico não implica a desconsideração da possibilidade de consciência crítica, nem de participação política no contexto das democracias do pós-guerra, como evidencia o posicionamento ativo de Adorno em diversos debates na esfera pública alemã. A questão da possibilidade da emancipação não poderia ser colocada sem esses novos desdobramentos históricos. Em relação à Dialética do esclarecimento, a diferença do diagnóstico de época subjacente à Dialética negativa está em conseguir detectar na história recente elementos singulares de experiência crítica não subsumida à totalidade social. Por este motivo, a possibilidade mesma de composição da experiência torna-se a questão-chave de uma dialética negativa, configurando-a como um exercício de crítica da história do pensamento à luz de um diagnóstico de época. A idéia de experiência como um exercício do pensamento circunscreve o esforço de negação empreendido pela teoria crítica adorniana em função da convergência histórica entre a tradição filosófica e a lógica da dominação social. O esforço de escapar dessa aporia no capitalismo tardio é o que teria exigido esta forma de crítica da filosofia caracterizada por seu autor com a expressão “dialética negativa”.
O recurso do pensamento à tradição filosófica, indicado em tal expressão, exige, portanto, a subversão dessa mesma tradição. Em sua reconstituição por Adorno, o pensamento da negação sempre procurou estabelecer algo positivo. A dialética negativa volta-se contra essa positividade e suas inúmeras formas, particularmente contra a pretensão da dialética idealista de esquadrinhar a totalidade da experiência a partir de princípios subjetivos. Mas não só: ela também se contrapõe à pretensão malograda da dialética materialista de realizar na história a identidade entre sujeito e objeto. Diante do fracasso da emancipação como revolução social, a sobrevivência do pensamento dependeria do esforço de alcançar seus objetos em sua singularidade por meio da auto-reflexão crítica dessa pretensão. Com isso, a idéia de sobrevivência da filosofia só é possível como uma crítica do idealismo que leva em consideração a esperança não realizada de sua realização na história.
Nesta constelação histórico-filosófica desenhada pela Dialética negativa, Adorno busca conferir uma tarefa para a filosofia no presente a partir do destino de um projeto específico: a realização da filosofia por Marx e pelo hegelianismo de esquerda. Como evidencia a caracterização do capitalismo tardio, a pergunta pela possibilidade da emancipação não passa apenas pela consideração do fracasso das esperanças depositadas numa revolução social ou da reversão do caráter autoritário do socialismo real, mas exige também questionar a perpetuação de um estado de não-emancipação no capitalismo mais avançado. Ainda assim, é o fracasso de tal projeto filosófico que constitui a perspectiva para o exame da possibilidade da filosofia contemporânea, a qual é examinada do ponto de vista da “crise do idealismo”. Adorno sabia muito bem que nem todas as filosofias do presente-as quais, segundo ele, disputam um lugar no mercado da teoria – têm esse projeto como referência primordial. Por que então submeter todas a esse crivo? Sua justificativa não passa apenas pela conclusão de que o vínculo entre pensamento e emancipação tem sua referência maior nas pretensões emancipatórias desse projeto, mas também pela convicção de que a história da filosofia foi marcada pela pretensão de conferir um sentido à totalidade da experiência por meio de sua apreensão conceitual. Diante disso, o sistema hegeliano marcaria o apogeu dessa história, assim como o maior fracasso da pretensão de submeter a realidade ao movimento do conceito. E mais: a história recente, bem distante da força emancipatória que o idealismo representou na consolidação da sociedade burguesa, também poderia ser interpretada como a realização nefasta do idealismo. O capitalismo contemporâneo seria a realização perversa do sistema hegeliano, na medida em que todo singular é subsumido à sua lógica de funcionamento. Com isso, na Dialética negativa, a crítica da filosofia é indissociável da crítica social.
O diagnóstico adorniano da filosofia contemporânea – Bergson, Husserl, Sartre, Heidegger – evidencia esta pretensão de conferir sentido à realidade por meio de sua antecipação em categorias subjetivas. Em outras palavras, a filosofia contemporânea resolve a dialética de sujeito e objeto no sujeito. Um diagnóstico análogo conduz também a uma interpretação singular do idealismo alemão, segundo a qual a força da mediação subjetiva da objetividade teria impedido a formulação de qualquer ontologia neste período da história da filosofia. Na filosofia moderna, a ontologia seria índice da impotência do sujeito em satisfazer a pretensão de conferir sentido à objetividade. O projeto da Dialética negativa não é, contudo, negar legitimidade a tal pretensão, descartando-a como mera ideologia, para então instaurar uma nova maneira de pensar para além das aporias da tradição. Tal pretensão constituiu o pensamento na sua história e permanece constituindo-o no presente, na medida em que tal pensamento representa também a história da sociedade atual. Mas retomá-la simplesmente seria ideologia; negá-la, por outro lado, seria ignorar a própria historicidade do pensamento como algo formado nessa tradição. A auto-reflexão do pensamento proposta pela Dialética negativa se traduz então no confronto dessa pretensão com a impossibilidade atual de sua realização.
A organização do livro é um registro de tal confronto. Ele ocorre, primeiramente, na crítica à ontologia heideggeriana, como o projeto de satisfazer uma carência ontológica que, em princípio, é uma manifestação legítima da fraqueza do sujeito contemporâneo em realizar o que ainda parecia possível na época do idealismo alemão. Na seqüência, por meio do confronto reiterado com Kant e Hegel, Adorno apresenta os três modelos de pensamento nos quais a Dialética negativa enfrenta as pretensões de verdade da filosofia prática, da filosofia da história e da metafísica. Como Adorno expõe neste último modelo, teses metafísicas segundo as quais o verdadeiro é o eterno e a realidade é dotada de sentido são desmentidas por catástrofes como Auschwitz e a perpetuação do sofrimento físico. A própria idéia de verdade não é pensável, contudo, caso esvaziada de toda pretensão metafísica. Um momento especulativoéimprescindível ao pensamento insatisfeito com a ordem vigente das coisas. Embora Adorno se recuse a legitimar a metafísica como um modo de apresentar questões últimas como as de verdade e sentido, ele também não nega sua imprescindibilidade ao pensamento por meio da inauguração de um pensamento pretensamente pós-metafísico. No interior da Dialética negativa, ambas as alternativas recairiam em idealismo, pois passariam ao largo da própria configuração histórica do pensamento como algo que veio a ser sob certas circunstâncias. A dialética só poderia ser considerada materialista caso fosse capaz de, paradoxalmente, salvar a pretensão de verdade da metafísica ao confrontá-la com sua caducidade. Somente ao pensamento que reflete criticamente sobre esta pretensão, avaliando-a tanto pela sua imprescindibilidade como pela sua insuficiência, seria reservada a possibilidade de expor o que escapa à identidade do conceito.
Com isto, chega-se ao cerne da crítica de Adorno à filosofia idealista: a caracterização do conceito como produção de identidade. Pensar é identificar, diz Adorno, referindo-se à tendência do pensamento a ser um com o pensado. Esta identidade é uma posição de princípio para a dialética idealista. Para que a negação da negação produza uma posição ela já tem que pressupor essa posição desde o início. Em outras palavras, para que o pensamento possa organizar-se na forma da contradição, ele precisa pressupor a verdade de uma totalidade subjetivamente instaurada, a qual subsume todo particular, falso em sua limitação e imediatidade. Desta descrição da dialética idealista, Adorno apresenta uma tarefa para a dialética negativa. Ela se volta contra a identidade entre o pensamento e o pensado. Ela não visa à identidade, pressuposta desde o início na totalidade, mas à não-identidade entre coisa e pensamento. Dialética significa, antes de tudo, que a coisa não é idêntica ao seu conceito. A inscrição histórica do potencial crítico desta concepção de dialética está na configuração da identidade como a forma atual da ideologia, exigindo uma transformação da noção mesma de crítica da ideologia: não mais apontar a diferença entre realidade e conceito em vista da realização futura deste, mas expor a diferença entre coisa e conceito diante de sua identidade social aparente. A dialética torna-se materialista quando adquire consciência desta não-identidade entre coisa e pensamento. Sua tarefa seria assim alcançar o não-idêntico por meio da lógica da identidade do pensamento ou, na formulação famosa, ir além do conceito por meio do conceito.
Esse lema da Dialética negativa indica que o esforço em expor o não-idêntico não se efetiva na elaboração de um conceito de não-identidade. Na medida em que o que importa a Adorno é evidenciar o laço entre conceito e identidade, alcançar o não-idêntico pela formulação de um conceito de não-idêntico seria absorvê-lo no pensamento da identidade, liquidando a dialética entre identidade e não-identidade. Pelo mesmo motivo, o não-idêntico não é apreensível por meio da intuição ou de alguma outra forma de intelecção não-conceitual, pois isto conduziria a dialética negativa às fronteiras de uma mística negativa. Não é nem pelo pensamento não-conceitual, nem por um conceito de não-identidade, que o pensamento alcança o não-conceitual, mas por uma auto-reflexão do procedimento conceitual a respeito dos elementos não-conceituais necessários à configuração do pensamento como linguagem. Segundo Adorno, os conceitos já estão implicitamente concretizados pela linguagem em que se encontram. A Dialética negativa toma essas significações como ponto de partida para a auto-reflexão do conceito. Tal questão não se traduz, contudo, na elaboração de uma filosofia da linguagem, mas na atenção às convenções e aos elementos retóricos, literários e estilísticos necessários à escrita filosófica. Não se trata aqui, porém, de reverter uma oposição entre lógica e retórica que caracterizaria a história da filosofia, mas de permanecer no médium conceitual, reconhecendo que o pensamento só se configura quando apresentado na materialidade da linguagem escrita.
É possível dizer então que a relação entre exposição e conceito torna possível a Dialética negativa. Conseqüentemente, a exposição adorniana é necessariamente muito distinta da forma de exposição das dialéticas idealista e materialista. Ela não é o encadeamento da figuras do desdobramento imanente da consciência, nem o encadeamento lógico das categorias que organizam o material histórico. Em ambas, haveria a precedência da totalidade guiando a explicitação dos elementos constituintes de um ponto de partida sistemático. A forma de exposição da Dialética negativa, ao contrário, prescinde da idéia de totalidade. Nesse sentido, ela poderia ser caracterizada, antes de tudo, como uma justaposição de elementos materiais e conceituais na composição do texto filosófico. A linguagem não é um instrumento neutro ou transparente para a organização e para a expressão do pensamento, mas o próprio meio no qual a filosofia se configurou historicamente em uma tradição fundada na elaboração e no comentário de textos. Exercitar-se no pensamento implica entrar em contato com os textos legados pela tradição, não só procurando refazer suas operações lógicas e argumentativas, mas também notando a dimensão histórica e estilística de sua configuração literária.
Esse relevo dado à relação do pensamento com a linguagem, com a qual Adorno encaminha a dialética entre conceito e exposição, possui tanto um nome como uma forma literária: constelação e ensaio. Adorno considerou sua reflexão sobre esta forma –O ensaio como forma –uma espécie de programa para sua filosofia tardia, formulada a partir da história sedimentada nessa forma de exposição. O ensaio, diz ele, não constrói seus conceitos a partir de um princípio primeiro, nem reenvia seus objetos, por mediações sistemáticas, a uma totalidade anterior, mas os aborda em seu aqui e agora, como algo culturalmente pré-formado. Tomando de empréstimo um termo de Benjamin, o ensaio é a forma que apresenta a constelação em que o objeto se encontra. “Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ele [o objeto] porta em si enquanto algo que veio a ser”, diz Adorno na Dialética negativa (p. 141). O termo “constelação” indica, em primeiro lugar, essa inscrição histórica do objeto. Cada objeto traz em si, tal como uma mônada, sua história sedimentada como a cifra do processo pelo qual ele veio a ser. O ensaio é uma exposição dessa constelação histórica. Mas “constelação” caracteriza também esta forma de exposição. Não se trata simplesmente de uma cadeia argumentativa ou da dedução conceitual do objeto, nem de proposição e comprovação de teses, mas de uma disposição de conceitos no texto com o intuito de iluminar a especificidade do objeto. Daí a dificuldade em tratar a idéia mesma de constelação como uma nova categoria filosófica, pois ela desapareceria caso abstraída dos elementos organizados por ela. Pela maneira como dispõem conceitos em torno de um objeto, a constelação mostra como eles são imprescindíveis ao pensamento, mas também como são insuficientes para iluminar um objeto em sua singularidade. Ela apresenta a tendência do conceito a identificar-se com seu objeto e, nesta apresentação, mostra sua insuficiência para alcançar a especificidade do objeto em causa. A constelação se vale assim dos conceitos tanto para denunciar sua lógica de identidade como para iluminar o que escapa a esta lógica. Com isso, ela também busca atender à intenção dos conceitos, mas não pelo processo de identificação, segundo o qual o conceito se sobrepõe a seu outro, e sim pela maneira como os justapõem a fim de iluminar a coisa.
Tal como um ensaio, a Dialética negativa investiga a constelação em que se encontra seu objeto por excelência-o pensamento conceitual cristalizado nos textos da tradição -, o qual ela apresenta por meio da dialética de identidade e não-identidade. Essa peculiar forma de exposição é uma das responsáveis pela dificuldade imposta à leitura do livro. A dialética não se expõe sistematicamente, mas por meio de tópicos curtos, organizados sem continuidade em torno de um problema maior, iluminado e retomado de diferentes ângulos. Talvez a única falha séria da edição brasileira (da Jorge Zahar) seja a supressão dos títulos desses tópicos na parte superior das páginas ímpares. Na edição alemã (da Surhkamp), tais títulos realçam a semelhança de cada trecho a um microensaio, iluminando o caráter descontínuo da exposição, próxima, em sua forma de organização, à justaposição das peças de um mosaico. Longe de ser um elemento preciosístico e sem importância, este cuidado na justaposição de parágrafos e títulos salienta a disposição gráfica do pensamento no formato de livro e, conseqüentemente, seu caráter de objeto cristalizado em texto. Tal materialidade da exposição evidencia que o pensamento não é apenas sujeito em busca de um sentido para a experiência, mas também objeto constituído na densidade material da escrita. A tese do primado do objeto, que marca, para Adorno, a distinção entre filosofia idealista e filosofia materialista, mostra-se nesta auto-reflexão do pensamento como objeto culturalmente pré-formado, cujo sentido se constitui no instante em que é decifrado pelo momento histórico atual. Nesta dialética de sujeito e objeto, a filosofia se assemelha a uma arte de interpretação de textos, ainda que crítica dos pressupostos metafísicos da hermenêutica. Não há nenhum sentido prévio a ser encontrado pela interpretação, mas somente um sentido reelaborado em cada leitura da tradição à luz de um diagnóstico do tempo presente. Como diz Adorno, a dialética busca o que poderia ser verdadeiro ali onde pensamento crítico seculariza um modelo originário irrecuperável de comentário aos textos sagrados.
Esta relação entre sujeito e objeto caracteriza a concepção de experiência própria à Dialética negativa. O romance de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, cuja noção de experiência é retomada por Adorno, pode ser entendido como um modelo dessa relação. A reconstituição da biografia de um indivíduo pela atividade rememorativa não se reduz à expressão subjetiva de uma vivência de mundo. Na medida em que o trabalho de recordação só é levado a termo pela mediação daescrita, opassado individualseobjetiva num processo de apropriação da linguagem e de convenções literárias historicamente configuradas. Quando as leis da memória se entrelaçam com as da escrita na composição da experiência literária, os anos vividos escapam ao domínio exclusivo daquele que os viveu e transformam-se em material infiel às intenções de um autor. No texto, a recordação segue caminhos próprios, os quais, entretanto, são também os caminhos daquele que os recorda. O resultado da recordação não é a vida tal como foi uma vez vivida, mas o passado reconstituído à luz do esforço atual de recordá-lo. Neste entrelaçamento de recordação e escrita, a experiência individual conquista a atualidade objetiva que, segundo Adorno, é o índice de sua verdade.
Tal afinidade da Dialética negativa com a experiência proustiana não é sinal de dissolução de fronteiras entre arte e filosofia, muito menos de projeção na arte de esperanças formuladas no âmbito da filosofia. Ela é mais um índice de que a verdade e a objetividade da experiência não estão em sua ordenação segundo a totalidade que lhe confere sentido, mas no respeito à lógica própria de composição do singular. Num momento histórico de constante ameaça de integração do indivíduo ao sistema social, a não-reconciliação entre indivíduo e totalidade e a irredutibilidade de um singular a universalidades heterônomas são vistas por Adorno como exercícios de negação e resistência articulados em processos de composição da experiência humana individual. Esta referência à experiência literária permite delinear não exatamente um conceito de experiência na Dialética negativa, mas o percurso de uma experiência efetivamente realizada como exercício singular de leitura da tradição filosófica à luz de um diagnóstico de época. Os diversos desenvolvimentos apresentados até aqui poderiam ser reunidos nesta concepção de experiência como exercício do pensamento. A Dialética negativa, contudo, não pretende estabelecer as condições de realização de tal forma de experiência no presente. Sua inscrição histórica, ou ainda, a objetividade de sua pretensão de verdade, não se origina de um ponto de vista universal ou universalizante da teoria que fala do mundo – ela reconhece a fraqueza da teoria em desvendar o funcionamento real da sociedade -, mas do entrelaçamento de condições materiais e históricas na composição da experiência individual de um intelectual do pós-guerra alemão.
Uma vez que esta dialética entre individual e universal deve apresentar-se somente num processo histórico em aberto de constituição da experiência individual, não há propriamente uma fundamentação prévia para a idéia de crítica praticada pela Dialética negativa. Do mesmo modo, também não se extrai daqui nenhuma receita política, como exigiu o movimento estudantil alemão no final dos anos de 1960. Avessa à formação de escolas ou seguidores, tal experiência fornece, contudo, material para se pensar uma noção radical de autonomia individual que poderia ser rica em conseqüências para a participação política. O que a Dialética negativa apresenta é o esforço de constituição da experiência individual diante de forças que buscam identificá-la a falsos universais. Contra toda fundamentação prévia, tal experiência é um exercício do pensamento que testa sua possibilidade à medida que é realizado. Foi durante este exercício que Adorno chegou à formulação de que o pensamento também é uma forma de práxis. Como um esforço sujeito ao fracasso, a Dialética negativa não é uma fundamentação filosófica da teoria crítica adorniana, nem uma teoria geral do funcionamento da sociedade no capitalismo tardio, mas o documento exemplar de um exercício de experiência intelectual.
Luciano Gatti – Doutor em filosofia pela Unicamp. Realiza pesquisa de pós-doutorado em filosofia na PUC/SP com bolsa da Fapesp.
Timor-Leste Por Trás do Palco / Kelly C. Silva e Daniel S. Simão
Publicado recentemente, o livro “Timor-Leste Por Trás do Palco – Cooperação Internacional e a Dialética da Formação do Estado” é ruma coletânea de textos produzidos por autores com as mais diversas formações e experiências na área de cooperação internacional, e produto do seminário internacional Cooperação Internacional e a Construção do Estado em Timor- Leste. O livro apresenta uma crítica às práticas da cooperação como instrumento de poder e de suas relações com as conjunturas históricas, poderes e culturais locais pré-estabelecidas, bem como os problemas decorrentes da atuação de diversas organizações na região.
Os autores organizadores possuem formação na área de antropologia, e realizaram uma intensa pesquisa de campo em Timor Leste. Algumas questões principais são lançadas ao longo da obra, e na tentativa de respondêlas, os textos trazem à tona as inúmeras facetas e os problemas derivados do campo da cooperação internacional e de sua atuação na reconstrução de um Estado.
Um das questões abordadas que instigam a reflexão do leitor é a atuação dos organismos internacionais no Timor-Leste, vista por algum tempo como exemplo fantástico de como uma cooperação internacional deve se dar, e que se transforma – a partir de uma crise militar – em um modelo de Estado fracassado. Essa é a idéia que a obra tenta refutar. Nenhum dos extremos deve ser tido como verdadeiro. Não se trata de um exemplo de perfeição, mas também não se trata de um modelo totalmente equivocado e implodido com tal crise. Os problemas, segundo alguns dos textos, são provenientes de dificuldades que estão presentes em qualquer outro tipo de atuação internacional, e os fatos acorridos não depõe contra toda uma construção positiva decorrente dos projetos empreendidos pelas organizações atuantes.
Ao identificar os problemas, o livro aborda questões fundamentais para a compreensão dos erros e acertos e porque não dizer, para correção e elaboração de novos projetos nas áreas de relações internacionais, política interna e externa, atuações militares – sobretudo da Força de Paz, com intensa participação brasileira – e projetos culturais na reconstrução de um Estadonação.
O livro, composto de vários artigos, é dividido em três partes. Na primeira delas, intitulada “Timor-Leste: passado, presente e futuro.”, procedeuse à uma análise do período que vai do início da ocupação colonial portuguesa até o acirramento da crise no país, passando diferentes momentos do longo período e principalmente pelos problemas causados pela exploração, pelos problemas das tentativas de descolonização, culminando com a crise militar e com a sua solução através da intervenção internacional.
Os portugueses estiveram presentes desde as conquistas do século XVI, de modo que, na reconstrução do país, tema principal do livro, torna-se imprescindível o papel da presença do passado colonial português, pois são inúmeros e importantes os laços estabelecidos entre a cultura portuguesa – bem como as influências intercontinentais inerentes a ela – e as populações locais.
Em 1975, a Indonésia anexou o Timor-Leste ao seu território. Como resistência, houve a formação de guerrilhas armadas e redes clandestinas de combate ao invasor, além da resistência diplomática formada por exilados na Austrália, Moçambique e Portugal. Em 1999 a Organização das Nações Unidas (ONU) propõe uma espécie de consulta popular para definir a anexação. Com resultado contrário, dá-se uma retirada em meio a massacres e a destruição de grande parte da estrutura física do país.
Em busca de uma solução, a ONU interveio através da UNTAET/ United Nations Transitional Administration in East Timor (Administração Transitória das Nações Unidas no Timor Leste), que incluía uma administração civil juntamente com uma força de paz, na tentativa de reconstrução e instauração de um governo autônomo. Além da ONU, outras organizações internacionais passaram a auxiliar neste processo, por exemplo, Banco Mundial, Banco de Desenvolvimento Asiático, Missões religiosas, ONGs, etc…
O segundo capítulo, sob o título “Timor-Leste e a cooperação internacional. Economia, política e administração pública”, é composto de artigos que remetem aos problemas da interferência externa nas questões econômicas e políticas do país, explicitando aspectos positivos e negativos de tal cooperação. São levantadas nessa parte, questões como o papel das instituições monetárias e bancárias, da jurisdição e outros campos da administração pública, além do modo como é tratada a educação e a cultura na reconstrução do país.
A interferência internacional no campo econômico, político, e sobretudo quando procura estabelecer um processo eleitoral, torna seu papel delicado.
Uma das autoras (organizadora) do livro, em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, afirmou que Portugal apoiava determinado candidato, ligado à FRETILIN, às eleições, enquanto os interesses australianos estavam destinados a outros candidatos.
Tal afirmação gerou desconforto em Portugal, e provocou a seguinte carta em resposta às afirmações da pesquisadora: “Li, com interesse, a entrevista hoje (10 de abril) concedida à “Folha de S. Paulo” pela Professora Kelly Silva, da UnB, a propósito do processo eleitoral em Timor- Leste. Sem querer retirar legitimidade à livre interpretação desenvolvida nesse texto sobre o posicionamento e motivações das diferentes forças em confronto, não posso deixar de discordar sobre a alusão que nela é feita ao papel de Portugal nesse contexto, e que o título escolhido sublinhou. O meu país tem demonstrado, ao longo de décadas, um empenhamento inquestionável, e unanimemente reconhecido, em favor do reforço das instituições democráticas timorenses. Isso pressupõe o natural respeito por quaisquer resultados que decorram do respectivo funcionamento. Procurar ligar a posição oficial portuguesa a qualquer facção política em Timor-Leste configura um processo de intenções que, em absoluto, rejeitamos, por não ter apoio em quaisquer factos concretos. Embaixador Francisco Seixas da Costa”1 As acusações não incluíam apenas Portugal, pois na mesma entrevista ela afirmou que havia claros interesses da Austrália em manter a fragilidade política no Timor, para facilitar a exploração de petróleo, bem como manterse em uma posição estrategicamente favorável do ponto de vista militar.
Não vem ao caso tomar uma posição em defesa de um dos lados. Porém, o que se assinala é que o envolvimento da comunidade internacional nas questões referentes ao país nem sempre são desvinculados de interesses econômicos e políticos. Daí a importância de uma regulação e verificação de um órgão superior quando se trata do problema da cooperação internacional.
Na terceira e ultima parte, intitulada “Construção do Estado”, são levantadas questões ideológicas relativas ao papel dos órgãos internacionais na reestruturação dos poderes e autoridades, e a publicação finaliza com uma série de discussões sobre a eficácia da cooperação concedida e as dificuldades enfrentadas pela comunidade internacional.
Apesar de ser uma coletânea com diferentes abordagens, o livro parece defender uma tese: a experiência no Timor-Leste não pode ser vista como um exemplo de extrema eficiência e eficácia, como foi divulgado e se sustentou por algum tempo, mas também não se trata de um total fracasso na formação do Estado através da cooperação internacional, como passou a ser visto após a crise militar. Trata-se, segundo os autores, de uma iniciativa com erros e acertos, com sucessos e insucessos, que devem ser analisados num contexto problemático que apresenta mudanças durante o processo de reconstrução do país. Outro ponto levantado está no fato do país ter grande diversidade cultural e conjunturas históricas específicas, o que torna o papel da cooperação internacional complexo e desafiador.
O livro aponta, não apenas nesta parte, mas em sua totalidade, para pontos positivos e negativos da cooperação internacional. Uma das críticas está no conflito idiomático que instalou-se no sistema judiciário do país. O anglo-saxão usado pela cooperação internacional passou a ter que conviver com o português e com o indonésio, além das dezenas de dialetos locais.
A cooperação internacional é vista como um instrumento político que interfere no destino político do país. Deve, portanto, ser analisada criticamente, pois ao invés de resolver problemas, corre o risco de gerar outros, maiores que os existentes, aumentando as injustiças, privilegiando grupos específicos em detrimento de outros. Ao analisar criticamente o papel de tal cooperação, não só em Timor Leste, mas em outros países, a leitura do livro sugere pensar em que medida ela ocorre de modo desinteressado e realmente comprometido com a reconstrução do país, ou seja, que aspectos a tornam um problema em certos campos de atuação.
Notas 1Carta enviada ao Jornal Folha de São Paulo e publicada também no site: http://timor-online.blogspot.com/2007_04_13_archive.html Acesso: 22 nov. 2007
Fabiano Luis Bueno Lopes – Doutorando em História na Universidade Federal do Paraná.
SILVA, Kelly Cristiane; SIMÃO, Daniel Schroeter. Timor-Leste Por Trás do Palco: Cooperação Internacional e a Dialética da Formação do Estado. Belo Horizonte: UFMG, 2007. Resenha de: LOPES, Fabiano Luis Bueno. Textos de História, Brasília, v.15, n.11/2, p.291-294, 2007. Acessar publicação original. [IF]
Das Ráísel der Vergangenheit / Paul Ricoeur
As questões da apreensão da multiplicidade cultural do mundo contemporâneo e da compreensão de sua complexidade histórica e social são objeto da série “Conferências de Essen sobre Ciências da Cultura”, promovida e editada pelo Instituto de Ciências da Cultura.
Este Instituto, fundado em 1988 e sediado na cidade de Essen (Alemanha) é integrante do Centro de Ciências da Renânia do Norte/Vestfália. O Instituto (conhecido por sua sigla KWI, homólogo do Institute for Advanced Studies de Princeton ou do Wissenschaftskolleg de Berlim) é uma instituição pública, voltada para a pesquisa científica realizada mediante projetos de investigação dedicados aos problemas da sociedade e da cultura marcadas pelo desenvolvimento científico, pela sofisticação tecnológica e pela industrialização. Os projetos são desenvolvidos por grupos de estudo interdisciplinares, com temas vinculados à pesquisa fundamental no campo das ciências da cultura. O arco temático dos projetos apoiados pelo Instituto vincula-se aos problemas atuais de orientação das sociedades modernas no contexto internacional e intercultural.
Pesquisas dessa natureza não atraem facilmente a atenção do público. Seus resultados, contudo, são habitualmente incorporados pelas próprias ciências setoriais e continuam a surtir efeitos nelas e por intermédio delas. A interdisciplinaridade e o trabalho em grupo dos especialistas são uma condição importante para o êxito desse tipo de projeto. No entanto, o KWI considera ser também incumbência sua fundamentar a necessidade e a relevância de suas atividades e fazê-las perceber pelo grande público. Isso ocorre de forma multifacetada: conferências, mesas redondas, debates públicos, cursos de extensão.
A série de livros das “Conferências” publica textos escolhidos do programa de conferências do Instituto. Esses textos se originam em palestras abertas ao grande público, e ao especializado, elaboradas e completadas para os fins de publicação. O amplo leque temático documenta a amplitude e o alcance das questões ligadas às ciências da cultura, assim como o fascínio das constelações interdisciplinares de pontos de vista, perspectivas e estratégias de argumentação. Cada conferência representa, por si, uma faceta desse leque.
Cada uma é um componente do vasto complexo de abordagens do conhecimento, no qual as experiências do homem consigo mesmo e com seu mundo são interpretadas, as interpretações são refletidas e transformadas em orientações práticas, para afinal serem incorporadas nas mais diversas formas de determinações de sentido, em função das quais o homem age e interage com os outros.
A pesquisa em ciências da cultura requer distanciamento da atualidade do cotidiano imediato, independência com relação às lutas pelo poder e atitude crítica com respeito às polêmicas e dos conflitos de pessoas. A aparente ausência de aplicação prática imediata não raro traz à pesquisa básica e às ciências humanas a fama de serem um luxo, um desperdício. No entanto, o pragmatismo imediatista da pressão tecnológica — que decorre muito mais da lógica econômica da lucratividade — exige justamente que se desenvolvam reflexões que se libertem a prisão “dourada” em que os resultados “imediatos” parecem ser o máximo dos máximos. O longo prazo, a profundidade do alcance, a multiplicidade das perspectivas — esses e outros fatores fazem das ciências da cultura as que apreendem, descrevem, analisam, interpretam e explicam os complexos códigos de sentido — as estruturas de significado — que produzem, consolidam e reproduzem a(s) cultura(s). A ciência da cultura torna-se assim, ela mesma, um fator ativo da cultura como patrimônio coletivo e imaterial da sociedade. Ela desempenha o papel relevante de pensamento crítico e de diretriz interpretativa para a orientação — aí sim — prática do agir humano em todos os campos. A série de “Conferências” busca, assim, na apresentação de seu editor principal, Jórn Rüsen (Presidente do KWI), dar forma concreta a essa tarefa constante da crítica científica e social.
Da série estão disponíveis, até o final de 2003, doze pequenos volumes:
- Friedrich Kambartel. Pbilosophie und politische Òkonomie. Gõttingen: Wallstein Verlag, 1998 (3-89244-332-7) 85 p.
- Paul Ricoeur. Das Ráísel der Vergangenheit. Erinnern — Vergessen — Vençiben. 1998 (3-89244-333-5) 156 p.
- Klaus E. Müller. Die fünfte Dimension. So^iale Raum^eit und Gescbichtsverstàdnis inprimordialen Ku/turen. 1999(3-89244-348-3) 158 p.
- Jürgen Straub. Veriehen, Kritik, Anerkennung. Das Eigene und das Fremde in der Erkenntnisbildung interpretativer Wissenscbaften. 1999(3-89244-366-1) 95p.
- Burkhard Liebsch. Moralische Spielràume. Menschbeit und Anderheit, Zugehorigkeit und Identitãt. 1999 (3-89244-383-1) 128 p.
- Helwig Schmidt-Glinzer. Wir und China — China und wir. Kulturelle Identitãt im Zeitalter der Globalisierung. 2000 (3-89244-426-9) 101 p.
- Hans Schleier. Historisches Denken in der Krise der Kultur. Fachhistorie, Kulturgescbichte undAnfànge der Kulturwissenschaften in Deutschland. 2000 (3- 89244-427-7) 127 p.
- Gertrud Koch. Medien der Kultur. Film: Beivegungin derLatenç. (3.89244- 428-5). no prelo 9. Rolf Wiggerhaus. Wittgenstein und Adorno. Zwei Spielarten modernen Phi/osophierens. 2000 (3-89244-429-3) 143 p.
- Bernhard Waldenfels. VerfremdungderModerne. Phãnomenologische Ansãtze. 2001 (3-89244-459-5) 162 p.
- Hans-Ulrich Wehler. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts. 1945-2000. 2001 (3-89244-430-7) 108 p.
- Ludwig Amman. Die Geburt des Islam. Historische Innovation und Offenbarung. 2001 (3-89244-460-9) 111 p.
Seus títulos representam efetivamente a variedade de perspecdvas que compõem o espectro ilimitado das questões culturais: Kambartel preconiza a crítica filosófica da economia política, sustentando a necessidade de ampliação da economia social de mercado (vol. 1); o respeitado filósofo Paul Ricoeur relembra um enigma amiúde negligenciado pela tecnologia da pesquisa: o passado só subsiste na memória e em seus vestígios, lidar com ela é questão de lembrar, esquecer, perdoar (vol. 2); como ecoando Ricoeur, o antropólogo Klaus Müller reforça a tese da memória na concepção de história, de origem, de pertencimento e de constituição do espaço social nas sociedades originárias (vol. 3).
Jürgen Straub, professor de comunicação intercultural, aborda a compreensão, a crítica e o reconhecimento: imagens de si e do outro nas ciências que recorrem à interpretação — um problema espinhoso, sobretudo para a interface entre história e psicologia social (vol. 4); Liebsch, professor de filosofia em Bochum, reflete sobre os campos — virtuais — do agir moral como espaço de relacionamento entre afirmação de si e reconhecimento da alteridade — com os problemas decorrentes da “etnicização” dos grupos e subgrupos nas sociedades (vol. 5). Como transparece ao longo de todos os volumes desta série, a referência de origem é a perspectiva cultural européia e o “déficit” de conhecimento e de compreensão da outras culturas [inclusive levando- se em conta a história colonial e seus efeitos perversos] — assim, a alteridade “radical” da cultura chinesa e a contraposição a ela histórica cultural européia, forçada pela globalização, e a impossibilidade de se entronizar novamente uma cultura hegemônica ocupam a reflexão de Schmidt-Glintzer, um dos maiores sinólogos alemães e diretor da famosa Biblioteca do Duque Augusto, em Wolfenbüttel (vol. 6).
A diversificação do tecido cultural da sociedade abriu, também para os historiadores, a crise da identidade em sua especialidade e a instrumentalização da historiografia para projetos políticos passou a ser problematizada. Hans Schleier os primórdios das ciências da cultura na Alemanha e o papel da ciência da história no contexto da crise da cultura contemporânea, a partir da experiência da desconstrução e da reconstrução alemãs entre 1880 e 1930 (vol. 7). O fenômeno da mídia — em particular da crítica social no cinema — e seu impacto na concepção do pertencimento social é o tema estudado por Gertrud Koch, professora de cinema em Berlim, ainda a ser publicado (vol.8). Wittgenstein e Adorno como representantes de dois formatos de crítica filosófica no século 20: a analítica, formal, que não se manifesta sobre o inverificável, e a dialética, engajada, que não admite que não se manifeste sobre o inefável e o subentendido são os objetos de Rolf Wiggerhaus, filósofo e jornalista (vol. 9). Bernhard Waldenfels, professor de filosofia prática e fenomenologia em Bochum, desenvolve uma forte e consistente crítica à alienação do projeto (incompleto) da modernidade por causa de seu individualismo pretensioso que concebe o global como projeção de si — e por isso mesmo compromete a racionalidade como faculdade do indivíduo e como liame do coletivo (vol. 10). O historiador Hans-Ulrich Wehler, um dos chefes de fila da escola de história social de Bielefeld, faz um balanço comparativo dos resultados obtidos pela reflexão historiográfica na segunda metade do século 20 — por exemplo, acerca do caráter “ocidental” das grandes conquistas políticas, como o estado de direito e o sistema parlamentar e eleitoral universal —, e os parcos efeitos que esses conhecimentos tiveram, até o presente, sobre a crítica social, política, econômica e cultural do mundo contemporâneo (vol. 11). O contraste inquietador que as culturas não-européias provocam nas sociedades de feitura européia é uma espécie de enigma adicional que intriga e mesmo atemoriza a “matriz” européia. A longa experiência das sociedades européias (ocidentais) e da norte-americana de ver as demais sociedades ser-lhes submissas ou ao menos delas discípulas, leva Ludwig Ammann, especialista em islamismo e jornalista, a sistematizar as circunstâncias do nascimento do islã (o aparecimento de Maomé e de sua pregação do monoteísmo, à maneira de um messias) e o choque que provoca nas tribos politeístas árabes e nas respectivas relações sociais, ao enunciar a necessidade da conversão como o sentido de uma missão transcendental instituída por revelação divina — e de como foi possível o fenômeno da islamização das culturas árabes a partir do século 7o (vol. 12).
Duas reflexões se impõem, diante da variedade e da complexidade dos temas abordados pelos textos da série. A primeira é relativa ao caráter pioneiro de abrir espaço de discussão e de contraponto, no âmbito de culturas tradicionalmente avançadas e extremamente seguras e cheias de si, como a alemã. Essa iniciativa do KWI se entende bem pela forma característica de Jõrn Rüsen de conceber o papel da reflexão histórica como um dos fatores relevantes na interculturalidade da comunicação social. Trata-se de uma contribuição de importância tanto para incrementar o arejamento do debate público e científico alemão e europeu como para resistir à crescente intolerância para com o outro e o diferente, que distorce as relações intra- e intersociais, em um mundo cada vez mais marcado pela produção e pela circulação ilimitada de informações. Essa abertura científica e cultural protagonizada pelo KWI reveste-se de duas qualidades adicionais: coragem pública e exemplaridade.
A segunda reflexão refere-se à utilidade de publicações desta natureza para sociedades multiculturais, como a brasileira. A dupla constatação de que há fissuras (bem-vindas) na torre de marfim do eurocentrismo e de que se toma consciência da necessidade de apreender o outro não para reduzi-lo a si é uma perspectiva alvissareira de fecundação da ciência pratica no Brasil. A história é um eixo de constituição da identidade que incorpora, à luz de estudos críticos como os desta série “Conferências sobre Ciências da Cultura”, a dimensão do processamento intelectual e cultural da diversidade como integrantes dialéticos do retorno a si mediante a afirmação do outro, e não por sua eliminação. A leitura historiográfica da cultura e da sociedade pode enriquecer-se com os pontos de vista da interculturalidade, superando assim a constante tentação do nombrilismo nacionalista.
Estevão C. de Rezende Martins – Universidade de Brasília.
RICOEUR, Paul. Das Ráísel der Vergangenheit. Erinnern — Vergessen — Vençiben. 1998. 156p. Resenha de: MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura, multiculturalismo e os desafios da compreensão histórica. Textos de História, Brasília, v.10, n. 1/2, p.225-230, 2002. Acessar publicação original. [IF].
Cristianismo y cultura clásica – COCHRANE (PR)
COCHRANE, N. C. Cristianismo y cultura clásica. México: Sn., 1949. Resenha de: NAVARRO, Antonio. Panta Rei – Revista de Ciencia Y Didáctica de la Historia, Murcia, n.4, p. 1998.
ÍNDICE
1.- ¿POR QUÉ UNA NUEVA LECTURA DE UN LIBRO VIEJO?
2.- AUTOR Y OBRA
3.- PRESENTACIÓN Y ESTRUCTURA DE LA OBRA
4.- ELEMENTO INTEGRADOR DE LA OBRA: “PENSAMIENTO Y ACCIÓN”
4.1.- LA DECADENCIA DE LOS VALORES Y LAS VIRTUDES CLÁSICAS
4.2.- EL NUEVO ORDEN DEL CRISTIANISMO
5.- ANÁLISIS COMPARATIVO DE ALGUNOS TÉRMINOS QUE SUFREN UNCAMBIO CONCEPTUAL EN EL TRÁNSITO DEL CLASICISMO AL CRISTIANISMO
6.- CONCLUSIONES
7.- BIBLIOGRAFÍA CONSULTADA
8.- ANEXOS
1.- ¿POR QUÉ UNA NUEVA LECTURA DE UN LIBRO VIEJO?
A quien lea la última obra de F. Fukuyama, “La Gran Ruptura”[1], puede llamarle la atención eltema y la forma de enfocarlo. En ella, el controvertido autor, se ocupa y se preocupa de lo que élllama “el capital social” por ser la clave para entender y valorar la ruptura que supone eladvenimiento de la “era informática”. Una ruptura en la que, a lo largo de su razonamiento, seconstata que va a resultar muy difícil prescindir de los temas eternos de la filosofía, máxime,cuando la discusión de lo que está en juego es la supervivencia de la especie.
Es quizá este pensamiento el que me ha llevado a la lectura del libro “Cristianismo y CulturaClásica” de C. N. Cochrane. Un libro que he leído a fondo y he procurado entender a pesar de laturbia y lejana edición en español que ha llegado hasta nosotros. Un libro, repleto por lo demás, delas abundantes reflexiones metafísicas que tan honda trascendiencia han tenido a lo largo de lahistoria del pensamiento humano, y de cuyo especial y original tratamiento ofrecido por este autor,he creído interesante redescubrir. Aunque me cabe la sincera duda, entre otras cosas por su escasadifusión, de que su mensaje haya llegado a un número considerable de lectores, de ahí la motivaciónde este trabajo. Un trabajo en el que, además de mostrar el núcleo temático principal de la obra (laevolución producida en el pensamiento y acción humanas en el tránsito del clasicismo alcristianismo), también intento explicar las razones de esa condición de polvoriento libro olvidado debiblioteca.
2.- AUTOR Y OBRA
Charles Norris Cochrane nació en 1889. Cursó estudios en Toronto (Canadá) y en Oxford(Inglaterra). Fue profesor de historia antigua en la Universidad de Toronto; también secretario de laAsociación Histórica Canadiense de 1925 a 1927; y durante la Segunda Guerra Mundial, miembrode la Comisión Real del Departamento de Justicia del Gobierno Canadiense. Entre 1941 y 1945,año de su muerte, celebró varias conferencias en diversas universidades norteamericanas, entre ellasPrinceton y Yale. Entre sus obras, además de ésta, cuya primera edición en inglés data de 1939, hayque destacar la de”Tucídides y la ciencia de la historia”, publicada en 1929.
3.- PRESENTACIÓN Y ESTRUCTURA DE LA OBRA
Viene plasmado este ensayo en una extensión de quinientas páginas que se distribuyen en tresgrandes partes. La primera, titulada “La reconstrucción”, está compuesta por cuatro capítulos: elprimero llamado “Pax Augusta: la República restaurada”; el segundo “Romanitas: Imperio yRepública”; el tercero “Roma aeterna: la apoteosis del poder”; y el cuarto “Regnum caesaris regnumdiaboli”. La segunda parte lleva por título “La renovación”, y está compuesta por cinco capítulos: elprimero llamado “La Nueva República: Constantino y el triunfo de la cruz”; el segundo “QuidAthenae Hierosolymis? El callejón sin salida del constantinismo”; el tercero “Apostasía y reacción”;el cuarto “Estado e Iglesia en la Nueva República”; y quinto “Teodosio y la religión de Estado”. Ypor último, la tercera parte llamada “La regeneración”, está compuesta a su vez por tres capítulos: elprimero llamado “La Iglesia y el reino de Dios”; el segundo “Nostra philosophia: el descubrimientode la personalidad”; y tercero “Necesidad divina e historia humana”.
Semejante distribución guarda sin duda una profunda relación con la estructura interna de la obra.
Una estructura que se ajusta perfectamente a la dialéctica hegeliana[2] , y donde su “reconstrucción” adopta la disposición de una “tesis” en la que se plasma la génesis, evolución y decadencia delorden clásico. Su “renovación” la de una “antítesis” donde el cristianismo articula un orden nuevo ycontrapuesto al clásico. Y su “regeneración” la de una “síntesis” por la que los Padres de la Iglesia,muy especialmente San Agustín, articulan todo un cuerpo filosófico cristiano susceptible de crearun nuevo y definitivo orden, en el que se recoge todo lo que de positivo tenían los dos anteriores,aunque superándolo y perfeccionándolo.
Con respecto a las fuentes, no cabe duda que sigue un patrón de corte tradicionalista, ya que sutrabajo está basado y fundamentado única y exclusivamente en las obras clásicas llegadas hastanosotros, tal y como él mismo deja constancia en el prólogo de la obra y según voluntad propia.
Aunque ello no le resta originalidad al ensayo, ya no sólo por la temática central de la obra (laevolución del pensamiento y acción humanos), sino también por el planteamiento y plasmación dela misma: “dejar que los protagonistas de uno y otro lado hablaran, en cuanto fuera posible, por símismos”[3] . Temática y planteamiento que quizá sean fruto de esas nuevas corrienteshistoriográficas que empiezan a recorrer el planeta de los eruditos, y entre las cuales, podemosencontrar tipologías similares y anejas a ésta en la “historia de las mentalidades”, circunscrita alámbito de Annales; o en la idea de más alcance de “ideología” que introduce y utiliza el ámbitomarxista.
Unas corrientes historiográficas que sin duda se encuentran influídas a su vez por la filosofía delmomento y de la que, obviamente, también beberá esta obra que me ocupa. Pero, hallar con lalectura de una sóla obra, la tendencia o afinidad filosófica de un autor determinado es fráncamentedificil, máxime si el autor pretende evitar plasmar, en la medida de lo posible, su propioposicionamiento, como es este caso. No obstante, la neutralidad o impermeabilidad absoluta en elplano de la expresión es, según mi opinión, prácticamente inexistente, por cuanto semejante actoconlleva necesariamente un posicionamiento personal con respecto al tema u objeto de la misma,aunque sólo sea en su estructura, su disposición o su secuencia. Es por ello, por lo que, extrayendode esta obra el elemento vertebrador de la misma, y los pilares en torno de los cuales pretendefundamentar tal vertebración, se pueden descubrir en Cochrane residuos de distintos autores ycorrientes, de entre las cuales, aquella que responde a la denominación de “personalismo”, y que seextiende en el orbe erudito entre los años 1920 y 1940, es la que más afinidad o concordanciapresenta con semejante temática.
Dicha corriente, si bien coincide con otras que le son coetáneas en la exaltación y primación delhombre, difiere con ellas en el matíz marcadamente comunitario y social que profesa, frente alindividualismo extremo de aquellas. Además, es un posicionamiento profundamente ligado alcristianismo, por cuanto defiende la importancia de la tradición cultural cristiana en el seno de lacultura occidental, sobre todo en la conformación del concepto de persona como sinónimo deigualdad de todos los hombres, por ser critaturas de Dios y estar hechos a su imagen y semejanza.
Una concepción que los principales representantes de esta corriente, colocan por encima desociedades como la griega y la romana, por abogar y defender éstas un modelo de persona decarácter desigualitario.
Pero además de lo expuesto, y que como se verá guarda profunda relación con los parámetrosprincipales de esta obra de Cochrane[4], el elemento principal y vetebrador de la misma, que versasobre el cambio operado en el pensamiento y acción en el tránsito del clasicismo al cristianismo, ysobre la importancia que el primero, el pensamiento, tiene en la redifinición de una accióndeterminada, está también profundamente influído por esta corriente filosófica. Y ello es así, porqueen el trabajo de reflexión filosófica de sus representantes, su finalidad última no será la mera teoría,sino la acción práctica, la actividad. Cosa que les aleja de posiciones estáticas e inertes en supeculiar visión y concepción de la persona, y que les sitúa bajo el influjo de la dialéctica hegelianade moda, en la que todo ser es proceso, devenir y dinamismo.
Pero semejante afinidad temática con el “personalismo” no resta importancia a las posiblesaportaciones de otros autores o corrientes de pensamiento. Así por ejemplo, autores como ArnoldToynbee y Oswald Spengler, ya obordan extensamente en sus obras la temática de las civilizacionescomo ente orgánico sujeto a génesis, madurez y decadencia. Incluso este último, Spengler[5], yatrata allá por 1918 en su “Decadencia de Occidente” algunos puntos que Cochrane en la presenteobra amplía y sobredimensiona, tales como: el principio de polaridad en el pensamiento clásico; laahistoricidad e inmovilidad de susodicho pensamiento frente a la noción lineal y de progreso queintroducen algunas religiones orientales, muy especialmente el cristianismo; la depravación de losvalores tradicionales en el marco urbano; etc. Cosa que permite situar y catalogar las influencias deCochrane por la época en que éste llevó a cabo su obra, y en el seno de un “ambiente de opinión”con respecto a la temática de su trabajo, ya tratado por algunos autores, aunque sólo fuese a modode meras pinceladas.
Por otra parte, y avanzando un poco más en el plano expositivo, si bien la estructura externapresenta una cierta concordancia con la interna dentro de una lógica discursiva de corte hegeliano,en el seno de cada uno de los capítulos la disposición temática es un tanto desordenada y amorfa,por cuanto encadena hechos y materias de forma asistemática y con continuos saltos hacia delante yhacia atrás, con la dificultad que ello conlleva de cara a la comprensión de temas tan complejoscomo los sistemas de creencias, de valores y de virtudes. No encontraremos pues, ni apartados nisubapartados, ni cualquier otra forma de organización o estructura, con lo que dada la extensión dealgunos de ellos, resulta bastante más dificil la retención de conclusiones que, como es lógico, acada poco va plasmando. Cosa que convierte la obra en un gran jeroglífico de una casi imposiblesolución, compuesto por una buena temática y con un buen planteamiento, pero con un enigmáticodesarrollo que dificulta in extremis la comprensión del mensaje pretendido por el autor.
He encontrado también que la traducción de la obra no es muy buena, y no es que yo sea unexperto, pero la sintáxis de muchas de las frases es tan dificil y retorcida que uno no sabe si ladificultad de comprensión de un párrafo concreto se debe a su contenido o a la exposición delmismo, lo que me ha llevado en ocasiones, a copiar yo mismo el párrafo con una sintáxis másacorde con la que usualmente empleamos; dando como resultado la perfecta comprensión de éste.
Las erratas en la obra también son frecuentes, lo que desconozco es si son de imprenta, del traductoro de ambos a la vez, ya que si bien se pueden encontrar las típicas palabras mal escritas en las quese suprime o altera alguna vocal o consonante; también hay otras en las que, al estar perfectamenteescritas y con pleno significado, te hacen dudar sobre si son una errata o si has leído el párrafodemasiado deprisa como para poder comprender su pleno significado. Un ejemplo de ello se puedever con la palabra “principado”, o, como pone el texto, “principio”[6] . Leyendo el mismoencontramos: “Bajo el principio, los derechos y obligaciones de aquélla fueron de nuevoreconocidos…”. Pero si leemos todo el texto vemos que la palabra “principado” tiene más sentidotanto en la frase como en el párrafo, aunque, en una obra, como ésta, donde el contenido másimportante de la misma es de tipo filosófico, nunca estás seguro si se te ha escapado por ahí algún”principio” de esos extraños, con lo cual, la duda está servida.
Tal vez, la confluencia de todos estos factores negativos en el plano expositivo hayan influidopoderosamente en el poco interés despertado por esta obra, tal y como deja patente su lejanaimpresión allá por el año 1949, sin que se hayan producido reimpresiones posteriores en español.
Unos factores que conforman un cóctel altamente negativo y determinante de cara a la aceptación ydifusión de la misma, en comparación con otras similares y coetáneas suya. Porque, si bien elinflujo de la corriente “personalista”, que presenta unas características específicas en el planofilosófico, es importante en la determinación de la obra; no es un factor decisivo a la hora deexplicar su fracaso, dado a que dicha corriente era una compilación eminentemente ecléctica delresto de corrientes filosóficas contemporáneas: existencialismo, marxismo, etc. Además, y fruto deesas corrientes, la historiografía experimentó un desarrollo temático que gozó de gran éxito yaceptación, y del que considero también participó esta obra, tal y como apunté más arriba, por loque tampoco se podría atribuir su fracaso al empleo de una temática desfasada. Así pues, la falta declaridad y de sencillez expositivas, así como la deficiente organización interna en el seno capitular,pueden ser los factores que mejor respondan a la tendencia al olvido de esta obra.
4.- ELEMENTO VERTEBRADOR DE LA OBRA: “PENSAMIENTO Y ACCIÓN”
Tal y como el autor expone en el prólogo de la obra, la intención de su trabajo es el de mostrar lametamorfosis que se produce en el pensamiento y acción del hombre en el tránsito del clasicismo alcristianismo. El porqué de este singular estudio, lo plasma en un pequeño comentario que hace en laparte dedicada a la “Renovación”, donde textualmente dice: ” Las controversias cristológicas queinmediatamente irrumpen y que debían proseguir durante la mayor parte del siglo IV, pueden, talvez, ser dejadas de lado como peleas futiles y nada edificantes por quienes perversamenteconsideran ser el pensamiento función de la materia. Mas para los que creen que lo que hacen loshombres tiene directa relación con lo que piensan y con lo que desean, será imposible evitar lostemas de discusión suscitados en la época. Y, desde este punto de vista, dichos temas incumben alhistoriador no menos directamente que al teólogo, y no podrá, pues, descuidarlos salvo a costa deno acertar con lo que fue realmente central en los movimientos políticos, sociales y económicos deaquel entonces”[7] . Un aspecto este también considerado, o al menos tenido en cuenta, por otrosautores, como es el caso de Jaeger, que refiriéndose a las elegías de Tirteo en cuanto a suimpregnación de un ethos pedagógico, apunta sobre éstas que : “Las normas que imponen alpensamiento y acción de los individuos no nacen de la tensión y las exigencias que inevitablementese siguen de la guerra, sino que son el fundamento del cosmos espartano en su totalidad”[8] .
Todo ello sirve sin duda a Cochrane para entablar una relación directa entre filosofía e historia,entre la forma de ver y concebir el cosmos, la naturaleza y el hombre, y la forma de actuar en talescampos. Ejemplificación de lo cual, pretende llevar a término en el seno de una sociedad de fronteraentre dos mundos, el clásico y el cristiano, donde las acuciantes contraposiciones y metamorfosisresaltan precisamente esa interrelación filosófico-histórica. Cosa que inevitablemente llevará alautor a una contínua polarización temática en el seno de su exposición.
El momento histórico en que va a llevar a cabo tal pretensión, va a ser la época imperial, desde susorígenes con Augusto, hasta su cataclismo con la caída y pérdida de la parte occidental del imperio.
El porqué elige esta época y no otra, es, según el autor, “por su hallazgo de la expresión definitiva yfinal del orden clásico”[9]. Y es que, con Augusto, se culmina un esfuerzo que había comenzadovarios siglos antes en la Hélade, consistente en la creación de un mundo capaz de dar seguridad a lacivilización. También, lógicamente, por ser el marco de aparición y desarrollo del primercristianismo.
La originalidad de semejante punto de vista, no está exenta de dificultad por cuanto trata algo tanvolátil, particularista y etéreo como es el pensamiento, y la capacidad de éste como principal factorde la motivación humana hacia una acción determinada. Un punto de vista pues, del que es muydificil la extracción de conclusiones serias y bien fundamentadas, máxime cuando el objeto dedicho estudio se encuentra en el pasado. No obstante, y a pesar de las limitaciones que entraña,Cochrane aprovecha y obtiene un gran rendimiento de las fuentes escritas llegadas hasta nosotros ypertenecientes a la etapa en cuestión de su estudio. Un rendimiento del que cabría cuestionarse suvalidez, por extrapolar al grueso de la población, unas consideraciones extraídas de una ínfima partede la misma, como son, los escritores o literatos. Una dificultad que supera airoso, ya que focalizasu atención en un aspecto de la vida personal y social que tiene fácil constatación, no sólo en lasobras de los clásicos, sino también en el marco legal que lo ampara y protege, y en losacontecimientos históricos propiamente dichos que lo confirman.
Ese aspecto son los valores y las virtudes clásicas, las cuales se encuentran íntimamenterelacionadas con lo que el hombre, a nivel particular y social, piensa; y con la motivación que, através de ese pensamiento, son capaces de insuflar a la acción humana. De ahí que la mayor parte deeste ensayo, se ocupe de la génesis, utilización y decadencia de los valores y virtudes quecaracterizan y determinan al hombre y a la sociedad clásica (primera y segunda parte de la obra); encontraposición a los valores y virtudes aportados por el cristianismo, cuya génesis, a manos de losprincipales Padres de la Iglesia (muy especialmente San Agustín), se encarga de plasmar en laúltima parte del mismo.
4.1.- “LA DECADENCIA DE LOS VALORES Y LAS VIRTUDES CLÁSICAS”
La pretensión de Cochrane en el tratamiento de tal decadencia, será en primer lugar su constatacióna través de los escritores y demás eruditos del clasicismo que han llegado hasta nosotros. Una vezconseguido tal propósito y demostración, comienza a retrotaerse en el tiempo con el objeto de irplasmando los oriundos valores y virtudes de la sociedad romana en su conjunto, y por los que fueimpelida a la conquista y dominio del mundo conocido. Pero no se queda ahí, sino que en labúsqueda del origen de los más fundamentales de esos valores y virtudes retrocede hasta la Hélade,considerada por él, germen del mundo civilizado frente a la barbarie.
Semejante construcción sirve a Cochrane para introducir las características principales delpensamiento clásico. Un pensamiento que aunque evoluciona y cambia en algunos puntos einterpretaciones según la corriente filosófica del momento, se mantiene constante en algunos de suselementos integrantes. Una de dichas constantes es la polarización entre el mundo sensible y elinteligible, reflejado por Cochrane en su exposición de las acciones y hechos históricos con unagran variedad terminológica, tal y como puede observarse en el Anexo I. Polarización de la quetambién participa el hombre por ser considerado un compuesto de cuerpo y alma. Pero lo másimportante de esa polarización, es que en ella se encuentran dos de los aspectos reguladores delhombre como categoría individual y social, como son la “virtud” (correspondiente al ámbito omundo sensible), y la “fortuna” (correspondiente al inteligible). Y es aquí donde se produce ydesarrolla toda la obra de nuestro autor, por cuanto viene a ser la plasmación de una serie de valoresy virtudes que han sido capaces de crear y mantener la civilización como tal, en su secularenfrentamiento con la barbarie. Un logro que la mente clásica es incapaz de aceptar, si no es por latambién intervención de la suerte, los dioses o la fortuna. Creando de tal forma un “orden” que darespuesta a todas las demanandas del ser humano como entidad física y psíquica, y donde la”acción” misma viene supeditada a ese orden arquitectónico, prefigurado y estático; de una formaaleatoria, según los designios de la “fortuna” y lejos de la libre voluntad personal.
El problema se plantea en el momento en que se trastocan esos valores y virtudes, ya que,modificándose éstos, se modifica también el orden establecido, dando lugar a una serie deconvulsiones sociales que hacen peligrar la civilización como tal. Pues bien, trasladado esto alámbito romano, las pertubaciones y guerras civiles que se produjeron al final de la república fueronconsecuencia de un proceso o dinámica de cambio semejante. Y es aquí donde Cochrane introducela “Reconstrucción” llevada a cabo por Augusto, y que era fruto de ese desajuste de los pilaresmentales que habían formado al romano como individuo subordinado a los intereses de lacomunidad y de la patria; y que tenía como base del sustento familiar y personal, el esfuerzo de supropio trabajo en la tierra, combinado con un ideal ético de austeridad. El motivo de dicho cambiotenía su origen en la dinámica expansionista que había adoptado la república, y que la conducíanhacia un imperio formado por una gran masa heterogénea de culturas que aportaban, además de susriquezas, sus peculiares cosmovisiones, religiones, filosofías, etc. al romano. Y el resultado delmismo era el abandono progresivo de los pilares de austeridad, trabajo y comunidad; en pos deotros basados en la opulencia, ociosidad e individualidad, propias de una de las grandes culturas porellos engullida: la de la Hélade. Y es que, por la época en que había tenido lugar tal engullimiento,la Hélade estaba lejos ya de sus también oriundos pilares comunitarios que tanto habíancaracterizado a la polis, encontrándose dominada a nivel filosófico por unas corrientes queprimaban los valores apuntados de individualismo, egotismo, hedonismo, etc. Tales corrientes eranel epicureísmo y el estoicísmo.
La empresa de Augusto, si bien tuvo un notable éxito a nivel político por cuanto comportabatambién una racionalización de recursos, colonización, consolidación territorial, etc.; resultó ser unfracaso en la recuperación de esos oriundos valores y virtudes, entre otras cosas, porque la sociedadcomo tal, había tomado la costumbre de focalizar no sólo dichos valores y virtudes en su príncipe,sino también su fortuna, con lo cual, en cierto modo se veían librados del sudoroso cumplimiento delos mismos en beneficio de esos otros de carácter individualista y hedonista. Como resultado de elloCochrane ve la reaparición de las convulsiones sociales acaecidas ahora en el siglo tercero, siendosu también momentánea solución la aplicación de más gobierno y control estatal articulada porDiocleciano.
Este es el momento que aprovecha Cochrane para introducir su “Renovación”, nombre que hacegala no ya a la rehabilitación de los primitivos valores y virtudes, sino a la adopción de otrosnuevos, acordes con una nueva moral, capaz de dinamizar y cohesionar otra vez al imperio. Elintroductor de los mismos será Constantino, el cual, como buen conocedor de la sociedad delmomento, vió en el cristianismo el elemento principal para la revitalización del viejo orden; a la vezque, como buen y pragmático político que era, vió en los cristianos el soporte último y necesariopara su acceso al “trono”, dada la importancia e influencia que tenía ya su número y algunos de susprosélitos; con lo que no hizo más que aprovecharlo.
Deja constancia Cochrane del cambio positivo introducido por Constantino, en la plasmación de laspalabras de crítica al mundo y filosofía clásicas articuladas por Lactancio[10] en su “De Officiis”,donde declara la incapacidad del clasicismo de servir como aglutinante social al defender valoresindividualistas y egoístas (germen únicamente de perpetua desavenencia) frente a los altruistas,comunitarios y sociales que defiende la sabiduría procedente de la religión, capaces de crear unasociedad de ayuda mutua. Una crítica que extenderá también al imperialismo competitivo, por serun factor destructor de la fraternidad entre los hombres y la unidad de la raza humana. Abogando,como solución a esos defectos, por la familia como principal valor de la vida asociada, basada en lacosanguinidad y los ideales comunes, en vez del orden político-económico imperante hasta elmomento. Y apelando al verdadero significado del término”justicia”, que para él no es otro quefilantropía, amor al prójimo e igualdad; desvanecido en el orbe romano en favor de los “honores,purpurae y fasces”.
Pero estos nuevos valores y virtudes introducidos por Constantino y llevados a su máximacombinación y simbiosis con el Estado por Teodosio, pretendían en última instancia utilizar la fecomo un principio político más y en sustitución de la antigua funcionalidad del panteón pagano.
Con lo cual, y según Cochrane, ello significaba que más que cristianizar la civilización lo que sepretendía era civilizar a la Iglesia, así como identificar a Dios con el mantenimiento de lasinstituciones. Cosa que, más que una confusión de ideas, se trata de un enmascaramiento más de uncorazón profundamente pagano y un último, y desesperado intento, de conseguir un mundo nuevosin sacrificar ningún elemento sustancial del antiguo. Aunque el resultado de tal finalidad fuetatalmente el inverso, ya que la introducción del cristianismo como principio cohesivo, sirvió sólopara añadir un final y decisivo elemento a las fuerzas que pugnaban por disolver el orden romano yque simbólicamente se ejemplificó en el saco de Roma acaecido en el 410.
Así pues, todo este marco situacional, sirve a Cochrane para afirmar que la caída de Roma fue lacaída de una idea, o del sistema de vida basado en un complejo de ideas al que cabe llamarclasicismo (un matiz con evidentes resonancias hegelianas[11] ); y cuyas deficiencias, deberánllevar al sistema a su ruina. Un hecho que al ser percibido por los emperadores, procuraronrenovación pactando con el cristianismo en aras a la vigorización del Estado, siendo la únicadiferencia entre ellos, el grado de asentimiento que estaban dispuestos a otorgar a las demandascristianas. Cosa que no era más que una “política”, un uso político de una nueva religión de estado,con vistas a un funcionalismo económico y social; y que a la larga, no sirvió sino para acelerar elcolapso y fin del sistema, al pulverizar la ya debilitada fe en los ideales clásicos, perdiendo así todosu sentido tradicional. Un uso político del cristianismo que, en su calidad de “ingénuo”, era aúnincapaz de defenderse frente a semejante instrumentalismo y, todavía más, de plantar cara al mundode Platón y de Cicerón.
4.2.- EL NUEVO ORDEN DEL CRISTIANISMO
Con la vana pretensión de revitalización del orden clásico por medio del cristianismo mostrada en elpunto anterior, da comienzo Cochrane a la última de las tres grandes partes en que divide su obra, yque recibe el nombre de “Regeneración”. En ella, deja de tener importancia, por cuanto ya noaparece, la referencia al hecho histórico como tal y como ejemplificación del orden sociopolíticodel momento, para dedicarse única y exclusivamente a mostrar los principales puntos y tesis de lapatrística precursora a Agustín, así como la primera filosofía cristiana articulada por éste en base aesos y a otros puntos conceptuales o filosóficos.
El objetivo de tal exposición, es mostrar que del orden clásico precedente y de la adopción de losvalores y virtudes cristianos iniciados por Constantino, surge un nuevo orden que recoge y superalos elementos positivos de los otros dos, en una síntesis integradora que tiene en el Credo Niceno labase fundamental de toda su estructura. Según este nuevo orden, el cosmos, el universo, el mundo,la realidad misma dejan de ser vistos como una contraposición entre dos mundos o concepciones,una ideal y otra material, unidas según las más diversas construcciones mentales. Pasando a serconcebidos como “creación” de Dios, de un sólo Dios que es y actúa como “una sóla esencia, cuyanaturaleza se halla plenamente expresada en su orden y actividad (en lenguaje cristiano diría: comoun Dios en tres personas, el Padre increado, el Hijo increado y el Espírutu Santo increado). Fórmulaen la que la Primera Persona, Ser, es el principio creador, ignoto e incognoscible, salvo en cuanto semanifiesta en la Segunda y Tercera persona; la Segunda Persona, Principio de Inteligencia, se revelacomo el logos, ratio u orden del universo; mientras que la Tercera Persona, Espíritu, es el principiode movimiento en éste. Afirmar que esas personas o hipóstasis son increadas, es afirmar suexistencia como principios, y como tales, no hay que confundir sus personas. Pero al mismo tiempo,como unidad substancial, tampoco admiten separación. Con lo cual, se ofrecen con carácter deTrinidad que puede ser descrita como la que ES invariablemente; invariablemente SABE; einvariablemente QUIERE”[12].
Una concepción que más gráficamente, y según las diversas denominaciones con que aparece en laobra, puede verse en el Anexo II, y a cuya imagen y semejanza está hecho el hombre, tal y comotambién puede verse en susodicho Anexo. Un hombre que de tal guisa y “objetivamente”, seencargó de descubrir Agustín por un procedimiento que él mismo calificó como “conocimientoinfalible”, por ser un conocimiento que uno experimenta en sí mismo y lejos de toda mediaciónsensual o imaginativa. Un conocimiento que, de tal forma, eleva a la categoría de “substancial”:”Está fuera de duda que existo, y que conozco y amo esa existencia. En esas verdades no hace mellaalguna la argumentación de los académicos: ¿qué más da que uno se equivoque? Porque si meequivoco, existo. El que no existe, no sabría equivocarse. Así, si estoy equivocado, ese mismohecho destaca mi ser. Porque si, pues, cuando estoy equivocado, existo, ¿cómo podré equivocarmeen cuanto mi existencia, dado que existo si estoy equivocado? De modo que si debo existir paraequivocarme, aun si anduviere equivocado, está fuera de duda que no puedo engañarme en esto, queme conozco como conociente. Porque si sé que existo, también sé esto: que sé. Y a estas dos notas,puesto que las amo, añado el amor, como tercera nota de igual valor a las dos ya conocidas.”[13]Además, en el seno de este nuevo orden, la finalidad de los valores y virtudes cristianos no será yala consolidación y triunfo de la civilización sobre la barbarie, sino la consolidación y triunfo de laverdad sobre el error. Una lucha que Agustín concibe como la de dos comunidades o sociedades, lade Dios y la secular, movidas por diferentes “deseos”, ya que, mientras lo que anima a la sociedadsecular es el amor de sí mismo hasta llegar al desprecio de Dios; lo que anima a la sociedad divinaes el amor de Dios hasta llegar al desprecio de sí mismo. Aquélla se enorgullece de sí misma;mientras que la otra en el Señor; aquélla busca la gloria de los hombres; ésta cuenta como su mayorgloria su conciencia de Dios. Deseos todos que pueden ser llamados respectivamente codicia yamor.
Así considerada, la historia para el cristiano, y al igual que para el clasicismo, aparece como”conflicto de opuestos”, pero los elementos de oposición no resultan los que el clasicismo habíaimaginado. Sino que la historia es la memoria de una lucha, no para la realización de valoresmateriales o ideales, sino para la materialización, incorporación y registro en la conciencia de losvalores reales, los valores de verdad, belleza y bondad; es decir, Dios mismo.
Pero donde tal vez se observe mejor la síntesis que supone el nuevo orden con respecto a los dosanteriores, es en la noción de Estado o comunidad organizada que posee y defiende SanAgustín[14] . Una noción donde defiende los logros del clasicismo, al considerar que, por vicioso odefectuoso que en principio pareciera, el esfuerzo secular de la humanidad no había sido en vano.
Siendo su único problema, la aceptación de un principio o arché deficiente que, una vez revisado ysuplantado adecuadamente, supondría a sus compatriotas el cumplimiento de la promesa romana, esdecir, la pervivencia milenaria de su civilización. Aunque tal aceptación estaba cargada de matices.
Uno de ellos era ver al Estado no ya como forma final de la comunidad, sino meramente comoinstrumento regulador de las relaciones del hombre exterior. Pero sólamente eso, ya que el papel delEstado, al ser puramente formal, consideraba que podía “reconstruir” o “renovar” pero no”regenerar”; como era su pretensión. Así que, admitir como final cualquier tipo de dualismo entre el”hombre moral” y la “sociedad inmoral”, suponía, según su punto de vista, la negación de lapromesa de Cristo que textualmente dice: “mi reinado no es DEL mundo, sino que mi reinado no esde ESTE mundo”; subvirtiendo con ello el fundamento de la esperanza cristiana.
Así que la solución por él concebida iba más allá y pretendía la “integración” de sus dos nocionesde sociedad, de la “Civitas Terrena” y la “Civitas Dei”, en una nueva visión de ésta basada en launidad de fe y el vínculo de la concordia, en una unidad absoluta que así contituída suponía “uncuerpo en Cristo”. Siendo al mismo tiempo universal, aunque en un sentido en el que no pudo soñarni siquiera el Imperio Romano: potencialmente tan amplia e inclusiva como la misma raza humana.
Una noción que, lejos de hacer violencia a la personalidad humana, existía para promover su máspleno desarrollo posible. Por ello, y a tal efecto, no era totalitaria, ni comunista ni fascista; sinoprofundamente democrática, y ello por varias razones. La primera, porque reclutaba sus ciudadanosen todas las razas y todas las culturas. La segunda, porque imponía a todos por igual las mismasobligaciones y deberes: aquellos que prescribe la Ley del Amor. Y la tercera, porque al asumir quetodos los hombres eran pecadores, rechazaba las pretensiones del superhombre salvador, terrenaprovidencia a cuya virtud y fortuna era invitada la humanidad a confiar su destino. Razones todasellas por las que la sociedad cristiana se tenía por una “sociedad perfecta”, en la que, en vez de laapariencia de paz garantizada por el secularismo, incluía la substancia de una paz en que aparece lamás colmada medida de orden y concordia posibles en los seres humanos, la paz de una asociacióncuyos miembros “gozan a Dios, y en Dios se gozan uno a otro”. Y a esta paz se obligaban en unnuevo juramento o sacramento, concebido, no como entrega parecida a la del ciudadano del mundo,que cedía su voluntad para que se la custodiase el soberano, sino como pacto de emancipación de latemporalidad, que juntamente concertaban hombres que en ello se profesaban ajenos al secularismo.
Era un pacto que no sujetaba a la divinidad del César, sino que salvaba de ella, lo que místicamentese proclama mediante el bautismo en el nombre del Padre, del Hijo y del Espíritu Santo.
Todo ello suponía al mismo tiempo, un voto de firme oposición a cuanto negase o rechazase lasdemandas del Evangelio, cosa que viene a confirmar en el ámbito cristiano, y al igual que sucedieraen el pagano, la importancia y trascendencia de la relación filosofía-historia, pensamiento-acción,introducido por Cochrane y apuntado al principio de este punto, dado el condicionamiento que elprimero impone a la acción. Es por ello por lo que, la peculiar articulación del pensamientocristiano formulado por Agustín, otorga una nueva funcionalidad a la “acción” humana propiamentedicha, distinguible de su homónima pagana en varios puntos y características, siendo los másimportantes: la desvinculación de la aleatoriedad incontrolada de la “fortuna”, en beneficio del librealbedrío de la voluntad humana; y su condición natural e intrínseca a todos y cada uno de los”cuerpos” de la naturaleza, como consecuencia de su semejanza creativa a Dios.
Con este nuevo orden, en el que vienen integrados y superados los parámetros de los dos anteriores,Cochrane da por terminada su pretensión de demostración de la evolución que sufre el pensamientoy acción humanos en el tránsito del clasicismo al cristianismo. No obstante, ésta es unaconsideración de cosecha propia, ya que lleva a tal extremo su pretensión de “dejar hablar a losprotagonistas de uno y otro lado”, que da la sensación de dejar inconclusa su obra.
5.- ANÁLISIS COMPARATIVO DE ALGUNOS TÉRMINOS QUE SUFREN UN CAMBIOCONCEPTUAL EN EL TRÁNSITO DEL CLASICISMO AL CRISTIANISMO: (Anexo III).
No cabe duda que de esta densa obra de Cochrane otros lectores verán y sacarán otro u otroselementos vertebradores de la misma susceptible/s de catalizar su contenido. Yo, en cambio, me hecentrado sólo en éste por considerarlo lo suficientemente integrador y comprehensivo de todo loapuntado y sugerido por el autor. No obstante, y dado a que la obra es muy prolífica y rica en laplasmación de contrastes entre las dos épocas tratadas, he llevado a cabo una recopilación deaquellos términos en los que se ve claramente la metamorfosis operada en los mismos en el tránsitode los dos mundos, y que, sin duda, determina y ejemplifica las diferentes formas de ver,aprehender, pensar, actuar, etc. del hombre de la época.
APOTEOSIS
Como tal, se significaba en el clasicismo al proceso por el cual el hombre de cualidadessobresalientes inherentes a su “virtud”, y rodeado de un halo de suerte sobrenatural relativa a la”fortuna”, se elevaba a la categoría de un dios. Un proceso en el que, según Dodds[15], tenía unpapel importante la peculiar significación del término “theos”, dado a que no tenía las mismasresonancias de temor y lejanía que para nosotros entraña la palabra Dios. Ya que, en la tradiciónpopular griega, un dios se diferenciaba de un hombre ante todo por el hecho de estar exento de lamuerte y por los poderes sobrenaturales que ello le confería. De ahí la frase, según él tantas vecesrepetida, de que “el hombre es un dios mortal, y un dios es un hombre inmortal”. Todo lo cual, lelleva a considerar la posibilidad de tomar erróneamente por un dios a un hombre, con tal de que éstehiciera alguna demostración de poderes sobrenaturales. No obstante, y salvando las distancias, eséste un proceso que sigue en vigor en nuestros días, tal y como puede constatarse en un recienteartículo de un semanario[16], referido a un personaje tan actual como Maradona.
En el cristianismo, en cambio, esta concepción sufre un vuelco radical, ya que esa discriminadoradivinización del superhombre clásico, deja paso a una divinización para todos y cada uno de loshombres y según las sólidas bases de las promesas consignadas por San Pedro y San Juan en lasEscrituras: “…para que seáis partícipes de la naturaleza divina…”; “…y a cuantos le recibieron, dióautoridad para hacerse hijos de Dios” [17]. La única condición necesaria a tal efecto era la creenciaen Cristo.
ARCHÉ O PRINCIPIO
Este es uno de los puntos básicos en los que se apoya la dialéctica cristiana en su contraposición conla clásica, y en su estudio, muestra Cochrane la metamorfosis de los “primeros principios” en elseno de ambas filosofías. Y es que, para el clasicismo, estos principios de los que se derivaba laexistencia misma, no eran otros que ciertos elementos constitutivos de la naturaleza (fuego, aire,agua, tierra, atosmos, etc.), individualizadamente o en conjunto; o bien una serie de ideas de las quese derivaba, a modo de copia imperfecta, el mundo real propiamente dicho. Cosa que daba lugar auna polarización conceptual de los mismos en dos corrientes de pensamiento que se mantendrándurante toda la etapa clásica: materialistas e idealistas[18].
El cristianimo verá en tal concepción, el origen de todas las deficiencias, vicios y errores del mundogrecorromano, considerándolo pues un punto de partida defectuoso. Problema que se solucionabaaceptando el trinitarismo como tal punto de partida, como materia de directa e inmediataaprehensión, reconocible únicamente por su funcionamiento y poder. Una concepción que, lejos defavorecer el oscurantismo, buscaba ser conjetura de toda inteligibilidad en aras de la liberación, nosólo espiritual y moral, sino también intelectual. Además, procuraba sustento a la Romanitas misma,es decir, a todo ese cúmulo de peculiaridades culturales que caracterizaban a la civilización clásicacomo tal y en contraposición a la barbarie, otorgándole una nueva revitalización en sus pretensionesmilenaristas. Así, por ejemplo dirá Agustín:”Acá reside la seguridad de un admirable Estado; porque jamás podrá una sociedad ser idealmentefundada ni mantenida como no sea sobre el asiento y por el vínculo de la fe y de la fuerte concordia,en que es objeto de amor el bien universal, que en su más alto y verdadero carácter es Dios mismo,y en que los hombres se aman uno a otro con entera sinceridad hacia Él, y el venero de su amorrecíproco es el amor de Aquel a cuyos ojos el espíritu de su amor no podrá ser celado” [19].
BIEN
En el clasicismo, para la satisfacción del bien definitivo se ofrecían dos posibilidades generales[20].
La primera consistía en la vida de pensamiento, y es ejemplificada por Cochrane en la persona deSófocles, el cual, en su famoso coro de su Antígona, había proclamado la conquista de la naturalezapor la “mente versátil del hombre”, es decir, la conquista de todo cuanto hay en la naturalezaexcepto la muerte. La segunda venía representada por la vida de acción, siendo su ejemplificaciónVirgilio, autor que buscó los diferentes modos de explicarla y justificarla, a la vez que descubrió lacompensación de la misma en el bien y en la eternidad del conjunto. Toda una articulación queofreció a sus compatriotas como motivación para trabajar y morir, reservando un cielo de apoteosisindividual a los espíritus excepcionales que pudiesen ser definidos como salvadores del Estado.
Los cristianos, en cambio, rompieron con estas interpretaciones al afirmar que para el hombre elbien es la vida eterna, consistente en el conocimiento y amor de Dios como principio del propio ser.
Un bien que además, y en contraposición al carácter colectivo o corporativo de éste en elclasicismo, era estrictamente personal e individual, ya que se basaba y era objeto de su inmediataexperiencia. De ese conocimiento infalible de la propia existencia, saber y amor, dependiente yderivado de la existencia, saber y amor divinos.
CIENCIA Y SABIDURÍA
Para el clasicismo la ciencia era el conocimiento basado en razones, en causas, y totalmentecontrapuesto al de otras formas inferiores de conocimiento, tales como la sensación y laexperiencia. Su objetivo era, por tanto, lo universal y necesario, y su ideal la pura razón operando invacuo. Un ideal de conocimiento que es imposible y absurdo, ya que, como Agustín[21] insiste enafirmar, no puede haber conocimiento sin sentimiento, ni sentimiento sin conocimiento.
Por tanto, para el cristianismo[22] , la mayor parte de lo que el clasicismo llama ciencia, jamásalcanza el nivel de verdad universal, sino que posee el carácter de verdad experimental, esto es, deverdad hincada en generalizaciones de la experiencia. Es por ello incapaz de satisfacer el apetito defelicidad, al cual aspira el hombre por las propias condiciones de su ser. Por ello se muestradependiente de la sabiduría, fuente de valores a cuya sóla luz cabe conseguir el bien soberano. Unasabiduría que es considerada por Agustín como aprehensión intelectual de lo eterno, (frente a laaprehensión racional de lo temporal, que es la obra de la ciencia), así como función de la razón,visto el servicio que rinde y siendo la más exaltada de las funciones de tal naturaleza, al procurarnada menos, que la aprehensión del principio creador, del que depende la pura posibilidad derazonar.
Esta sabiduría cristiana, es independiente de la ciencia y suple además las deficiencias de ésta, conel suministro de una nueva visión del cosmos y del lugar que el hombre ocupa en él. Una visiónque, lejos de antropomorfismos, coloca al hombre y a su universo juntos, como expresión de unaactividad benéfica: la actividad del principio creador y motor; o dicho de otro modo, como criaturacuyo origen, naturaleza y destino se encuentran determinados por la voluntad de Dios.
ESTADO
Centrándonos en Roma, y de la importancia que tenía la “propidad” (res privata) para el romano,basa Cochrane el origen del Estado como “res pública” y en contraposición a ella. De esta forma,define la república como “lo que pertenece al pueblo”, siendo entendido éste como sociedadorganizada sobre la base de derechos convenidos e intereses comunes. Derechos e interesescomunes que se articulaban para procurar una vida mejor y más feliz, y que, en una sociedad cuyabase económica principal era la agrucultura, pasaba por asegurar y defender la propiedad, la “resprivata”. Una función que con el paso del tiempo y con el incremento de su capacidad poblacional yterritorial se fue desarrollando hasta límites insospechados. Esta misma obra de Cochrane, muestrala evolución a que se somete el Estado tras cada período de crisis: de monarquía a república y deésta a imperio; aumento del gobierno o control gubernamental en ámbitos y competencias; etc. ElEstado era en definitiva, y para el clasicismo, un fin en sí mismo, la culminación y signo distintivode la civilización frente a la barbarie. No obstante, el proceso evolutivo a que fue sometido le llevóa degenerar los ideales sobre los cuales se había formado, llegando así con Diocleciano a albergartal transformación que en vez de servir al ciudadano, el Estado existía para ser servido poraquél[23] . Deviniendo una gran máquina de opresión y regulación, en su agonizante pretensión deevitar el colapso.
Con el advenimiento del cristianismo y su incorporación a una situación cada vez más privilegiadaen el seno del Estado, la conceptualización de éste como fin de la civilización, va pasando poco apoco a un segundo plano. En algunos casos, como el de Lactancio[24], la existencia y pervivenciade éste sólo ha de verse como transitoria y en tanto en cuanto persistan vicio e ignorancia. Con locual, la Romanitas, únicamente hallará justificación en la medida en que sirva a las demandas de laHumanitas, cuyos principios, una vez vayan ganando aceptación, conllevarán la paulatinadesaparición del Estado en pos de una sociedad sin coerción y sin clases, gobernada únicamente porla ley del amor.
En otros casos, no tan drásticos como éste, el Estado será visto como la culminación de un procesoútil y necesario, pero no suficiente, como será el caso de Agustín. Un proceso que dejaba de servisto como la finalidad última de toda forma de asociación humana, para devenir en meroinstrumento regulador de las relaciones del hombre exterior, con una utilidad meramente formal,susceptible únicamente de reconstruir o renovar al hombre y a la sociedad. Una funcionalidadlimitada e incompleta para Agustín, que aspiraba a un tipo de comunidad de carácter universal, uncuerpo en Cristo, de carácter substancial y susceptible de regenerar definitiva y finalmente alhombre y la sociedad clásicas[25].
ÉTICA
Una parte importante de la obra de Cochrane versa sobre la moral, concretamente sobre ladegradación que sufre ésta tras la política imperialista seguida por la república, y que pone encontacto al romano con una gran cantidad de riquezas y corrientes filosóficas de tipo individualista,egotista y hedonista. Cuyo resultado será la pérdida de aquellas actitudes comunitarias y cohesivaspropias de los primeros tiempos, en pos del vicio y la corrupción. En sí, todas esas pautas deconducta moral respondían a una finalidad meramente estructural y social más que religiosa, dondela única misión del individuo era ajustarse a las demandas que el orden social preestablecidoexigiera. Así que, como dice Ambrosio de Milán, “El resorte de la conducta y motivo del deber, sehallaba en la propia realización o el ajuste a las demandas sociales”[26].
Frente a esta función “formal” de la moralidad en el clasicismo, el cristianismo propone una moralde carácter substancial, basada en la “ley del amor”, y por tanto, eminentemente religiosa. Siendoofrecida como doctrina de salvación al individuo y, a través de éste, a un mundo hechopodredumbre y desintegración. Dicha “ley del amor”, en palabras de Agustín comprende: “todas lasdiscusiones y escritos de todos los filósofos, y todas las leyes de todos los Estados. Y formulada endos preceptos de los que penden, según las palabras de Cristo, toda la ley y los prefetas: Amarás alSeñor tu Dios con todo tu corazón, con toda tu alma y con toda tu mente, y a tu prójimo como a tímismo”. “Ésta es vuestra física, vuestra ética, aquí vuestra lógica; aquí también la salvación para elEstado que merezca alabanza”[27].
FE Y RAZÓN
Un punto éste también importante en la presente obra y uno de los pilares de la filosofíaagustiniana, cuya concepción, en el sentido de la mutua compatibilidad, concertó no pocas críticas,no sólo por parte pagana, sino también en el seno de los diferentes credos cristianos. Por partepagana[28], la mutua incompatibilidad venía de la concepción y significación misma de ambostérminos, según la cual, no se trataba más que un conflico entre la ciencia y la superstición, en queel ciego recibimiento de una fe ajena, increíble, era propuesto como alternativa al secular esfuerzode la Romanitas, y que no era otro que descubrir en la naturaleza y la razón, una regla para la guíade la vida humana. Visto así, el cristianismo asumía el carácter de una religión de escape, quepretendía, en un mundo creado por la propia imaginación, refugio contra las severas exigencias delorden natural. Tenía para ellos la fe más de opinión, con la carga subjetiva que ello conlleva, que deconocimiento “objetivo”, como es el caso de la razón. Y es que, una de las característicasprecisamente de la razón clásica, era su tendencia a la consecución del ideal de objetividad, a travésdel descubrimiento de una técnica o de una dialéctica de la trascendencia.
Por parte cristiana en cambio, las opiniones al respecto presentan una cierta evolución que va de lacerrazón total a la razón por parte de Tertuliano, a una profunda aceptación, integración einterdependencia entre ambas por parte de Agustín. Con respecto al primero, cita Cochrane algunospasajes de su obra de los cuales se deduce su conclusión: “No saber nada contra la norma de fe, essaberlo todo”. Pasajes que nos dicen lo siguiente: “¿Qué tiene que ver Atenas con Jerusalén, laAcademia con la Iglesia?…No necesitamos curiosidad desde Jesucristo, ni de averiguación despuésdel evangelio. ¿Qué sentido tiene ese prurito de especulación ociosa? ¿Qué probará esa inútilafectación de una curiosidad descontentadiza, a pesar de la fuerte confianza de sus asertos? Fuealtamente adecuado que Tales, mientras sus ojos vagaban por los cielos en su observaciónastronómica, diese de bruces en un pozo. Ese contratiempo puede servir de lo mejor para ilustrar eldestino de quienes se ocupan de las estupideces de la filosofía. ¿Qué hay de común entre el filósofoy el cristiano, el alumno de la Hélade y el alumno del Cielo, el que trabaja por su reputación y elque lo hace para salvarse, el que fabrica palabras y el que fabrica hechos, el que erige y el quedestruye, el metedor de errores y el artífice de la verdad, el que roba la verdad y el que la custodia?[29] Como puede verse, toda una muestra de hostilidad hacia la razón y la filosofía que le llevaráademás a afirmar la doctrina de la encarnación del modo más provocativo. Dice así: “El Hijo deDios nació: por vergonzoso que ello sea, no me avergüenza; el Hijo de Dios murió, es creíble por lamisma razón de la sandez de ello; y, habiendo sido enterrado, se levantó de nuevo: es cierto porquees imposible”[30] .
Por su parte Agustín[31], no adoptó con respecto a la razón un tipo de posicionamiento tan radicalcomo el de Tertuliano. El suyo, como híbrido que era de la tradición filosófica clásica y el dogmasurgido del Concilio de Nicea, adoptaba un posicionamiento más integrador y coherente que el desu predecesor. Para empezar, consideraba que la razón en el hombre era una peculiaridadtípicamente humana, una dotación divina por estar hecho el hombre a imagen y semejanza de Dios,aunque insuficiente para alcanzar por sí sola la verdad. Por ello necesitaba de un complemento, deuna garantía de fiabilidad, en la elaboración de sus construcciones mentales. Tal garantía se la dió lafe, es decir, la creencia de que todas las conclusiones a las que llegaba la mente humana eran frutode una iluminación, de una desvelación divina. O en otras palabras, tenían su origen en Dios mismo.
Así, para Agustín, la creencia precedía al saber, aunque ello no significaba que supliera a éste, yaque la fe no la consideraba como entendimiento, sino sólo como el camino que a él lleva: “La fe esel peldaño de la intelección, y la inteligencia es la recompensa de la fe”[32] . Por tanto, es elentendimiento el que abre las puertas de la sabiduría, que no es otra cosa que la posesión de laverdad. En tal sentido, apunta Jose Antonio García-Junceda[33] que el entender lo que creemos noshace contemplar la verdad, porque lo que creemos, es Dios, y éste es la verdad. Por lo que,penetrando en su comprensión, nos acercamos a Él. O como gráficamente dice San Agustín en unode sus sermones: “…entiende para creer, cree para entender. En pocas palabras os voy a decir cómohemos de comprender ésto sin controversia alguna: entiende para creer mi palabra, cree paraentender la palabra de Dios”[34].
Se puede afirmar, por tanto, que San Agustín abogaba por una combinación entre fe y razón, entrereligión y filosofía, como medio para alcanzar la verdad. Una verdad que es el germen de todafelicidad humana, y que para él, no es otra cosa que Dios mismo.
FELICIDAD
Para el clasicismo[35], la felicidad estaba fundamentada casi exclusivamente en la satisfacción de laparte orgánica o natural del hombre, cosa que llevaba a su máxima expresión con la civilización, esdecir, con el triunfo del orden frente a la barbarie y la vida desordenada. Un orden alcanzablemediante la seguridad y la autonomía, es decir, mediante el dominio del medio ambiente omonopolización del poder físico y económico. Se podría decir pues, que el punto de vista clásicocon respecto a la felicidad, es de tipo meramente orgánico, por cuanto de la disposición ordenada delas partes del cuerpo, deriva la cesación del deseo.
El punto de vista cristiano, por voca de Agustín[36] , también encuentra la felicidad en el orden,siendo su negación confusión y desdicha. Pero al considerar al hombre como alma encarnada, elverdadero orden humano deberá ser a la vez orgánico y espiritual, esto es, vida ordenada ysalvación del ser viviente. Cosa que comporta la creencia en la vida eterna, consistente en elconocimiento y amor de Dios como principio del propio ser. Es decir, será el considerarse uno a símismo como “creado”, con lo que su conciencia del “yo”, se ve para siempre dependiente de unincondicionado e inagotable venero de Esencia, Sabiduría y Poder, a cuya imagen está formado.
HISTORIA
A lo largo de la presente obra, el papel y la significación de la historia es parte fundamental de lamisma, por cuanto sirve a Cochrane para exponer la evolución del pensamiento y acción del hombreclásico al cristiano. No es por ello extraño, que exponga las diversas conceptualizaciones de lamisma desde sus orígenes como poema hasta la época de San Agustín. Así, tenemos que para elámbito eminentemente clásico, la historia comienza a tener significación como poesía, siendo sumáximo representante Homero[37], el cual, plasma al hombre enfrentado a un misterioso universoque su imaginación alborotada puebla de fuerzas demónicas, a las que pretende reducir en unaespecie de orden. Una empresa que, de su poder para vencer los obstáculos que se le presentan,dependerá su suerte o su destino y la posibilidad de alcanzar el ideal heróico. Una construccióncuyos elementos integrantes sacaba Homero de la vida corriente, presentándolos en forma de cuentoreferido para entretenimiento de los oyentes, a la vez que servía de relato plausible o convincente delos hechos, según los ven el poeta y su auditorio.
En un escalón más avanzado se encuentra Heráclito[38] , según el cual, el logos o sabiduría quegobierna todas las cosas es eterno, universal e independiente de las convenciones humanas. Es loque él llama “justicia natural”, y que le sirve para desacreditar la obra de poetas teológicos al modode Homero, cuya imaginación, llena el universo de dioses antropomórficos que intervienen en losasuntos humanos. El esfuerzo de su obra, será pues averiguar cómo funciona esa ley de la justicianatural, cuyo proceso viene determinado tanto para él como para el resto de precursores de latradición jónica, por la “materia” de la naturaleza. En ésta distingue cuatro elementos constituyentes(fuego, aire, agua, tierra) destinados a seguir una senda hacia arriba y hacia abajo (esto es, elmovimiento en el tiempo y en el espacio) según una ley por la cual, la muerte de uno se convierteen la vida de otro. De forma que, el cosmos, se revela increado y perpetuo flujo, compuesto por launión, armonía y equilibrio de distintos elementos, que originan contraposiciones como día y noche,alto y bajo, etc. La armonía a que dan lugar es el resultado del conflicto; base por la que llegan a laconclusión de que “todo es engendrado por la lucha”. Infiriendo de aquí, que “lucha es justicia”, yde entre ella, el ejercicio guerrero es padre y rey de todos.
A la luz de estos principios de Heráclito, Heródoto[39] representa un escalón más avanzado ytendente también a la superación del relato o crónica, común y usual hasta el momento. El logos desu obra será la investigación, y por tanto, la adopción del punto de vista filosófico en detrimento delpoético. Siendo su propósito, el de abarcar el estudio de los hechos, de los valores y de la causación;suscitando a tal efecto problemas de antropología, etnología, sociología, política, costrumbres, y unlargo etcétera capaz de ofrecer un vívido panorama del pensamiento y acción de su época. Su objetoconsiste, pues, en asentar los elementos de una cosmología, a cuya luz quepa esclarecer el choqueentre Persia y la Hélade; estudiando para ello las causas, el arché o principium, de la acción yreacción en la naturaleza del hombre. Así, su cosmos será espacial, temporal y material;engendrador de sus propias fuerzas motivadoras, cuyo flujo y reflujo tiene lugar según una ley queobra mecánicamente para mantener un equilibrio natural. Esta ley, que puede ser llamada decompensación, constituye para Heródoto el verdadero logos o explicación del movimientocósmisco. Ley o norma a la que todos los procesos físicos se hallan finalmente sujetos, y sutendencia es la de restringir o frenar el crecimiento de las cosas que se inclinen a sobrepasar lanorma. Un cosmos, pues, que puede ser explicado como la materia en movimiento. Un movimientooscilante que también integra al hombre en un proceso cuyo recorrido y duración no será más que elrecorrido y duración emprendido en sentido contrario, a modo de péndulo, y en un eterno juego decompensaciones y contrapesaciones. El papel, pues, del hombre en el proceso histórico, no es másque el de un espectador pasivo que carece de poder para influir en el curso de los acontecimientos.
Subsiguientes empeños de la historiografía clásica, pueden ser considerados intentos de escapar alas conclusiones a que llegó Heródoto; el más destacado de los cuales, según nuestro autor, fueTucídides[40]. Éste, propone la historia como búsqueda de la verdad en base a unas líneas positivasy metodológicas específicas: investigación sobre la conducta de los hombres, ya sea individual ocolectivamente, procurando un cuerpo de útlies generalizaciones a partir de una “pluralidad decausas”, al menos dobles, y que cabe denominar como “hombres por circunstancias”. Ellopresuponía considerar al hombre como organismo susceptible de génesis y destrucción, y sometidoa alteraciones; y reconocer también que posee una capacidad real, aunque limitada, para elpensamiento y la actividad creadora. De esta forma la vida, se presenta como lucha contínua einterminable, ya que el hombre, como causa, debe siempre hacer frente a las circunstancias o almedio ambiente. Un medio ambiente que en parte es físico, y en parte psíquico y moral. Así, elmovimiento de la vida humana consiste en hacer y padecer, en responder a estímulos que procuraentender y gobernar. Y ya que lo más probable es que los hombres respondan de forma parecida aestímulos también parecidos, surgirán uniformidades o secuencias de conducta igualmentediscernibles en individuos y en grupos. Por ello, la sociedad organizada, se mostrará comosostenido empeño de asegurar por métodos políticos los cimientos económicos y morales de lafelicidad humana. Pero, en calidad de tal, está expuesta en cualquier tiempo a sacudidas que tal vezle hagan perder el equilibrio. Y, sean cuales fueren sus últimas repercusiones psicológicas, es dignode atención que, en general, esas sacudidas procedan del exterior. Pone en tal caso, el ejemplo de lapeste en Atenas. Un suceso que permaneció fuera del alcance de la razón y el cálculo, materia depura contingencia, suerte o azar. Y cuyo resultado fue hacer añicos las convenciones del ordenpúblico, a la vez que el temor a los dioses y el respeto de la ley perdieron su poder de frenar.
Desde este punto de vista, dirá Cochrane que la investigación de Tucídides muestra un carácterapenas menos desconcertante que el de Heródoto. Porque la historia que deberá contarnos, versarásobre la humana razón vencida y aplastada por las fuerzas de la irracionalidad. Pero si loincalculable interviene en los negocios humanos para destruir, también sirve para crear. Al menosese fue el parecer de Polibio[41], el cual identificó tal concepto con el de providencia, tratándolocomo un eslabón perdido en una cadena de causación, susceptible de ser invocado cuando lasexplicaciones naturales fallaran. Una providencia que adoptará el nombre de “fortuna”, y de cuyaadoración seguirá la adoración de los agraciados con ella. Concepción que penetraría en el orberomano y acompañaría a la Ciudad Eterna y a los césares hastas el advenimiento del cristianismo.
Tal y como, un erudito romano de la talla de Cicerón, se encargó de dejar constancia en tal sentido,definiendo la historia como: “una especie de poema en prosa, cuyo objeto es deleitar al lectorexcitando las emociones trágicas, sobre todo agudamente estimuladas por un animado relato decircunstancias mudables y de vicisitudes de la fortuna humana”[42] .
Tras estas nociones, diche Cochrane que acecha el sentido de que el ritmo de la historia humanadepende de fuerzas que, amigas u hostiles, son de todas formas extrañas a la humanidad. Unasfuerzas que la antigüedad creyó ver como tortuosas o curvas, representándolas en tal sentido, comosendero que sube o baja o como rueda y que recibe el nombre de “teoría de los ciclos”. Según ésta,el clasicismo, dejando de lado el carácter y significasción únicos de cada evento histórico, tenía lacreencia de una interminable reiteración de situaciones “típicas”. Una visión que para Agustín[43],está basada en la incapacidad de la inteligencia científica para recibir la noción de “infinito” y a suconsiguiente insistencia en el cierre del círculo. Cosa que es consecuencia a su vez, delfuncionamiento mismo de la razón humana, dada su disposición a rechazar aquello que le es deimposible asimilación.
Además, para los cristianos, la teoría de los ciclos negaba el mensaje cristiano para la salvación delos hombres representado en la noción del “saeculum”, considerado, desde su principio hasta su fin,como contínuo y progresivo descelamiento del principio creador y motor. Según ésto, y paraAgustín, la historia no consiste en una serie de patrones repetidos sino que marca un avanceefectivo, aunque vacilante, hacia una meta final, que como tal, tiene principio, medio y fin. La suyaes pues, una historia fundamentada en la Bíblia, en la que sólo en Dios y en su plan de salvación, sehace comprensible el drama de la historia en su desarrollo único. Por ello, para él, la historia esprofecía, esto es, su verdadera significación se halla no en el pasado ni en el presente, sino en elfuturo, en la vida del mundo venidero. Un mundo que él constata y demuestra con la siguienteargumentación: “La venida de Cristo a la carne, junto con todas las magníficas obras cumplidas enél y realizadas en su nombre, el arrepentimiento de los hombres y el nuevo sesgo de sus voluntadeshacia Dios, la remisión de los pecados, …, la resurrección de los muertos, la eterna supremacía de dela glorísima sociedad de Dios y su goce eterno de la visión divina; todos esos acontecimientosfueron predichos y prometidos en las Escrituras; y tan gran copia de estas predicciones aparecencumplidas, que nos asiste el derecho, por propio espíritu de devoción, de anticipar el cumplimientode las restantes”[44].
ORDEN Y MOVIMIENTO
El concierto entre ambos términos era uno de los problemas principales del clasicismo, y así nos lohace ver Cochrane a lo largo de toda su obra. Y es que, el hombre clásico no concebía más que elprincipio del orden. Un orden que sólo abarcaba la lógica de lo objetivo, material y corpóreo;dejando lo contingente, el cambio, el movimiento y todo aquello que escapaba a la lógica objetiva,en manos de dioses, demiurgos, hado, suerte o circunstancias, en una palabra, en lo quedenominaban fortuna. Dice además Cochrane, que esta forma de ver el mundo fue una de las causasde la decadencia y ruina imperial, porque al actuar única y exclusivamente en la construcción de unmundo estático, en el que los cambios y el devenir quedeban fuera de toda previsión y consideradoscomo perniciosos, no articuló los medios necesarios para adaptarse a esos cambios, sino que losignoró en favor de la reconstrucción del viejo orden. Todo lo cual, era también consecuencia de suparticular visión del tiempo y la historia como cíclicos, como repetición de los mismos “tipos”humanos y de las mismas situaciones una y otra vez.
Para el cristiano, en cambio, tal concepción era distinta. En primer lugar por la introducción”Evangélica” de la noción del “milenio”, la culminación del cual era el fin de los tiempos, elapocalípsis y posterior juicio final. Con lo que se introducía una visión lineal del tiempo y de lahistoria, una visión de “progreso”, con un principio o pasado, un presente o intermedio, y un final ofuturo. Y en segundo lugar, porque al ver al hombre como reflejo de Dios, y por tanto, trino comoÉl, hacía del orden y del movimiento una condición intrínseca y propia de la naturaleza humana. Laexplicación que a tal proceso da Agustín es harto compleja, y groso modo viene a decir, que lapercepción espacio-temporal (elementos componentes del movimiento) es relativa y propia de cadaindividuo, conformando una “ley” particular e interior que lo activa y distingue del resto deindividuos: “somos lo que somos por la ley interior de nuestro ser”[45] . El funcionamiento de dichaley está basado en la interacción e interrelación de un sustrato esencial (derivado del Padre), de unorden o logos (derivado del Hijo) y de un movimiento específico a cada ser (derivado del EspírituSanto). Toda una articulación que libra al hombre de la contingencia de la “fortuna”, al iluminar laoscuridad que este término venía a denominar en la razón, y en la que tiene también cabida lanaturaleza en su conjunto al moverse según este principio intrínseco y particularista. Siendoprecisamente con el movimiento, con la actividad incesante, como se crea y mantiene la naturalezade cada ser, y lo que permite, como dice Agustín, “que las hormigas no produzcan elefantes”[46].
PERSONA
El sentido clásico[47] de esta palabra se circunscribía al ámbito jurídico y significaba “sujeto dederecho legal”.
Para el cristiano[48] esta palabra también sirve para atribuir una dotación al sujeto, pero en estecaso esa dotación es de latentes poderes espirituales, no materiales, activables por el Verbo residenteen el mismo hombre, y en virtud del cual, puede participar de la naturaleza divina. Con lo cual, elhombre se hace inmortal e inmune a la destrucción intelectual y moral del hombre natural.
PROPIEDAD
Es uno de los pilares de la civilización clásica como tal, por cuanto es la base de las relacioneshumanas, de los derechos y los deberes, tanto públicos como privados. Además, su función era la deasegurar la independencia y permitir cualquiera de las alternativas de una sociedad bien ordenada,que en opinión de Cicerón no eran otras que: ” la inactividad sin pérdida de la propia posición y laactividad exenta de riesgo”. Es tanta su importancia, que Cicerón no ve otro fin al Estado que suprotección, al menos, eso se deduce de la lectura del siguiente párrafo: “El primer cuidado de losque tienen a su cargo la dirección de los negocios públicos, será cerciorarse de que cada cual se veaasegurado en sus posesiones, y de que no se produzca, por parte del gobierno, invasión alguna delderecho privado… Tal es, realmente, la razón por la cual Estados y Repúblicas fueron creados.
Porque aunque la propia naturaleza induzca a los hombres a congregarse, sin embargo, por laesperanza de proteger lo suyo buscaron ellos el amparo de las ciudades”[49].
Por su parte el cristianismo[50] dirá por boca de Agustín, que todo lo que hay en la faz de la tierra(agua, alimentos, ganado, etc.) es proporcionado por la providencia para proveer a la humanidad deforma apropiada para la vida mortal. Y como tal, es de todos y no es de nadie, aunque el apasionadoafán materialista y egoísta lleva al hombre a adueñarse de los mismos y a explotarlos en pos de supropio beneficio. Por ello para Agustín, la propiedad, cualquiera que sea la forma que ésta adopte,se convierte en inmutable fundamento de la relaciones humanas, destinada a desviar y pervertirconceptos como los de la personalidad, el matrimonio y la familia, a la vez que crea un ideal deindependencia y aislamiento, el aislamiento de la propia suficiencia económica y moral.
VALORES
El clasicismo[51] defendía valores individualistas y egoístas, germen únicamente de perpetuadesavenencia en su lucha por los “honores, purpurae y fasces”.
El cristianismo[52] en cambio defendía valores altruistas, comunitarios y sociales capaces de crearuna sociedad de ayuda mutua. Defiende también la fraternidad universal frente al imperialismocompetitivo propio del clasicismo.
VERDAD
Es y ha sido uno de los mayores interrogantes de la filosofía desde sus orígenes, ya que los filósofosse han interesado siempre por los grandes enigmas de la humanidad: Dios, el alma, el mundo, lanaturaleza de las cosas, el conocimiento, … Pues bien, es en la respuesta a esos interrogantes y en elmétodo empleado para confeccionarla donde discreparán mundo clásico y cristianismo. Para losprimeros es la razón la única que puede acercarse a esos interrogantes, una razón pura y separada dela parte sensual del hombre, tal y como apuntara Julio Cesar : “…como verdad aprehendida a la fríaluz de la razón, libre de odio y amor, ira y piedad, pasiones que ofuscan la mente”[53].
Para los cristianos en cambio, ese ideal clásico de verdad se revela como herético, es decir, comoresultado de una arbitraria preferencia o elección, como una construcción ideada por el hombre ensu afán de “hacerse uno mismo su propia verdad”, de justificar su conducta por medio de conceptosracionales a los que se manifiesta ciega y obstinada adherencia. Aunque, según Cochrane, ello nosignifica que sea totalmente inútil, sino que goza de una cierta validez, pero limitada a unaconvencionalidad de la que ella misma es también fruto. Con lo cual, como verdad, su valor esmeramente utilitario o pragmático, y teñido de una relatividad de la que, como “inventivo”, nopuede sustraerse. En cambio, como ideal de conocimiento, éste es, humanamente hablando,imposible y absurdo, ya que, como Agustín[54] insiste en afirmar, no puede haber conocimiento sinsentimiento, ni sentimiento sin conocimiento. Siendo con la integración de ambas, la única forma deconseguir una verdad cuyo valor sea esencial y creador: el de la verdad divina.
VIRTUDES
Las virtudes propias de la antigüedad clásica, son todo un conjunto de cualidades personales queensalzan al individuo portador de las mismas por encima de sus iguales y como miembro de unacomunidad o grupo civilizado. Son un objetivo o una tendencia idealizada a la que pretendenaproximarse todos los miembros de esa comunidad o grupo y como contraposición a la barbarie. Lasignificación misma que estas cualidades representaban, sufrió algunos cambios y evoluciones en elseno del mismo período clásico. De forma que no es raro que la visión del valor o fortaleza seadistinta en la Hélade o la primera Roma, donde tal cualidadad era relativa a la virtud física, que enla Roma de Cicerón, donde esta virtud era entendida como moral. Con todo, en una y otra épocaensalzan al hombre de cualidades elevadas, al superhombre. Siendo las más importantes de estasvirtudes: la sabiduría, la justicia, el valor o la fortaleza y la templanza.
Posteriormente, con el cristianismo, y dado el cambio de valores que éste representa, las virtudesdejarán de ser ese elemento avalador de la excelencia individual y de la preeminencia de unoshombres sobre otros; pasando a designar cualidades altruistas, comunitarias y sociales. Así, no esraro que Lactancio[55] vea la virtud en la hospitalidad, en la redención de los cautivos, en ladefensa de las viudas, en el cuidado de los enfermos, y en el enterramiento de los extranjeros ymenesterosos. Pero también las virtudes clásicas tienen cabida en el seno del cristianismo, de hecho,según Vogt[56] , para los cristianos de los siglos IV y V la elocuencia forma parte de las virtudesinherentes a un hombre destacado. No obstante, la mayoría de las veces, dichas virtudes clásicaseran adoptadas con un sentido diferente, de tal forma que, el mismo principio que encaminado a lapersecución de fines mundanos causa confusión moral y ruina, es concebido por ejemplo porAgustín[57] , como rindiendo la fuerza motriz necesaria para la obtención de una paz creativa, queno es otra, que el interior reino de Dios. Así tenemos por ejemplo que la templanza, pasará a servista como el amor que se entrega por completo a aquello que es amado; la fortaleza como el amorque tolera fácilmente todas las cosas por causa de aquello que se ama; la justicia como el amor quesirve sólo a la persona amada y que prev alece con rectitud; y la prudencia, como el amor que eligesagazmente aquellas cosas que le favorecen en detrimento de las que le perjudican.
6.- CONCLUSIONES
Aparte de la constatada metamorfosis acaecida en el pensamiento y acción del hombre tardoantiguo,parece claro que Cochrane consigue hacernos ver el clasicismo como ese particular sistema de vida,capaz de cubrir con éxtito las necesidades, anhelos y esperanzas humanas, tanto a nivel individualcomo social, en un momento y lugar determinados de la historia y como contraposición a la vidasalvaje, desordenada y bárbara. Un sistema que, lejos de ser definitivo, estaba sujeto al cambio y aldevenir. Procesos que no contemplaba ni consideraba y que, cuando sucedieron, provocaron todo undesajuste en el mismo que condujo a su colapso y destrucción. Ello supondrá la adopción de otrosistema de vida, basado en el cristianismo, y capaz de superar las deficiencias del anterior. Unsistema que, al ser aún imperfecto, precisará de un esfuerzo de integración y síntesis del que surgiráun nuevo y definitivo orden, capaz de conseguir la realización humana en el plano individual ysocial.
Pero además, con la plasmación y apuesta por semejantes evidencias, Cochrane también dejaconstancia de una parte de su pensamiento personal, por más que su pretendida intención sea laneutralidad expositiva. Un pensamiento que se revela partidario precisamente del proceso, eldevenir y el dinamismo; en detrimento del carácter estático del ser. Cosa que permite situarle tras laestela de la corriente idealista surgida de la filosofía kantiana, de la que Hegel es uno de susmayores exponentes, y que tan hondas resonancias dejó en las corrientes de pensamientoposteriores, caso, por ejemplo, del personalismo.
Así, y teniendo en cuenta semejantes influencias, no es raro que su planteamiento responda a unalógica aceptable, si no fuera por la enmarañada y amorfa exposición capitular que dificulta sucaptación. Una exposición que, si bien es fecunda y rica en la plasmación de hechos históricos(útiles para una adecuada contextualización teórica) en las dos primeras partes de la obra, es muysuperficial y eminentemente teórica en la tercera. Una parte en la que creo debería haber sido másexplícito y prolífico, al menos como en las anteriores, dada la culminación y superación que suponecon respecto a las otras dos, y dada también la curiosa y singular pervivencia de muchos restosclásicos en el seno de un estado abiertamente declarado como católico. Y es que, la realidad quepercibe el hombre tardoantiguo, es harto más compleja y rica que la simple metamorfosis plasmadapor Cochrane, por cuanto supone la pervivencia, introducción e interrelación de múltiples factores yvariables pertenecientes a ambos sistemas de vida. Que ello es así, lo demuestra el hecho de que enel año 408, estando ya consolidado el cristianismo como religión de Estado, se mantuviera el”Templum annonae” en aquellos santuarios paganos que cuidaban del bienestar público, como porejemplo el hieron de Cibeles en Pesinunte[58]. O el perseverante afán de predicadores ygobernantes en erradicar las prácticas paganas, constatado en actas y edictos por ellos proclamados,y llevadas a cabo en fechas tan avanzadas como finales del siglo séptimo[59]. Cosa que demuestraque, en el proceso de cristianización, el paganismo pervivió durante algún tiempo, y que lapreeminencia del credo cristiano no supuso una brusca desaparición de la tradición pagana.
No obstante, y en honor a la verdad, es importante resaltar el hecho de que Cochrane abandona enalgunas ocasiones, esa concepción un tanto simplista en el tránsito del clasicismo al cristianismo,como cuando constata las diversas formas de comprensión-asimilación de la nueva religión,diciendo que “para considerable número de gentes que no gustan de pensar y sí de seguir lasdirectivas del emperador, se trataba nada más que de sustituir a Júpiter por Cristo, al sacrificio porla Eucaristía, al taurobolium por el bautismo, pretendiendo para sí mismos que todo lo demás seguíaigual. Pero para los incapaces de contentarse con una vida de flagrante incongruencia, tal soluciónera imposible, suponiendo para ellos una renuncia a todos los valores naturales, incluso aquellosreferidos a las más sencillas satisfacciones de la vida normal”[60].
Con todo, salvo algunas excepciones como ésta, Cochrane no profundiza en esta complejainterrelación de cosmovisiones, valores, costumbres, etc. que supone el hecho histórico como tal.
Pasando por alto connotaciones tan importantes, como por ejemplo, el hecho de que el cristianismodistaba mucho de esa novedad y frescura en sus preceptos[61] que pretende darnos a entenderCochrane, sino que gran parte de ellos, o bien eran adoptados de otros cultos, o bien eranincorporados de la amplia tradición o usos sociales. Un ejemplo de esto puede verse en elvocabulario, el cual, ante la carencia de términos con los que definir las nuevas concepcionesteológicas, doctrinales, litúrgicas, etc. ; se apropió de la terminología que circulaba en el ambientereligioso contemporáneo al que, al mismo tiempo se iba amoldando, ya que tenía que convivirprecisamente en ese entorno al que había de ofrecer soluciones novedosas. Y al igual que elvocabulario, se pueden observar otros muchos ejemplos[62] en la simbología, los rituales, elsistema de creencias, etc.; susceptibles de catalogar al cristianismo como un híbrido de la realidad yambiente del momento.
Otra evidencia similar, y muy interesante en este sentido, la aporta Jaeger en su “Cristianismoprimitivo y paideia griega”, donde resalta la importancia que tuvo el mundo griego superviviente dela época helenística, en la expansión y conformación del cristianismo. Un cristianismo que, albeneficiarse de la difusión del idioma griego en la parte oriental del imperio romano, incluyendoaquí a gran parte del pueblo judío, se apropió también de muchas de las construcciones mentalescaracterísticas de la paideia griega, como por ejemplo la utilización de tópicos empleados en eldiscurso retórico, y que servían para dar fuerza y consistencia a la propia argumentación. Así,apunta Jaeger[63] , un topos negativo como: “Envidia y contienda han asolado grandes ciudades yarrancado de raíz grandes naciones”; podía adoptar la forma de una figura retórica llamada”amplificatio”, por medio de la cual, el orador mostraba que el asunto del que estaba hablando habíasido, con frecuencia, la causa de grandes males. Una fórmula empleada por San Clemente Romanoy San Pablo, entre otros, y que, junto a otras muchas, iban dirigidas a un auditorio que lascomprendía y también las utilizaba. De ahí la evidencia de semejante influencia.
Una influencia que, bien de forma directa a través de los judíos helenizados, o bien de formaindirecta a través de la pervivencia de las diferentes disciplinas griegas en el sistema educativoromano que llegaron y formaron a hombres como Agustín, conformó el pensamiento cristiano deforma tal que, como dice Marrou, se puede decir existe una uniforme continuidad entre laantigüedad y la edad media: “c´est un même effort humain qui s´est perpétué et qui fonde l´unité denotre civilisation méditerranéenne, occidentale…”[64] .
7.- BIBLIOGRAFÍA CONSULTADA
– ALVAR, J. y otros: “Cristianismo primitivo y religiones mistéricas”; Editorial Cátedra, Madrid1995.
– CAMERON, A.: “El mundo mediterráneo en la antigüedad tardía”; Editorial Crítica, Barcelona1998.
– DODDS, E.R.: “Paganos y cristianos en una época de angustia”; Ediciones Cristiandad, Madrid1975.
– GARCÍA-JUNCEDA, J.A.: “La cultura cristiana y San Agustín”; Editorial Cincel, Madrid 1987.
– JAEGER, W.: “Paideia: los ideales de la cultura griega”; Editorial Fondo de Cultura Económica,Madrid 1993.
– JAEGER, W.: “Cristianismo primitivo y paideia griega”; Editorial Fondo de Cultura Económica,Madrid 1995.
– MARROU, H.I.: “Saint Agustín et la fin de la culture antique”; E. de Boccard, Paris 1938.
– MOUNIER, E.: “Manifiesto al servicio del personalismo”; Ed. Taurus, Madrid 1976.
– RABADE, S. y otros: “Historia de la filosofía”; Editorial G. del Toro, Madrid 1982.
– SPENGLER, O.: “La decadencia de occidente. Bosquejo de una morfología de la historiauniversal”; Editorial Espasa-Calpe, Madrid 1976.
– VOGT, J.: “La decadencia de Roma. Metamorfosis de la cultura antigua, 200-500”; EdicionesGuadarrama, Madrid 1981.
ANEXO I
TERMINORLOGÍA CON LA QUE ABARCA LOS ÁMBITOS DE:
COSMOS ————————————-
NATURALEZA
DIO/ESALMA CUERPOSUJETO OBJETOETERNO TEMPORALRAZÓN SENTIDOSESPÍRITUAL CARNALMENTE CUERPOMUNDO IDEAL MUNDO MATERIALSUBSTANCIAL CONTINGENTEFORMA MATERIAINMUTABLE MUTABLEFORTUNA VIRTUD
HOMBREALMA CUERPO
ANEXO II
TERMINOLOGÍA CON LA QUE ABARCA EL ÁMBITO DE:
DIOS
DIOS PRINCIPIO CREADOR Y MOTORBIEN SOBERANOSABIDURÍAFELICIDADVERDAD
LA TRINIDAD
PADRE HIJO ESPÍRITUESENCIA SABIDURÍA PODERESENCIA ORDEN CONOCIMIENTOSER NATURALEZA CONCIENCIAVERDAD BELLEZA BONDAD
EL HOMBRE
CUERPO ALMA VOLUNTADEXISTENCIA CONOCIMIENTO VOLUNTADSER INTELIGENCIA PROPÓSITOSENSIBLE PERCEPTORA AMOR
ANEXO III
ANÁLISIS COMPARATIVO DE ALGUNOS TÉRMINOS QUE SUFREN UN CAMBIOCONCEPTUAL EN EL TRÁNSITO DEL CLASICISMO AL CRISTIANISMO:
CLASICISMO CRISTIANISMOAPOTEOSIS
Antonio Navarro
[IF]