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Saberes, terapias e prácticas médicas en Argentina (1750-1915) – DI LISCIA (VH)
DI LISCIA, Maria Silvia. Saberes, terapias e prácticas médicas en Argentina (1750-1915). Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas; Instituto de História, 2002. Resenha de: PEREIRA, Júnia Sales. Varia História, Belo Horizonte, v.20, n.32, p. 275-277, jul., 2004.
“Itinerários curativos nos pampas”
No início do século XXI, as certezas que acompanharam a sociedade ocidental de um crescimento indefinido, prosperidade sem limites e de resolução de todos os problemas humanos a partir da ciência não se sustentam de maneira alguma. Acena-se para novas formas de conhecimento que interpretam a realidade por sua complexidade, sem, contudo, desprezar outras possibilidades investigativas. acena-se, sobretudo, para uma epistemologia desvestida do essencialismo e consciente de sua falibilidade e historicidade. Essa nova epistemologia exige conhecimento do limite da racionalidade valorizada pelo Ocidente e abertura permanente a novas lentes interpretativas. Nosso interesse pela realidade, especialmente a realidade a ser explicada pela ciência, pressupõe previsão de instabilidade e desordem, caos e multidimensionalidade. Rompendo com os pressupostos do racionalismo clássico e assumindo o desafio de investigar a história a partir dos pressupostos de uma epistemologia renovada, Sílvia Di Liscia avalia os saberes, terapias e práticas médicas na Argentina entre meados do século dezoito até início do século XX.
Na fronteira da história com a antropologia, sua análise tem o mérito de buscar entender as racionalidades que informam os saberes e práticas indígenas, populares e médico-institucionais nos pampas, bem como suas interfaces e influências. Sua abordagem pressupõe o entendimento da “medicina” como toda terapia, empírica ou mágica, assim como toda reflexão teórica que inclua formas de cura, sem que necessariamente tenham que estar descritas ou inseridas num sistema organizado e codificado formalmente. Esse pressuposto permite à autora demarcar algumas linhas de fronteira entre saberes e práticas de três sistemas de cura — a medicina indígena, a medicina popular e a medicina ocidental, bem como possibilita entender que os limites entre esses três sistemas de cura nunca estiveram demasiadamente claros. Pelo contrário, a autora revela que entre elas houve linhas de contato, confluências conceituais, apropriações e usos mútuos que nos permitem perceber não somente as diferenças e contraposições mas também as semelhanças e apropriações recíprocas.
O movimento de percepção dos limites e dos embricamentos entre diferentes sistemas sustentou, em seu percurso de análise, as características comuns a esses saberes, terapias e práticas de cura, classificados, todos eles, pela autora, de pensamentos racionais. Inspirada em Lévi-Strauss, a autora pressupõe racionalidades singulares e específicas de cada complexo dedicado à cura e reflete sobre a busca de ordem e taxonomia nos três sistemas analisados, o que possibilitou aproximação e comparação entre eles, cuidando-se para que nenhum fosse avaliado a partir de hierarquização em relação a outros.
Na consecução da pesquisa, Di Liscia realiza uma sistemática avaliação de fontes de natureza diversa, reunindo um corpus heterogêneo e vasto composto por relatos de viagem (viajantes, funcionários, militares, naturalistas e cientistas), relatos de cativos europeus que viveram entre indígenas nos pampas, teses de médicos, manuais científicos, fontes literárias, estatísticas e ensaísticas, além de documentação oficial. Como afirmou a autora, a maioria trata-se de fontes produzidas no interior da chamada medicina científico-acadêmica e testemunha sobre as práticas e remédios populares e indígenas deste ângulo específico.
A obra é organizada em oito capítulos, sendo que a primeira parte (discutida nos três capítulos iniciais) privilegia a relação entre medicina acadêmica e medicina indígena. A autora centra-se no entendimento das relações entre os especialistas médicos e as terapias mágicas indígenas, avaliando de que forma ocorreu uma apropriação de conhecimentos indígenas — especialmente da flora e da fauna pampeana — e, por outro lado, de que maneira se justificou e se realizou a eliminação étnica promovida pelos ocidentais contra os indígenas. Um dos pontos fortes da obra diz respeito ao movimento conceitual realizado no interior do pensamento ocidental em relação ao indígena bárbaro e selvagem. Entre finais do século XVIII e início do XIX, a autora percebe um gradativo abandono da idéia de mal originalmente associada ao indígena — vinculado, pois, ao demônio a ser eliminado — para uma lenta e gradativa elaboração que passa a descrever a sua suposta barbárie não pela maldade, mas pela falta de educação suficientemente equivalente à cultura européia. Nessa tradição, o indígena deixa de ser aquele a ser eliminado, e passa a figurar como aquele a ser educado, representado, portanto, como bárbaro-primitivo. À educabilidade do indígena associa-se a idéia da necessidade de eliminação do charlatanismo e da mentira. Essas últimas justificativas sustentarão, na relação entre ocidentais e indígenas nos pampas, por um lado, a apropriação das positividades das práticas e saberes indígenas pelos espanhóis e, por outro lado, a eliminação de suas negatividades, especialmente as práticas de chamanismo, a feitiçaria e o uso de talismãs. Foi possível à autora avaliar momentos em que a medicina indígena aproxima-se da medicina acadêmica, especificamente em decorrência dos benefícios advindos da vacinação anti-variólica. Nesse processo, não passam desapercebidos o uso político desse movimento de aproximação e as conseqüências de aniquilação cultural para os diferentes grupos indígenas. Em contrapartida, foi possível localizar, nos jardins das missões jesuíticas, herbários com plantas medicinais e a catalogação de benefícios de seu uso a partir de prescrições indígenas, bem como as recomendações alimentares e a observação de hábitos indígenas por jesuítas.
A segunda parte da obra (capítulos 4, 5, 6, 7 e 8) analisa as relações entre medicina popular e medicina científica. A medicina popular, segundo a autora, foi nomeada e descrita pela medicina acadêmica que passou a descrever os saberes considerados atrasados, geralmente associados a setores não hegemônicos, superstições e crendices, desprezando-os por alegação de inconsistência, falta de relação com o real, falta de racionalidade e de eficácia. A partir da definição de cultura como “sistema de significados, valores e atitudes compartilhados e de formas simbólicas através das quais se expressa ou encarna”, tomada de Peter Burke, a autora realizará uma avaliação das formas e relações estabelecidas entre medicina popular e científica. o que permitirá desvelar tradições, costumes e práticas das chamadas classes incultas da mesma forma que permitirá à autora o entendimento das relações entre Igreja, Estado e setores da medicina institucionalizada com as concepções e práticas socialmente produzidas.
Nesse percurso, foi possível perceber tensões e acordos, bem como mútuas inserções de cada um dos sistemas em análise. Digna de nota é a análise dos chamados mecanismos de automedicação, tão combatidos pela medicina institucionalizada mas, ao mesmo tempo, efetivamente justificados em finais do século XIX, quando os próprios médicos começaram a formular enciclopédias de uso familiar, à semelhança do que já faziam os farmacêuticos, práticos e outros. Mais uma das contradições que a própria medicina ocidental nunca conseguiu dissolver desde então.
Na delimitação do exercício profissional — o que, afinal preocupava às autoridades — aparecem questões como o combate aos saberes dos práticos, curandeiros, parteiras, feiticeiros e raizeiros, a perseguição ao curandeirismo estrangeiro (considerado danoso à pátria), o combate às vias de acesso ao conhecimento alheias às prescrições ocidentais (chamanismo, invocações, uso de totemismo, etc), bem como a delimitação do limite de ação das chamadas medicinas alternativas, a homeopatia e as consultas informais. Nada disso parece ser privilégio dos pampas, como, afinal mostraram as obras de Betânia Figueiredo1 e Márcia Moisés Ribeiro,2 para citar somente duas publicadas recentemente no Brasil.
Interessante ressaltar que o século XIX parece ser decisivo para afirmação da racionalidade médica ocidental sobre as demais, especialmente com recurso de associação entre médicos, Estado e Igreja. Contudo, o estudo revela que, a despeito dessa associação, ocorreram enfrentamentos velados entre esses setores nesse período. A documentação compulsada permitiu avaliar cuidadosamente o posicionamento da Igreja, por exemplo, em relação ao tétano (chamado popularmente de “pasmo” e, no caso do recém nascido, “mal de sete dias”) e em relação às medidas sanitárias que recomendavam o afastamento entre mortos e vivos. No primeiro caso, autoridades médicas, no início do século XIX, chegaram a proibir o batismo antes que a criança completasse oito dias, tempo considerado suficiente para que a água do batismo não contaminasse o bebê. No segundo caso, as autoridades médicas e sanitárias, também da mesma maneira que o fizeram em outras nações latino-americanas, passaram a recomendar que os cemitérios fossem afastados dos centros de circulação de pessoas. A análise da postura de diferentes sujeitos em relação a esses problemas de ordem religiosa, médica e de saúde pública permitiu à autora perceber as formas e justificativas em jogo, bem como os projetos que foram vitoriosos em cada época analisada.
Ancorada em reflexões sobre a ciência, sua multidimensionalidade e a complexidade necessárias a uma reflexão sobre racionalidades diferenciadas, Silvia Di Liscia apresenta uma obra de amplo interesse, ancorada numa longa e refletida pesquisa documental e num profícuo e aprofundado diálogo entre história e antropologia. Além disso, a obra tem uma contribuição importante para os estudos de história da América, inclusive apontando abordagens singulares para um conjunto de saberes, terapias e práticas sociais e seus instigantes itinerários.
Uma obra relevante e profícua que causa, contudo, incômodos a jovens pesquisadores preocupados em evitar a dispersão temporal, a profusão de fontes e a proliferação de temáticas e recortes em análise. Se essas questões podem ser consideradas problemáticas, sobretudo por prejudicarem vez ou outra a manutenção do foco analítico e mesmo da narrativa, podemos dizer que Saberes, terapias e práticas médicas na Argentina é de interesse de todo pesquisador das ciências humanas, especialmente porque contribui para alargar os horizontes interpretativos da história (especialmente uma história dos saberes e das práticas de comunidades diferenciadas), contribui para difusão de metodologias de interpretação informadas pelas noções de circularidade e hibridismo cultural, abrindo, por isso, inúmeras outras possibilidades de pesquisa, esta, talvez, uma das importantes funções de uma ciência pautada pela pluralidade, pela sensibilidade investigativa e pela interlocução permanente.
Notas
1 FIGUEIREDO, B.G. As artes de curar. Vício de Leitura, 2002.
2 RIBEIRO, M.M. A ciência dos trópicos; a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997.
Júnia Sales Pereira – Professora da FAFI-FEMM – Sete Lagoas. Professora e Coordenadora do Centro de Pesquisa e Extensão das Faculdades Pedro Leopoldo. E-mail: juniasales@uai.com.br
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