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A causa sagrada de Darwin – DESMOND; MOORE (FU)
DESMOND, A.; MOORE, J. A causa sagrada de Darwin. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resenha de: JÚNIOR, José Costa. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.13, n.2, p.209-212, mai./ago., 2012.
Os historiadores Adrian Desmond e James Moore buscam neste volume, amparados em uma ampla pesquisa documental, mostrar que uma causa humanista muito profunda levou Charles Darwin a desenvolver a teoria científica mais extraordinária sobre a origem e a manutenção das espécies. Os autores, que escreveram uma biografia de Darwin (Desmond e Moore, 2000), apresentam aqui a tese de que “a teoria da evolução humana não foi a última peça do quebra-cabeça de Darwin, mas sim a primeira” (pag. 14). O objetivo do livro é mostrar que o horror de Darwin à escravidão foi uma motivação de fundo para que o naturalista inglês concebesse a teoria da evolução das espécies através da seleção natural. Nesse sentido, essa motivação inicial deu-se, em parte, devido à intensa preocupação de Darwin com a unidade da espécie humana e uma ampla noção de irmandade entre os homens. A brutalidade da escravidão, que transformava os negros em outra espécie, uma “besta a ser algemada”, revoltava Darwin, e tal sentimento foi a base para a desconfiança de que podemos todos ter uma única origem.
O livro é dividido em 13 capítulos, detalhados com a presença de diversos personagens históricos inseridas no contexto da construção da teoria de Darwin: o avô Erasmus, o capitão Fitzroy, a esposa Emma, os companheiros Lyell e Hooker e o preconceituoso Agassiz. No capítulo 1, O negro retinto, um amigo íntimo, é revelado que Darwin mantinha uma grande amizade com um assistente negro em Cambridge. Trata-se de um pano de fundo para explicar como a escravidão exemplificava atrocidades absolutamente deprimentes. Darwin conheceu na viagem do Beagle (1831-1836) aquilo que foi a maior migração forçada de seres humanos ao longo da história e passou a combater a ideia de que os negros eram uma espécie diferente e inferior.
Já no capítulo 2, Crânios da raça dos imbecis, procura-se mostrar como a expansão europeia do séc. XIX levou ao contato com diversos povos, cuja aparente falta de sofisticação induziu o europeu a enaltecer cada vez mais sua própria história. Nesse contexto, surge a frenologia, uma pseudociência que defendia a possibilidade de definir características morais e intelectuais dos indivíduos a partir de medições cranianas. Para Darwin, tratava-se de “hipótese fantástica e absurda”.
No terceiro capítulo, Um único sangue em todas as nações, os autores apresentam o Espírito de Cambridge, onde Darwin começou sua vida acadêmica. A ciência era vista como complemento do cristianismo, e todas as criaturas deveriam ser respeitadas como criaturas de Deus. O homem seria uma espécie “à parte”, com alma imortal e responsabilidade por sua conduta. Na década de 1830, com a chegada dos liberais ao poder, tem início uma exigência de abolição da escravidão nas colônias inglesas, através do Abolition Act de 1833, que, no entanto, garantia apenas a abolição para crianças de até 6 anos de idade. Nesse contexto, Darwin parte para a sua grande viagem, na qual veria o sofrimento dos escravos na América, a maioria deles trabalhando para empresas inglesas. É o que nos é apresentado no quarto capítulo, A vida nos países escravagistas.
Darwin não foi um fanático apologista da causa, tendo apenas aceitado sua “herança moral”. Sua família e comunidade próxima sempre foram abolicionistas. O contexto da viagem do Beagle era formado pelos privilégios comerciais da Inglaterra e por sua Marinha forte. O capitão do Beagle, Robert Fitzroy, extremamente conservador, aceitou o então jovem liberal Charles Darwin em seu barco. O contato com o pluralismo cultural levou o jovem Charles a pensar a unidade da humanidade e o significado disso para as relações entre os homens. A origem da aparente desigualdade entre os homens poderia ser simplesmente a adequação aos diferentes ambientes existentes no planeta. Darwin começou, então, a compreender o papel da relação entre o ambiente e as necessidades das espécies.
No quinto capítulo, A origem comum: do pai do homem ao pai de todos os mamíferos, lemos que a imagem que Darwin tinha de uma natureza em transformação era extremamente peculiar. As raças humanas estavam unidas pelo sangue: muitos galhos de uma árvore que confluíam em um único ancestral. Nesse sentido, a pergunta mais importante, para além da ancestralidade comum, era: como surgem as diferenças na espécie humana? Uma origem ancestral era possível, pois somos semelhantes na dor, doença, morte, sofrimento e fome. Entretanto, havia uma arrogância cósmica dos humanos que separava os humanos “divinos” de criaturas bestiais. Para Darwin, os seres humanos não eram os seres absolutos nem a finalidade da natureza: “É um absurdo dizer que um animal é superior ao outro”. As espécies dividem-se através de adaptações, porém não houve tempo para a espécie Homo sapiens sapiens dividir-se em espécies. É interessante ressaltar que os resultados científicos que temos hoje para a negação da existência de raças são bem próximos da argumentação darwinista: muitos autores defendem que não houve tempo para que a espécie humana tenha originado raças (Pena e Birchal, 2005-2006). Nesse debate, a luta antiescravagista mudara sua atenção para o sul dos Estados Unidos, com o arrefecimento da escravidão nas colônias inglesas, e os diversos conflitos na região, que motivaram uma guerra, chamaram a atenção de Darwin. Também durante essa época, Darwin começou a compreender as limitações da teoria da seleção natural para o âmbito das diferenças entre os humanos. Uma teoria complementar seria necessária para explicar adequadamente tais variações.
No capítulo 6, A hibridização dos seres humanos, os autores apresentam o contexto da crítica ao impacto da “civilização” em certas sociedades: onde quer que os europeus tenham chegado, foram arautos do extermínio das tribos nativas. As invasões europeias acabavam por forçar uma miscigenação nas tribos do interior, na visão de Darwin. Nesse ponto, Darwin tem contato com a tese de Malthus acerca das limitações na produção e sente a necessidade de ter mais cuidado ao tratar das características da humanidade.
Já no sétimo capítulo, temos um relato da viagem de Lyell aos Estados Unidos, onde encontrou “homens mais preocupados com a santidade da propriedade do que com os direitos sagrados do homem”. Intitulado Essa questão mortalmente odiosa, mostra como Lyell não abriu seus olhos para o horror, como acontecera com Darwin no Brasil. Em 1840, Darwin fecha seus Notebooks, que continham informações relevantes sobre o processo evolutivo; entretanto, seu trabalho sobre a origem comum das espécies só seria publicado “sobre seu cadáver” e alguém competente deveria editar o ensaio, e este editor seria justamente Lyell. Para Lyell, “uma lei superior que governa a criação das espécies pode ajudar a explicar as formas de distribuição da vida nas rochas, mesmo que essa lei possa continuar um mistério para sempre”. Assim, observando as diversas nuances raciais da América, Lyell entende que “se todos fossem membros da mesma espécie, haveria esperança”.
No capítulo 8, Animais domésticos e instituições domésticas, é apresentado o debate entre “unitaristas” (defensores da origem comum das raças humanas) e “pluralistas” (defensores da origem em separado das raças humanas), que se define pelo embate entre a analogia e a flexibilidade das espécies domésticas e dos híbridos. Para Darwin, somente sua teoria evolutiva poderia resolver a controversa questão do hibridismo. A exuberância do tema das raças humanas, a anatomia, a fisiologia e a fertilidade inter-racial apontavam que o negro e o branco eram membros da mesma espécie. Porém, uma resposta fatual mais ampla era necessária para a confirmação da unidade humana.
No nono capítulo, Ai, que vergonha, Agassiz!, conhecemos o homem que foi responsável por fazer Darwin manifestar-se efetivamente a respeito da humanidade: Louis Agassiz, um dos mais respeitados naturalistas da América de então, tornou-se o maior rival de Darwin. Agassiz era a síntese de um homem da ciência: independência, objetividade e espiritualidade, com um pouco de democracia, e autor “dos argumentos mais convincentes em favor da imutabilidade das espécies”. Tinha repugnância pelos negros, que, segundo ele, “ameaçavam o futuro dos EUA”. Defendia que o local de origem de uma espécie era “determinado pela vontade do Criador”, e não pela dispersão e adaptação de um tronco originário comum. A origem comum humana seria uma evolução “condenável e ateia”.
No capítulo 10, A contaminação do sangue negro, os autores apontam que enquanto Darwin colocava suas ideias no papel, um conflito começava nos EUA: o embate entre republicanos do norte antiescravagistas e democratas sulistas pró-escravidão. Uma defesa viável da unidade humana, a alternativa às criações múltiplas de Agassiz, estava começando a aproximar-se da “origem comum” evolutiva de Darwin. A crença de Darwin na transmutação era muito forte, mas, como transformar insights antigos numa teoria sólida sobre as origens raciais? Talvez a resposta estivesse na diferença entre os sexos humanos. A seleção sexual poderia explicar por que a pele humana era mais útil nos climas tropicais.
Essa possibilidade é explorada no capítulo 11, A ciência secreta separa-se de sua causa sagrada. Com a chegada de um manuscrito de Wallace em 1858, Darwin temia que “sua originalidade fosse esmagada”. Hooker e Lyell garantiram a primazia dos escritos de Darwin (1854 e 1857), com a concordância de Wallace. Enquanto forma de explicar a criação, A origem das espécies “insultaria o Gênesis” de qualquer maneira, e falar sobre raças humanas poderia comprometer ainda mais a aceitação da seleção sexual. Provar que as raças tinham uma origem comum era provar que senhor e escravo tinham uma origem comum, e tal conclusão acabaria finalmente com essa atrocidade. Assim, as diferenças raciais entre os descendentes eram em parte naturais, em parte artificiais em relação aos animais domésticos. Mas, em última instância, todos derivavam de uma única espécie muita antiga. Darwin resolveu um problema que polarizara a ciência. No entanto, sua resolução alimentava forte antagonismo social: “O mundo teria muita dificuldade para engolir a seleção natural” e suas consequências para a humanidade.
O capítulo 12, Os canibais e a confederação de Londres, apresenta a Sociedade Antropológica de Londres, fundada em 1863, durante a Guerra Civil nos EUA, onde não havia lugar para ideias de que o negro é “um irmão”. Entretanto, a Sociedade Antropológica era o único órgão de Londres que tolerava debates sobre o darwinismo. Nesse contexto, Darwin enfrentava a perspectiva desagradável de publicar ele mesmo sua teoria da seleção sexual, como explicação das variações das raças, oriundas de um tronco comum.
No último capítulo, intitulado A origem das raças, os autores mostram como, em 1866, Darwin reuniu coragem para discutir as origens raciais humanas, explicando como a competição entre os machos e as escolhas das fêmeas produziram as raças humanas a partir de uma espécie ancestral e como homens e mulheres escolhiam traços desejáveis em seus pares. O fundamento de A origem do homem sempre foi a seleção sexual, justificada pela evidência do espectro zoológico. Darwin nunca capitularia nessa questão fundamental, de tão essencial que era para a crença de uma vida inteira na “fraternidade humana”. Darwin encerra o livro propondo que, “finalmente, quando os princípios da evolução forem aceitos pela maioria, a controvérsia entre monogenistas e poligenistas vai ter uma morte silenciosa da qual ninguém vai se dar conta” (Darwin, 1974, p.216). Talvez ele não imaginasse que não era apenas essa controvérsia que morreria.
Uma observação importante em relação ao livro é como ele exemplifica a relação entre ciência e moralidade. Este debate é bastante atual e remete às disputas entre filósofos e sociobiólogos: qual é a relevância da compreensão de nossa constituição biológica para o âmbito da moral? As ciências se ocupam do que é: os fatos constituem a referência empírica das teorias científicas. Já a moral está ligada a um trabalho de reflexão sobre hábitos, costumes e ações. Assim, a última analisa as origens e os fundamentos dos costumes que regem e articulam fatos, normas e valores e não deve confundir-se com o domínio das proposições científicas, conforme Hume já nos alertou (Hume, 2001). Entretanto, apesar do conhecimento científico não fundamentar valores, é capaz de esclarecer erros e preconceitos, desempenhando um papel libertador no exercício das escolhas morais, ao contrário das teorias que buscam, a partir de fatos, fundamentar valores, como algumas linhas da sociobiologia e o darwinismo social. A ciência pode trazer elementos que contribuam para a reflexão e ampliar o campo no qual possamos exercer nossa liberdade. É o que fez Darwin, segundo os autores de A causa sagrada de Darwin, mostrando como um cientista pode afastar certas práticas morais deturpadas e mudar para sempre o lugar do homem na natureza.
Referências
DARWIN, C. 1974. A origem do homem e a seleção sexual. Tradução de Attílio Cancian e Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo, Hemus Livraria Editora, 715 p.
DESMOND, A.; MOORE, J. 2000. Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. Tradução de Cynthia Azevedo. São Paulo, Geração Editorial, 672 p.
HUME, David. 2001. Tratado da natureza humana. Tradução de Serafim da Silva Pontes. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 740p.
PENA, S.; BIRCHAL, T. 2005-2006. A inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social? Revista USP, Vol. 68: pp. 10-21.
José Costa Júnior – Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: jose.costajunior@yahoo.com.br
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