História Agrária e deslocamentos/Outros Tempos/2023

Não é de hoje que a História Agrária tem-se apresentado como um tema urgente na historiografia brasileira. A emergência dos movimentos sociais e populares no campo no século XXI vem provocando novas abordagens temáticas já conhecidas. Passamos de estudos mais centrados nas questões da estrutura e da economia agrárias brasileiras para outras que, mesmo sem necessariamente abandonar o econômico e o estrutural, centram-se em problemas referentes a identidade cultural, relações e conflitos sociais, contatos entre diferentes grupos étnicos, bem como diversos processos de povoamento e colonização, formas de acesso à terra e relações de trabalho no campo, leis e direito agrário e problemas ambientais (CONGOST, 2007; GUIMARÃES e MOTTA, 2007; LINHARES e SILVA, 1981; MOTTA, 1998; NUNES, 2016). Leia Mais

Exílios: deslocamentos e transnacionalidade / Projeto História / 2015

O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada, embora seja verdade que a literatura e a história contem episódios heroicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado. E, eles não são mais do que esforços para superar a mutiladora da separação.

A cena se torna mais terrível e lastimável, multidões sem esperança, a miséria das pessoas “sem documentos” subitamente perdidas, sem uma história para contar… negociações, guerras de libertação nacional, gente arrancada de suas casas e levadas as cutucadas, de ônibus ou a pé, para enclaves em outras regiões, o que esta experiência significa? Não são elas, quase por essência irrecuperável?

…o exílio é uma solidão vivida fora do grupo: a privação sentida por não estar com os outros na habitação comunal. Como então alguém supera a solidão do exílio sem cair na linguagem abrangente e latejante do orgulho nacional, dos sentimentos coletivos, das paixões grupais? O que vale a pena salvar e defender entre os extremos do exílio, de um lado, e as afirmações amiúde teimosas e obstinadas do nacionalismo, de outro? O nacionalismo e o exílio possuem atributos intrínsecos? São eles apenas duas variedades conflitantes da paranoia?

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio

A longa citação se justifica pela importância que as questões dos exílios adquirem na nossa contemporaneidade, gerando inquietações sobre territórios, deslocamentos violentos e se constituindo num campos de tensão, violência e xenofobia. Terrível de experienciar, fratura incurável, marco de tristeza insuperável, os exílios arrastam multidões subitamente perdidas, sem documentos e esperança. Desencadeados por guerras, totalitarismos, genocídios e exclusões, milhares são e foram empurrados para derivas por territórios transitórios, vivenciando um descontínuo não pertencimento e enfrentando a urgência da busca por reconstruir a vida, vínculos e sentidos. Estas vagas recentes tornaram o século XXI, a “era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”. (SAID, 2005)

Desde finais do século XX, que se vivencia um processo marcado pela aceleração das transformações e intensificação dos deslocamentos que enfrentam fronteiras e limites territoriais, provocando crises e tensões internacionais. Estes deslocamentos contemporâneos desfizeram barreiras e criaram um ambiente híbrido, cosmopolita e transnacional, colocando a difícil a tarefa de recuperar uma história que considere os esparsos registros, memórias e reflexões de homens e mulheres que partiram para o exílio – entendido em sentido amplo, não apenas o desterro político. Vivendo na instabilidade e em situações precárias, seria possível dizer que esses outsiders foram sensíveis analistas das crises políticas, econômicas e culturais dos tempos sombrios, a que se refere Hannah Arendt. Sua posição de estrangeiros, apátridas sem raízes os transformou em observadores privilegiados das mudanças – frequentemente vezes dramáticas – que afetaram o mundo e suas próprias vidas.

Os fluxos de deslocados, transitando ideias, saberes e projetos, permanece impactando nossa contemporaneidade e gerando a necessidade urgente de reflexões sobre a historicidade desses processos. Assim, são estas questões emergentes que levaram a publicação deste dossiê da Revista Projeto História, intitulado Exílios: deslocamentos e transnacionalidades.

Este volume apresenta pesquisadores do Brasil e de diferentes países, que analisam aspectos diferenciados da temática, colocando novas indagações, ampliando visões e trazendo contribuições para dinamizar conexões entre história passada e a atualidade. Desta forma, os exílios se constituem num amplo espectro de lutas gerando inquietações e desafiando reflexões, possibilitando a ampliação de um campo de investigações aberto a revelar experiências presentes e passadas, e contribuindo para a renovação temática e metodológica.

Nos artigos deste dossiê despontam exímios conhecedores do seu ofício, são pesquisadores inovadores, com diferentes interpretações e com a proposta de recuperar silêncios e invisibilidades. Para tanto vasculharam arquivos, numa paciente busca de indícios, sinais e sintomas, constituindo um mosaico de referências documentais, cuja análise crítica permitiu esmiuçar o implícito, descortinando o oculto, recobrando criticamente memórias, transgressões e controles, dando visibilidade a múltiplas experiências e práticas culturais. Estes escritos encontram-se fundamentados em investigações meticulosas, eruditas, temperadas pela sensibilidade e criatividade dos autores. Os trabalhos reunidos nesse volume apresentam questões próprias dos estudos sobre a experiência exilar e que são de extrema relevância.

Nos textos de Villares e Jensen o tema da solidariedade entre os grupo exilados é apresentado com especial qualidade, uma vez que as redes de acolhimento são associadas aos projetos políticos que circulam nos espaços transnacionais da América e Europa.

Essas redes de solidariedade reaparecem com força no texto de Teresa Schneider Marques, mas, com a especificidade de tratar de um caso envolvendo exilados brasileiros, mais precisamente exiladas. Marques aponta para a difícil condição do feminino no ambiente do exílio e através de um texto pleno de possibilidades encontra um ângulo de observação original da experiência exilar.

Ressaltando as tensões históricas dos que partiram do Brasil para o exílio, temos no artigo “Do exílio, um futuro para o Amazonas. João Daniel e o aproveitamento das riquezas do rio”, de Fernando Londoño que rastreou a experiência e os escritos dos padres da Companhia de Jesus expulsos do Grão Para e Maranhão no século XVIII. Já em “O exílio de Plínio Salgado em Portugal: a Vida de Jesus e a composição do apostolado político”, Leandro Gonçalves recuperou a trajetória pliniana no exílio. Seus textos demonstram o controle dos autores sobre os temas que analisam e provocam o leitor a refletir sobre as dinâmicas intensas da circulação de ideias, tema próprio do campo dos estudos sobre o deslocamento de intelectuais.

Este volume conta com a entrevista de Daniel Aarão Reis que, nessa oportunidade, faz pela primeira vez um balanço sobre a experiência de seu exílio apontando para esse momento como lugar central na sua trajetória intelectual.

O dossiê se completa com a apresentação das pesquisas sobre o tema que se encontram em andamento, de autoria de Antonio Gasparetto Júnior, Guilherme Ignácio Franco de Andrade e Daniela Adriana Garces de Oliveira. Por fim, a resenha, de Érica Sarmiento da Silva, á obra “Inmigracion y retorno. Españoles en la ciudad de México 1900-1936”.

Ainda se somam no volume os artigos de José Weyne Freitas Sousa,“Secas e socorros públicos no Ceará”; Meize Regina Lucena Lucas, “Cinema e censura no Brasil: uma discussão conceitual para além da ditadura” e de Francisco das Chagas Santiago, “Dos lugares de memória ao patrimônio: emergência e transformação da ‘problemática dos lugares’”.

Este conjunto de escritos preenchem lacunas ao investigar os ocultamentos, recobrando múltiplas possibilidades de vivências e representações, mudanças, permanências, tensões e, quiça, possibilidades e perspectivas.

Boa leitura

Maria Izilda S. Matos

Maurício Parada

30.10.2015


MATOS, Maria Izilda S.; PARADA, Maurício. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.52, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos e alteridades / História – Questões & Debates / 2013

O tema do dossiê do volume 58 de nossa revista é “Deslocamentos e Alteridades”, com quatro artigos que discutem questões contemporâneas de deslocamentos culturais, atrelados a imigrantes e viajantes, cuja presença desperta a reflexão sobre alteridades, estranhamentos e familiaridades entre indivíduos de diferentes nações e territórios.

No artigo “Eu nasci no Brasil mas o Líbano é o meu país – jovens descendentes de libaneses em Foz do Iguaçu: identidade plural”, da antropóloga Poliana Fabiula Cardozo, observamos os jogos identitários realizados pelos jovens em questão, tanto em suas comunidades de origem como no contexto brasileiro que os cerca e, ao mesmo tempo, perpassa-os, entre interditos e permissões islâmicos e brasileiros. A autora demonstra quando é conveniente para estes jovens ser brasileiro e ser libanês no espaço de Foz do Iguaçu.

O caso analisado por Poliana Cardozo é típico do contexto globalizado, no qual o Islã se insere de forma múltipla e dinâmica. Tal inserção é analisada pela primeira contribuição internacional a este volume, trazida pela geógrafa Shadia Husseini de Araújo, no artigo “O ‘Islã’ como força política na ‘Primavera Árabe’: uma perspectiva da teoria do discurso”. A estudiosa do Islã moderno analisa em que medida a religião do profeta Maomé pode ser considerada um aspecto importante da chamada “Primavera Árabe”, caracterizada pelas revoltas que derrubaram regimes autoritários no mundo islâmico desde janeiro de 2011. Em que medida os deslocamentos culturais em curso no mundo islâmico têm influenciado seus movimentos políticos?

O tema do deslocamento cultural predomina também no artigo “Imperialismo, missão e exotismo: narrativas de viajantes de língua alemã no Brasil nas primeiras décadas do século”, da historiadora Karen Macknow Lisboa, em que se destaca a questão da alteridade nos relatos de cinco viajantes alemães, nas três primeiras décadas do século XX: um político colonial, um escritor exotista, dois expressionistas e um membro do partido nacional-socialista alemão (NSDAP). Sua discussão também almeja contribuir para os estudos sobre a literatura de viagem da primeira metade do século XX a respeito do Brasil, um assunto ainda pouco explorado, sobretudo em relação aos viajantes de cultura germânica e que não eram antropólogos.

Encerramos este dossiê com um artigo que faz o sentido inverso da alteridade explorada no texto anterior – o historiador René E. Gertz, em “De Otto von Bismarck a Angela Merkel: do ‘perigo alemão’ ao ‘neonazismo’ no Brasil”, explora os medos que a presença alemã no Brasil despertou em diferentes momentos da história contemporânea. Ainda que a maioria dos neonazistas presos e identificados recentemente no Brasil não seja de origem germânica, o neonazismo é considerado pelo senso comum – e por vezes por trabalhos acadêmicos – como uma iniciativa de descendentes de alemães. Por que, após tantas décadas de presença de descendentes de alemães em solo brasileiro, determinados preconceitos ainda persistem?

Os estudos trazidos por este dossiê procuram responder a estas perguntas a partir de uma análise dos efeitos que os deslocamentos culturais suscitam nos últimos dois séculos.

Na seção de artigos, apresentamos três textos: o primeiro é da antropóloga Lisa Cligget, da Universidade de Kentucky, que traz a segunda contribuição internacional para nosso volume, com o texto “Componentes sociais da migração: experiências da Província Sul, Zâmbia”. O artigo revela a importância das estruturas do poder local – ao nível da comunidade e da família – para entender a migração, ao contrário das suposições comuns que atribuem causas econômicas e ambientais às decisões de migração. São examinados os processos migratórios na Província Sul da Zâmbia por meio do uso de informações coletadas de dois projetos de pesquisa qualitativa. Contextos locais econômicos e ambientais eram os fatores decisórios na migração das populações; o controle sobre os recursos da zona rural e a habilidade de mobilizar as redes de apoio social nos vilarejos também demonstraram influenciar as decisões para deslocar-se. As informações apresentadas nesse trabalho são do Projeto de Pesquisa longitudinal Gwembe Tonga (GTRP) e de um estudo de dois anos sobre emprego e mercados de trabalho na Província Sul, liderados pelo Centro de Estudos sobre Desenvolvimento da University of Bath, Inglaterra.

O segundo artigo é do historiador José Geraldo Costa Grillo, “A representação da mulher na iconografia de Ájax carregando o corpo de Aquiles na pintura da cerâmica ática (570-480 a.C.)”. Segundo o autor, da perspectiva dos estudos de gênero, a representação da mulher na pintura da cerâmica ática tem sido entendida basicamente de duas maneiras: 1) os pintores revelam o mesmo preconceito discriminatório encontrado nos textos literários; 2) tanto nos textos quanto na iconografia, a posição social da mulher não é assim estanque. Partilhando dessa segunda concepção, o autor demonstra, a partir da análise iconográfica da cena de Ájax carregando o corpo de Aquiles, que se, por um lado, a mulher por vezes desempenha um papel secundário, podendo implicar sua desvalorização social, por outro, ocupa, em inúmeros e significativos casos, o lugar central como protagonista do evento, demonstrando seu prestígio e valor aos olhos de sua sociedade.

Por fim, o artigo “Arqueologia Histórica – Abordagens”, de Diego Antônio Gheno e Neli Teresinha Galarce Machado, aborda as potencialidades teóricas e metodológicas da Arqueologia Histórica, destacando como esta subdisciplina passou a ser aplicada em diferentes contextos, relacionada a modelos teóricos amplos, como o histórico-culturalismo, o processualismo e o pós-processualismo. A Arqueologia Histórica, no continente americano, é uma fecunda via de estudo da cultura material proveniente do período Moderno. O artigo problematiza a definição de Arqueologia Histórica, entendida pelos autores como o estudo dos grupos humanos, em seus mais diversos aspectos, através da sua cultura material e das formações sociais desaparecidas, tendendo a variar a partir da área de atuação do arqueólogo conforme seu objeto de pesquisa. Outro aspecto abordado no texto é a breve revisão sobre pesquisas em perspectiva da Arqueologia Histórica no Brasil, Rio Grande do Sul e na região geopoliticamente conhecida como Vale do Taquari.

Apresentamos três resenhas para encerrar este volume. Na primeira, Daniel Afonso da Silva analisa o livro de Anderson Lino, Bom Jesus da Cana Verde: conflitos e celebrações no Norte do Paraná, 1886-2008 (2011), que versa sobre o processo de constituição da romaria em culto ao Senhor Bom Jesus da Cana Verde, na pequena Siqueira Campos, no norte pioneiro do Paraná, um dos maiores e mais marcantes acontecimentos religiosos do país. O autor defende que a imagem e a festa em seu elogio, que existe desde 1934, derivam de disputas e conflitos depositários de modificações estruturais na relação entre Estado e igreja em todo o mundo ocidental ao longo dos últimos cento e cinquenta anos.

Já Bruno Torquato Silva Ferreira e Marcos Hanemann analisam o livro Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil (1864-1945) (2009), do brasilianista Peter M. Beattie. A obra desenvolve a maneira pela qual ocorreu a transição do recrutamento forçado para a conscrição através de sorteio como forma de preenchimento dos claros (vazios) das fileiras do Exército brasileiro entre 1864 e 1945. O corte é pouco usual para os que acompanham os estudos nativos sobre o tema e refere-se às duas mais importantes mobilizações militares que o Brasil conheceu: a Guerra contra o Paraguai e a Segunda Guerra Mundial. Coincide ainda com importantes alterações nas estruturas social, econômica e política brasileiras, que se materializaram na expansão das atividades capitalistas, no processo de urbanização, na industrialização, na expansão do sistema viário, na integração nacional, no avanço do nacionalismo e no aumento do poder do Estado.

Por fim, o livro Ancient Judaism. New Visions and Views (2011), de Michael Stone, é resenhado por Jonas Machado. Stone discorre sobre elementos considerados de suma importância para as concepções atuais sobre o judaísmo da antiguidade. Essa obra destaca as origens, a complexidade, a transmissão e a recepção das tradições contidas na literatura que constituem as fontes para o estudo do judaísmo antigo, eixo central em torno do qual gira esse trabalho, com o propósito de desafiar ortodoxias tardias que engendraram histórias teologicamente condicionadas sobre o judaísmo antigo.

Karina Kosicki Bellotti


BELLOTTI, Karina Kosicki. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.58, n.1, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos, Oralidades e Intolerâncias / Revista Trilhas da História / 2013

A Revista Trilhas da História chega ao quarto número mantendo ininterruptamente a periodicidade semestral. A quantidade e a qualidade dos textos recebidos, e a diversidade de instituições de pesquisa de que se originam os autores, demonstram o acerto do quadro docente e discente do Curso de História do CPTL / UFMS em lançar o periódico no segundo semestre de 2011, mesmo diante das adversidades do trabalho em uma instituição federal periférica.

A Revista agora está indexada na base Latindex, o que permite vislumbrar a inscrição no sistema de avaliação de periódicos Qualis / CAPES. As trilhas percorridas até aqui reforçam os objetivos iniciais da Revista de ser um espaço aberto às contribuições de pesquisadores experientes no ofício da História e áreas afins que contribuem na seção “artigos”, como também lugar em que alunos da graduação possam apresentar os caminhos iniciais de suas pesquisas na seção “ensaios”, se expondo para a crítica, algo necessário para o ensino-aprendizagem na graduação.

Os artigos e ensaios deste quarto número, inscritos no dossiê “Deslocamentos, Oralidades e Intolerâncias”, abrangem um longo período histórico, do século XVI à atualidade, bem como diversos problemas de pesquisa: gênero, religiosidade, história indígena, cotidiano, microhistória, história das ideias, economia, cultura, e fontes para a História.

O artigo de Wallas Lima e Edson Silva “Intolerância e sexualidade: a Inquisição em Pernambuco Colonial (1593-1595)” analisa o tema da sexualidade a partir de relatos de homens e mulheres acusados de sodomia e fornicação na capitania de Pernambuco. A análise dos autores coloca em evidência as relações da Igreja e a população colonial.

Em “Hierarquias, fortunas e artigos importados em Belém (1840-1870)”, as autoras Mábia Sales e Leila Mourão apresentam uma análise instigante que transita entre a economia e a cultura, a vida pública e a privada, o micro e o macro. A partir dos inventários do Centro de Memórias da Amazônia, as autoras analisam a circulação de mercadorias e de cultura, entre a Europa e o Pará, e a composição da riqueza de parte da elite da cidade portuária de Belém no XIX.

O texto de André Rego “Deslocamentos espaciais de índios nas aldeias e vilas indígenas da Bahia do século XIX” aborda o deslocamento de núcleos indígenas pressionados pela configuração fundiária e a demanda pela mão de obra. O estudo demonstra que a forma da relação com as comunidades indígenas no Império seguia os preceitos do que regia a legislação da Colônia.

No artigo “Capoeira, do crime à legalização: uma história de resistência da cultura popular” os autores Albert Cordeiro e Nazaré Carvalho apresentam uma história da capoeira no Brasil, com base na pesquisa bibliográfica. A narrativa histórica compreende a manifestação da capoeira na Bahia, no Rio de Janeiro e no Pará, desde a colônia ao início do século XX, quando a prática é legalizada pelo Estado.

Priscilla Silveira em “„Doces memórias…‟: produção de doces na Usina Oiteirinhos em Sergipe durante a trajetória de Dona Baby (1954-1968)”, destaca as doces delícias da culinária pernambucana e sergipana por meio de um estudo da oralidade. Trata-se de uma história da alimentação, da tradição alimentar, a partir da história de vida de uma personagem nordestina.

No artigo “A presença batista em Mato Grosso” Ademar Silva narra uma história da Igreja Batista em Mato Grosso, especialmente a migração de batistas para o sul do estado, em vinculação com São Paulo, entre as décadas de 1910 e 1940. Importa ao autor, também, compreender a imposição da moral religiosa batista às mulheres.

Em “De volta para o princípio: ensaio sobre o resgatar identitário” o geógrafo Júlio Ribeiro apresenta uma discussão teórica da identidade do ser socioespacial. No interior de uma tradição teórica testada de longa data, o autor trava embate com as certezas da mundialização e do capital, colocando a questão da identidade / neo(des)identidade no lugar de polêmica que o conceito requer.

Diovana Thiago propõe uma reflexão sobre o saber científico nas ciências humanas, com destaque para a História. A autora concentra-se na crítica ao método tomado como formatador e limitador do exercício do pensamento, especialmente para a ciência História, e na necessidade de o discurso do historiador se abrir para além da área, para fora do domínio acadêmico.

O artigo de Rubens Correa “Parâmetros teóricos e políticoinstitucionais das independências no mundo hispano-americano” apresenta a história da historiografia do processo de independência dos estados hispanoamericanos. O autor aponta para as abordagens da Nova História Política que compreendem os movimentos de independência a partir das dinâmicas políticas internas às colônias, na relação com a metrópole.

A seção dos graduandos, “ensaios”, inicia com o texto de Iara Silva, “Cristianização da Nova Terra: os jesuítas e a catequese na Colônia”. A autora parte de documentos reproduzidos no todo ou em partes pela historiografia, para estudar a catequização dos povos originários e colonos por parte da Companhia de Jesus, na América Portuguesa.

Rogério de Paula em “Breves considerações sobre a agropecuária e o mercado interno de víveres na América Portuguesa (séculos XVII e XVIII)” apresenta um ensaio de história econômica conjugado à história demográfica, com o objetivo de compreender o comércio de víveres e a produção de gêneros de subsistência na colônia.

No ensaio “Estudos migratórios: as fontes orais e a busca de uma epistemologia histórica”, Nelson de Lima Junior discute a metodologia da história oral e a sua contribuição para o estudo da migração.

A seção “resenhas” traz a apresentação construída pela graduanda Rejane Rodrigues da obra de Elciene Azevedo “O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo”, da Editora da UNICAMP. O livro contribui para se entender o processo que envolve a luta abolicionista em São Paulo nas últimas décadas do século XIX.

Na sequência, o graduando Charles Asssi apresenta a coletânea de textos organizada por Mirian Claudia Lourenção Simonetti “Assentamentos rurais e cidadania: a construção de novos espaços de vida”, das Editoras Cultura Acadêmica e Oficina Universitária. Trata-se de obra coletiva que traz estudos acerca dos movimentos sociais, da reforma agrária e de assentamentos rurais, na perspectiva da Geografia, da História, da Sociologia, da Economia e da Agronomia.

O professor Geraldo Menezes Neto, da Rede de Educação de BelémPA, destaca o livro de Mark Curran “Retrato do Brasil em cordel”, publicado pela Ateliê Editorial. O livro é um estudo fora do âmbito acadêmico que contribui para se entender a história desta manifestação literária popular.

Por fim, a seção “fontes” traz o texto da graduanda Mariely Sousa intitulado “Gregório de Matos: uma análise da Bahia e da América Portuguesa por meio de suas poesias”. A autora compreende a literatura como fonte para a História, para tanto discorre sobre a obra de Gregório de Matos, contextualizando-a na América Portuguesa, especificamente na Bahia de fins do século XVII.

Vitor Oliveira

Inverno de 2013.


OLIVEIRA, Vitor. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.2, n.4, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos: trabalho e identidades / História – Questões & Debates / 2012

A emergência dos fenômenos ligados à dispersão populacional, sejam estes relacionados à experiência das migrações internas ou aos chamados movimentos transnacionais, também conhecidos como “novas diásporas”, tem motivado um número crescente de pesquisas em diferentes áreas das ciências humanas, frequentemente voltadas às reflexões sobre o deslocamento de pessoas entre países, regiões e continentes, bem como aos seus desdobramentos.

Desde o século XIX, quando o fenômeno das migrações internas e externas ganhou intensidade, em decorrência da expansão do capitalismo e do avanço tecnológico dos meios de transporte e das comunicações, os deslocamentos migratórios adquiriram maior visibilidade, refletindo as assimetrias presentes nas relações socioeconômicas, bem como as contradições existentes na sociedade capitalista. Todavia, somente a partir da segunda metade do século XX, e particularmente nas últimas décadas do milênio, as temáticas acerca dos trânsitos migratórios passaram a ser estudadas com maior afinco por historiadores, geógrafos, antropólogos, economistas e sociólogos, interessados em analisar o fenômeno não só a partir das questões ligadas à mundialização da economia capitalista ou aos conflitos étnicos, políticos e religiosos – fatores estes que, sem dúvida, foram responsáveis pela dispersão de grandes contingentes populacionais, sobretudo a partir do oitocentos –, mas também preocupados em ultrapassar essas abordagens, procurando refletir igualmente a respeito das experiências compartilhadas por pessoas ou grupos que, motivadas por fatores ideológicos, históricos e sociais, protagonizaram esses múltiplos movimentos.

O crescente interesse pelas rupturas, descontinuidades e desigualdades inseridas no interior de uma complexa teia de relações de poder envolvidas nos processos de deslocamento fez com que pesquisadores interessados nesta temática se aproximassem das reflexões empreendidas por autores vinculados aos estudos culturais, dentre os quais se destacam Hommi Bhabha, Edward Said, Arjun Appadurai, Stuart Hall e Nestor Canclini. Abrigados no arcabouço teórico identificado como pós-colonialista, estes autores contribuíram para a emergência de conceitos como desterritorialização, alteridade, exclusão, resistência, identidade e multiculturalismo, estreitamente vinculados às práticas migratórias e, portanto, apropriados para as análises que buscam privilegiar experiências de sujeitos deslocados.

Os artigos reunidos no dossiê temático deste volume expressam, em seu conjunto, este interesse cada vez maior pela dimensão subjetiva das migrações. Os aspectos relacionados às experiências vivenciadas nas sociedades de origem ou de destino são ressaltados pelos artigos de Montserrat Soronellas Masdeu, Suzana Serpa Silva e Joseli Mendonça. O primeiro, contemplando o estudo de sociedades agrárias da Catalunha, no século XX, mostra as consequências ambíguas dos deslocamentos populacionais para tais sociedades: de um lado, a urbanização e o êxodo rural dela decorrente favorecem o despovoamento das áreas agrícolas, impondo dificuldades para as comunidades locais; de outro, a migração internacional, ensejada pela globalização, facilita o fenômeno de repovoamento das áreas rurais, possibilitando projetos de desenvolvimento local. Esta dinâmica migratória, defende a autora, faz com que as sociedades agrárias da Catalunha se “reinventem” como sociedades rurais.

Os artigos de Susana Serpa Silva e Joseli Mendonça enfocam principalmente as experiências de precarização das condições sociais vivenciadas pelos sujeitos que se deslocam. O primeiro trata da migração clandestina de açorianos para o Brasil nos anos 1830. Na perspectiva de autoridades portuguesas e da própria opinião pública em Portugal, os açorianos que migravam eram submetidos a uma “escravidão branca” nas áreas para as quais se dirigiam. Como indica a autora, em uma época em que se procurava reprimir e extinguir o tráfico de escravos, a degradação da condição dos trabalhadores açorianos que se deslocavam era equiparada à dos escravos. Também relacionando tráfico de escravos e transferência de trabalhadores livres, o artigo de Joseli Mendonça analisa a legislação brasileira que, vigente desde os anos 1830, regulava contratos de trabalho, criando condições para que se configurasse a “escravidão branca” constituída na percepção a que se refere Suzana Serpa Silva. Proposta e aprovada em contextos nos quais as restrições ao tráfico de escravos se intensificavam, esta legislação objetivava favorecer os “importadores” de mão de obra, limitando sobremaneira a autonomia dos trabalhadores.

Na sequência, os artigos de Roseli Boschilia e Maria Izilda Santos de Matos enfocam, a partir de corpus documentais diversos, aspectos relacionados às experiências individuais vivenciadas por imigrantes portugueses. Enquanto Roseli Boschilia, ancorada em documentos de caráter mais oficial, dentre os quais se destacam os pedidos de passaporte, registros de desembarque e pedidos de naturalização, analisa o perfil dos imigrantes portugueses que se dirigiram ao Paraná durante a segunda metade do século XIX, Maria Izilda Santos de Matos privilegia cartas e correspondências privadas para investigar a presença dos imigrantes portugueses em São Paulo, procurando, a partir destes documentos, rastrear não só os vínculos estabelecidos e os circuitos de sustentação nas regiões de saída e de acolhimento, mas também tensões e frustrações, possibilidades de reencontros e reconstituição familiar.

Num terceiro bloco, fechando o dossiê, estão os artigos de Regina Weber e Marcelo Garabedian, com reflexões voltadas à imigração espanhola. Interessada em estudar as manifestações de identidade étnica dos espanhóis que, ao longo do século XX, se radicaram no Rio Grande do Sul, Regina Weber analisa as manifestações étnicas destes imigrantes e seus descendentes, observando fatores econômicos e culturais internos e externos ao grupo, no intuito de refletir acerca das formulações identitárias que decorrem das práticas de agregamento gestadas na sociedade de destino.

Já o argentino Marcelo Garabedian faz uma reflexão sobre a imprensa imigrante a partir da análise do periódico El Correo Español, principal jornal da colônia espanhola editado na Argentina durante o século XIX. Neste artigo, o autor procura destacar o protagonismo deste periódico para a consolidação institucional da imigração espanhola no seu país, assim como sua contribuição para as discussões políticas e culturais, intimamente associadas ao projeto de construção do nacionalismo espanhol no interior da sociedade argentina.

Além dos textos que compõem o dossiê, este volume traz ainda um artigo sobre o ensino de História, de autoria de André Luiz Paulilo, que tem como objeto de análise os manuais didáticos da área de História, destinados especialmente aos professores do ensino fundamental. No texto, o autor procura problematizar o papel exercido por esta modalidade de documentos sobre os pressupostos teóricos que orientam a prática de ensino de docentes que trabalham em escolas públicas.

Por fim, na seção de resenhas, são apresentados três textos. O primeiro deles, de Renata Senna Garraffoni, discute a obra de Salvatore Settis, The future of the “Classical”; o segundo, de Igor Zanoni Constant Carneiro Leão e Demian Castro, traz considerações sobre o texto Pós-modernidade, mal-estar, violência: uma leitura de Maria Laurinda Ribeiro de Souza; e o terceiro, de Daniel Augusto Arpelau Orta, trata da obra de David Levering Lewis, O Islã e a formação da Europa de 570 a 1215.

Roseli Boschilia

Joseli Mendonça

Junho de 2012


BOSCHILIA, Roseli; MENDONÇA, Joseli. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.56, n.1, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Viagens, Viajantes e deslocamentos / Projeto História / 2011

Enfim chegamos à estação Saint Paul

Imagino que estou na estação de Nice

Ou desembarcando em Londres Charing Cross

Encontro todos os meus amigos

Bom dia Eis-me aqui.

Blaise Cendrars

Blaise Cendrars, poeta nascido na Suíça, esteve muitas vezes no Brasil: em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais. Em cada visita, registrou suas impressões em poemas, em cartas, em livros, em seu diário etc. Foi um viajante e um homem de seu tempo; circulou por diferentes lugares do mundo e o Brasil esteve em seus roteiros, espaço este marcado por um tempo, espaço– tempo lembrado e perpetuado por seus registros, disseminados talvez por seus leitores, interlocutores permeados por um imaginário, recheado de expectativas que preenchiam uma representação europeia sobre o outro e que, por fim, foi recuperado por historiadores numa leitura que precisou ponderar sobre o texto (formas de registro, conteúdo, contexto: espaço–tempo) e seus sentidos. O tema das Viagens, Viajantes e Deslocamentos, proposto para o número 42 da Projeto História, aborda o olhar e o registro sobre um outro espaço, um outro tempo e outros sujeitos históricos, o que nos encaminha para uma teia de questões que lidam com visões de mundo, representações que se constituem em registros que passam por metodologias e teorias, documentos e suas abordagens, configurando uma rica discussão historiográfica. Diferentes questões se entrecruzam nesta abordagem.

Nossa epígrafe retoma um célebre viajante ou “uma criatura desenraizada” nas palavras de Sevcenko[1] o que explica a citação, ao anunciar identificação e não estranhamento; Cendrars expressa, em alguns de seus poemas, sua paixão pela cidade de São Paulo, recuperada e discutida por Sevcenko na reconstituição da São Paulo urbana nascente no contexto do século XX. A paixão de Cendrars, aqui citada, denota uma relação viajante–viagem que se inicia com o estatuto do próprio viajante, constituído no intuito da viagem, seguido de seus registros e impressões. Os viajantes tiveram motivações distintas para suas viagens, demarcadas por interesses comerciais, culturais ou científicos; motivações estas que marcaram uma postura. Como discute Amilcar Torrão Filho [2], todo viajante precisa de um método e de uma teoria. Estes definem a mediação entre o olhar, ou seja, o sensório e o lugar, estabelecendo um campo organizado, uma cartografia do olhar na tentativa de sentir e perceber o outro. Esta cartografia orienta o olhar e pode aproximar o viajante de seus leitores, como enunciado por Said ao discutir sobre a construção da noção de “orientalismo”, na qual lemos: “o principal para o visitante europeu era uma certa representação europeia – compartilhada pelo jornalista e por seus leitores franceses – a respeito do Oriente e de seu destino atual”.[3] Antes mesmo de dizer sobre o outro, o viajante expõe os seus próprios esquemas mentais através de seu método, explicitando referências culturais. A literatura de viagem suscita, então, em primeira instância, a retomada da perspectiva do viajante. Em Cendras, o seu olhar buscava impressões imediatas, o registro do outro no ato da observação, quase numa ânsia de não perder a referência deste outro:

Era a estética que ele estabelecera no seu último livro, Kodak, segundo o qual o poeta deveria repercutir o choque instantâneo da realidade exterior em seus órgãos sensoriais, sem dar tempo para que a consciência ou a imaginação diluíssem aquele instante fragmentário na representação simbólica ou no substrato da tradição cultural.[4]

O registro traduz um método em Cendrars; apesar da afirmação de que o registro deveria preceder a interpretação, vemos o método expresso na cartografia do olhar de um modernista, um defensor dos fragmentos, das rupturas, na desmontagem das linguagens. O poeta procura explicações, origens e sentidos, tais quais outros modernistas como Picasso em sua leitura das máscaras africanas ou Gauguin, com a busca do primitivismo, denotando assim perspectivas culturais delimitadas por seu tempo–espaço, concernentes a uma visão de mundo e expressa em seu método de observação. Ao mesmo tempo, Cendrars demonstra seu projeto pedagógico, imbuído do caráter civilizatório europeu, ao receber artistas brasileiros em seu país, tecendo contatos, apresentando espaços, enfim, oferecendo o ambiente modernista europeu como referência cultural para a produção artística brasileira. O projeto transparece, se faz ver. Neste caso, Miceli [5] nos mostra como os modernistas brasileiros, viajantes na Europa e aprendizes dos europeus, reproduziram talvez a perspectiva do Grand Tour e viajaram para se alimentar, absorvendo a visão modernista pautada também por um olhar, o olhar da nação em construção, do viajante que busca sua própria identificação. Neste percurso, se mostraram mais tradicionais que os seus mestres, rompendo menos com a linguagem figurada, numa composição de valorização da Nação. Neste caso, o universo destes viajantes é o universo da Nação nascente, em construção, referenciada pelo modelo europeu civilizatório.

Destarte, os viajantes não são agentes neutros, carregam diferentes projetos em suas bagagens e orientam seus olhares com especificidades. Em muitos casos, o viajante, como indivíduo de passagem, toma o especial como regra. Quando Peter Burke, em Cultura Popular na Idade Moderna, discute sobre as festas, chama atenção de que eram momentos especiais, em que as pessoas buscavam sair da rotina (comiam e bebiam mais, usavam roupas e utensílios especiais). “Dentro das casas, muitas vezes os jarros, copos e pratos mais ricamente decorados só eram usados em ocasiões festivas, e assim as peças remanescentes podem enganar o historiador, se não for cuidadoso, quanto à qualidade da vida cotidiana no passado”.[6] A utilização das descrições de viajantes para reconstituir esse cotidiano pode apresentar algumas armadilhas. Mas esses problemas e armadilhas não são dos viajantes e de seus relatos, são problemas para os historiadores que precisam considerar que todo relato de viagem é um documento permeado de intencionalidades e especificidade próprias de seu tempo–espaço. São as bagagens do viajante e por isto o projeto de viagem se historiciza. No caso de Cendrars, no contexto do início do século XX, num país republicano e recente que se coloca o problema da identidade nacional, o caráter pedagógico é o da busca da especificidade desta Nação, o que lhe é próprio e inusitado. Teoria e método, assim, indicam o caráter do projeto do viajante e a viagem, historicizada, permite reconstituir a própria historicidade das diferentes viagens. Podemos perceber pela definição tempo–espaço a mudança de lugares, de roteiros, de intenções, bem como então, de registros e percepções.

Nesse sentido, seria interessante apresentar a obra de Theodor Bry, Americae Tertia Pars, terceiro volume das Grandes Viagens, do século XVI – que descreve nativos, rituais, aspectos culturais, sem jamais ter visitado a região. Ele fundamenta sua obra a partir de relatos de viajantes, em especial Hans Standen e Jean de Léry.

As imagens de rituais antropofágicos, tão pitorescos e interessantes ao Velho Mundo, estão amparadas na sua própria ideia de antropofagia, dos rituais de bruxaria. Laura de Mello e Souza7, Inferno Atlântico, mostra isso em Léry: “[…] na passagem em que Léry associa o ritual tupi do litoral brasileiro ao sabá europeu das bruxas -, a relação entre os ritos ameríndios e a demonologia é inequívoca”.[8] Bry representa os tupinambás utilizando caldeirões, algo pouco provável, assim como a presença constante de mulheres nesses “festins diabólicos”. São referências aos rituais europeus, assim sua forma de “ver” e “relatar” acaba sendo influenciada pelo seu acreditar, por aquilo que supõe ser.

Ainda dentro desse mesmo processo histórico – expansão marítima e colonização – cabe destacar outras obras. Na obra de Sérgio Buarque de Holanda,[9] Visão do Paraíso, temos inúmeros relatos de viajantes. Existia na Europa a crença na terra, distante, onde os homens não adoeciam. A crença na existência de paraísos perdidos entre mares impiedosos justificava a busca do Éden durante as navegações. Viagens reais e ficcionais – como as de Sir John Mandeville – fomentaram o mito, que acabou sendo reforçado pelas descrições de viagens e viajantes reais, como a descrição de Américo Vespúcio, em 1502: “Terra amena, de arvores infinitas e muito grandes, que não perdem folha, aromáticas, carregadas de saborosos frutos, e salutíferos para o corpo […]”.

Na carta de Caminha, a descrição também é semelhante:

“[…] a terra em si é de muito bons ares […]. Águas são muitas: infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar dar-se-á nela, tudo, por bem das águas que tem.” Essa visão está fundamentada naquilo que o viajante procurava encontrar: o “Paraíso”: “Tinha também o Senhor Deus feito nascer da terra todas as castas de árvores agradáveis à vista, e cujo fruto era gostoso ao paladar: e a árvore da vida no meio do paraíso […]”.[10]

Não podemos deixar de destacar, também, a obra Viajantes do Maravilhoso, de G. Giucci, que busca na Odisseia inspiração para discutir a viagem de Cristóvão Colombo em direção ao desconhecido. Aqui temos uma visão diferente do “outro”. Os viajantes – Ulisses ou os modernos, nesse caso representado por Colombo – tem como correto, certo e justo o seu espelho, assim o ciclope Polifemo, como os ameríndios, são bestializados a priori. “Várias vezes o viajante curioso manifesta seu interesse em verificar se os colossos se atêm às regras de hospitalidade. Mas o gigante dissipa toda fantasia bucólica ao confrontar-se violentamente com os estrangeiros”.[11] Isso também ocorreu com os ameríndios, para uns habitantes do paraíso, para outros seres demoníacos.

Em seu diário, Antonio Pigafetta – escritor italiano que acompanhou Fernão de Magalhães na primeira viagem de circunavegação – tem uma visão oposta à de Caminha sobre os nativos. Ele apresenta a “libertinagem das moças – algumas vezes, para conseguir uma faca de cozinha ou outro instrumento de corte, nos ofereciam como escravas uma ou duas de suas filhas” e também o traço definitivo para comprovar a “bestialidade”, a antropofagia, “comem muitas vezes carne humana, porém, somente de seus inimigos.”[12]

Essas descrições, mais do que apresentar povos e terras, são excelentes fontes para entendermos o pensamento do homem europeu dos séculos XV e XVI. No contexto do Grand Tour o destino era a própria Europa, prioritariamente a Itália; neste momento, os lugares e roteiros demonstram a busca do lazer alimentado de cultura e conhecimento, numa perspectiva clara do que se entendia por conhecimento e cultura. Aqui, a narrativa de viagem é essencialmente descritiva e o viajante é um aprendiz e uma referência; o lugar é o urbano, construído. Aqui podemos vislumbrar os motivos das viagens, os destinos escolhidos, os registros, tanto em seu conteúdo, quanto em sua forma, reconstituindo um imaginário europeu próprio do século XVIII. Estas narrativas elucidam uma perspectiva civilizatória europeia, no alimento da própria civilidade:

O culto ao antigo que acompanhou o Grand Tour à Itália também não se esgotava na viagem, tendo desdobramentos posteriores à chegada dos viajantes a seus países, especialmente na Inglaterra, onde eles eram em maior número e mais ativos. Um desses desdobramentos foi a fundação de sociedades reunindo pessoas com interesse em antigüidades. A Society of Dilettanti, fundada em 1734 por um grupo de gentlemen que havia viajado em um tour à Itália, tinha como preocupação central promover a investigação e a publicação dos resquícios das grandes civilizações do passado. [13]

Afinado neste diapasão, o texto de Mikael Dumont, O Atlântico dos Emigrantes Franceses (séculos XVII e XVIII): Experiências Humanas da Travessia, explicitam a travessia oceânica pelos franceses e a modificação estrutural que a sociedade era forçada a atravessar: o poder deixa de se entificar na monarquia e passa a se entificar no capitão. As vicissitudes da travessia eram tão graves que faziam os emigrantes desejarem a terra a todo custo.

O Brasil também participará dos roteiros de viagens no contexto do final do século XIX e início do XX. Há, aqui, um ponto de inflexão que norteará estas viagens, presente numa postura cientificista nascente. Estes viajantes assumem a perspectiva cientificista e buscam não mais o alimento cultural, mas o experimento, a observação, saindo do reconhecido e caminhando para o exótico; ocorre uma mudança do interesse do mundo urbano para o ambiente natural e o registro do outro assume um caráter mais pedagógico, coadunandose com um contexto de Nação nascente.

A historicidade das viagens expressa as marcas da relação tempo–espaço, mas independentemente do momento, as viagens e seus viajantes propõem uma discussão de alteridade. Vemos aqui a busca do outro, o que significa muitas vezes a busca de si próprio, a construção do eu–nós na oposição do outro–eles. Said, em sua discussão sobre a construção do orientalismo pelo ocidente, demonstra esta tessitura:

Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse oriente é meramente imaginativo. O oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia. [14]

Esta alteridade é constituída na demarcação das fronteiras, territoriais, econômicas, políticas e culturais, visível em seus símbolos, inserida em sistemas classificatórios perceptíveis na observação dos elementos que compõe o todo da viagem: seu planejamento, roteiro, registro e retorno, como observado nos diferentes registros sobre as viagens do Atlântico acima comentadas. A construção do outro e a demarcação do eu–nós passa pela própria narração da viagem, o que remete à importância do registro, do texto. Alguns aspectos perpassam o mesmo. O primeiro é o da consideração dos relatos de viagem na relação que estabelecem com os seus autores, os viajantes.

O artigo de Laís Guaraldo proposto neste volume, Delacroix no Marrocos e a Inversão do Exótico, faz esse trabalho de situar o viajante e seus relatos, quando mostra os registros do pintor – letras e imagens – na viagem ao Marrocos (Missão Diplomática, 1832) e as mudanças em suas concepções do “exótico”. A busca pelo pitoresco é comum e constante, no entanto, o conceito de pitoresco pode se alterar.

O segundo aspecto resvala na posterior apropriação das narrativas de viagem como texto historiográfico. Quando observamos as obras de Debret, sobre o Rio de Janeiro, em especial sobre os negros, temos um retrato desse cotidiano, registrado pelo viajante e analisado pelo historiador.

A obra Marchand de Tabac, de 1835, mostra uma cena muito interessante: alguns negros, acorrentados pelo pescoço, defronte a uma loja de tabaco, um desses negros está dentro da loja, supostamente comprando tabaco. Esse relato apresenta elementos fundamentais para compreendermos melhor o cotidiano dos escravos nos centros urbanos. Nesse caso, percebemos certa “mobilidade” desses indivíduos. Mesma “mobilidade” foi percebida por Sidney Chalhoub,[15] no livro Visões da Liberdade. Quando ele mostra possibilidades de intervenção do escravo em suas vidas, o quadro de Debret é um excelente argumento.

Aliás, essa obra nos apresenta outro grupo de viajantes e suas histórias: os escravos envolvidos no tráfico interprovincial. A partir de 1850, duzentos mil escravos foram transferidos para o sudeste brasileiro, através de vários atravessadores (com a utilização de procurações, substabelecimentos, para evitar os impostos e escrituras de compra e venda). Os escravos transferidos, na maioria dos casos, nasceram no Brasil e possuíam uma família. A vinda para o sudeste configurava-se como a primeira experiência traumática da escravidão. Buscando recompor algumas histórias, Chalhoub tenta entender essas viagens e descrever situações, como a do escravo Bráulio, que tenta fugir da escravidão no sudeste para voltar ao antigo cativeiro. Esse aparente paradoxo só pode ser entendido a partir da compreensão desse sujeito histórico.

Cabe destacar que os estudos sobre tráfico negreiro e escravidão dos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1980, ampliaram essa discussão, introduzindo o indivíduo na história, tornando-o sujeito histórico de fato e de direito. Dessa forma, o negro poderia passar da condição de “mercadoria” à condição de viajante – contrariado, é bem verdade – mas também ele capaz de nos trazer relatos do que viu e do que viveu. A obra de Marcus Rediker [16] se junta a outras que mostram essas histórias. Quando ele nos apresenta depoimentos – de tripulantes, de observadores diversos, dos escravos – dá feições aos números. Algumas histórias são simples quase banais, mas mostram o horror da escravidão, do cativeiro, do “tumbeiro”. A captura e escravidão inicial no interior africano era o primeiro ato da tragédia, muitos morreram nesses choques e sequer estão computados nos números assustadores de perdas humanas. O segundo ato era a viagem em um navio negreiro.

Jaime Rodrigues, em sua obra De Costa a Costa, nos apresenta alguns relatos de viajantes acerca dessas embarcações, descritas como infectas, repletas de pessoas “o teto era tão baixo e o lugar tão apertado que eles ficavam sentados entre as pernas uns dos outros, formando fileiras tão compactas que lhes era totalmente impossível deitar ou mudar de posição, noite e dia”.[17] É importante destacar que essa embarcação era tida como uma das melhores do período (século XVIII). Recompor esse cenário só é possível mediante os relatos desses viajantes, desses indivíduos diretamente relacionados ao processo histórico.

Nesse sentido, cabe destacar o artigo de Amilcar Torrão Filho, que apresenta uma discussão sobre as formas como a literatura de viagem foi utilizada pela historiografia brasileira. Em seu artigo Bibliotheca Mundi: Livros de Viagem e Historiografia Brasileira Como Espelhos da Nação quando mostra a obra de Von Martius – Como se deve escrever a história do Brasil – de 1845, percebemos o espanto e estranhamento desse autor – e tantos outros – com a mistura racial existente no Brasil. Martius buscava, como se fosse possível, uma visão imparcial, “do de fora” para emitir suas opiniões. Mas como cita Amílcar Torrão, “formas de ver são formas de pensar”.

Na obra de Fréderic Mauro, O Brasil no tempo de Dom Pedro II, [18] temos um exemplo dessa situação. O autor, através de relatos de viajantes, tenta recompor o Rio de Janeiro do século XIX. Os visitantes, antes de aportarem, deliciam-se com a visão paradisíaca da cidade. No entanto, o que mais apontavam nas suas descrições era a insalubridade. Um porto antigo, com escadas podres, detritos jogados na baía, transformada, assim, em uma grande fossa. As ruas eram utilizadas como sanitários pelos negros e deposito de lixo por todos. Temos nesse caso, uma visão de “atraso” calcada na ideia de “progresso” que estava ocorrendo na Europa. O final do século XVIII e, sobretudo o XIX, foram tempos de “limpar”, de “purificar”, como bem mostra Corbain.

Apesar de influenciados pela “forma de pensar”, estes são relatos fundamentais para tentarmos montar o mosaico do século XIX. O historiador tem a função de inserir as peças corretas e, mais, não poderia descartar aquelas destoantes, pois elas podem fornecer subsídios para a compreensão do pensamento estrangeiro sobre o Brasil e o que subsidiou essa visão.

Por fim, destacamos um último viés deste emaranhado de questões possíveis ao se ponderar sobre viagens e viajantes: a perspectiva do viajante que se estabelece nas novas paradas. Este passa por diferentes processos de olhares, significações e re-significações e a experiência, de viagem, se transforma agora em diáspora, como se vê no artigo de Jeffrey Lesser e Raanan Rein, Laços Finais. Novas Abordagens sobre diáspora na América Latina do Século XX: Os Judeus como Lentes.

No artigo de Maria Izilda Santos de Matos, intitulado A Diáspora Portuguesa: mulheres imigrantes portuguesas, é possível observar a análise de perseguições e expulsões ocorridas entre as décadas de 1920 e 1940. Com relação a esse artigo, é interessante pensar a relação do estado, do nacional, com esses viajantes, com esses estrangeiros. Temos, ao longo da nossa história, um constante “atrair” – imigrantismo no século XIX – e “afastar” – medidas restritivas da década de 1930.

Isso também ocorreu com o negro. Como aceitá-lo, posto que necessário, sem incluir ao povo brasileiro. Importante destacar que a questão negra, a questão das raças, do povo brasileiro, perpassa alguns artigos dessa revista. Nesse sentido, podemos destacar o texto O Brasil de Silvio Romero: uma leitura da população brasileira no final do século XIX, de Alberto Luiz Schneider, que mostra como Romero vislumbrava a questão racial no Brasil, seu equilíbrio entre a defesa da modernização e a defesa do nacional e da própria miscigenação racial.

Outros artigos, não menos importantes, compõem este dossiê, como A Memória da Catástrofe como unificadora do acontecimento e da experiência, de Fabiana Fredrigo e Laura de Oliveira, que é, não obstante, um depoimento sobre testemunhos do holocausto. Caminhos físicos, imaginários e simbólicos, de Adriana Vidotte e Adailson José Rui, relaciona o culto a São Tiago e as peregrinações a Compostela. O artigo de Ricarda Musser, Mulas, bondes y ferrocarril, analisa viajantes e viagens no Império brasileiro. O texto de Carlo Maurizio Romani, Um Eldorado fora de época, discute as expedições à região do Amapá no final do século XIX. Os artigos Luanda, Precisão do Olhar e Canibalismo: Georg MarcGrave e a História do Altântico Sul, de Ineke Phaf-Rheinberger e Intrahistoria de la Revolución Mexicana, de Carolina Depetris, também compõem de modo substancial este dossiê sobre Viagens, Viajantes e Deslocamentos.

Notas

1. SEVCENKO, Nicolau. Pindorama Revisitada. São Paulo: Peirópolis, 2000.

2. TORRÃO FILHO, Amilcar. A Arquitetura da Alteridade. São Paulo: Hucitec, 2010. Viagens, Viajantes e Deslocamentos. 17

3. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: companhia das Letras, 2007.

4. SEVCENKO, op. cit. 2000, p. 88.

5. MICELI, Sérgio. Nacional Estrangeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

6. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 244.

7. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

8. LÉRY, Jean. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Ed. Itatiaia. EDUSP, 1980, p.42.

9. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Edusp, 1969.

10. Gênesis 2, 2-9.

11. Cf. a obra de Giucci. Cf. CORBIN, Alain. Saberes e Odores: o olfato no imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Cia das Letras. E Cf. também PRIORI, Mary Del. Esquecidos por Deus. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

12. PIGAFETTA, A. A primeira viagem ao redor do mundo. trad. Jurandir S. dos Santos. Porto Alegre: LPM, 1985, p. 58 e 59.

13. SALGUEIRO, Valéria. ‘Grand Tour: uma contribuição à história do viajar por prazer e por amor à cultura’ in Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, 2002, p. 301.

14. SAID, op. cit. 2007, p. 28.

15. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

16. REDIKER, Marcus. O Navio Negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

17. RODRIGUES, Jaime. De costa a costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 133.

18. MAURO, Frèdèric. O Brasil no tempo de D. Pedro II. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

Carla Reis Longhi

Luiz Antonio Dias


LONGHI, Carla Reis; DIAS, Luiz Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 42, 2011. Acessar publicação original [DR[

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Alternativas e deslocamentos na construção da nação / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2002

FERRAZ, Maria do Socorro. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.20, n.1, jan / dez, 2002. Acesso apenas pelo link original [DR]

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